KIARA POV

Izumi me entregou o arco, as flechas e os pergaminhos. Não parecia ter muita confiança em mim, coisa que não fazia questão de esconder. Do contrário, a sua expressão de desgosto era transparente até demais.

— Tem certeza de que sabe usar essa arma? — ela perguntou, verbalizando a dúvida.

Analisei o equipamento. O arco era um pouco maior e mais pesado do que aqueles que usávamos no mundo dos humanos, mas o mecanismo em si era o mesmo. Provavelmente não teria problemas com ele.

— Já disse que sim. Mas você só tem essas flechas?

— Nossos recursos são escassos, não podemos gastar tantos amuletos e flechas de uma vez só. Nossa produção é limitada, já que não podemos sair da montanha pra conseguir mais. Cinco tiros não bastam?

Espero que bastem.

— Bastam, é claro.

Mesmo sabendo que o youkai dimensional caçava apenas demônios do gelo, eu fiquei apreensiva ao sair do bunker. Tinha a sensação de estar sendo vigiada, mas obviamente isso não passava de uma impressão idiota. Pelo menos, nada de ruim aconteceu.

Tentei me manter aquecida, levando comigo um grosso manto que tinham me emprestado, mas aquilo foi inútil. A nevasca estava ainda mais forte do que antes. Eu tinha que ser rápida, se não quisesse congelar ali mesmo. Me afastei então da entrada do esconderijo para me posicionar a uma certa distância, escondida por trás de alguns morros de neve, mas com uma visão privilegiada do local onde havíamos combinado de fazer aquele demônio dimensional aparecer.

Na ponta de cada uma das flechas, amarrei os pergaminhos capazes de destruir o núcleo daquele youkai. De acordo com Izumi, uma arma comum jamais poderia ferir um demônio dimensional, mas os amuletos eram próprios para isso, então, ao atingirem o núcleo, o mais provável é que o destruíssem na mesma hora.

Ajoelhei onde estava e, me colocando em posição de ataque, puxei a corda do arco, impulsionando a primeira flecha. Em seguida, aguardei.

A neve caía sobre mim sem piedade, molhando o meu rosto e mãos. Segurei o equipamento com firmeza, temendo que os meus dedos escorregassem sobre a madeira a qualquer momento. Um erro mínimo seria fatal para Izumi. Mesmo que a contragosto, ela confiou em mim e, se estava tão desesperada a ponto de deixar a própria vida nas mãos de uma desconhecida, falhar estava fora de questão.

Inspirei fundo, tentando me concentrar no que fazia.

No entanto, fosse pelo frio ou pelo peso da responsabilidade, eu tremia como nunca tremi antes. Odiava admitir, mas já não tinha a mesma confiança de antigamente. Estava enferrujada. Há muito tempo não treinava ataques à distância e, embora a minha mira costumasse ser muito precisa, a falta de prática poderia ser um problema.

Tensa, contraí o corpo quando vi Izumi sair do esconderijo, dando início ao nosso plano.

Ela foi paciente ao esperar que o youkai aparecesse e, se estava sentindo medo, nem sequer demonstrou. Sua expressão era tão fria quanto o clima naquela montanha. Talvez, até mais. Acho que já estava acostumada com a adrenalina de viver como uma caça em constante perigo.

Mais do que preparada para servir de distração, Izumi rapidamente desviou do primeiro ataque do demônio faminto. De longe, acompanhei apreensiva os tentáculos negros emergirem do solo com violência. Ela era rápida e usava o gelo a seu favor, deslizando no solo para aumentar sua velocidade. E, dessa vez, ela não era a única isca.

Ao jogar a primeira lágrima gélida de Yukina para o alto, o youkai reagiu. Confuso e hesitante, os tentáculos retraíram ao capturar a pérola, deixando Izumi momentaneamente em paz, mas não por muito tempo. Ele estava faminto e não se contentaria somente com aquela pedrinha.

Naquele deserto de gelo, alguns segundos em silêncio pareciam uma eternidade. Quando as projeções do demônio emergiram novamente do chão mais velozes e descontroladas, Izumi recuou, se afastando para, em seguida, jogar para o alto todas as outras lágrimas gélidas de Yukina.

A tática surgiu efeito. Aquele era um banquete que há muito tempo o youkai não provava. Bom demais para poder desperdiçar. Ele não só usou os tentáculos dessa vez, como também emergiu completamente das sombras do solo, revelando o corpo arredondado como o de um polvo. Não tinha exatamente um rosto definido. Com exceção de seus olhos e sua boca, ele era uma coisa só.

