Him



FAN FICTION

ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)

DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores.

CATEGORIA: Tragi-comédia, MOTW.

CLASSIFICAÇÃO: PG-13 (linguagem vulgar).

SPOILER: Roadrunners.

SINOPSE: Por que os personagens principais ou secundários da
série têm de ser sempre os protagonistas? Essa é a estória
contada do ponto de vista de um Monstro da Semana.

FEEDBACK: É gostoso, faz bem e tem menos de uma caloria.
Envie. Nem que seja um e-mail bomba.

NOTA 1: Se você tem estômago fraco e achou Roadrunners um dos
episódios mais nojentos que você já viu, leia essa fic mesmo
assim. Mas considere que talvez seja melhor ter um balde por
perto. Just in case...

NOTA 2: Algumas das idéias aqui contidas podem ser
consideradas ofensivas pelos mais religiosos. Antes de me
pichar, lembre-se apenas de se trata do ponto de vista de um
Monstro da Semana. Só funcionei aqui como intérprete das
experiências dele. ;)




Him


"A vida é apenas uma sombra
ambulante, um pobre cômico que se
empavona e agita por uma hora no
palco, sem que seja, após,
ouvido; é uma história contada
por idiotas, cheia de fúria e
muita barulheira, que nada
significa."
(Macbeth, Ato V, cena V)


Himly era uma lesma gosmenta. Não que jamais houvesse se
acostumado à carga de preconceito contida nas palavras "lesma
gosmenta". Mas era assim que a maioria das pessoas a chamava.
Então, desistira de discutir e aceitara o epíteto. "Lesma
gosmenta", suspirava resignada.

Sempre preferira pensar em si mesma como um escargot que
perdera a casca. Uma sem-teto. Não... A situação de sem-teto
acabava com toda a classe e o "chic" de ser escargot. Ok! Era
apenas escargot, então. "Escargot", repetia para si mesma
sempre que estava triste. E logo o alto astral voltava.

Na verdade, cientificamente falando, Himly era uma espécie de
verme mutante. Mas vá explicar isso para aquele bando de
caipiras ignorantes do Meio Oeste dos Estados Unidos... Era
como falar com as paredes.

Sim! Porque Himly falava, sim, senhor! Embora poucos pudessem
ouvi-la e menos ainda conseguissem entendê-la. Para dizer a
verdade, não havia ainda encontrado ninguém sequer que a
entendesse. Mas seguia tentando. Com isso, a maior parte de
seu tempo era gasto em monólogos sem fim sobre as obviedades
que observava no mundo ao seu redor.

Vagava por aqui e acolá, alimentando-se das carcaças de
animais mortos que encontrava pelo caminho. A idéia de
"carcaças" não tinha absolutamente nada do apelo e do "chic"
dos quais Himly tanto gostava. Mas, fazer o quê? Já tentara
outras dietas sem muito sucesso. Comera folhas verdes durante
algum tempo e o tom que sua pele adquirira durante esse tempo
quase a fizera ser morta, confundida com uma lagarta
supernutrida. Tentara terra, mas era muito seca. Lama, mas
era muito pegajosa. Papel lhe parecera saudável, tinha até as
mesmas fibras das folhas verdes, sem aquela tonalidade
comprometedora. Uma vez, comera um livro inteiro, uma bíblia,
mas não tinha gosto de nada! De modo que continuava com sua
dieta de animais mortos. "Chic" é não morrer de fome.

Houve uma ocasião em que encontrou um lindo gatinho, morto a
pouco. Fresquinho, suculento, apetitoso. O bichano ficara
entalado na basculante da janela de uma igreja e quebrara o
pescoço, tentando se desentalar. A gulosa Himly passou dias
se fartando das carnes do azarado felino e ouvindo as
pregações do pastor, durante os cultos.

