KIARA POV
Por um momento eu realmente acreditei que aquele plano daria certo. O youkai—monge, Chizu, nos conduziu por um longo período de tempo dentre os caminhos tortuosos daquele labirinto de túneis escuros. Segundo ele, só restava mais uma bifurcação para chegarmos na saída mais próxima de Gandara, onde deveríamos encontrar o aliado de Mukuro.
Mas tudo desandou.
Apesar de ter nos garantido que aqueles túneis não eram mais utilizados ou conhecidos por ninguém, ainda assim fomos encontrados por adversários que obviamente não estavam nem um pouco dispostos a conversar. Chizu nos protegeu como pôde, tornando-se o alvo principal do ataque para que aproveitássemos a deixa para fugir. Não tivemos outra alternativa a não ser obedecer, deixando-o para trás em meio àquela fuga inesperada. Nenhum de nós três hesitou, mesmo após ouvir os seus gritos distantes. Mesmo sabendo que ele também estava em apuros.
Mas de uma forma ou de outra, Chizu conseguiu cumprir o seu objetivo, pois ninguém veio atrás de nós.
Mesmo assim, não deixamos de correr. Seguimos em frente, apressados para sair dali o quanto antes. Adiante, a lanterna que eu carregava iluminou a última bifurcação do labirinto, que nos separava do nosso objetivo. Eufórica, olhei para trás, só para ter certeza que de ninguém estaria nos perseguindo, mas não encontrei nada além de uma infinita escuridão. Quando o feixe de luz da minha lanterna cruzou o caminho de Kuwabara, ele interrompeu a corrida.
— Droga! Eu não consigo continuar assim — ofegante, ele exclamou de dor, apoiando o peso do corpo sobre a parede para se sustentar. Em seguida, examinou o ferimento em sua perna que, até então, eu havia me esquecido completamente da existência.
— Você está bem, Kazuma? — Yukina perguntou a ele, aproximando-se para ajudar.
— Acho que essa coisa está perdendo o efeito — ele verificou o estado do torniquete amarrado na região — Isso tinha que acontecer justo agora?!
— Como assim? Que efeito? — perguntei sem entender.
— Foi Shigure que colocou. Disse que ia aliviar a dor, e até que aliviou mesmo. Mas acho que não deve funcionar direito se eu ficar forçando toda hora, principalmente correndo desse jeito.
— Você é inacreditável! Bem que achei estranho você estar andando nesse estado. Por que não disse antes? Deixa que eu resolvo isso — me preparei para ajudá-lo, estendendo a mão em direção ao ferimento.
Kuwabara rapidamente me impediu, me afastando em seguida.
— Não! Você disse pra gente economizar energia, lembra? Sei como você se esgota toda vez que faz isso.
— Mas nesse caso é diferente! Você pode acabar…
— Não insiste! Eu posso aguentar.
— Deixa que eu faço, então, Kazuma — Yukina o interrompeu — Acho que o resultado não vai ser tão bom, mas também posso usar a minha energia para te curar. Foi pra isso que andei treinando com a Kiara, não é? Assim, ela economiza a própria energia e você não vai mais sentir tanta dor.
Ela me encarou, como se buscasse por apoio, mas aquilo era desnecessário. Eu sabia que Kuwabara não recusaria a proposta antes mesmo que ele concordasse. Kazuma, inclusive, ficou mais do que satisfeito quando ela iniciou o procedimento, observando deslumbrado cada um de seus movimentos. Mas alheia à forma como ele a admirava, ela se concentrou ao máximo em minimizar os danos e, embora não tenha conseguido de fato reverter completamente a situação, Kuwabara pareceu bem mais aliviado ao vê-la estocar o sangramento com sucesso.
— Desculpa, mas acho que ainda não consigo fazer melhor do que isso.
— Do que você está falando, Yukina? Foi incrível, eu já nem sinto mais nada! Foi perfeito!
— Tem certeza?