No instante em que devorou as lágrimas gélidas, atirei a primeira flecha. O tiro, porém, não o acertou. Com aquele tempo, calculei mal a rota e a nevasca acabou freando a flecha antes mesmo que ela tivesse a chance de alcançá-lo.

Respirei com calma, mantendo a concentração. Desespero não serviria de nada. Recalculei a trajetória, ajustando a força e velocidade do impulso conforme a necessidade. O segundo tiro o acertou, mas não fatalmente. Ele cambaleou com ferimento, se virando em minha direção para procurar de onde tinha vindo o ataque. Foi então que notei que os seus olhos, brancos e leitosos, não buscavam por mim. Na verdade, nem sequer eram usados. Aquele demônio era cego, completamente cego. Como se guiava apenas pela energia demoníaca de youkais de gelo, jamais me encontraria aqui.

Perfeito!

Lancei a terceira flecha que, por muito pouco, não o acertou no núcleo. Em desespero, ele se debateu, evitando o ferimento letal ao se proteger sem querer com um dos tentáculos. Mas a próxima tentativa eu não ia perder. Esperando o momento mais propício de sua vulnerabilidade, registrava cada um de seus movimentos. Estava tão concentrada que tinha certeza que o acertaria. Com a confiança renovada, disparei a quarta flecha com total precisão e soltei então o arco, antecipando a derrota do adversário.

Mas comemorei cedo demais.

Fiquei completamente em choque quando algo desviou a rota do disparo. Por um segundo, pensei ter subestimado o youkai, pois novos tentáculos emergiram do solo, protegendo novamente aquele demônio. Mas quando aquelas novas projeções vieram acompanhadas de um outro demônio dimensional, idêntico ao que já enfrentávamos, ficou claro que o erro não tinha sido meu.

Eu paralisei aonde estava, incapaz de reagir. Izumi olhou para mim, o pânico estava estampado em seu rosto. Obviamente não imaginava que por todo esse tempo vinham lutando não somente contra um, mas sim contra dois demônios dimensionais! Olhei para a única flecha que restava em minha mão. Um tiro para dois alvos? Isso não tinha a menor chance de dar certo.

Izumi estava completamente exposta ao ataque de ambos. Dessa vez, ela não teria escapatória. Se, para ela, fugir de um era difícil, de dois seria impossível. Planejando ajudá-la, me movi instantaneamente em sua direção. No entanto, estanquei os passos novamente quando, ao meu menor movimento, aquele segundo demônio virou de frente para mim.

Dei alguns passos para o lado e ele me acompanhou. Não havia dúvidas: ele estava me "vendo" ali. Mas como? Se era cego e somente capaz de detectar a presença de youkais do gelo, por que agora parecia me encontrar com facilidade? Sem resposta, recuei ao vê-lo avançar em direção a mim. Não tive outra alternativa a não ser correr, deixando Izumi lidar sozinha com o outro.

Aquela competição, porém, eu já estava fadada a perder. Eu não conseguia me movimentar com facilidade naquele solo. Meus pés afundavam na neve espessa, me deixando muito lenta. Além disso, eu não enxergava nada por culpa da nevasca e não tinha a mínima ideia para onde estava indo. Já o youkai, acostumado com a escuridão em que vivia, não tinha problemas de visão e nem tampouco de locomoção. Na verdade, tal como Izumi, ele sabia usar o gelo a seu favor e, se algum obstáculo aparecesse no meio do caminho, ele simplesmente o destruía.

Corri o mais rápido que pude em busca de uma abertura subterrânea para o abrigo. Izumi tinha me contado que, ao longo de toda a montanha, os yukinoroi possuíam várias entradas estratégicas para o esconderijo protegido por amuletos, mas eu não tive a oportunidade de conhecer nenhuma delas. Agora, só me restava contar com a sorte de encontrá-las por acaso.

Mas aquele estava longe de ser o meu dia de sorte.

Senti o primeiro golpe quase me atingir quando o chão estremeceu. Um dos tentáculos passou raspando por mim. Cambaleei trêmula, tentando firmar os pés no chão. Adiante, avisei um conjunto de pinheiros altos e cobertos de neve. Segui o mais rápido que pude até eles, me esgueirando entre os longos troncos para não ficar tão vulnerável.

O golpe seguinte atingiu transversalmente a mata, partindo ao meio boa parte das árvores. Me joguei propositalmente no chão para me proteger dos restos de galhos pontiagudos que caíam das copas. Me arrastei por ali, procurando por uma saída, mas não conseguia ver nada além de um amontoado de vegetação e…um pontinho brilhante? Em meio à confusão, demorei para perceber do que se tratava aquilo. Quando minha visão focou na bolinha brilhante que estava anexada ao cordão em meu pescoço, tudo começou a fazer sentido. Tinha me esquecido completamente da lágrima que Yukina havia me emprestado! Não era à toa que aquele demônio conseguia detectar a minha presença, afinal, aquela pedra não era uma hiruiseki comum, mas sim originada de uma mulher do gelo após o parto. Ela é diferente das demais, mais poderosa e valiosa. Provavelmente, mais satisfatória para as necessidades daquele demônio.

