Capítulo 2 – Lembranças
Severo Snape sobreviveu a picada da Nagini, um verdadeiro milagre segundo Minerva McGonagall, a única que sabia de sua existência. O milagre tinha nome e forma, Fawkes, a Fênix do falecido Alvo Dumbledore, que socorre somente quem é leal a Hogwarts. E Severo Snape não só foi leal, mas na sua condição de duplo espião arriscou sua vida várias vezes, e quase morreu naquele dia. Ficou meses internado em St. Mungus, somente a diretora ia lhe visitar quando saiu do coma. Ele lhe fez jurar que não contaria a ninguém, preferiu deixar o mundo mágico, esquecer seu passado sombrio, e seguir em frente.
Em sua deplorável época de educador dos jovens bruxos, Severo Snape era visto como o professor mais injusto dos últimos tempos. Diretor da Sonserina, evitava descontar pontos da sua casa, e de certa forma beneficiava os Sonserinos. Amigo fiel de Alvo Dumbledore, jurou proteger o menino que sobreviveu, por ser filho de seu primeiro e único amor. Único até que o cérebro do trio dourado começou a lhe chamar sua atenção. Hermione Granger não só atrapalhava suas aulas desde o primeiro ano, mas depois que completou quinze anos passou a atrapalhar também seu sono. A cada ano letivo que se iniciava, Severo reparava no desenvolvimento intelectual dela, e também nas curvas do belo corpo que se formava. Suas notas brilhavam em qualquer disciplina, até mesmo em Poções Avançadas, e pensar que fazia o possível para tornar as questões mais difíceis. Não foram poucas as vezes que Dumbledore lhe chamava no escritório para dizer que a turma toda ficou abaixo da média, exceto uma aluna, e que ele não poderia aprovar apenas a senhorita Granger. Ele bufava, pois sua intenção não era essa, e sim tirar o brilho que feria os alunos da sua casa. Não tinha culpa que os 'cabeças-ocas' não estudavam o suficiente.
A escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts teve muitos alunos que se destacaram ao longo de sua história, mas Hermione Granger sempre superou a todos. Não foi nenhuma surpresa quando ele soube que ela foi eleita a Ministra da Magia. Surpresa mesmo foi ler o Profeta Diário sobre a posse do cargo e respectiva festa de noivado com o patético Weasley. Severo Snape ainda estava fraco, teve uma recaída após ler a manchete, o que lhe impediu de procurá-la. Foi induzido ao coma, permanecendo no hospital por meses.
Naquele sábado acordou mais cedo do que o normal por causa do movimento na casa ao lado. Desde que ali chegou, a casa ao lado era desocupada. O casal que morava faleceu, e ficou alguns anos até que os filhos decidissem reformar e colocar para alugar.
Severo não conseguiu dormir de novo, preferiu descer para o porão e terminar de envasar o lote de poções analgésicas. Ao menos no porão o som era abafado e poderia ignorar o barulho.
- Maldito vizinho... com tantas casas para alugar, tinha que escolher justo esta? – Ele bufou. Voltou a se concentrar nos frascos de sua bancada, mas por pouco tempo, do nada as lembranças daquele dia dois de maio retornam à sua mente.
- Não morre, professor... eu te amo! – Lembrava perfeitamente das palavras que ela sussurrou em seu ouvido, ainda com o tom rouco pelo choro.
No último instante, quando seus olhos se fecharam para se entregar completamente, a aluna lhe beija os lábios já frios. Ela se levanta rápido, e sai correndo para ajudar os amigos a lutar na batalha. Naquele momento uma centelha acendeu em seu peito. Foi então que a Fawkes pousou em seu braço e depositou lágrimas curativas no local da picada da cobra. Somente meses depois quando saiu do coma, que ele soube que foi a Minerva que o levou para o hospital.
Enquanto colava os rótulos em cada um dos frascos, Severo pensava em sua vida solitária, em suas escolhas.