— Claro! Tô novinho em folha! Viu? — ele se colocou de pé para mostrar que dizia a verdade, mas ainda evitava se apoiar na perna machucada. Não passava de um mentiriso.
— Mesmo assim, é melhor não correr mais. Podemos continuar seguindo em frente, mas devagar. Acha que consegue? — perguntei.
— Claro.
— Ótimo. Acho que já estamos chegando na saída — me aproximei da última bifurcação de túneis — Chizu disse pra seguirmos pela direita e nos encontrarmos com Karasuma. Não deve demorar. Vamos?
— Não, espera! Quanto a isso... — Kuwabara hesitou, revezando o olhar entre nós duas antes de continuar —...acho que deveríamos ir pela esquerda, não pela direita.
— Mas Chizu nos mandou ir pela direita. Por que desobedeceríamos?
— Eu não sei. Simplesmente sinto que o melhor a fazer é ir pela esquerda. Não posso explicar...Eu já contei que pressinto esse tipo de coisa.
Yukina e eu nos entreolhamos. Aquela era uma decisão arriscada. Na verdade, não fazia sentido algum, mas eu tinha todos os motivos para confiar na intuição de Kuwabara.
— É, eu sei. Você disse isso alguns segundos antes de nós sermos atacados na fortaleza de Mukuro. Não sou idiota a ponto de duvidar da sua percepção espiritual. Se você diz que é melhor pela esquerda, então eu acredito. Mas pra onde esse caminho vai nos levar?
— Acho que teremos que descobrir — ele deu de ombros, descartando a faixa que antes usava na perna. Em seguida tomou a dianteira, seguindo pelo caminho que desviava da rota programada.
Perdemos a noção do tempo dentro daquele túnel, andando no limite da velocidade de Kuwabara, até que, por fim, a escuridão foi se dissipando, dando lugar a um gradiente de luz natural que invadia o subsolo por uma abertura estreita. Ao sairmos dali, os meus olhos reagiram negativamente à luminosidade, demorando um pouco mais do que o normal para se acostumar com a visão do exterior, e o meu corpo inteiro estremeceu de frio com o choque da temperatura negativa.
— E agora? Que lugar é esse? — Kuwabara se encolheu, tentando se proteger do vento congelante daquela atmosfera — Que frio!
— Parece que estamos numa montanha. É difícil enxergar com toda essa neblina — tentei inutilmente forçar a vista, mas o céu completamente branco e nublado não me permitiu ver mais do que algumas árvores secas presas à encosta do monte rochoso — Yukina, reconhece esse lugar? Sabe aonde estamos?
Ela não respondeu de imediato, e eu demorei alguns instantes pra notar que ela tinha uma expressão angustiada no rosto.
— O que foi?
— Lembra que te contei que vivi a maior parte da minha vida no País do Gelo? Apesar de ter nascido aqui, não conheço quase nada do Makai. Desculpa…
— A culpa não é sua, Yukina! Não precisa se desculpar!
— Kuwabara tem razão. Não tem problema. A gente se vira.
Andamos pela única trilha que conseguimos encontrar, procurando por um mísero pedaço do céu que não estivesse encoberto por nuvens. No entanto, perdidos naquela região, quanto mais avançávamos, mais parecíamos estar adentrando ao nevoeiro. O frio, agora muito mais intenso, praticamente congelava os meus pés e mãos. Meus movimentos estavam rígidos e caminhar se tornava uma tarefa cada vez mais penosa.
— Q-q-que fri-i-o! Tô congelando! — Atrás de mim, ainda mancando devido ao machucado, Kuwabara tremia — Yukina...v-você…está b-bem?
— Óbvio que ela está. Ela é uma mulher da neve, nasceu no frio! Pode até produzir gelo, se quiser — respondi, sem paciência para aquele tipo de pergunta idiota.
Yukina nos encarou com um ar de pena.
— Vocês não acham melhor voltarmos? A temperatura está caindo muito rápido aqui. Vocês são humanos e não estão acostumados com isso. Não estão nem vestidos de forma adequada pra suportar esse clima.
