Capítulo 1- Natal...

O capítulo um de uma história de amor é aquele em que se descreve a heroína e em que ela se encontra pela primeira vez com o herói. Aqui passa- se o mesmo. Tudo começou alguns dias antes do Natal. A minha mãe pediu-me para ir ao Filch Market depois do jantar, para comprar pauzinhos de canela. Na época do Natal, ela costuma preparar uma bebida quente que dá pelo nome de chá russo- leva muita canela e cravos-da-índia e açúcar e laranja e limão e não sei que mais- que nós vamos consumindo durante o resto as férias. Esta bebida faz parte da tradição da nossa família. Mas quase já não havia pauzinhos de canela. Eu tinha mesmo de ir.

Era uma noite escura e tempestuosa. Foi tal e qual assim: vivo em St. Paul, no Minnesota, e caíam flocos de neve grandes como bolas de algodão e ouviam-se os trovões á distância. Se não acreditam que possa trovejar e nevar ao mesmo tempo é porque nunca estiveram no Minnesota, o estado da intempéries.

Tinha coberto o meu metro e oitenta de altura com roupa interior térmica, calças de ski, camisola de gola alta, uma parka com capuz, luvas com cabeças de renas bordadas nas costas da mão e botas para a neve. Não tenciono mentir sobre a minha altura exagerada. Eu sei que a tradição diz que as heroínas têm uma constituição pequena e delicada, mas infelizmente esta regra não se aplica a mim.

Continuando, no momento em que comecei a caminhar pela Folwell Street, sentia alegria de viver. Mesmo antes do herói entrar em cena, estava feliz comigo mesma. Não costumo estar mal-humorada. Quando saí de casa, o meu pai, que é professor de linguística, estava a ouvir um concerto de Brandenburg, e parecia-me que ainda tinha o som da flauta na cabeça e que, se abrisse a boca, as notas sairiam para a frescura da noite, flutuando no ar. Apanhei flocos de neve com a língua, como costumava fazer quando tinha dez anos. Era uma noite mágica. Parecia que pairava um presságio no ar.

São apenas seis quarteirões até ao Filch Market, por isso rapidamente cheguei junto das especiarias, mas não consegui encontrar os paus de canela. Sabia que elas estavam por ordem alfabética, mas os meus olhos (que o Prontuário do Escritor de Romances poderia descrever como «de ametista») passavam do funcho ao manjericão e depois ao tomilho, recomeçando do princípio. Havia coisas que me distraíam: por um lado, a música. Eu estava mesmo por baixo de um altifalante de onde saía o som da trombeta de uma orquestra, tocando uma música de Natal, e dei comigo a entoar mentalmente a sua letra.

A outra distracção foi a Cho, a minha melhor amiga, que no ano passado me ensinou tudo o que havia para saber sobre romances de amor, e o seu namorado, o Cedric, a reclamarem no balcão junto á caixa por causa do azevinho que pendia do tecto, já seco. Eles tinham na mão o cesto das compras, que seguravam um de cada lado, e o Cedric estava inclinado sobre ele, tentando beijar a Cho á frente dos funcionários e dos clientes. Por fim, ele mordeu-lhe a orelha e a gargalhada dela sobrepôs-se à música que tocava. Quando todas as cabeças se voltaram na sua direcção, ela tapou a boca, como se tivesse cometido um erro. Depois de estarem na fila para pagar, o Cedric pegou na mão dela e enfiou-a no bolso do seu casaco, junto á dele.

A verdade é que a Cho está sempre a tentar agir como se fosse a heroína de uma história de amor. E apesar de tudo, isso nunca funciona. Ela raramente fica feliz para sempre, nem mesmo por seis semanas. Mas na época de Natal, ela e o Cedric andavam muito entusiasmados um no outro.

Tentei de novo concentrar-me nas especiarias: pimenta da Jamaica, manjericão doce, canela em pó...

-Ginny!- exclamou a Cho, virando-se repentinamente á frente do Cedric, que carregava o saco castanho da mercearia- Não sabia que estavas aqui!- A sua voz soa sempre dramática e alterada quando está com o Cedric. Eu nunca quero parecer diferente quando estou acompanhada.

-Ah, olá, tudo bem?- disse eu, acenando-lhes com a cabeça.

-O Cedric e eu vamos fazer bolinhos de Natal juntos- a Cho deu-lhe o braço.

-Tu vais fazê-los. Eu vou comê-los- e deitou-lhe a língua de fora.

A Cho encostou os seus lábios á cara dele:- Vais adorar cozinhar. É uma actividade sensual.

Aí eu tive a certeza de que quando ela disse «sensual», referia-se a algo mais do que apenas os bolos. Também senti que eles estavam a representar á minha frente.

-Parece divertido- disse eu-, guardem um bolinho para mim.

A Cho rodeou o Cedric com o braço. Ela era uma pessoa totalmente diferente ao pé dele, parecia uma personagem de desenhos animados.

-Até logo- disse o Cedric, olhando para trás.

Ele não contemplou com desejo os meus olho de ametista, portanto não é obviamente o herói deste romance.

À saída a Cho ainda me gritou:

-O Natal não é maravilhoso?

O que ela quis realmente dizer foi: «O Natal não é realmente maravilhoso quando se está com alguém como o Cedric?»

-Diverte-te Cho!- Como já tinha dito, eu ia feliz a caminho do Filch Market, só que agora sentia-me um pouco em baixo. Até suspirei. Tinha ciúmes da Cho e do Cedric. Muitos ciúmes, para dizer a verdade, mas não estava, como diria o prontuário do escritor de romances, «a debater-me num turbilhão de agonia». Sou demasiado alegre para isso.

