Para Hiei não havia nada pior do que depender de alguém. Ele preferia agir sozinho, sem ninguém para palpitar nas suas decisões ou ditar o que ele devia ou não fazer. A sua liberdade era uma das poucas coisas que ele ainda prezava em sua própria vida. No entanto, naquele momento, ele teria que admitir que Kurama estava certo. Dentro do labirinto de túneis subterrâneos, Yukina, Kiara e Kuwabara eram indetectáveis. Sozinho, não havia nada que ele pudesse fazer ali para encontrá-los. Nem sequer sabia qual caminho tomar.
Por isso, não teve outra alternativa a não ser aceitar a companhia de Yusuke e Seizan, um dos youkais do reino de Raizen que se voluntariou para guiá-los naquele lugar.
Foi no meio do caminho, porém, que eles foram obrigados a parar. Chizu, acompanhante de Kuwabara, Kiara e Yukina, estava sentado diante de uma gangue de youkais serpentes, cujos membros agora estavam mortos; as suas armas afiadas e robustas estavam espalhadas pelo chão, sem mais nenhuma serventia. Em frente a eles, Chizu ofegava com força, sustentando a mão no quadril, onde havia uma laceração profunda que o tornava simplesmente incapaz de se mover. A hemorragia era severa.
Seizan foi o primeiro a socorrê-lo. Rápido, checou os seus sinais vitais. Chizu ainda estava consciente, mas não permaneceria daquele jeito por muito tempo. Seu estado exigia pressa em receber cuidados. Seu companheiro o levantou, carregando-o para que pudessem prosseguir. Com dificuldade, Chizu os explicou sobre como foram atacados e como conseguiu manter os inimigos longe dos Kuwabara, Kiara e Yukina, deixando que eles escapassem pelo caminho por ele indicado, onde seriam escoltados em segurança até Gandara.
Eles se apressaram, no entanto, ao chegarem na bifurcação final que os levaria para a saída próxima de Gandara, forçaram uma nova pausa. Dessa vez, por iniciativa de Hiei. Atrás dele, Yusuke e Seizan o imitaram, tentando compreender a parada brusca e repentina.
— Qual é o problema? — Yusuke se aproximou — Não temos mais tempo a perder.
Hiei não respondeu. Sabia que naquela escuridão nem mesmo os youkais mais fortes eram capazes de captar todos os detalhes do terreno. Se o demônio não possuísse uma visão altamente desenvolvida, muitas coisas passariam despercebidas num lugar como aquele. Esse era o caso de Yusuke e o subordinado de Raizen, totalmente dependentes de iluminação para enxergar com clareza. Com a força que possuíam, podiam pressentir a energia maligna de outros youkais, enxergando-os ou não, mas, às vezes, dependendo da situação, tanto poder não servia para nada.
Por isso, Hiei se dirigiu à entrada esquerda da bifurcação. Tal como Yusuke, ele não havia nascido com a capacidade de enxergar no escuro, mas o implante do Jagan mudava tudo. Ali, jogada no solo, havia uma faixa. Ele a recuperou do chão e a examinou com cuidado o sangue contido nela. Estava úmida e encharcada.
— Sabe se algum dos três estava ferido? — perguntou então para Chizu, que ainda lutava para não perder a própria consciência..
— Um deles estava mancando, mas não perguntei o que aconteceu.
— Por que a pergunta, Hiei? — Yusuke questionou — O que você achou aí?
— É uma faixa usada pra aliviar a dor de um ferimento profundo. Bem parecia com as que o Shigure usa, isso se não for exatamente igual.
— Tá coberta de sangue — Yusuke a tomou da mão de Hiei, preocupado — Acha que é de um deles?
— Só pode ser. Não tem outra explicação. O sangue é fresco demais pra ter sido deixada aqui há mais tempo. Devem ter ido por esse caminho.
— Impossível. O caminho para Gandara é o outro. Por que eles iriam pelo lugar errado? — Seizan questionou — Eu até entendo que um deles possa ter se confundido, mas os três? Não é meio improvável?