Com os joelhos no chão, tentei me mover sorrateiramente, engatinhando entre os obstáculos que agora me encurralavam na floresta destruída. Em uma das mãos, ainda segurava a única flecha de Izumi que havia me restado e, com a outra, tentava afastar os restos de árvores que atrapalhavam o meu caminho. Por sorte, estava abrigada no meio dos destroços, de modo que aquele monstro não conseguia facilmente chegar até mim.

Mas até quando isso seria suficiente? Precisava urgentemente encontrar a entrada para o bunker protegido. Olhei para os lados, procurando uma saída, mas não encontrei. Estava totalmente desorientada.

Ao tentar passar pela abertura estreita formada entre dois troncos caídos, parei de me mover. Meus batimentos se aceleraram com força quando percebi que, adiante, alguém me encarava. Ninguém menos do que a mulher que encontrei na fortaleza de Mukuro.

Mas aqui…? No meio do nada? Por quê? Por acaso andava me seguindo?! Pensei em tantas perguntas sem resposta que nem me dei conta de como o youkai havia perigosamente se aproximado de mim. Somente acordei do transe quando o golpe me jogou no chão. Com o impacto, senti a cabeça latejar e o braço, que usei para amortecer o choque, arder. Ao ver o tentáculo baixar em minha direção, rapidamente rolei para o lado, evitando que me capturasse ao afundar num declive.

Debruçada sobre a neve, me vi cercada por um emaranhado de vinhas e talos secos. Pelos vãos existentes entre eles, ainda podia ver aquela mulher. Ela continuava a me encarar fixamente, porém, com o braço estendido na minha direção, agora gesticulava para que a acompanhasse. Para que me apressasse em correr até ela.

Eu obedeci, sem nem saber exatamente se aquela era a melhor escolha. O mais rápido que pude, engatinhei em sua direção, ziguezagueando pelo chão para desviar do youkai que tentava se infiltrar no matagal destroçado sobre mim. Percorri um caminho de caules espinhentos, esfolando os joelhos na aspereza do solo úmido. Travei de repente quando algo enganchou no meu pescoço. Com o tranco, uma corrente arrebentou e automaticamente levei as mãos ao pescoço. A hiruiseiki ainda estava lá, mas o meu colar, não. Sem tempo de procurá-lo, levantei num salto ao notar que um dos braços do demônio pairava sobre mim. Antes que me agarrasse, finalmente encontrei a saída daquele lugar. Ao me livrar daquela vegetação, mergulhei novamente na forte nevasca que caía sobre a parte exposta da montanha. Acelerei o passo, despistando momentaneamente aquele monstro. Quando notou minha partida, eu já havia ganhado alguns minutos de vantagem para conseguir escapar.

A mulher misteriosa me incentivava a segui-la e me surpreendi ao perceber as suas reais intenções. Ela seguia em digitação a uma estreita e discreta passagem escondida na montanha. Uma das entradas do esconderijo, sem dúvidas! Se não fosse por ela, eu jamais o encontraria por conta própria. Mas então, ela estava me ajudando? Qual era o sentido de tudo aquilo?

Quando achei que finalmente estaria a salvo, mas meus pés me traíram antes mesmo que eu conseguisse chegar ao bunker. Eufórica, não percebi a lisa camada de gelo que havia se formado naquela região, deixando-a mais escorregadia que o restante. Ao derrapar sobre a superfície, caí ali mesmo, deslizando sobre o que parecia ser um rio congelado.

Derrapando, não fui capaz de me levantar a tempo. Algo agarrou o meu tornozelo, me impedindo de colocar o pé no chão. O tentáculo então me puxou, me arrastando até o youkai dimensional. A camada de gelo abaixo de nós estalou com o seu peso, ameaçando se partir ao meio.

Eu me debatia tentando me soltar, mas ele era muito mais forte. O tentáculo se enrolou em meu corpo, me prendendo até a cintura para me erguer à altura de sua boca. Outro tentáculo foi em direção ao meu pescoço, onde a lágrima gélida estava. Eu o detive, segurando-o com a mão livre para impedir que a pegasse. Seus olhos brancos e, até então, opacos, cintilaram de maneira incomum e hipnótica. Quando percebi o que estava fazendo, já era tarde demais. Meus movimentos já não respondiam conforme o meu comando. Minha visão foi escurecendo, turva. Eu estava perdendo a mim mesma, como aconteceu também com a amiga de Yukina.