— Mas vamos voltar pra onde? Não faz sentido retornar pro túnel agora — a respondi, esfregando os braços numa tentativa risível de me aquecer.
— Mas vocês não vão...— ela se deteve de repente, olhando fixamente para um ponto distante, acima de nós.
Antes que pudesse perguntar, senti algo gelado, pousar sobre o meu rosto. Limpei imediatamente a bochecha, arrastando o floco de neve que rapidamente derreteu, deixando um rastro de água por onde passou.
— Está nevando — Yukina disse, estendendo as mãos para receber os flocos brancos que caiam lentamente do céu.
— Ótimo — ironizei — Já não estava frio o suficiente?
Ela não respondeu. Ao se afastar de mim e Kuwabara, olhava pra todas as direções como se procurasse por alguma coisa.
— Qual o problema, Yukina? — Kazuma perguntou a ela.
— Acho que sei onde estamos.
— Isso é sério?!
— Sim, eu devia ter notado antes, mas toda essa neblina me impediu de reconhecer a montanha. Só me dei conta de quando começou a nevar.
— O que têm de mais em nevar? — perguntei.
— Não é assim tão comum ver neve no Makai. E os locais em que existe neve são sempre habitados por uma raça adaptada para essas condições, como é o caso do País de Gelo. Observando a vegetação daqui, acho que já sei onde estamos. N-não...tenho certeza! Conheço a raça que habita essa montanha. Nós, koorimes, temos um acordo com eles!
— Isso é fantástico! Significa que são seus amigos, ou não?
— Sim. Eu mesma já estive aqui. Quando fugi do meu país, me refugiei nesse lugar. Tenho certeza que se subirmos até o topo, eles vão nos receber! O único problema é que a temperatura aqui é muito baixa, então vai ficar cada vez mais difícil pra vocês aguentarem.
— Não importa. Essa é a melhor aposta que temos. Você é brilhante, Yukina! — a abracei num impulso de alegria.
— Totalmente brilhante! — Kuwabara concordou — Estaríamos perdidos se não fosse por você!
A perspectiva de encontrar ajuda nos animou. Seguimos em frente e, por mais complicada que fosse a jornada, não demorou muito para que chegássemos ao cume da montanha, embora a camada espessa de neve que agora se acumulava sobre os nossos pés tornasse a caminhada excruciante. Aliado a isso, o frio estava de matar. Congelante até os ossos. Tão forte que queimava a minha pele. Além disso, uma simples brisa qualquer parecia agir como cacos de vidro cortantes sobre o meu rosto. A dor estava insuportável. Meu corpo tremia tanto que pensei que a qualquer momento cairia dura no chão e, pelo que pude observar, Kuwabara estava ainda pior do que eu. Precisávamos urgentemente de um abrigo. Porém, ao enfim chegarmos no que parecia uma aldeia, nos frustramos ao não encontrar ninguém. Aquele lugar estava deserto, completamente desabitado e abandonado.
Sem querer, ao me distrair, escorreguei numa inclinação do solo. Por pouco não caí, lutando para me manter de pé.
— Que raiva! Sem ofensas, Yukina, mas eu odeio essa neve estúpida! Onde estão os seus amigos?
— Não sei. É estranho que ainda não tenham aparecido. Eles deviam estar aqui. Mas está tudo tão...quieto. A cidade parece estar vazia.
Ela se dirigiu à uma casa, batendo na porta para anunciar a sua presença. No entanto, nada aconteceu, nem mesmo quando ela chamou os habitantes pelos seus nomes, gritando à plenos pulmões.
— Talvez eles tenham se mudado — Kazuma arriscou.
— Isso não é possível. Eles não podem sair dessa montanha. Se saíssem daqui, morreriam.
— Por quê?
— A temperatura corporal dos Yukinoroi é constantemente baixa. Muito baixa mesmo, por isso só podem viver em condições extremas, tão congelantes quanto eles próprios. Mesmo se quisessem fugir daqui pra um outro lugar que tivesse as mesmas condições, morreriam no meio do caminho, antes mesmo de chegar ao destino. Até menor variação de temperatura pode ser fatal para eles. Por isso, eles nascem, crescem e morrem sem sair daqui.