Aqueles humanos eram mesmo uns idiotas! Ela simplesmente não
podia entender como haviam conseguido espalhar-se tanto sobre
o planeta. Deviam ser alguma espécie de praga, um vírus
alienígena qualquer. Não havia outra explicação. Com tantos
seres mais antigos e bem adaptados sobre a Terra, criaturas
como as baratas e as abelhas, só para citar duas espécies,
aqueles humanos boçais acreditavam dominar a Terra. Pior.
Acreditavam-se criados à imagem e semelhança do próprio Deus!
Himly rolava de rir todas as vezes que o pastor dizia aquelas
asneiras e o bando de imbecis da audiência erguia as mãos
para o teto aos berros de "aleluia" e "louvado seja o
Senhor".

Idiotas! Não sabiam que Deus tinha o corpo comprido e
achatado, a pele translúcida e ligeiramente gosmenta?
Exatamente como um verme. Exatamente como Himly.

Naquela paróquia, havia o que Himly, Him para encurtar,
classificava como o idiota perfeito. O rei dos imbecis, um
tal Gregory Milsap. Passava os dias rondando a igreja,
puxando o saco do pastor, como se com isso fosse garantir sua
entrada no paraíso. Aquela, sim, era uma criatura repulsiva.

Um belo dia, azar supremo, o tal Milsap encontrou a carcaça
já completamente devastada do gatinho entalada na basculante.

- Merda! – exclamou Himly, quando o homem retirou o cadáver
da janela.

- Como? – indagou Milsap, surpreso.

- Eu disse merda, Milsap. – repetiu Himly, irritando-se.

Tanto tempo fazia que não encontrava quem pudesse ouvi-la,
que já não acreditava ser possível achar alguém que fosse
capaz de entendê-la.

- Aleluia! – gritou Milsap, caindo de joelhos no chão, diante
da carcaça do gato morto. – Aleluia! O Senhor muito honra a
este seu humilde servo! Eu não sou digno, ó Pai Celestial!

Totalmente louco aquele camarada, era o que pensava Himly.

- Corta essa, cara! Eu não sou o Pai Celestial coisa nenhuma.
– retrucava desdenhosa ao louco, já começando a duvidar que
ele realmente pudesse entendê-la.

- Aleluia! Aleluia! – bradava o desarvorado Milsap, as
lágrimas de júbilo a saltar de seus olhinhos estúpidos.

- Ei, cara! Eu não sou Deus, não! – gritava Himly, subindo
pelos joelhos do homem. – Eu sou Himly. Him!

A expressão de Milsap iluminou-se como se ela houvesse lhe
revelado um dos mistérios sacrossantos do espírito.

- Eu sabia! Eu sabia! Ele! O Senhor! Aleluia!

- Não, cara! Você não entendeu. Himly! Himly! – repetia ela.

- É Ele! É Ele! Aleluia! – gritava Milsap em êxtase.

Himly desistiu. Além de louco, o camarada era surdo! Se
queria acreditar que ela, um pobre vermezinho mutante, era
Deus, ok! Era bem melhor que ser chamada de lesma gosmenta...

Num lampejo, Him imaginou se poderia tirar algum proveito
daquela sua repentina promoção à divindade. A muitos dias que
as carnes saborosas do gato morto haviam se acabado. Himly
tinha fome. "Tentar não custa..."

- Tenho fome, Milsap. – disse com firmeza.

A idéia de que o Supremo, o Onipotente pudesse ter fome
confundiu a mente provinciana de Milsap. As escrituras não
diziam nada a respeito...

- Tenho fome, Milsap. – repetiu o verme, imaginando se Milsap
ainda a compreendia. – Quero comida! Agora!

A expressão normalmente idiota do homem era agora de total
confusão. Coçava a cabeça, coçava o queixo, olhava para o
verme folgadamente recostado em sua perna... Mas não sabia o
que fazer.

- Carne, Milsap! Traga-me um belo bife. – disse Him,
compreendendo a razão do aturdimento do imbecil. – Cru! ...
E sem gordura! – acrescentou quando Milsap já saía correndo
pelo salão da igreja.

Nem cinco minutos depois, ele estava de volta. Com um
belíssimo naco de carne suculenta. Um bife digno dos deuses!

A partir deste dia, Himly foi descobrindo rapidamente as
vantagens de brincar de Deus. Milsap a venerava e adorava com
fervor. Atendia a todos os seus desejos sem discussão. Him só
comia do bom e do melhor. Adeus, fome!