— É, a não ser que eles não tenham se confundido — Yusuke respondeu — Do jeito que Kuwabara é, talvez tenha pressentido que as coisas não estavam bem em Gandara e por isso desviou a rota propositalmente. O instinto dele sempre foi bem afiado.
— Hm, pelo menos nisso ele é bom — Hiei retrucou — Não tem outro jeito, a não ser seguir por aqui. Pra onde essa rota vai levar?
— Lugar nenhum, basicamente — Seizan respondeu — Nada além de montanhas nevadas. É bem frio por lá. Nunca sequer exploramos a região, porque não tem nada útil por ali.
— Chizu precisa de cuidados, não dá pra levar ele pra "lugar nenhum". Melhor tentar seguir pra Gandara em segurança. É a única chance que ele têm. Só precisa tomar cuidado com a batalha que tá rolando por lá. Se encontrar Shura e Kurama no meio do caminho, pode seguir com eles pela passagem escondida dos habitantes de Gandara. Hiei e eu continuaremos pelo desvio e só retornaremos quando encontrarmos os três.
Seizan concordou, se separando de Hiei e Yusuke, que, sem ninguém para atrasá-los, aproveitaram para prosseguir em velocidade máxima. No entanto, ao saírem do labirinto de túneis subterrâneos, a busca se mostrou completamente infrutífera. Como Seizan tinha dito, não havia nada naquele fim de mundo. Somente um aglomerado de montanhas e um terreno deserto. O clima era tão frio que parecia desfavorável para a existência de qualquer forma de vida e o nevoeiro denso que pairava sobre eles atrapalhava consideravelmente os seus planos. Mesmo Hiei que, com o uso do Jagan poderia ter uma visão muito mais ampla de tudo e todos ao seu redor, não detectou nenhuma civilização. Nada além de uma vegetação seca e estéril.
Frustrado, ele não compreendia como simplesmente qualquer sinal dos três teria desaparecido por completo e até cogitou a possibilidade de ter se equivocado ao assumir que teriam ido parar naquele fim de mundo. No fundo, porém, ele sabia que aquilo não fazia sentido. A faixa ensanguentada indicava o caminho correto, mas por que ele não conseguia encontrá-los? Por que não era capaz de encontrar Yukina? Com o tempo, ele aperfeiçoou a capacidade de detectar o youki da irmã, justamente para que nunca mais a perdesse de vista. No entanto, agora ele estava como quando implantou o Jagan: totalmente perdido. Naquele época, ele vivia em busca de uma garota que jamais poderia ser encontrada, mesmo com os poderes do olho demoníaco, afinal, Tarukane a mantinha presa em um local indetectável por uma barreira de amuletos.
A lembrança o fez estagnar no mesmo lugar, confuso. A sensação era exatamente a mesma daquela época, mas não poderia ser o mesmo caso, poderia?
— Já estamos aqui há horas e até agora nada — Yusuke se aproximou, impaciente. Já havia anoitecido no Makai — No fim das contas, eles devem ter seguido mesmo pra Gandara. Melhor voltarmos e…
— Pode voltar sozinho, se quiser.
— Deixa de ser cabeça dura, Hiei. Já procuramos em todos os lugares. Não tem nada aqui, pra onde eles teriam ido se tivessem vindo pra cá? Está nevando sem parar! Kuwabara e Kiara são humanos e seria impossível aguentarem esse clima por tanto tempo. Sei como é, porque já experimentei a resistência de um humano e posso garantir que é infinitamente inferior a de um youkai. Além disso, todo esse terreno é um grande deserto. Não tem vida em lugar nenhum. Por que se nega a assumir que erramos?
Hiei não respondeu, simplesmente porque não tinha uma boa resposta pra dar. De fato, a visão remota não lhe permitiu encontrar nada além de uma aldeia abandonada no topo da montanha. De resto, Yusuke estava certo.
— Sabe-se lá o que aconteceu em Gandara. A essa hora, a batalha deve ter acabado. Não sabemos como as coisas terminaram e nem se os três apareceram por lá. Só estamos perdendo tempo aqui.