Não conseguia acreditar que isso iria acabar assim. Meu peito doeu, de fúria, impotência e indignação. Me recusava a aceitar o que estava prestes a acontecer. Quando lembrei que ainda agarrava a flecha de Izumi com força, algo explodiu dentro de mim. Uma força que nem eu mesma reconhecia.

Usando a pouca consciência que ainda me restava, apunhalei o demônio com a ponta da flecha, perfurando-o máximo que consegui. Em busca de seu núcleo. De alguma forma, sabia que usava toda a minha energia espiritual naquilo, mas não tinha controle algum sobre o que fazia naquele momento. Apenas desejei destruí-lo e torci para que aquilo fosse suficiente.

O ouvi emitir um ruído. Era um som distante e abafado. Longe de mim. Em minha visão borrada, captei então um clarão e me senti livre, sem a pressão que aqueles tentáculos exerciam sobre mim. Solta, como se estivesse flutuando. Mas eu caía lentamente e nunca alcançava o chão. Eu estava…afundando?

Meu corpo adormeceu. Tentei me mover, mas não consegui. Estava tão frio.

Aos poucos, perdi a percepção de todo o meu corpo. Por acaso eu ainda estava respirando?

Em seguida, tudo ficou escuro.

KIARA POF

HIEI POV

Eu estava quase admitindo o erro. Até então, me recusava a aceitar que Yusuke estava certo e que eu havia me equivocado ao tomar aquele caminho para encontrar Yukina, Kiara e Kuwabara. Mas depois de procurar por toda a parte, não rastreei nenhum sinal que indicasse a presença de qualquer um dos três. Naquela região só haviam demônios rasos, fracos e insignificantes. Confrontei alguns por força do hábito, mas em nada foram úteis para mim.

Aonde eles estavam, afinal? Kuwabara não era bom em esconder a própria presença. Mesmo que tivesse tentando com afinco, aquele idiota jamais conseguiria desaparecer desse jeito.

Suspirei cansado. Ainda não tinha me dado conta de como tinha esgotado as energias na batalha. Sabia que precisava dar um fim nesse vício, mas, mesmo treinando muito, ainda não controlava bem o gasto de youki. Sempre precisava hibernar para me recuperar.

Minhas pálpebras pesaram. Maldita fraqueza irritante e inconveniente!

O que deveria fazer? Retornar para Gandara? Cogitei a possibilidade, mas a descartei em seguida. A última coisa que precisava era escutar as bobagens que Yusuke e Kurama diriam. Encostado em um arbusto, fechei os olhos e desabei onde estava. Foi uma súbita onda de energia que interrompeu o meu sono e me colocou novamente em estado de alerta.

Por um instante pensei que tinha sido apenas um sonho, mas logo percebi que não. Aquela energia explosiva ainda pairava no ar, vinda de uma montanha encoberta por um nevoeiro branco e denso. O local que anteriormente eu já tinha identificado como uma aldeia abandonada. Quando a sondei, não havia ninguém ali, mas agora…não tinha dúvidas de que aquela era a energia de Kiara.

Corri naquela direção e subi o mais rápido que pude pela encosta íngreme daquele enorme morro, confrontando a nevasca que parecia cada vez mais aumentar de intensidade. Em contrapartida, a energia de Kiara se dissipava aos poucos. A cada segundo, ficava mais e mais fraca. Quando cheguei ao topo, já havia desaparecido por completo.

Buscava um caminho para seguir quando um grito rouco chamou a minha atenção. Me virei na direção do som, onde encontrei uma youkai desesperada, debatendo-se no chão, enquanto tentava se libertar do grande demônio que a prendia no solo. Com os tentáculos, ele a sufocava, comprimindo o seu corpo inteiro de uma só vez.

Rápido, desembainhei o sabre e com um único golpe de múltiplos cortes a libertei do domínio dele. Ele, porém, nem sequer recuou. Do contrário, regenerou os tentáculos destruídos e novamente mirou naquela mulher, me ignorando completamente.

A capturei mais rápido do que ele, dessa vez me afastando ainda mais. Satisfeito com a distância, a coloquei no chão, para trás de mim.

— Quem é você? — ela perguntou — Por que veio aqui me ajudar?

— Não vim aqui pra te ajudar.

— Por acaso não foi isso que acabou de fazer?

Seu tom ácido me irritou. A olhei de canto, imaginando se não seria melhor tê-la deixado ali para morrer.

— Só estava te tirando do meu caminho. Se me atrapalhar de novo, eu mato vocês dois.