— Isso é algum tipo de maldição? Que vida horrível — Kuwabara perguntou horrorizado.
— Se eles não saíram daqui, então o que aconteceu? Onde estão todos? — perguntei a ela.
Yukina, porém, não respondeu a nenhum de nós imediatamente. Em silêncio, ela ficou pensativa e, quando chegou a uma conclusão, levou as mãos à boca, arregalando os olhos em seguida.
— Não pode ser.
Ela praticamente sussurrou para si mesma, espantada. No entanto, nem eu e nem Kuwabara tivemos a chance de perguntar a que ela se referia.
Aquela coisa esquisita surgiu dentre as sombras no chão da aldeia em forma de chicote, a agarrando pelo tornozelo. Yukina gritou assustada e, ao ser envolta pelo que pareciam ser tentáculos negros, ficou completamente imóvel. Kuwabara se antecipou com a espada dimensional, cortando aqueles flagelos ao meio pra resgatá-la. Quando a espada os decepou, os tentáculos se retraíram, sumindo novamente entre as sombras projetadas no piso.
A sensação de alívio durou pouco. Novas projeções ainda maiores surgiram do solo, ricocheteando os enormes tentáculos em mim e Kuwabara. O impacto foi forte, nos arremessando contra um dos muros da aldeia. Me ergui a tempo de ver aquela coisa atacar novamente Yukina, mas, dessa vez, não foi nenhum de nós que a resgatou.
Um vulto rasgou a neblina no céu, explodindo o monstro antes mesmo que capturassem a koorime. Dentre a neve densa que pairava na atmosfera, uma figura encapuzada surgiu, carregando Yukina em seus braços.
— Me sigam! — a voz feminina e grave ordenou ao passar por mim e Kuwabara.
Mas ela nem precisava pedir. Se estava levando Yukina, não tínhamos outra alternativa a não ser segui-la. Corremos depressa, tentando acompanhá-la. Atravessamos uma ponte larga acima do lago congelado que dividia a cidade ao meio e, repentinamente, o youkai surgiu ao nosso encalço. Dessa vez, projeções ainda maiores emergiram do solo, sacudindo para todos os lados com o intuito de atingir a qualquer um de nós. Desviar foi complicado, ainda mais com aquela neve espessa e compacta que fazia eu me sentir a criatura mais lenta da face da Terra. Com aquele frio, o meu corpo inteiro estava travado e a nevasca constante caindo sobre o meu rosto me impedia de enxergar com clareza.
Os tentáculos tomaram impulso, se lançando sobre nós com o intuito de nos esmagar contra o solo. Consegui escapar por pouco. Já Kuwabara, continuava a destrui-los com a espada dimensional. Considerando o estado praticamente imóvel de sua perna ferida, aquela era a sua única alternativa.
Enquanto isso, à nossa frente, a youkai desconhecida carregava Yukina sem dificuldades, praticamente deslizando com maestria pelo cenário branco que nos envolvia.
— Se preparem para pular ali! — ela gritou, indicando uma espécie de bunker (1) logo adiante.
Ao acelerar o passo, ela tomou ainda mais a dianteira para, em seguida, desaparecer por completo ao saltar para dentro da abertura no chão. Ao mesmo tempo, um dos gigantes chicotes atingiram o solo com força, estremecendo-o por completo. Achei que seria atacada em seguida, mas Kuwabara foi mais ágil ao me segurar, saltando o mais distante que pôde em direção ao bunker.