Como ela sempre havia imaginado, aquele Milsap era o rei dos
imbecis. E, logo, logo, começaram a aparecer seus súditos. Um
bando de loucos idiotas que, convencidos sem esforço algum
por Milsap, também passaram a acreditar que Himly era a
própria encarnação de Deus.

Ironizados e perseguidos pelos demais habitantes da
cidadezinha onde moravam, Milsap e seu bando foram forçados a
mudar-se dali. Vagaram por um tempo dentro de um velho
ônibus, percorrendo as estradas do Utah, até que encontraram,
no meio do deserto, o que Milsap acreditou ser o local
perfeito para fundar sua Comunidade da Salvação. Liderada
espiritualmente por Himly! De lesma gosmenta a Ele, o Senhor.
Ascensão meteórica aquela sua...

À noite, o grupo costumava reunir-se em torno dela para
rezar. Depois, ficavam silenciosos à espera das palavras da
Salvação, como costumava anunciar Milsap. Nessas ocasiões,
Him costumava repetir para eles as coisas que ouvira do
pastor durante sua estadia na janela da igreja. Com o passar
do tempo, foi se soltando, se empolgando e começou a incluir
suas próprias idéias e observações nas pregações. Divertia-se
com os "aleluias" sem critério, alguns berrados para as
barbaridades que, às vezes, dizia propositadamente. Idiotas!

Assim iam vivendo suas vidinhas no deserto, entre orações,
pregações e bifes suculentos, até que veio a grande seca. O
gado que emagrecia nos pastos não sobrevivia o suficiente
para produzir os deliciosos bifes necessários à alimentação
de Himly.

Um dia, não havia mais carne em nenhum dos açougues das
cidades próximas à Comunidade da Salvação. Quando os três
voluntários chegaram com a má notícia, Milsap esbravejou e
gritou, ameaçando-os com fogo do inferno e danação eterna.
Obrigou os pobres homens a saírem vagando pelo deserto como
condenados à procura de alimento para Him, mas tudo o que
conseguiram, após um dia inteiro de buscas, foi um lagarto
muito magro e já meio morto.

Him gritou e reclamou. Havia se tornado um verme mimado. Mas
devorou avidamente as parcas carnes do lagarto, na falta de
coisa melhor.

As preces daquela noite foram totalmente dirigidas para a
obtenção de um meio digno de alimentar Him. Os "amém" e os
"aleluia" foram desanimados e carregados de preocupação. Para
tristeza dos fiéis, não houve pregação. Him havia se tornado
um verme vingativo.

Durante todo o dia seguinte, ninguém apareceu no recinto
sagrado onde ficava Himly. Ela começava a imaginar se seu
chilique do dia anterior não havia sido excessivo e os feito
desconfiar de que ela era uma impostora. Mas, na hora de
sempre, Rebecca, a mulher gorda que dirigia o ônibus, entrou
no quarto e, reverente, conduziu Himly até o local de
adoração. Reunidos na sala, iluminada por velas e lampiões,
estavam Milsap e os demais seguidores. Felizes e sorridentes.

"Me arranjaram um bife...", regozijou-se Himly. Surpresa,
porém. Na bandeja ritual de prata, onde habitualmente era
colocada a carne, não havia nada. Nada! Himly ia acabar
morrendo de fome! E, ainda assim, os bastardos sorriam... Ela
já ia iniciar seu show de ameaças e danações, quando Milsap
adiantou-se, dizendo:

- Louvado seja o Senhor!

- Aleluia! – berrou o coro.

- Irmãos, todos os nossos problemas estão resolvidos. Louvado
seja o Senhor!

Outro coro de "aleluias" se ergueu entre os presentes. Himly
ainda não imaginava qual poderia ser essa tal solução.

- Nossa querida irmã Mildred, - disse ele, apontando para
Mildred Calloway, uma simpática velhinha de 97 anos sentada
em um canto, - ofereceu-se para alimentá-Lo.

- Não entendi... – deixou escapar Him em voz alta. – Com o
quê?

- Mildred será o alimento. Mildred ofereceu sua própria carne
para alimentar o Senhor. Para nossa salvação.

- Aleluia! – gritaram os idiotas.