Ela então se calou. Me observava com os olhos arregalados, indignada. Mas isso não tinha importância. Voltei a me concentrar no demônio que, por algum motivo, insistia em me evitar. Era como se eu nem estivesse ali, quando o atingi com as chamas negras, não pareceu se importar. Os danos físicos desapareceram no instante em que seu corpo se regenerou por completo.

Cerrei os punhos com raiva. Estava apenas desperdiçando energia, lutando sozinho. Tudo o que interessava a ele era a mulher ferida. O monstro procurava diferentes maneiras de chegar até ela e, por mais que eu tentasse matá-lo, meus golpes apenas serviam para retardá-lo.

— Você nunca vai derrotá-lo. É um youkai dimensional. Golpes como o seus não funcionam — ela resmungou. Impressão minha ou havia um toque de zombaria na sua voz? Com certeza devia ter deixado que morresse.

Fiquei ainda mais irritado, tanto por não ter notado aquilo quanto por apenas estar perdendo o meu tempo ali. Se o que ela dizia era verdade, ataques comuns realmente não o derrotariam.

— Mas os meus funcionam!

Com a aparência de um moribundo, Kuwabara caminhava até nós, arrastando uma das pernas pela neve. Não notei de imediato que ela estava imobilizada e que ele tentava se livrar da tala que a mantinha ereta. Quando conseguiu, jogou o suporte no chão, mas quase caiu por consequência.

— Idiota. Nem consegue se manter em pé.

Ele ignorou o que eu disse, direcionando-se para o youkai dimensional. Parecia furioso, como poucas vezes eu havia visto.

Quando os tentáculos avançaram sobre nós, Kuwabara avançou também, erguendo a espada dimensional direto ao adversário. Quando ele cortou parte do demônio, pela primeira vez vi o youkai recuar, demonstrando enfim alguma reação. Mais agressivo do que antes, porém, ele reverberou múltiplos chicotes sobre Kuwabara, impedindo-o de atingir o restante de seu corpo.

Aquele burro era tão imprudente que tive que o tirar da mira do próximo ataque, evitando que fosse esmagado.

— Está tentando morrer por acaso? Se quer lutar, pelo menos use a cabeça.

— Eu só preciso chegar até ele. Tenho certeza que consigo derrotá-lo. Pode me dar cobertura, Hiei?

Suspirei. Não gostava da ideia de servir de mero suporte, ainda mais pra alguém como ele. Mas não tinha outra alternativa, já que a arma de Kuwabara era a única ferramenta capaz de causar um dano real àquele demônio. Contra minha vontade, atendi o seu pedido. Dessa vez, servi de escudo, impedindo que aqueles chicotes o acertassem. Por ser mais rápido, consegui prever os movimentos lentos daquele demônio, me colocando na frente de Kuwabara para que sua passagem sempre estivesse livre. Quando ele chegou até o monstro, desferiu o golpe letal no cerne de seu corpo. Mais do que necessário e, em movimentos exagerados, ele o atingiu inúmeras vezes, desesperado para garantir a vitória.

— Já acabou. Ainda não percebeu? — perguntei a ele.

Kuwabara não fez questão de responder. Ainda estava ofegante, tentando recuperar o fôlego. Eu tinha que reconhecer que, apesar do estado em que se encontrava, ele realmente tinha uma determinação de outro mundo.

— Onde está Kiara? Aquela mentirosa... — ele se virou para a outra youkai que ainda o observava atônita —… ela prometeu que não faria nada sem mim! Pra onde ela foi?

Ela estava espantada.

— Eu…eu não sei. Nos separamos quando fomos atacadas por dois youkais diferentes.

— Dois? Existe mais de um desses demônios dimensionais? Por que não disse isso antes?!

— Porque eu também não sabia! Como saberíamos? Eles vivem em outra dimensão! Sempre pensamos que fosse o mesmo.

— Mas você disse que ele só atacava youkais do gelo!

Perdido, eu até então não estava entendendo nada daquela conversa, mas o rumo que tomava me obrigou a intervir.

— Do que estão falando? Onde está a Yukina?

Kuwabara me fuzilou com os olhos.

— Ora, desde quando se importa?

— Yukina está bem — a mulher respondeu — Está protegida em nosso abrigo. Já a garota humana também foi atacada por outro desses youkais. Não sei porquê, achei que ele só devorasse youkais do gelo…não sei onde ela está. É possível que…

Abstrai o restante da frase, quando enfim me dei conta do significado daquele gradativo desaparecimento da energia de Kiara, logo após um aumento súbito.

Quando me virei para Kuwabara, ele me olhava preocupado. Em negação.

— Temos que encontrá-la!