- Se ao menos ela soubesse que sobrevivi, como reagiria? Por que estou pensando nisso agora? Que importância tem se ela está casada, e provavelmente com uma ninhada de filhos ruivos?...
Quando terminou de guardar os estoques de poção, ele resolveu sair. Precisava arejar sua mente. Mandou sua coruja para a professora Minerva, que lhe respondeu prontamente. Em menos de dez minutos, ele já estava nos terrenos de Hogwarts. Era a primeira vez que ele voltava ao mundo mágico. Usou transfiguração para se passar por um entregador das poções. Minerva que o esperava, foi pessoalmente lhe receber e o levou para seu escritório.
- Que surpresa agradável, Severo! Me diga que veio para ficar... mesmo que escondido.
- Não. Eu só queria um pouco de paz. Confesso que sinto falta deste lugar. Minha masmorra era bem mais tranquila que o bairro trouxa que eu moro.
- Mas a rua que você mora é bem calma.
- Era até aparecer um novo morador, e hoje é dia da mudança. Pode imaginar o barulho de furadeira que começou às oito horas e sabe lá que horas irão terminar? Sem mencionar os trouxas fazendo algazarras ao descarregar o caminhão bem em frente à minha casa? Fui para o porão terminar seu pedido, e resolvi entregar pessoalmente, porque não pretendia passar o dia todo confinado no porão.
- Fez bem, Severo. Aqui também é a sua casa. Venha sempre que quiser.
- Obrigado.
Severo almoçou com Minerva em seu escritório, e passaram a tarde conversando. Havia tantos assuntos sobre a escola para colocar em dia, que o sábado voo. Ele não quis ficar para jantar, apenas aceitou um chá antes de voltar para Londres.
Normalmente Severo aparata na porta da frente de sua casa, dentro do seu quintal. Naquela noite sem saber se haveria alguém próximo ao portão, resolveu aparatar mais adiante, na esquina e ficou observando. O carro estacionado na frente da casa do vizinho permaneceu parado no mesmo lugar, até que um casal entrou no carro, deu a partida e saiu. Ele se aproxima do seu portão com cautela. Não podia abrir com auxílio da varinha, nem mesmo com feitiço, pois havia uma pessoa ainda no portão ao lado. Sabia que tinha as chaves no bolso do seu sobretudo, mas se atrapalhou na hora de pegar. Nunca precisou das chaves.
- Trouxa estúpida, o que está esperando? Entre de uma vez! Pode esquecer que vou cumprimentá-la... Nem lhe conheço! – Bufou.
Severo reparou que o "seu vizinho" era vizinha, uma mulher, mesmo naquela escuridão. Talvez pela silhueta, ou pelas breves nuanças de baunilha do perfume que ela estava usando. Um dos postes que iluminava a calçada estava com a luz queimada, e eles estavam próximos aos seus portões. A casa de Severo estava totalmente no escuro e a da Hermione com luzes acesas somente na sala.
Assim que ela entrou, Severo também entrou em sua casa, na sala. Sentou-se confortavelmente no sofá e retirou suas botas. Sentia-se aliviado. Não foi tão ruim rever a escola, até gostou de passar o dia na companhia de Minerva. Lutou contra sua vontade de descer até a masmorra. Seu subconsciente lhe dizia que foi a melhor coisa que ele já havia feito em toda a sua vida. Deixar o mundo mágico para trás, esquecer que um dia foi comensal da morte, e que marcaria sua vida para sempre. Já seu consciente lhe dizia que Minerva estava certa. Deveria retornar a Hogwarts e retornar às suas atividades. Vivia solitário no mundo trouxa, não tinha amigos e sentia falta de conversar com pessoas inteligentes.
Severo fechou os olhos e parecia ver um filme em alta velocidade passando em sua mente. Desde o momento que Dumbledore lhe deu o cargo de professor de poções, o dia que viu a senhorita Granger pela primeira vez sentando no banquinho e sendo selecionada para a casa Grifinória, até o momento em que ela lhe beijou.