- Como assim? Vocês vão matar a pobre Mildred? – perguntou
Him, incrédula. Que eram malucos, já sabia. Mas assassinos?
...

Dessa vez, quem respondeu foi a própria Mildred. Com um
"nhec-nhec-nhec" incômodo, ela arrastou sua cadeira de rodas
até o centro do grupo.

- Se for o desejo do Senhor, - falou a velhinha com voz
trêmula, - que me tome com vida.

O estômago de Himly deu uma cambalhota. Comer um ser vivo
qualquer já era uma idéia estranha. Comer uma simpática
velhinha como Mildred, VIVA, era absolutamente repulsivo. Que
bando de psicopatas era aquele que sugeria obscenidades tais
como sacrificar uma pessoa para servir de alimento a um
parasita explorador como Himly? Seu senso de decência, sua
moral de verme a faziam repudiar tamanha sandice.

Himly olhava atônita os rostos sorridentes de Mildred e de
Milsap e de Rebecca e dos outros. Como alguém poderia supor
que pessoas tão aparentemente comuns pudesse ter idéias tão
perversas? Todos a olhavam sorrindo, aguardando sua ordem
para assassinar a pobre velhota. Sádicos!

- O mundo não foi feito em um dia... A pressa é inimiga da
perfeição... – Him hesitava, tentando encontrar uma solução
alternativa. – Amanhã, a essa mesma hora, depois de rezar e
refletir, darei minha resposta. – sentenciou ela. – Por ora,
oremos!

Dessa forma, Himly esperava ganhar tempo. Quem sabe até a
noite seguinte, uma nova leva de carne não aparecesse nos
açougues? Ou talvez algum grande animal não acabasse por
morrer na porta da casa de Milsap?

O dia seguinte foi inteiramente gasto em orações. Himly rezou
tanto e tão fervorosamente, como nunca havia rezado em sua
curta vida de verme, à espera de um milagre. Enquanto rezava,
os roncos de seu estômago iam se tornando mais e mais altos.
A fome aumentava exponencialmente com o passar das horas. Him
fechava os olhos e tentava imaginar um belo bife. Mas quando
estava pronta a abocanhá-lo, o pedaço de carne disforme
ganhava o rosto simpático e gentil da Mildred. E a fome
crescia.

A noite caiu e o momento de adoração chegou. Rebecca veio
buscar Himly como fazia todos os dias. O pobre verme ainda
rezava por um milagre. Mas, no local de adoração, na bela
bandeja ritual de prata, não havia bife, não havia milagre.
Havia apenas os olhinhos míopes de Mildred, sorrindo para Him
com sua boca desdentada.

- Louvado seja o Senhor! – começou Milsap.

O estômago roncava tão ensurdecedor que Himly não pôde ouvir
os "aleluia" em resposta. Mildred, a velhinha, adiantou-se
sorrindo, o "nhec-nhec-nhec" da cadeira de rodas formando uma
sinfonia esquisita com os roncos do estômago.

- E qual é a sua resposta, ó, Senhor? – perguntou humilde,
mas firme, a velhinha.

Em uma macabra sucessão de imagens diante dos olhos de Him,
Mildred virava bife que virava que Mildred que virava bife
outra vez. Himly teve medo de enlouquecer. Mas teve certeza
de que já havia enlouquecido quando ouviu sua própria voz
responder:

- Sim! Vou alimentar-me de Mildred. – Não fora ela a
responder! Não fora. Fora seu estômago! – Mas viva. –
acrescentou, numa tentativa esquisita de consertar o mal que
já havia feito.

- Aleluia! Aleluia! – urrou o bando em frenesi.

A expressão no rosto de Mildred era algo indescritível.
Júbilo era uma palavra insuficiente para descrevê-la. Era
algo como o prazer que somente pode ser obtido do sexo.
Orgástica. Sim! Esta era a palavra.

- Estou louca... – murmurou Him para si mesma. – Como é que
vou fazer isso? Ó, Cristo...

Himly queria fugir, mas a velhinha maluca já começara a
despir-se diante dela. A visão chocante das carnes flácidas
contrastando com a expressão extasiada de seu rosto causava
náuseas ao pobre verme.