Ao se jogar de qualquer jeito para dentro do buraco, nós dois caímos em queda livre, seguidos pelo inimigo. A sequência foi tão assustadora que passou diante dos meus olhos como se estivesse em câmara lenta. Ao sentir impacto das minhas costas com o chão, sabia que não conseguiria me levantar a tempo de escapar, então apenas observei paralisada aquelas coisas se aproximarem de mim, prestes a me capturar. Automaticamente fechei os olhos esperando pelo pior, mas um som crepitante me fez abri-los novamente. Ainda deitada no chão, observei aqueles tentáculos queimarem. Faíscas saiam de suas extremidades toda vez que tentavam adentrar ao bunker. E então, depois de algumas tentativas fracassadas de nos pegar, eles enfim se retraíram por completo, desaparecendo de vista.
Relaxei então, soltando a respiração que havia prendido sem querer. Ao meu lado, Kuwabara também estava no chão, caído de costas e completamente paralisado sem acreditar na sorte que tivemos em escapar por muito pouco daquela coisa.
Ao checar rapidamente o bunker, porém, compreendi que nem tudo era questão de sorte.
Não somente o teto do lugar, mas também as paredes estavam completamente decoradas com inúmeros amuletos em papel. Colados em cada centímetro daquele esconderijo subterrâneo. Eu não me considerava nenhuma especialista nesse tipo de coisa, mas foi fácil deduzir que aqueles pergaminhos criaram uma poderosa barreira capaz de deter aquele monstro. Estávamos, portanto, em uma área segura. Impassível de ser invadida por aquele youkai, ou seja lá o que fosse aquilo.
Me levantei rapidamente, ajudando Kuwabara a se reerguer. Seu ferimento sangrava novamente e, dessa vez, ele parecia realmente inclinado a perder a consciência a qualquer momento. Yukina me ajudou, deixando que Kazuma nos usasse de apoio. A youkai misteriosa ainda mantinha o rosto escondido sob o capuz que usava, deixando à mostra apenas os seus brilhantes olhos cor de âmbar. Quando se revelou, porém, seus traços miúdos e marcantes evidenciaram o seu rosto magro e azul-acizentado. Seus longos cabelos presos em tranças caíram suavemente até a cintura de seu corpo extremamente esguio. Ela estreitou os olhos já repuxados, abrindo os lábios finos em seguida.
— Não devia ter voltado, Yukina — disse então, sem esconder a sua insatisfação — Agora você é tão prisioneira quanto nós.
KIARA POF
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KURAMA POV
O território de Raizen não estava melhor que o de Yomi. Arriscaria dizer, inclusive, que estava pior. O conflito atingiu níveis catastróficos, tanto para Mukuro quanto para o Reino que agora pertencia à Yusuke. Os danos foram devastadores para ambos, enquanto Gandara ao menos se mantinha intacta. Fomos descuidados demais em deixar Kiara aqui sozinha, acreditando que ela estaria segura. Em teoria, ela estava escondida e cercada de diversos aliados poderosos. Mas quantos deles eram realmente confiáveis? Essa situação deixava claro que nem todos.
Estávamos prontos para eventuais adversidades, é claro, mas erramos ao subestimar o raciocínio do inimigo. Esperávamos um ataque e recebemos três. Se tivessem investido somente na fortaleza de Mukuro, teríamos conseguido chegar a tempo. Mas não foi isso o que aconteceu. Eles estavam seguindo os nossos passos e sabiam onde cada um de nós estaria hoje. Sabiam tudo sobre nós, mas nós não sabíamos nada sobre eles.
A situação era, ao mesmo tempo, ridícula e desesperadora.
Na batalha em Gandara, perdemos um tempo precioso e, quando chegamos aqui, tudo já estava uma catástrofe. A primeira coisa que fiz foi tentar detectar a presença de Kuwabara, Kiara ou Yukina, imaginando que estariam juntos em algum lugar. Mas era tanta gente misturada, tantos ataques, explosões e gritos, que me concentrar foi impossível. A técnica exigia uma capacidade de abstração inalcançável naquele momento. Então, sabendo que Kiara sempre passava as tardes no laboratório de Mukuro, segui para a fortaleza móvel.
Chamas avermelhadas escapavam das antigas janelas blindadas que agora estavam completamente destruídas. O cenário não era nada convidativo e, ao entrar, fui obrigado a desacelerar o passo conforme avançava. Quanto mais para dentro eu ia, mais a escuridão se intensificava. Caminhar por ali seria impossível.