— Eu vou. Vocês voltam para esse tal abrigo.

Ele relutou, praticamente implorando para ir comigo. Obviamente, eu recusei. Mancando daquele jeito, ele só me atrasaria.

Os deixei para trás, tentando pressentir algum rastro de Kiara ou do outro youkai dimensional que supostamente a teria atacado. Mas não encontrei nada. Nenhum sinal de vida naquela montanha abandonada. Com o Jagan, no entanto, a busca foi um pouco mais direcionada. Encontrei os vestígios de uma vegetação destruída, com os troncos das árvores partidos pela metade.

Segui por ali, nervoso, sentindo que o tempo se esgotava. Algo brilhante no chão, em meio a um emaranhado de galhos secos, atraiu a minha atenção. Resgatei a corrente arrebentada e coberta de neve, analisando o pingente preso a ela. Aquele acessório era de Kiara e, se me lembro bem, ela nunca o tirava.

Aquilo era prova mais do que o suficiente de algo estava errado, mas somente depois de atravessar aquela parte da montanha, descobri o quê. A primeira coisa que reparei foi a enorme carcaça do youkai, contorcida no chão e despedaçada nas suas extremidades. No centro dela, semi encoberta pela neve que se acumulava, havia algo fincado no núcleo, prensando ao demônio uma espécie de pergaminho.

Aquele cadáver estava inclinado, afundando sua fronte no que parecia ser uma abertura no chão liso e escorregadio de gelo. Mas, se o demônio estava bem ali e Kiara não, então…

Ao entender o que tinha acontecido, automaticamente saltei pelo buraco no gelo, mergulhando no rio gélido. A temperatura não fazia diferença alguma para mim, mas para ela eu tinha certeza que sim. Sem contar a falta de oxigênio. Por quanto tempo um humano poderia sobreviver nessas condições? Com certeza não muito. Talvez dois minutos, no máximo. Já tinha passado muito mais do que isso desde que a sua presença desapareceu por completo.

Ao avistá-la no fundo do rio, a segurei para puxá-la o quanto antes para a superfície. Quando saímos de lá, o chão se quebrou ainda mais, arrastando para o fundo o demônio dimensional. Fui obrigado a me afastar da borda, buscando uma área mais estável ao saltar para longe dali.

Num primeiro momento tive certeza de que ela não respirava. Seus sinais vitais estavam zerados. O coração não batia. A temperatura de sua pele estava tão gelada quanto aquele rio. Seus lábios estavam azulados e seu rosto quase sem cor, cinza e pálido. Fiquei sem reação, aturdido. A verdade é que me recusava a reconhecer que era tarde demais. Humanos…por que tinham que ser estupidamente frágeis?

Uma sensação estranha cresceu dentro de mim. Consternação. Um misto de arrependimento e raiva. Se pelo menos tivesse lhe dado ouvidos na fortaleza de Mukuro, talvez as coisas tivessem tomado outro rumo. Talvez, o ataque nunca tivesse acontecido. Talvez…

De repente, senti um pulsar leve em seu punho, onde a segurava. Tão leve que poderia passar despercebido. Mas ao pressionar o dedo na lateral de seu pescoço, confirmei que não estava apenas imaginando coisas. Ela ainda estava viva.

Inacreditável. Como…? Ainda há pouco eu não tinha detectado nenhum sinal de vida.

Surpreso, observei sua respiração ressurgir em movimentos suaves. Como ela conseguiu sobreviver, era um mistério para mim. Mas pensando bem, Kiara frequentemente parecia escapar da morte. Sua resistência era fora da curva. Fora dos padrões de sua própria espécie. Eu não podia negar o quanto isso me surpreendia, mas não era hora para admirações. Precisava tirá-la daqui o quanto antes.

Carregando-a, percorri o caminho inverso, retornando para o local onde tinha encontrado Kuwabara. Por ali foi bem mais fácil localizar o tal abrigo que tanto falaram, não somente por já saber da sua existência, mas também porque havia uma aglomeração de youkais semelhantes àquela mulher irritante bem diante da entrada.

Tanto Yukina quanto Kuwabara ficaram assustados ao me ver chegar. Não por mim, mas pela garota desmaiada em meus braços. Kuwabara, precipitado como sempre, nem sequer me ouvia enquanto eu tentava explicar que estava tudo bem. Seu desespero era tão insuportável que quase me fez perder a paciência. Foi Yukina que conseguiu tranquilizá-lo e depois ajudou a levar Kiara para um outro cômodo, onde poderiam secá-la e aquecê-la.

Fiquei satisfeito ao notar que ela estava bem, sem ferimento algum. Pelo menos uma coisa boa no meio de tanto caos.