- Nas costas... na base da coluna... – ouviu-se dizer, não
imaginava o porquê.

Num instante, Mildred, a ovelha imolada para a satisfação
d'Ele, estava deitada no chão, uma expressão de estúpida
felicidade pregada em sua cara. Mesmo quando Milsap fez uma
pequena incisão a sangue frio em suas costas. Mesmo quando
Himly enfiou-se lentamente pelo corte. Mesmo quando o verme
começou a roer suas carnes flácidas.

A despeito de toda repulsa inicial que sentiu, a carne era
boa, quente, suculenta, Him não podia negar. E, por baixo
dela, o guloso vermezinho descobriu um petisco que nunca
havia experimentado, as macias cartilagens dos discos da
coluna de Mildred.

O cálcio que Himly absorveu deles funcionou como um poderoso
alucinógeno para ela. Passou horas desfrutando da "viagem"
oferecida por uma simples mordida. E foi assim que Himly
tornou-se um verme viciado em cálcio e carne humana. Devorou
toda a espinha de Mildred até deixar a já enfraquecida
velhinha tão debilitada que não teria mais que umas poucas
horas de vida. Enfiou, então, a cabeça para fora da pele
enrugada da velha e ordenou a Milsap que arranjasse outra
vítima.

- Mais! Mais! – foi tudo o que disse.

Todos os seus escrúpulos foram devidamente mandados às favas.
Tudo em que conseguia pensar era no "barato" do cálcio.

Mas dessa vez, não houve voluntários. Eram todos loucos,
fanáticos, sim. Mas não suicidas em potencial como Mildred.
Milsap ainda tentou convencê-los, discorrendo sobre a honra e
a glória de ser o "tabernáculo do Senhor". Mas, antes que
alguém ousasse verbalizar o fatídico "então por que você não
se oferece?" que já ia pela cabeça de muitos, resolveu parar
de insistir. Em consenso, a assembléia acabou por decidir
procurar uma vítima externa ao grupo.

Himly, que deixara o corpo da falecida Mildred, foi levada de
volta ao seu recinto sagrado, ainda sob os efeitos da
"viagem" do cálcio. Quando Rebecca veio buscá-la, na noite
seguinte, Himly, já livre dos efeitos do alucinógeno,
refletia sobre o que fizera. "Insanidade temporária", era
como tentava justificar-se. "Mas esta noite vai ser
diferente", prometia a si mesma.

Ao ver, estendida numa cama de ferro colocada no local de
adoração, uma pobre velhinha desconhecida com braços e pernas
amarrados, gritando e contorcendo-se, Himly estremeceu de
horror, sentiu-se a mais vil das criaturas sobre a Terra,
pelo que fizera a Mildred. Mas, quando Milsap fez a incisão
na pele da velha senhora e o cheiro agridoce de sangue encheu
o ar, Himly estremeceu outra vez, mas de gozo. Salivava,
imaginando o gosto da carne. Vibrava, relembrando as ondas de
prazer das alucinações. E mergulhou sem dó nem piedade pelo
corte, totalmente surda aos gritos da mulher. E comeu, comeu,
comeu. Empanturrou-se de carne e de cálcio. Teve as mais
loucas "viagens". Até que a pobre velhinha morreu.

- Mais! Mais! – gritou a Milsap.

E lá foram eles, seus seguidores, em busca da próxima vítima.
E mais outra e mais outra que Himly devorava insaciável.

Os alvos mais fáceis, os idosos e as crianças, não resistiam
mais que umas poucas horas ao apetite voraz de Himly. Também
seus níveis de cálcio eram baixos. Ou porque seus ossos já
estavam muito deteriorados pela idade ou porque ainda não
estavam completamente formados. As vítimas sucumbiam rápido
demais à devastadora avidez do verme.

E ela prosseguia, sôfrega.

- Mais! Mais! – era tudo o que dizia.

Mal havia tempo para procurar a próxima vítima e organizar
sua captura sem deixar pistas e já estava Himly gritando
outra vez:

- Mais! Mais!