Severo suspirou, levantou e foi preparar um chá. Enquanto bebia pequenos goles, sua mente foi inundada novamente com as lembranças de quando estava se restabelecendo no hospital. Se sentiu apunhalado pelas costas com a conversa que ouviu sobre o casamento da ministra. Não lhe restavam mais dúvidas, ele não retornaria mais ao mundo mágico. Não esperou nem os primeiros raios de sol da manhã seguinte para fugir do hospital.
Foi num domingo, final de outono, o enfermeiro de plantão entrou tagarelando com a enfermeira em seu quarto. Ela precisava retirar sangue para analisar a taxa de oxigenação do sangue, e ele precisava checar os sinais vitais do paciente. Severo Snape resmungou mais do que o normal para medir a pressão, passou todo o final de semana com dores pelo corpo por ficar tanto tempo deitado. Ele queria sair dali, e já fazia planos para fugir, uma vez que a última conversa que teve com o médico era que, só teria alta após um mês. Precisava voltar a sua vida normal o quanto antes. Se é que ele poderia chamar de normal, afinal não tinha nenhuma experiência em viver no mundo trouxa. Deixou a casa dos pais aos onze anos quando recebeu a carta para estudar em Hogwarts, e raramente voltava para casa nas férias escolares.
Severo esticou seu braço para a enfermeira colocar o garrote e parecia alheio a conversa. Logo soube de quem eles estavam falando, e seu levantar de sobrancelha o denunciou que prestava total atenção.
- Você assistiu ao casamento da ministra ontem, Rosemari? Passou em todos os outdoors. O que será que ela viu naquele ruivo? – O plantonista pergunta para a enfermeira.
- Não podemos julgar ninguém, Joel. Vai ver era amor de infância, considerando a história da ministra. – Rosemari tenta persuadir o colega, sem tirar os olhos da seringa cheia que acabou de coletar.
- Não sei não... vai ver ele fez uma poção do amor forte, por estar de olho nos galeões dela. Salário de ministra é uma fábula! Ela merecia coisa melhor, vai por mim!
A sorte que os enfermeiros já estavam de saída, e não viram a mudança brusca na saúde do convalescente. Provavelmente seria induzido ao coma novamente e ele ficaria mais um longo tempo no hospital. Severo Snape parecia se afogar no quarto minúsculo. O ar lhe faltava aos pulmões, seu coração atrasava uma batida por vez. Ele viu seu mundo girar, estava prestes a desmaiar.
- Ela se casou... Mais uma vez tenho que passar por isso?... Por que não me deixaram morrer? – Suas lágrimas escorriam pelo rosto pálido. Ele nunca foi sentimental e raramente chorava, mas a dor no peito era tanta que não conseguiu se controlar. Ainda era madrugada quando ele acordou. Severo Snape não saberia dizer se desmaiou, ou se o cansaço físico o derrotou. Só sabia que dormiu apenas algumas horinhas. Levantou cambaleando, foi até o armário pegar sua varinha e suas roupas. Demorou uma eternidade para se vestir, porque não podia fazer nenhum barulho, e não podia acender a luz para não chamar a atenção do plantonista no corredor. Apenas com a luz da sua varinha, e se equilibrando para não cair, ele se veste. Finalmente, Severo consegue calçar suas botas de couro de dragão. O hospital era a prova de feitiços para que os pacientes não tentassem a auto cura ou fuga. Ele tentou em vão vários feitiços não verbal para abrir a janela. Mas foi somente driblando o feitiço de proteção das grades que a janela se abriu, e com muita dificuldade ele pulou, caindo em cima de um monte de folhas secas que foram amontoadas durante a semana. Caminhar era eufemismo, Severo Snape rastejava até chegar próximo ao muro. Não adiantava usar transfiguração, o hospital era protegido para que os bruxos não transfigurassem nada em escadas para fugir. Ele encostou no muro um carrinho de mão que encontrou jogado no pátio. Era só o que tinha para lhe auxiliar. Subiu no carrinho. Respirou fundo, o ar gelado quase o anestesiava por dentro. Concentrando toda a sua força nos braços e pernas, ele deu um forte impulso alcançando a borda do muro com suas mãos. Seu corpo começou a tremer, mas não iria desistir fácil. As botas serviram para escalar e assim conseguiu pular o muro. Lá na rua, ele ficou alguns minutos abaixado até que seu corpo parasse de tremer. Seu tremor não era frio ou medo, e sim de fraqueza. Era seu corpo lhe dando sinais de que precisava repousar, mas ele tinha em mente outro lugar para repousar. Em seguida aparatou na rua da Fiação, em frente ao sobrado onde passou sua infância, o lugar que ele nunca conseguiu chamar de lar.