— Eu já falei que você pode ir. Não estou te obrigando a ficar.
Yusuke suspirou, cansado. Não tinha tempo para perder com discussões sem sentido.
— Ok. Eu não vou ficar aqui parado esperando eles caírem do céu. Vou até lá pra verificar se eles apareceram. Se não estiveram em Gandara, eu volto correndo pra cá. Mas antes de ir, quero perguntar uma coisa. Você tá sabendo algo que não sei?
Hiei não entendeu a pergunta e, por um momento, pensou ter detectado um tom acusatório na voz de Yusuke. No entanto, a sua expressão indicava outra coisa.
— O que está insinuando?
— Acho que tô perdendo algo importante.
— E o que tenho a ver com isso?
— É o que eu queria saber. Se lembra quando Kiara desmaiou? Ela estava bem perturbada com alguma coisa, mas se recusou a me dizer o que era. A única coisa que ficou clara é que você sabe o que é. O que aconteceu?
Hiei permaneceu calado, principalmente porque vinha tentando ignorar aquilo. Naquela época foi categórico em concluir e afirmar que tudo não tinha passado da imaginação de Kiara, mas agora já tinha dúvidas. Era estranho que eles tivessem sido atacados justamente após Kiara ter encontrado uma desconhecida. No entanto, a presença de uma humana na fortaleza de Mukuro também desafiava a lógica. Simplesmente ele não sabia mais o que pensar, mas o incomodava a possibilidade de ter tido a oportunidade de evitar aquele desastre e simplesmente desdenhado de toda a situação. Se foi esse o caso, ele não passava de um imbecil.
Hiei ponderou por alguns instantes, certo que, de qualquer forma, não devia dar explicações pra ninguém. Não enquanto não tivesse provas concretas de que havia cometido um erro nessa história. E para isso, teria que investigar a fundo e, dessa vez, com mais calma.
— E então? Não vai falar nada? — Yusuke perguntou, dando um tapa em suas costas para chamar a sua atenção.
— Você ainda está aqui…— Hiei pensou em voz alta, se dando conta de que havia ficado quieto por mais tempo do que o normal. Para sua infelicidade, Yusuke não parecia inclinado a desistir — Não tenho nada pra dizer. Se quiser saber, pergunte de novo a ela.
— Vai ficar de segredinho, então? Você é um tremendo estraga prazeres! Nem sei pra que me dei ao trabalho de te perguntar.
— Eu também não sei.
— Que seja então. Assim que eu tiver notícias de Gandara, volto pra te atualizar.
Hiei o observou desaparecer de vista, mais aliviado por ficar sozinho. Agora não precisava mais se preocupar em esconder toda a decepção que estava sentindo consigo mesmo.
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KUWABARA POV
Aos poucos os meus olhos se abriram. Eu estava desnorteado. Suava muito, mesmo com o ar frio que me envolvia. Também estava enjoado, como se o meu estômago estivesse ao avesso.
Deitado debaixo do que parecia ser uma grossa malha, não identifiquei que lugar era aquele. Também não me lembrava de como fui parar ali. O quarto estava escuro, iluminado precariamente por duas únicas fontes de luz: um par de lampiões posicionados nas extremidades do cômodo.
Meu corpo protestou quando virei o pescoço para o lado, como se tivesse ficado petrificado na mesma posição por anos. Só então me dei conta de que Yukina também estava ali. Deitada em futon a apenas um metro de distância de mim, ela dormia profundamente. Parecia estar bem, mas, mesmo assim, eu precisava ter certeza.
Meus lábios se abriram para chamá-la, mas minha voz não saiu na primeira tentativa. Quando pensei em tentar de novo, fui repreendido.
— Deixa ela dormir — do meu outro lado, Kiara sussurrou num tom suficientemente audível para que eu ouvisse e, ao mesmo tempo, não acordasse Yukina — É o melhor pra ela nesse momento.