Separei as sementes corretas para a ocasião, lançando-as no ar para em seguida germiná-las. A bioluminescência das folhas agiu no mesmo instante, iluminando todo o caminho adiante.
— Quem precisa de lanterna quando se pode usar plantas demoníacas brilhantes? — Yusuke, que me seguia até então, disse, passando por mim.
O chão, agora iluminado, revelava os mais diversos tipos de demônios. Imóveis e cobertos de sangue por toda extensão de seus corpos, misturados aos destroços da fortaleza. Nos apressamos, ouvindo os sons distantes da batalha proveniente do subsolo. Mas antes mesmo de chegarmos ao laboratório, eu logo soube que todo aquele escândalo não era causado por Kuwabara ou Kiara. Se fosse o caso, o estrago seria bem menor.
Mal chegamos ao corredor e um youkai atravessou o nosso caminho. Arremessado por outro, passou voando diante dos nossos olhos. Seu corpo se chocou com tanta violência numa pilastra que simplesmente terminou disforme. O sangue escorria lentamente pelo concreto, da cabeça até o chão. Ao seu redor, já haviam muitos outros no mesmo estado.
— Quem é o próximo? Eu aguento qualquer um! — Shura gritou de dentro do laboratório, pressentindo a nossa presença.
— Somos nós, Shura — anunciei, antes que tentasse nos atacar por engano — Parece que você já se livrou de todos os…
Parei de falar no instante em que ele saiu pela porta, carregando em suas costas o tanque que continha Chiharu. Foi então que entendi o que ele fazia ali. Mas Yomi não o mandaria vir até aqui somente pra resgatar Chiharu. Se a criança era uma peça importante em toda essa história, com certeza Kiara era muito mais.
— Eles estavam tentando levá-la — ele disse — Teria me livrado muito antes desses fracotes se não tivesse que carregar essa porcaria de um lado pro outro! Preciso tirar logo ela daqui.
— Você tá maluco, garoto? Ela pode não sobreviver desconectada dos aparelhos! Se quer protegê-la, o melhor a fazer é deixá-la aqui mesmo! — Yusuke o repreendeu.
— Você acha que já não pensei nisso? Só estou tirando ela daqui porque as máquinas desse laboratório foram danificadas no ataque! Não tem outro jeito, seu burro. Preciso levá-la pra Gandara!
— Ele está certo, Yusuke. Também não sabemos se a fortaleza vai se manter de pé até o fim dessa batalha. Todos nós podemos acabar soterrados. Não sei se Chiharu sobreviverá, mas é um risco que teremos que correr — respondi, recebendo um olhar de aprovação de Shura — Mas sobre levá-la para Gandara, temo que não seja o melhor momento. Seu reino também sofreu um ataque, Shura. Nesse exato instante, um confronto tão grande quanto este está acontecendo por lá.
A sua expressão se transformou radicalmente, transmitindo um sinal de desespero.
— O quê?! Essa não…
Ele nem tentou explicar nada. Simplesmente saiu correndo, carregando o peso do tanque consigo. Qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho — vivo ou inanimado — seria facilmente destruído pela força de seu youki.
— Espera aí! Entendo que esteja preocupado com Gandara, mas não pode correr pra um campo de batalha carregando essa garota nas costas! — Yusuke gritou, enquanto o seguíamos.
— Ah, cala a boca! Não é com Gandara que estou preocupado! Preciso chegar lá antes deles!
— Deles?! Ah, droga! Não me diga que…
O som ensurdecedor do bombardeio me impediu de escutar a conclusão de Yusuke, mas não tinha importância. Eu já tinha concluído o mesmo.