Naquela semana, na mesma edição do Profeta Diário que estampava o casamento da ministra com o aspirante a auror Ronald Weasley, havia uma linha minúscula comentando sobre a suposta morte e o desaparecimento do corpo do mestre de poções. Minerva ao ler o jornal, deixou seu café da manhã pela metade e saiu às pressas, sem dar satisfação para o professor Filtwick e para a professora Sprout que se olharam espantados. Ela foi até o hospital e exigiu que tomassem uma providência, ameaçando-os caso não encontrassem o corpo do professor dentro de vinte e quatro horas.
Assim que chegou na rua, algo dentro dela lhe dizia que ele estava vivo, e lembrou da primeira conversa que tiveram quando ele saiu do coma.
- Minerva, se realmente você ainda tem alguma consideração por mim, não conte a ninguém que estou vivo. Endosse as palavras de Potter que me viu morrendo pela picada da cobra.
- Mas por quê, Severo? Você sabe que faz falta na escola, além do mais você é um herói! Potter não ia ter a mínima chance se não fosse por você.
- Eu matei Dumbledore, e até ser julgado, prefiro viver escondido do que preso em Askaban.
- Viver escondido... Então era isso... só havia um lugar para ele se esconder, sem ser perturbado. – Minerva fala para si mesma. Ela aparata na frente do sobrado. Bateu algumas vezes, mas ninguém atendeu. A casa toda fechada, em completo abandono, não intimidou a bruxa experiente.
Minerva tentou alguns feitiços para abrir a porta ou janelas, mas a proteção era total. Não resistindo a uma pequena falha na madeira da janela de cima que avistou de longe, ela se transforma em gata e pula na janela. Se espreme toda e consegue passar pela fresta, entrando num dos quartos.
Severo estava jogado em sua cama, no quarto ao lado, com os olhos perdidos no teto e não ouviu o som suave que os coxins plantar das patas da gata fez ao encostar no assoalho velho que rangeu. Minerva preferiu não importuná-lo, manteve a forma de gata, porque viu o estado lamentável que ele se encontrava. Desceu suavemente as escadas e voltou a forma humana. Encontrou um pedaço de pergaminho amassado na lareira da sala, desdobrou e com auxílio de sua varinha, escreveu tudo que precisava falar com ele. Deixou o pergaminho em cima da mesa da cozinha. Sabia que em algum momento ele iria até lá. Se transformou novamente em gata e saiu pela fresta da janela.
Dobby entrava pela fresta da janela facilmente, uma vez que ele não conseguia aparatar dentro do sobrado devido aos feitiços de proteção. Minerva mandou o elfo levar as refeições para Severo após ver o estado lamentável que estava aquela cozinha, tal como ele. Também deu ordens para o elfo ajudá-lo com os serviços domésticos. Severo sempre que via o elfo mandava-o embora, e o pequeno ser relutava querendo ficar para ajudar.
- Dobby deve ajudar ao senhor. Dobby obedece às ordens da diretora, senhor.