Me virar em sua direção foi uma tortura. O quarto inteiro girava, fazendo o meu estômago se embrulhar ainda mais. Fechei os olhos então, deixando que imagens aleatórias começassem a tomar forma na minha memória. Dentre elas, me lembrei do instante em que Yukina tinha sido capturada.
— Por quê?! O que aconteceu com ela?!
— Com ela, nada. Deveria se preocupar mais consigo mesmo. Você apagou!
— Sério? Lembro de me sentir muito mal de repente...tinha aquela coisa que estava nos seguindo e nós escapamos. Ou melhor, eu pelo menos acho que escapamos. Onde é que nós estamos, hein?
— Numa espécie de esconderijo subterrâneo protegido. Aquele youkai não pode entrar aqui.
— E que youkai era aquele?
Ela suspirou, se encolhendo ainda mais onde estava. Parecia querer evitar a conversa.
— Como eu disse, você deveria se preocupar mais consigo mesmo. Estava ardendo em febre quando chegamos! Seu machucado infeccionou muito rápido e você perdeu bastante sangue. Melhor não se esforçar por um bom tempo. Como está se sentindo agora?
— Parece que fui atropelado por um caminhão. Ou por dois.
Só então me dei conta de que minha perna estava imobilizada por um suporte de metal. E não só isso, mas também estava enfaixada por uma espessa camada de ataduras repletas de escrituras inteligíveis para mim.
— O que é isso tudo?!
— Você deu sorte. O povo daqui não tem tecnologia, mas conhece um método tão eficaz quanto pra salvar a vida de alguém. São especialistas nesse tipo de técnica com amuletos. A sua febre já baixou consideravelmente e o ferimento já está bem melhor.
— O povo daqui? Aqueles youkais que Yukina comentou que não podem sair da montanha?
— É muito pior do que isso. Eles não só não podem sair da montanha por conta da temperatura corporal que possuem, como também nem sequer conhecem água quente! Qualquer coisa que esteja numa temperatura minimamente aceitável para nós, é proibida por aqui. Não imagina a minha frustração quando descobri que não podia acender fogo pra nos aquecer. Me fuzilaram com o olhar quando perguntei. Mas não dá pra reclamar, porque eles nos deram abrigo. Ainda é muito gelado, mas pelo menos aqui dentro não neva.
— É mesmo muito frio. Parece até que tô dormindo numa banheira de gelo. Assim que eu melhorar, mesmo que seja um pouco, a gente dá o fora daqui!
Kiara prolongou o silêncio, evitando propositalmente concordar comigo.
— O que foi? — perguntei.
— Não sei se vamos dar o fora daqui tão cedo.
— Por que não?
— Pelo visto não se lembra do que aquela youkai disse antes de você desmaiar.
— O que ela disse? Por que não vai direto ao ponto?!
— Ela disse que Yukina não deveria ter retornado pra cá, porque agora ela está tão presa quanto os yukinoroi que vivem aqui. Aquela coisa lá fora, é youkai dimensional que se alimenta de demônios do gelo. Por isso ele tentou pegar Yukina.
— O quê?! Que história é essa agora? Ele nos atacou também!
— Fala baixo! — ela desviou o olhar para verificar se Yukina continuava adormecida — Ele nos atacou só pra nós tirar do meio do caminho. O alvo era a Yukina. Aquela youkai que nos salvou, Izumi, contou que se fôssemos só nos dois expostos daquele jeito, esse demônio nem sequer teria aparecido. Ele somente detecta o youki de raças do gelo. Fomos atingidos por tabela, mas ele não nos oferece perigo se não estivermos acompanhados de um youkai de gelo. Enfim, é por isso que eles estão vivendo aqui, escondidos nesse lugar repleto de amuletos e inscrições que impedem a invasão do demônio dimensional, além de também impossibilitar a localização de qualquer pessoa que esteja protegida por elas.
— Mas Yukina não disse que viviam naquela aldeia abandonada? Esse youkai chegou agora, então?