Mas então a situação se complicou, e até mesmo Yukina deixou o otimismo de lado. A princípio achamos que Kiara estava apenas desmaiada, e que logo acordaria. Mas com o passar das horas essa teoria foi por água abaixo. Ela acordou, como era esperado, mas o seu estado estava longe de ser normal.

Kiara não tinha consciência alguma. Não falava, não reagia, não se movia, não respondia a ninguém. Seus olhos estavam abertos, imóveis e fixos num ponto distante. Opacos e sem vida. Igual à outra garota, do outro lado do quarto. A menina que aparentemente teria ajudado Yukina anos atrás e que agora apenas passava todos os dias presa àquele colchão, incapaz de fazer qualquer coisa.

Quando soube da história daqueles youkais da montanha, achei que estavam exagerando, mas ao ver o que tinha acontecido com as duas, sabia que tinha subestimado o tamanho do problema em que tinham se metido. E tudo por culpa daquelas koorimes miseráveis.

Yukina foi a mais afetada com tudo aquilo. Foi incômodo vê-la chorar, martirizando a si mesma. Tola demais! Como se ela realmente tivesse culpa do que aconteceu.

— Se eu não tivesse trazido vocês pra cá, nada disso teria acontecido — ela disse entre soluços — Se eu nunca tivesse vindo pra cá…

— Não é verdade, Yukina. Você não fez nada de errado. Você só quis ajudar! Se não fosse você, teríamos ficado perdidos e sabe-se lá o que teria acontecido com a gente — Kuwabara respondeu.

Ela estava inconsolável. Suas lágrimas cristalizavam no ar e as pérolas rolavam no chão, espalhando-se para todos os lados.

— Limpe esse rosto. Ficar se lamentando desse jeito não vai servir pra nada — eu ordenei.

Kuwabara se aproximou de mim, furioso.

— Não fala com ela desse jeito! Por que precisa ser sempre tão insensível, Hiei? A situação já não está ruim o suficiente?

O ignorei, me virando para aquela mulher chamada Izumi.

— Com a morte desses youkais, o controle mental não deveria ter sido desfeito?

— Não sei, mas não é um controle mental comum. É como se tivessem sido sequestradas mentalmente. Pode ser que isso tudo passe daqui a pouco. Ou não. Só esperando para saber.

Nós esperamos, mas nada aconteceu. Com o tempo, só ficava ainda mais evidente que aquele pesadelo não teria fim. Alguns youkais possuem golpes cujas consequências perduram mesmo após a sua morte. Com certeza era esse o caso.

Kuwabara tentava inutilmente provocar alguma reação em Kiara, estalando os dedos na frente de seus olhos ou sacudindo-a com veemência. Uma abordagem sutil demais.

— Vamos, acorda logo! Você não pode ficar assim para sempre!

Aquilo era uma completa perda de tempo. Eu precisava fazer alguma coisa a respeito.

Caminhei até Kiara. Frente a ela, coloquei a mão na bainha da katana.

— O que vai fazer? — assustado, ele se colocou entre nós. Desconfiava tanto assim de mim?

— O mesmo que você: tentar acordá-la. Saia da frente.

Hesitante, ele me obedeceu, deixando o caminho livre.

Num movimento rápido, desembainhei o sabre. Esperava que, como uma pessoa normal, ela saltasse para trás num reflexo de proteção. Porém, mesmo estando com a lâmina a poucos centímetros de seu rosto, ela não moveu um músculo sequer.

Seus olhos estavam abertos, mas era como se não enxergasse. Como se seu cérebro não processasse as informações visuais que recebia. Onde estava a sua mente? Eu precisava provocar uma emoção mais forte. Algo que fosse capaz de trazê-la de volta à realidade.

Nervosa, Yukina sem querer esbarrou em uma mesa redonda ao lado do futon, derrubando o jarro de água que trazia consigo. O vidro espatifou no chão, deixando rastros de estilhaços por todos os lados. Enquanto minha irmã se lamentava, recuperei um dos cacos, antes que ela tivesse a chance de limpar aquela bagunça. As suas bordas estavam irregulares e as extremidades bem afiadas. Aquilo iria servir.

Voltei a me aproximar de Kiara, segurando a arma improvisada.

— O que pensa em fazer com isso? — dessa vez, Kuwabara soou ainda mais preocupado.

— Tentar provocar dor. Talvez ela acorde assim.

Ele agarrou o meu pulso com força, me imobilizando. Seus olhos estreitaram mais que o normal e seu corpo ficou tenso.

— Isso eu não vou permitir.

— É melhor tirar as mãos de mim, senão ela não vai ser a única que farei sentir dor.