- Suma! – Ele esbravejava de forma curta e grossa. Mas quando a fome apertava, ele descia para a cozinha e não recusava a refeição pronta que o elfo deixava.
De volta à escola, Dobby respondia às perguntas da diretora sobre o estado de saúde do professor.
- Dobby é um elfo mau. Dobby não consegue servir ao mestre, senhora... – E o elfo começou a bater sua cabeça contra a parede.
- Pare, Dobby! Se ele está se alimentando é um bom sinal. Procure ir nas horas que ele dorme e faça os serviços domésticos.
- Dobby agradece, senhora.
Na semana seguinte, Minerva escreveu um bilhete e entregou o pergaminho para Dobby deixar em cima da mesa da cozinha, junto com a refeição.
- O que ele lhe disse, Dobby? – Ela estava ansiosa para saber a resposta, assim que o avistou de volta.
- Dobby recebeu este bilhete, senhora.
O elfo entrega um pedacinho do mesmo pergaminho, que ela havia escrito.
- Ele disse que Dobby pode limpar a casa, e pediu para lhe entregar isso, senhora.
Minerva leu as palavras 'sim' e 'quando quiser'. Ela havia lhe perguntado muitas coisas ao longo do bilhete, e por último se poderia visitá-lo e quando.
Severo poderia ser carrasco para muitos, mas ele sempre foi grato a todos que lhe ajudaram. Minerva passou a tratá-lo como um filho, antes mesmo de ser inocentado pela morte de Dumbledore. Após implicar com ele durante anos, Dumbledore a fez ver o quanto corajoso era o professor taciturno. Embora muitas vezes queria amaldiçoá-lo por descontar pontos da sua casa Grifinória, injustamente.
Ela se arrumou e aparatou na frente do sobrado. Bateu na porta e aguardou.
Levou alguns minutos para Severo descer e abrir a porta. Ele rapidamente puxou a mão dela e fechou logo a porta. Não queria que ninguém da vizinhança visse que a casa estava habitada. Minerva não se conteve e o abraçou fortemente, com os olhos cheios de lágrimas. Assim que engoliu o nó na garganta, ela conseguiu falar.
- Você está tão magro, Severo... Venha para Hogwarts comigo. Você pode ficar escondido na masmorra. Lá eu tenho certeza que ficará melhor. – Ela olha ao redor da sala, os móveis antigos, o sofá puído, sem conforto algum. Apenas uma enorme lareira que deixava o ambiente menos gélido.
- Ficarei só mais uma semana aqui. Tenho feito meus planos para o futuro. Se é que posso chamar assim...
Minerva implorou, chorou e se ajoelhou na sua frente, após ouvir os planos, mas Severo não voltou atrás. Vendeu o sobrado, pegou suas economias e foi morar em Londres. Ele estava convicto de sua decisão. Comprou uma casa de dois andares com um amplo porão num bairro afastado do centro, onde montou seu laboratório e começou a preparar e vender suas poções. Minerva McGonagall foi a sua primeira e principal cliente. Comprava estoques das poções que a escola utilizava ao longo do ano. Severo abastecia os boticários de Hogsmesde e do Beco Diagonal. Recusava inúmeros pedidos de outros lugares, por não querer contratar nenhum ajudante.
Já se passaram quatro anos desde o dia que ele fugiu do hospital. Severo foi absolvido da morte do diretor, foi considerado mártir e condecorado in memoriam. Para todos do mundo mágico, e para todos os efeitos, ele era um homem morto que morreu lutando na guerra.