— Não, esse é o problema. Ele vive aqui há muito tempo! Segundo Izumi, antigamente os yukinoroi tinham que fazer sacrifícios pra manter o youkai dimensional sob controle.
— Espera aí! O que quer dizer com sacrifícios? — Kiara não respondeu, mas pela expressão em seu rosto, a minha conclusão estava correta — Tá dizendo que eles ofereciam gente do próprio povo praquele monstro?! Isso é nojento!
— Foi o único jeito que encontraram pra sobreviver. Eles perceberam que, depois do sacrifício, o youkai passava um bom tempo sem atormentar a aldeia. O aparecimento dele era periódico, então eles sabiam exatamente quando a próxima oferta deveria ser feita. Como não podiam sair da montanha, não tinham outra alternativa a não ser conviver com o youkai. Caso ele ficasse nervoso, as consequências seriam muito piores e o número de mortes com certeza aumentaria.
— Pro inferno com esse monte de ladainha! Nada justifica essa atrocidade! Por que não mataram essa porcaria de youkai?
— E você acha que não tentaram? Já fizeram de tudo, mas é um demônio dimensional. Parece que não é assim tão simples. Ele consegue se esconder com facilidade e quase nunca fica vulnerável. Eu nem sequer sabia que esse tipo de youkai existia.
Ela estava certa. Demônios dimensionais não eram como os outros. Não é qualquer um que conseguiria encontrá-los ou destruí-los. Me lembrei do Sombra Gigante a comando de Itsuki, nos prendendo em outra dimensão enquanto Yusuke lutava com Sensui. Sem a espada dimensional, jamais teríamos escapado de lá.
Pelo menos, todo esse problema eu poderia resolver.
— Se eles não conseguem, eu consigo! — eu exclamei, quase perdendo o controle sobre o meu tom de voz — Vou dar um jeito de destruir esse desgraçado.
— Vai com calma, nesse estado você não vai conseguir fazer muita coisa. Além disso, é perigoso pra nós também.
— Mas você disse que ele só persegue youkais do gelo.
— Sim, mas se formos um empecilho, como da última vez, ele não vai hesitar em nos atacar. Nesse caso, a gente pode acabar como ela.
Kiara apontou para o outro lado do quarto, onde a escuridão estava ainda mais intensa. Se não fosse pelo aviso, eu nem teria percebido a presença da garota que, sentada sobre o seu futon, nos observava apática e ligeiramente cabisbaixa. Com os olhos compenetrados em mim, ela nem mesmo piscava. Tinha um olhar opaco.
Engoli em seco, sem saber o que dizer. Devia cumprimentá-la? Por que me encarava com aquele jeito mórbido e sinistro?
— Quem é...? — perguntei a Kiara, sussurrando o mais baixo possível. Virando em seguida para a garota, forcei um aceno desajeitado.
— Não perca o seu tempo, ela não pode te ver. Também não pode te ouvir. O nome dela é Naoki. Fez amizade com Yukina quando ela se refugiou por aqui, depois de fugir do País do Gelo. Pelo que entendi, se tornaram quase inseparáveis. Mas agora ela não reage a nada.
— O que aconteceu?
Kiara suspirou, voltando a se encolher sob a manta que envolvia o seu corpo.
— É uma história triste. Como eu disse, há muito tempo os yukinoroi sacrificavam um membro do próprio povo em prol de todos os outros. Mas isso faz muitos e muitos anos. Apesar de não saírem da montanha, eles conseguiram contratar serviços de terceiros por meio daqueles que vinham até eles. Em um determinado momento, eles fizeram uma aliança com as koorimes. Parece que as pérolas de gelo que elas produziam já eram mais do que suficientes pra satisfazer a fome do youkai dimensional. Consegue imaginar a alegria que sentiram? Eles não precisariam mais fazer sacrifícios. Em troca das lágrimas gélidas das koorimes, eles ofereceram ensinamentos sobre essa coisa de escrituras, amuletos e pergaminhos, que as mulheres do gelo ainda não conheciam. Elas queriam essa técnica pra proteger o próprio país de invasores. Foi uma aliança duradoura, até que...