Apesar da fumaça escura e densa que se acumulava no ar, detectei as estrepes (2) pontiagudas lançadas à distância. Ao saltar para trás, desviei deixando que os espinhos de aço ficassem suas múltiplas pontas afiadas como navalhas no solo. Cansado e desajeitado sob aquele enorme tanque de regeneração celular, Shura teve problemas para anular o golpe das estrepes que, manipuladas por um adversário escondido, o perseguiram incessantemente aonde quer que fosse. Ao vê-lo propositalmente se deixar atingir para evitar danos no compartimento que continha Chiharu, intervi com o rose whip, rebatendo as armas para longe dele. Elas mudaram então a rota, me transformando no novo alvo. Em movimentos rotatórios, caíram do céu até mim, numa chuva cortante de aço. Mas os troncos emergiram do solo na mesma velocidade, interceptando o caminho de todas, deixando-as completamente presas e inutilizadas dentro das cascas fibrosas e resistentes das plantas demoníacas.
Olhei para os lados, em busca de Yusuke, mas ele já havia desaparecido completamente do meu campo de visão. Um youkai então despencou repentinamente do céu, prestes a atingir o tanque nas costas de Shura. Seu corpo, porém, foi partido em dois em um só instante, antes mesmo de atingir o seu objetivo. Ao lado dos pedaços, Hiei embainhava a katana, voltando-se em seguida para Shura.
— Então, é por isso que não consigo encontrá-los de jeito nenhum — ele disse, irritado — Você os mandou para Gandara? Por onde eles foram?
Eu já imaginava que Hiei também teria vindo para cá, principalmente considerando o perigo que Yukina estaria correndo. Pelo seu estado, ele gastou bastante energia onde estava, o suficiente para chegar o mais rápido possível. Nesse tipo de situação, Hiei não tinha paciência nenhuma e, por mais que tentasse não demonstrar preocupação, ele era previsível demais quando se tratava da própria irmã.
— E eu é que sei?! Parece que usaram umas passagens escondidas desses monges velhos. Mas eu conheço outro atalho, um caminho exclusivo para nós de Gandara. Vou chegar lá antes deles!
— Sozinho você não vai conseguir, Shura. Não enquanto estiver carregando esse tanque com você. Eu vou junto para te ajudar — eu disse, arrancando dele uma expressão de indignação.
— E quem disse que preciso da sua ajuda?!
— Precisou há dois minutos — retruquei, deixando-o sem resposta — Não seja teimoso. Estamos perdendo tempo aqui. Se não me engano, Yusuke já tinha comentado sobre os túneis secretos desse Reino. Vocês dois podem segui-los por lá, Hiei, enquanto Shura e eu tomamos esse outro caminho exclusivo para habitantes de Gandara. Temos mais chances de encontrá-los se nos dividirmos em dois grupos.
— Não fala besteira. Eu posso encontrá-los sem ajuda de ninguém — Hiei respondeu num tom ofendido. A semelhança com a expressão anterior de Shura foi gritante.
— Não pode. Só os monges conhecem esses caminhos, você vai precisar de um guia. Encontre o Yusuke, ele também está por aqui.
Hiei revirou os olhos, cansado da conversa.
— Que seja. De qualquer forma, eu vou encontrá-los. Você deveria se preocupar com essa garota — ele relanceou então Chiharu — Faça com que chegue em segurança até Gandara. E, de preferência, viva.
Hiei desapareceu do mesmo jeito que chegou, me deixando com Shura em meio àquele pandemônio. Contrariado, o filho de Yomi me amaldiçoou com um olhar colérico. Ele era tão transparente que eu quase podia ler os seus pensamentos. Tinha certeza que estava me xingando com as piores palavras que conhecia.
— Você vai ficar na minha cola, então? — ele arqueou as sobrancelhas, me olhando com desdém — Quero só ver se vai conseguir me acompanhar.
(1) Bunker - tipo de reduto subterrâneo que foi muito usado pra se proteger de ataques em guerras. Sim, em português se escreve búnquer, mas eu preferi manter a forma estrangeira.
(2) Estrepe - uma arma pontiaguda feita de pelo menos dois pregos, espinhos, ou qualquer coisa que seja cortante/perfurante. É uma arma de quatro pontas.