Um dia, rodando por uma das estradinhas do deserto com seu
ônibus, Milsap e os outros encontraram um jovem pedindo
carona. Foi fácil conduzi-lo até a Comunidade da Salvação.
Sem dinheiro e apenas com sua mochila nas costas, o rapaz
aceitou de bom grado a oferta de uma refeição feita por
aquelas pessoas tão simpáticas. Um pouco de tranquilizantes e
algumas cordas depois, e, lá estava ele, pronto para ser o
próximo tabernáculo do Senhor.

Himly degustou com satisfação suas carnes jovens. Apreciou
cada grama de cálcio de seus ossos bem formados.

Uma semana depois, quando o pobre rapaz já estava nas
últimas, Himly encontrou, por acaso, uma nova fonte de
alimento. O sabor delicado da macia massa cinzenta no
interior de seu crânio. Uma delícia! E Himly tornou-se um
verme devorador de cérebros.

- Mais! Mais! – gritou ela, enquanto sugava os miolos do
infeliz.

Tão enfronhada estava Himly no crânio do último tabernáculo,
que Milsap e Rebecca precisaram esmagar a cabeça do rapaz par
transferi-la para a próxima vítima.

E assim foi. De hospedeiro em hospedeiro. De tabernáculo em
tabernáculo. De um crânio esmagado para o seguinte. Os dois
centímetros que Himly media quando havia primeiro encontrado
Milsap haviam se tornado em generosos vinte centímetros. Um
verme super nutrido era no que havia se transformado.

Todas as noites pregava a seus fiéis seguidores. E quanto
mais estanha e intensa fosse a "viagem" do cálcio, mais
entusiasmados eram os "aleluia" que berravam. Himly era um
verdadeiro sucesso como divindade.

E, então, veio Hank.

Depois de Mildred, Himly passou a não tomar conhecimento dos
nomes de suas vítimas. Também não olhava seus rostos. Evitava
com isso criar quaisquer vínculos sentimentais que pudessem
ser prejudiciais ao desempenho de suas funções.

Mas com Hank foi diferente. Antes mesmo de se tornar um
hospedeiro, ele já parecia ouvi-la, compreendê-la. E havia
seus olhos, tão eloqüentes como ela nunca vira iguais. Hank
falou com ela através de seu olhar e Himly quase desistiu de
fazê-lo mais um tabernáculo.

Mas Himly tinha fome. E precisava do cálcio. E, mesmo de seu
pedestal de divindade ou talvez por causa dele, não tinha o
direito de abrir precedentes. E Hank, o belo Hank, ah, que
olhos, acabou se transformando no próximo tabernáculo.

Himly hesitava e alimentava-se de Hank com cuidado, como se
quisesse preservá-lo. Esforçava-se para ser gentil quando
mordiscava sua coluna. Mas ele urrava de dor e tinha
convulsões cada vez que ela se movimentava. Himly murmurava-
lhe palavras ternas e ele a compreendia.

Mas, a despeito dos cuidados de Himly, passados dez dias, os
belos olhos de Hank estavam prestes a não mais ver a luz do
dia. Hank estava morrendo.

Himly sofria com isso. Tentava a todo custo retardar seu fim,
a morte de Hank era inevitável. Algumas horas mais, talvez um
dia, não muito mais.

Foi quando apareceu a ruiva. Himly nunca ficou sabendo seu
nome. Não importava.

A ruiva era médica e talvez pudesse salvar a vida de Hank.
Himly voltou a esperar por um milagre. Mas a mulher declarou
que nada poderia fazer pelo moribundo Hank ali, no meio do
nada. Que precisava levá-lo a um hospital onde pudesse
receber o tratamento adequado e patati-patatá. Himly não a
ouvia. Toda sua mente estava direcionada para a eminente
morte de Hank, seu belo Hank.

Milsap foi o primeiro a sugerir usarem a ruiva como próximo
hospedeiro. Himly não gostava da idéia e fingiu ignorá-la.
Não gostara da ruiva. Talvez precisasse admitir para si mesma
que do que não gostava era da idéia da perder Hank. A ruiva
não tinha absolutamente nada a ver com aquilo.

Himly decidira-se. Se Hank morresse, queria morrer com ele.
Percebera que a vida não valeria a pena ser vivida sem ele.
Himly era um verme apaixonado.