Severo terminou seu chá e foi para seu quarto. Ainda bastante confuso com seus pensamentos, ele veste seu pijama mais grosso. As noites estavam ficando cada vez mais frias. Foi ao banheiro escovar os dentes e ao se deparar com seu reflexo no espelho, ele se assustou com o rosto envelhecido e sem cor. Lavou o rosto e voltou para o quarto gelado. Com sua varinha atiçou o fogo na lareira. Deitou-se embaixo das cobertas. Não foi fácil dormir naquela noite. Após quatro anos, raramente ele precisava da poção sono sem sonhos, mas pegou a varinha e logo um frasco da poção voou até suas mãos. Ao beber o líquido, pensou:
- Vou me sentir melhor amanhã. – Ele dormiu a noite toda.
Era domingo. Severo acordou cedo e ao abrir a janela do seu quarto, ele se depara com uma moça de cabelos e olhos castanhos lhe observando da casa ao lado. Seus músculos todos se contraem ao reconhecer aquele rosto tão familiar. Seu coração dispara no peito. Ele esfrega seus olhos para ter certeza de que não estava imaginando. Mas no momento seguinte não havia mais ninguém na janela.
- Devo estar vendo coisas. A probabilidade da Granger ser minha vizinha é uma em cem. – Pensou. Seu corpo todo estremeceu, custou para sua respiração voltar ao normal. Os batimentos do coração voltavam ainda mais devagar para a normalidade. Ele voltou para a cama e permaneceu deitado, ainda bastante confuso.
Meia hora depois Severo se levantou e foi tomar uma ducha de água quente para relaxar a tensão muscular. - Era ela mesmo? – Ele se perguntava. Afinal, reconheceria aquele rosto com os cachos de cabelo caídos lateralmente, emoldurando o rosto delicado dela, de longe. Se por um lado ele ficou confuso com a ideia de tê-la como vizinha, por outro, amaldiçoou Merlin por ela ter se casado. Afinal, ela povoava seus pensamentos. Ele nunca mais foi o mesmo desde o dia que ouviu sobre o casamento dela.
- Tsts senhorita Granger... Quando uma bruxa tão brilhante deixa sua liberdade para se casar com um bruxo medíocre?
Severo passou a manhã toda lendo os livros novos que comprou recentemente. Ao meio dia, se arrumou, colocou o sobretudo preto e um cachecol para sair de casa. Foi até o restaurante do bairro e almoçou. Já era cliente certo, principalmente aos domingos. Havia bem pouco movimento na rua, o frio era intenso e o vento cortava o rosto. Severo tapou parcialmente o rosto com o cachecol preto. Baixou a cabeça para andar mais rápido e se proteger do vento. Na volta quando estava dobrando a esquina uma moça bem vestida, de botas passou por ele. Mesmo se estivesse prestando atenção, ele não conseguiria reconhecer o rosto, porque ela também usava seu cachecol para proteger o rosto do frio. Um rastro sutil de algumas notas de perfume feminino invadiu as narinas apuradas dele.
- Hum, suaves notas de baunilha. – Ele disse para si mesmo. – Mesmo perfume que senti ontem à noite, será a minha vizinha? Ela parece ter bom gosto para perfumes...
Severo retorna para sua casa, e para sua cama, com uma pilha de livros. Preferiu passar a tarde lendo. Se dormisse perderia o sono à noite.
Segunda-feira o despertador o acorda cedo. Precisava ir até o boticário comprar uma série de ingredientes que estavam faltando para completar os pedidos da semana.
Ao chegar na calçada, Severo se depara com uma situação inusitada. Sua postura habitual, com os braços cruzados na altura do peito, com um semblante austero, seus olhos negros focaram a senhora toda atrapalhada querendo pegar todos os pacotes de supermercado ao mesmo tempo, de dentro do carro. Não precisava ter bola de cristal para prevê que boa parte das compras cairiam no chão.
- Senhora, cuidado! – Ele corre e consegue segurar as compras do braço direito da mulher. Apenas uma sacola do braço esquerdo caiu no chão, junto com a bolsa, que abriu e se esparramou.
Severo se abaixa para pegar as compras e o conteúdo da bolsa. A carteira de motorista lhe chama a atenção quando lê: Anne Jean Granger.
Continua...
