Capítulo 3 – As prímulas
O refeitório estava lotado àquela hora da manhã, pensei que poderia ter demorado mais, assim evitaria olhares, mas hábitos arraigados são difíceis de ser ignorados. Mesmo no hospital eu acordava cedo.
Muitos rostos antigos e poucas caras novas me olhavam de soslaio. Reconheci algumas pessoas e sorri, poucos sorriram de volta. eu tinha consciência de que seria assim, a guerra ainda era recente e poucos sabiam que lutei ao lado deles, muitos viram apenas os pronto pops em que fui apresentado como covarde, mas ainda assim doía.
- O que estão olhando? – gritou Greasy Sae do fundo do barracão – não conhecem o menino?
Sae me rodeou com o braço, enquanto me levava até uma mesa no fim da sala, ainda passando uma dura nos homens reunidos, falando dos meus pais, dos meus irmãos, da padaria, e no fim do sermão eles tiveram o bom senso de parecerem envergonhados.
- Obrigado – disse.
Mas antes de sentar-se, ela me abraçou. Me deu boas-vindas baixinho ao meu ouvido, e sem que eu pedisse, me serviu um caldo quente e se pôs a falar tudo que estava sendo feito no distrito. Escutei tudo com atenção enquanto comia o caldo. Era palatável e tinha gosto de casa.
- Ela não está nada bem, sabe? – disse depois de um silêncio curto.
- Katniss? – perguntei bobamente.
Ela balançou fracamente a cabeça, fios de seu cabelo grisalho balançavam para lá e para cá – desde que chegou ela não fez nada. Acho que nem trocou de roupa. Só come quando eu a forço.
Engoli seco. Era segunda pessoa que me dava notícias de Katniss, mesmo sem eu pedir. Antes de vir para cá, achei que não ligava mais para o que estava acontecendo com ela. Havia examinado meu coração e o encontrei vazio. Agora, já não sabia mais. Meu peito apertava.
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Dava uma volta pelo distrito quando o sinal tocou. Homens e mulheres largaram suas bandejas e se punham a trabalhar. Muitos colocaram E.P.I.s e carregavam carrinhos de mãos. Outros colocavam luvas e chapéus e rumaram a uma área em construção. Outros foram além, pareciam ir para a floresta e, para não passar pelo centro da cidade onde eu sabia que estava as ruinas da minha antiga casa, os acompanhei.
Fomos conversando pelo caminho. Me perguntaram da guerra, alguns sabiam do telessequestro e me perguntaram do tratamento. Andaram em círculos até que o mais atirado deles perguntou de Katniss, do bebê, do casamento. Não soube o que responder e falei o que o Dr. Aurelios havia me instruído, que não estava confortável com esse assunto e se por favor poderíamos falar de outras coisas. Os homens se entreolharam e rapidamente se puseram a falar de onde estávamos indo.
- Estamos fazendo um pomar – disse um deles, colocando um grande chapéu na cabeça.
Balancei a cabeça concordando, era uma boa ideia
- O Jill aqui é do 11. Ele vai nos ensinar, não é Jill? – continuou o homem, colocando a mão no ombro de um outro homem mais velho, de pele escura e barba cheia.
- É. Se depender de mim, em pouco tempo o distrito 12 não terá que importar nada. Tudo que consumirmos será plantado aqui- falou o homem, colocando também seu chapéu e coçando a barba.
Entre si foram falando da chuva, da terra, das mudas que estavam vingando, da construção de uma estufa e de sementes encomendadas. Deixei minha cabeça vagar prazerosamente até chegarmos ao tal pomar.
Era apenas alguns canteiros, mas dava para ver no sorriso dos homens que eu acompanhava que eram motivo de orgulho. Abri a boca para fazer um elogio quando as vi, repousando na terra na base da cerca que margeava a floresta. Lindas prímulas amarelas. Obedecendo a um impulso, pedi uma pequena pá e cavei a terra embaixo delas, tirando todas que achei e colocando em um carrinho de mão emprestado. Não pedi permissão a ninguém e se eles acharam estranho, guardaram sua opinião para si.
Depois passei a procurar por mais, entrando na floresta. Somente quando não ouvi mais nenhuma voz foi que me dei conta como estava dentro do mato. Eu não conhecia aquilo ali. Olhei uma pedra grande e plana e me lembrei de um prontop de Katniss cantando ali em cima. Aquilo era real? Acho que era, a lembrança tinha bordas claras e estáveis. Suspirei e me dei por satisfeito, voltando com o carrinho de mão.
Fui até a casa dela, com um proposito tão límpido que sequer pensei duas vezes. Ao chegar lá, me agachei com esforço, o joelho novo não me obedecia bem, e cavei a terra, plantando as pequenas flores ao redor da casa.
Então a vi.
Ela saiu de casa de supetão, parecendo assustada.
- Você voltou – disse.
Eu não a reconheceria na rua. Seus cabelos revoltos e emaranhados escondiam boa parte do seu rosto cadavérico. Via rostos assim morrendo de fome na rua há alguns anos. Seus pequenos pulsos tremiam ao se apoiar na porta.
- Dr. Aurelius só me deixou sair da capital ontem – disse, olhando firme – a propósito, ele disse para dizer para você que ele não vai poder ficar fingindo pra sempre que está te tratando. Você vai ter que atender o telefone alguma hora.
Franzi as sobrancelhas ao olhar para ela. Ela estava contra o sol e senti meu peito ainda mais pesado.
- O que você está fazendo? – ela estava na defensiva, podia ver que estava ganhando tempo.
- Fui à floresta agora de manhã e colhi isso aqui. Pra ela – minha voz falhou e fiz um esforço pra continuar – pensei que a gente podia de repente plantá-las ao longo da lateral da casa.
As florezinhas balançavam pateticamente na minha mão. Vi que suas faces afoguearam e seus olhos se estreitaram, ela estava prestes a gritar comigo, mas mudou de ideia. Assustada, ela entrou correndo em casa, me deixando sozinho do lado de fora. Resolvi voltar para o que estava fazendo e em pouco tempo ela voltou, carregava um grande vaso de porcelana e uma rosa branca dentro dela que ela jogou com força na frente da casa, espatifando o vaso e espalhando um horrível cheiro de morte que me deixou enjoado até bem depois de entrar em casa.