— Até que o quê?!
— Até que Yukina fugiu de lá e se refugiou aqui. Parece que algumas mulheres do gelo estavam seguindo os passos dela, acredita? Quando ficaram sabendo que os yukinoroi aceitaram recebê-la, eles foram considerados traidores. Yukina era uma traidora e quem a ajudasse também seria.
— Que acusação absurda! Yukina uma traidora? Quem elas pensam que são pra dizer uma coisa dessas? Essas malditas velhas…
— Pois é, mas aí você já imagina o que aconteceu. As koorimes romperam a aliança e deixaram de enviar lágrimas gélidas para os yukinoroi. Sem as lágrimas, esse povo não tinha mais como alimentar o youkai dimensional. Então, eles tiveram que abandonar a superfície e se refugiaram aqui no subsolo. Não tem sido fácil, principalmente porque precisam sair para buscar comida. Então, já morreram vários yukinoroi desde que isso tudo aconteceu. Mesmo assim, não retomaram o velho hábito de sacrificar os próprios companheiros. Dessa vez, decidiram encarar o youkai. Pelo que parece, ele já está sem se alimentar há uns dois anos.
— Isso explica o desespero pra capturar a Yukina. Ele deve estar faminto! Mas o que isso tem a ver com o estado daquela garota?
— Tem tudo a ver. Quando os yukinoroi precisam sair do esconderijo, eles tem que planejar muito bem o que farão. Um dia, quando foram em busca de comida, essa menina estava junto com o grupo. Parece que a estratégia de caça deu errado naquele dia e o youkai dimensional a capturou. Por pouco não a devorou. Antes disso, outros membros do grupo conseguiram feri-lo. Obviamente não foi o suficiente para matá-lo. Um deles, inclusive, foi levado no lugar da Naoki. Ela ficou nesse estado vegetativo desde então. Aparentemente, esse youkai pode fazer algo com a mente do alvo, como se a arrancasse pra fora do corpo ou sei lá. Ela está viva, mas não reage a nenhum estímulo externo, entende? Não fala, não se move sem ajuda, não demonstra escutar ninguém. Eles não sabem se um dia conseguirão desfazer desse transe. Por isso temos que tomar cuidado. Não sabemos se isso pode acontecer com a gente também.
— Que merda! Yukina deve estar arrasada.
— Você nem imagina. Ela se sente culpada por tudo isso. Pelo fim da aliança, pelo destino da amiga. Ela sente que condenou a todos os yukinoroi. Inclusive, ela tem chorado sem parar, e até tentou esconder de mim, mas isso é meio que impossível, né? — Kiara estendeu a mão cheia de lágrimas gélidas em minha direção — Por isso eu disse pra você deixá-la dormir. Enquanto dorme, pelo menos ela não pensa em nada disso.
— Nós temos que fazer alguma coisa. Nem a pau deixo a Yukina presa aqui. Me recuso a ir pra qualquer lugar sem ela.
— É por isso que já tenho pensado em algumas formas de resolver a situação.
Ela brincava com as lágrimas gélidas de Yukina, rolando-se de um lado para outro na palma de sua mão. Um alarme de alerta tocou na minha mente. Eu logo soube que tinha algo de errado ali, embora ainda não compreendesse exatamente o quê.
— Kiara, não vai fazer nenhuma besteira. Espera eu levantar daqui que a gente dá um jeito nisso juntos, tá?
— Eu não vou fazer nenhuma besteira, Kuwabara.
— Só me promete que não vai tentar fazer nada sozinha.
Ela suspirou fundo, desviando o olhar. Em seguida, guardou as lágrimas gélidas.
— Tá bom. Eu prometo. Não vou fazer nada sozinha. Por que não descansa mais um pouco? Você realmente está precisando.
Ela se deitou e, indicando que faria o mesmo, fechou os olhos.