Mas Hank, com seu jeito manso, sua voz macia e seus belos
olhos, acabou por convencê-la de que as divindades não tinham
o direito de dar-se a esse luxo. Himly precisava tomar a
ruiva. Para seu próprio bem e o da Comunidade. Para salvação
da alma de Hank. E o verme cedeu. Por Hank.

Milsap, Rebecca e os outros encurralaram a ruiva no celeiro,
onde escondiam seu ônibus.

- Sou uma agente federal! – a ruiva gritava. – Nesse exato
momento, o FBI está a minha procura.

- Sua vida... está por sofrer uma maravilhosa mudança... –
dizia, pela última vez, a voz doce e torturada de Hank. –
Você vai ser tão... tão amada... – completou sorrindo.

"Ele me ama! Ele me ama!", suspirava Himly em êxtase.

Um momento depois, porém, Rebecca já havia esmagado seu
crânio com uma marreta. Hank estava morto.

- Isso não está acontecendo! – gritou Himly, desesperada.

Mas seus gritos foram abafados pelo coro de "amém" do bando e
pelos protestos gritados pela ruiva.

- Não! Não! Estou grávida! – ela berrava. - Não! Não façam
isso! Eu vou ter um bebê!

Que importava o que quer que fosse acontecer àquela ruiva
reclamona? Hank estava morto, ela não percebia? Morto! Será
que a ruiva nunca perdera a pessoa que amava? Por Deus!

Mas Himly estava com fome. E o cheiro do sangue da ruiva que
emanava do talho em suas costas era inebriante. E o apelo da
natureza foi mais forte.

O resto não foi muito diferente do que habitualmente era com
os outros tabernáculos. Exceto, talvez, pelo fato da carne
daquela mulher não ter o mesmo paladar das carnes dos jovens
mochileiros a que Him estava acostumada. Tinha gosto de
iogurte desnatado e gelado de arroz integral e salada de
chuchu. Tinha gosto de nada. Não era de todo impossível,
porém, que a tristeza estivesse afetando o paladar de Himly.
A ruiva tinha o benefício da dúvida.

A ruiva gritava, gemia e grunhia tanto que Himly decidiu
desligar-se dos barulhos do mundo exterior. Às vezes, fazia
isso. Havia ingerido um pouco de cálcio e iniciava mais uma
"viagem". De um momento para o outro, no entanto, tudo
tornou-se uma "viagem" ruim, agitada, desagradável. Ela
ouvia, ao longe, os gritos da ruiva.

- Tire essa coisa de mim...

E, subitamente, Himly estava fora do corpo da ruiva, nas mãos
de um humano de cabelos louros. "Um belo par de olhos
azuis...", sorriu para si mesma. Olhou brevemente ao redor.
Estavam no ônibus. Milsap e seus asseclas avançavam
ameaçadores com facões e ancinhos na direção do homem.

- Mate essa coisa, seu idiota! – disse alguém.

Coisa? Quem a ousava chamar de coisa? Não podia ser a ruiva
que jazia desmaiada num banco do ônibus. Nem o dono daqueles
expressivos olhos azuis que a olhavam tão intensamente. Só
podia ser, então...

- Mate essa coisa. Só assim eles vão parar. – repetiu a
baratinha na parede ao lado da ruiva.

Como uma barata nojenta ousava chamá-la de coisa? A ela,
Himly, Him, Ele, o Senhor? Digna representante da divindade?

Heresia! Fogo do inferno e danação eterna à ousada baratinha!
Himly ia gritar, conclamar seus seguidores, tentar convencer
os olhos azuis a seguirem-na também.

Mas os olhos azuis inclementes já a haviam arremessado ao
chão e descarregaram sobre ela três balázios certeiros.

Em sua agonia, toda a curta vida de Himly passou como um
filme diante de seus olhos. Lesma, escargot, gato morto,
igreja, Milsap, aleluia, Mildred, aleluia, os tabernáculos
anônimos e sem rosto, Hank...

- Doce Hank, amado meu. A eternidade será nossa morada... –
foi seu último suspiro.



F I M