Ele engoliu em seco, mas não recuou diante da ameaça.

— Você está indo longe demais, Hiei. Não precisa disso.

Yukina parecia prestes a dizer alguma coisa. Seus olhos estavam ficando ainda mais marejados. Suspirei fundo, tentando uma abordagem mais tranquilizante.

— O que acha que vou fazer, idiota? Vai ser só um corte, não é como se ela fosse morrer por isso. Ela mesma concordaria em tentar, se pudesse. Ou acha que ela prefere ficar assim pra sempre?

— Isso é inútil — Izumi interviu, ao passo que Kuwabara me soltava — Nós já tentamos dar esse tipo de choque em Naoki. Não importa o quanto a machuque, ela nem vai sentir.

— Talvez não tenham a machucado o suficiente — retruquei.

Relanceei Kuwabara de novo. Não estava contente, mas, dessa vez, ele não tentaria me impedir. Sob o seu olhar de reprovação, segurei a mão esquerda de Kiara e sem cerimônia rasguei a sua palma com aquele caco de vidro. O primeiro contato foi mais suave e sem resultados. Ela continuava do mesmo jeito. Então, apertei ainda mais o pedaço de vidro, aprofundando o corte e desenhando um fina linha em sua mão. O sangue já começava a se espalhar, escorrendo pelas laterais, sujando as pontas dos meus dedos, mas nada aconteceu. Simplesmente ela não esboçava reação nenhuma.

Eu sabia que Kuwabara estava prestes a intervir, então parei antes mesmo que ele o fizesse. Um conflito entre nós só deixaria Yukina ainda mais aflita.

— Como eu disse, isso é inútil — Izumi disse — Ela vai ficar assim para sempre. Eu sinto muito, de verdade.

Yukina voltou a chorar, ao mesmo tempo em que enfaixava a mão ferida de Kiara, limpando os rastros de sangue que desciam pelo seu braço.

— Que raiva! Deve ter outra maneira de desfazer isso. Tem que ter! — Kuwabara vociferou — Talvez conheçam um método em Gandara ou em algum outro lugar. Precisamos encontrar os outros. Onde eles estão?

— Yusuke disse que me encontraria nas redondezas dessa montanha, caso não encontrasse vocês em Gandara. Obviamente ele não encontrou.

— Por que não disse antes? Se ficarmos aqui dentro, ele nunca vai nos achar! Esses amuletos bloqueiam todas as percepções espirituais. Eu vou lá fora, preciso encontrar ele!

— Hm. E por acaso consegue andar? Suas condições não estão muito melhores que…

— Óbvio que consigo! Não vou ficar aqui de mãos atadas esperando um milagre cair do céu. Vou buscar ajuda.

— Eu vou junto. O clima da montanha não é piedoso. Vai te destruir, se decidir ficar andando a esmo por aí. — Izumi respondeu — Agora que aqueles demônios estão mortos, não precisamos mais ter medo de sair daqui. Pode considerar isso como um agradecimento por ter nos livrado dessa maldição.

Eles foram embora, deixando o quarto num completo silêncio. Yukina estava cabisbaixa. Seu rosto estava vermelho, de tanto que o secava.

— Se acalme.

Ela ergueu o olhar em minha direção.

— Não consigo. Elas estão assim porque…

— Nem pense em se culpar de novo — fui mais firme dessa vez — E poupe as suas lágrimas pra quando realmente precisar delas. Pra quando a situação realmente não tiver mais solução.

— Você acha que tem?

Dei de ombros.

— Não tentamos de tudo ainda.

— É, eu sei…

— Por hora, esqueça isso. Por que não vai ajudar o Kuwabara? Ele finge que não, mas não está aguentando de dor. Tente fazer com que ele não se mate. Mais um pra carregar é a última coisa que precisamos agora. Você é a única pessoa que ele realmente escuta

Ela concordou, sem desconfiar que eu somente queria afastá-la daqui. Ficar olhando para as duas amigas nesse estado vegetativo não estava fazendo bem a ela. Além disso, não queria que criasse falsas esperanças para o que eu faria em seguida.

Sentei de frente para Kiara, descobrindo o Jagan. Eu não podia garantir que aquilo funcionaria. Controlar pensamentos era algo relativamente complicado, mas ao menos eu já dominava a técnica. Invadir memórias já existentes, porém, era muito mais complexo, ainda mais se fossem antigas. Nunca precisei chegar tão longe assim com alguém, mas acreditava que conseguiria. Sabia exatamente o que tinha que procurar.

Memórias carregadas do único sentimento que, como num pesadelo, fosse suficientemente capaz de despertar alguém inconsciente.

Memórias carregadas de medo.