Não questionei mais nada e, embora ainda não estivesse completamente satisfeito com a forma apressada que ela finalizou a nossa conversa, não tinha outra escolha a não ser confiar na sua palavra. Fixei a minha atenção em Yukina mais uma vez, observando a forma com que as suas feições se tornavam ainda mais delicadas enquanto ela dormia. Infelizmente, havia um toque de tristeza em seu semblante. E como poderia ser diferente? Ela dormiu atormentada.
Se ao menos eu pudesse confortá-la...Eu faria de tudo pra aliviar o fardo que ela estava carregando sozinha, mas Yukina ainda era inalcançável pra mim.
Minhas pálpebras pesaram. Fiquei a admirando até não aguentar mais, desejando poder protegê-la de tudo.
KUWABARA POF
KIARA POV
Dormir estava fora de cogitação. Meu cérebro estava trabalhando quinze vezes mais do que o normal. Eu estava pilhada. Deitei e fechei os olhos só pra enganar Kuwabara. Sob a vigília dele seria impossível fazer qualquer coisa. Não sei se ele acreditou na minha promessa, mas, de qualquer forma, eu não tinha mentido exatamente. Eu não estava planejando agir sozinha, mas esperar que ele melhorasse também não era uma opção. Quanto tempo isso levaria? Aguardei então que ele adormecesse para me levantar e, em seguida, saí do quarto no mais absoluto silêncio.
Já era noite e tudo estava quieto no abrigo. Apenas alguns membros do grupo mantinham a guarda na entrada do bunker. Pelo visto, era um hábito antigo. Estavam sempre alertas para qualquer perigo.
Caminhei até eles um pouco apreensiva. Nossa presença os incomodava e, ainda que não tivessem declarado isso abertamente, a forma como nos observavam não era das mais amistosas. Felizmente, dentre os três yukinoroi que estavam ali, encontrei Izumi. Por mais que ela também não simpatizasse comigo, pelo menos não me ignorava como os outros.
Me aproximei e inspirei fundo, procurando iniciar a conversa.
— Podemos conversar?
Ela estava de costas. Quando se virou para mim, parecia indiferente e prestes a recusar o pedido.
— Não deveria estar dormindo?
— Sim, mas eu tenho uma dúvida sobre esses pergaminhos que vocês usam.
— E essa dúvida é tão importante que você simplesmente não conseguiu esperar até amanhã pra me perguntar?
Ela não podia ser mais direta. Não estava para conversas, ainda mais comigo. Me olhava como se fosse um estorvo.
— É muito importante.
Ela suspirou.
— O que quer saber?
— Vocês são especialistas nisso, certo? Conseguem usar esses amuletos pra tudo?
— Óbvio que não. Pra tudo seria impossível.
— Tá, mas vocês usam pra muitas coisas. Conseguem usar, por exemplo, pra controlar alguém?
Ele franziu a testa e me olhou desconfiada. Não posso culpá-la, a pergunta era mesmo estranha, além de ser completamente aleatória.
— Que tipo de conversa é essa?
— Só me responde. É possível usar esse tipo amuleto pra controlar alguém?
Ela deu de ombros, resignada.
— Sim.
— Mas o amuleto é suficiente pra controlar alguém ou vocês precisam fazer algo a mais?
— O amuleto seria suficiente, mas oferece um controle a curto prazo.
— Como assim?
— Não é óbvio? Controlar alguém é uma técnica muito complicada, garota. Exige domínio total sobre o alvo. Sua mente, pensamentos, corpo, músculos, movimentos e vontades. Um simples amuleto pode até conseguir atingir esse objetivo, mas o efeito não vai durar muito tempo. No máximo, dura algumas horas, até que a pessoa consiga se libertar do controle. Se quer mesmo saber, isso não seria muito difícil.
— Então pra controlar uma pessoa a longo prazo seria preciso de outra técnica?
— Sim.
— Tipo qual?
— Isso eu não sei. Esse tipo de coisa não é da nossa alçada. Nunca nem sequer tentamos algo assim. Pra que todas essas perguntas, afinal?
Recuei um pouco ao vê-la estreitar o olhar, me dando conta de como estava sendo incisiva. Mudei então a postura, tentando soar menos suspeita.
— Procuro por uma pessoa que foi sequestrada. Ele está sendo mantido sob controle do bando que o capturou. Antes, usava um amuleto como esses que vocês tem aqui. Aquela droga de pergaminho parecia manter ele sob controle, mas quando eu consegui remover, ele não voltou ao normal. Eu não sei o que fizeram...
— O pergaminho então era só fachada. Como eu disse, esse tipo de coisa não funciona a longo prazo. Eu não entendo nada sobre tomar controle de alguém, mas posso te garantir que essa é uma técnica muito sombria. Não é algo que qualquer um seria capaz de fazer. Usar alguém de fantoche pelo resto da vida? Tem que ser muito cruel e também muito poderoso.
Engoli em seco, imaginando todo o sofrimento de Kazuki.
— De qualquer forma, se quer saber sobre esse assunto, deveria procurar um especialista. Talvez alguém capaz adulterar memórias, ou qualquer coisa assim. Sei que existem muitos por aí. Agora vá dormir. Ficar pensando nisso não vai resolver o seu problema.
— Na verdade, também queria falar sobre outra coisa. Sobre esse youkai dimensional que persegue vocês.
— Eu já devia imaginar que tinha algo a mais — ela revirou os olhos — Não tenho nada pra falar sobre isso. Não com você.
— Mas eu andei pensando numa forma de derrotá-lo.
— Ah, por favor…isso é algum tipo de piada sem graça? Não há nada que nós já não tenhamos tentado. Melhor se conformar de uma vez que estamos presos aqui. Quer dizer, pelo menos nós, youkais de gelo, estamos. Se quiser ir embora, vá sem a Yukina. Quanto mais cedo aceitar o destino dela, melhor será pra você.
— Vocês não tentaram de tudo, tenho certeza disso.
— Quanta presunção pra quem acabou de chegar aqui, hein? Você não sabe nada sobre nós.
— Sei o suficiente. E não estou disposta a ir embora sem a Yukina. Por isso guardei essas pedras comigo — estendi a mão, mostrando a ela as lágrimas gélidas que a koorime tinha derramado antes de dormir.
— Hiruiseikis? — ela bufou, desviando o olhar — Essa é a sua grande ideia? Acha mesmo que vai resolver o nosso problema? As mulheres do gelo antes nos enviavam pilhas e pilhas dessas pedras. Aquela coisa lá fora não vai se saciar com apenas duas dúzias delas! Ele está há anos sem comer. E mesmo se funcionasse, assim que as pedras acabarem, teremos que nos esconder de novo. Já estamos cansados desse inferno de vida. Buscamos uma solução definitiva, não temporária.
— E quem falou em solução temporária? A intenção é justamente acabar com ele de uma vez por todas.
— E como isso vai nos ajudar a destruí-lo?
— Bom, pra destruí-lo você precisa sair daqui, não é? O que é um problema já que você corre risco de vida toda vez que faz isso. E além do mais, pelo que percebi, vocês conseguem destruir somente parte dele, aqueles chicotes ou seja lá o que for aquilo. Já conseguiram acertá-lo no corpo principal?
Izumi esperou um pouco antes de responder. Ela me analisava agora com mais atenção.
— Não. Já tentamos, mas é muito difícil atingi-lo no corpo. Ele só emerge completamente das sombras pra se alimentar. Só se capturar algo. Ou nós tentamos escapar da morte ou nós tentamos atingi-lo no núcleo, os dois juntos é impossível. Aquele demônio não é idiota, ele consegue prever cada um dos nossos movimentos. Pra ele é fácil, até porque detecta a nossa presença. Nem sequer dá pra planejar um ataque surpresa.
— Agora dá. Ele não detecta a minha presença, não é? E pra que você não corra perigo, temos uma distração a mais pra trazê-lo até a superfície — remexi nas pérolas de gelo que segurava — Como eu disse, vocês ainda não tentaram de tudo. Quer fazer mais uma tentativa?