Não havia pauzinhos de canela na prateleira.

-Sr. Filch- virei-me quando senti o cheiro a tabaco. O sr. Filch é o último grande fumador do Minnesota e ignora completamente o que é ar limpo e saudável. «Estou na minha loja», costuma dizer quando os clientes reclamam. Ele é conhecido no bairro como «aquele degenerado».

-Tem pauzinhos de canela? Não há nenhuns na prateleira.

-Se não há nenhuns na prateleira, é natural que não tenho- rabujou ele, curvando-se sobre um saco de açucar rasgado.

Tentei não olhar fixamente para o seu bigode espesso. Está sempre ranhoso.

-E não vou receber mais até à próxima semana- o seu cigarro largou cinzas que caíram no saco de açúcar.

-Mas isso é depois do Natal!

-E então?- o sr. Filch pegou no saco de açucar e soprou fumo para a minha cara. Afastei o fumo com a mão. Ele era tão grosseiro!

-Feliz Natal, Sr. Filch- disse, apesar de tudo.

Respondeu algo que não consegui perceber. Não liguei. Eu sabia que no meu romance o Sr. Filch seria apenas uma personagem pequena, insignificante e monótona.

Lá fora a noite continuava escura e tempestuosa: nevava continuamente, mas a trovoada tinha cessado. Puxei o capuz da minha parka e atei bem os cordões sobre o queixo. Ainda estava aberta a maior parte das lojas de produtos alimentares da rua principal, nesta zona antiga de St. Paul. Laços, grinaldas e lâmpadas para ar árvores de Natal decoravam as montras. Esse tipo de enfeites fazem-me sentir em festa, e apeteceu-me ir ao Brigeman's tomar um chocolate quente com natas, mas nessa altura vi a Cho e o Cedric.

Atravessei a rua assim que o sinal ficou verde e dirigi-me e dirigi-me a casa. A dose de felicidade hormonal dessa noite já tinha sido bastante, especialmente porque não era a minha. Perguntei a mim mesma se alguma vez o Sr. Filch teria sabido o que era estar apaixonado na época de Natal. Já teria sido o herói de alguém? Ele fora casado, há uns anos atrás. Mas quem é que tinha coragem de beijar aqueles lábios manchados de nicotina?

Enquanto estes pensamentos me ocorriam, ia a subir a rua inclinada que vai dar a minha casa, e apercebi-me que a felicidade natalícia segue uma ordem hierárquica. As pessoas apaixonadas como a Cho e o Cedric são os mais felizes. A seguir vêm as pessoas como eu, que têm família e amigos, e que, pelo menos, esperam vir a estar apaixonadas num Natal não muito distante. Por fim vêm as pessoas como o Sr. Filch- as antipáticas- que nunca são felizes e a quem nenhuma dose de magia vinda do exterior, nem mesmo a do Natal, consegue modificar.

Quando cheguei lá acima, virei a esquina. Entrei então na minha rua. Pela janela iluminada vi as gémeas Patil no seu quarto, que eu em tempos conheci, a atirarem revistas lá de cima do beliche. Para mim é como se aquela casa ainda fosse a da família Potter, apesar de já há alguns anos terem ido viver para a Califórnia. Sempre que lá passo sinto como que uma «onda de saudade avassaladora», como diz o prontuário. Mas por enquanto não acho que seja necessário explicar o motivo. Tudo o que vocês precisam de saber é que, naquela noite, ao passar por aquela casa eu senti um excesso de saudade. As festas provocam-me esses sentimentos piegas.

Ao subir a rua passei pela casa dos Black, onde o Sirius, que é mais novo que o meu pai, estava a morrer de cancro no pâncreas. Já tinha vivido mais dois anos do que a previsão feita pelos médicos. Tinham passado semanas desde que eu vira a sua cara abatida, com icterícia. Não há nada no prontuário que me ajude a descrever aquela cara. Ele era o treinador de tenis da escola secundária e fora também meu professor de inglês no ano em que entrei para essa escola, mas teve de se reformar por causa do cancro. Sempre que penso nele, lembro-me daquele poema de Dylan Thomas , intitulado «The Force That Trough the Green Fuse Drives the Flower.» O Sirius era um grande admirador de Dylan Thomas. Como se estaria ele a sentir nesta época de Natal?

Porquê esta pincelada de tristeza numa história de amor? Terei perdido o controlo da escrita? Ou será possível que toda aquela saudade dos Potter tenha transformado o meu cérebro em Cheerios?

Mas continuando onde eu ia: a minha casa tinha mudado desde a minha ida ao Filch's. Primeiro, havia mais janelas iluminadas. No andar de cima, até a luz do meu quarto estava acesa, e não tinha sido eu a acendê-la. Nisso saio ao meu pai, poupada e prática. A minha mãe e o Ron deixam sempre as luzes acesas em toda a parte, mas o Ron, que casara recentemente, estava em Palo Alto, a mais de três mil quilómetros de distância, com a sua mulher, a Hermione. A mãe estava na cave quando eu saí, a embrulhar vasos quando eu saí, a embrulhar vasos de túlipas com papel verde escuro brilhante e com laçarotes, como presentes para os nossos vizinhos. Estranho. A casa parecia uma nave espacial com luzes tremeluzentes acabada de aterrar, vinda de uma estrela exótica. E nem sequer estou a consultar o prontuário.

No átrio, enquanto sacudia a neve da gola e limpava as botas, reparei numa carrinha Volvo estacionada, de cor verde. Visitas. Foram as visitas que fizeram mudar a casa.

Luz, ambiente caloroso e a voz do meu irmão chegaram até mim assim que abri a porta da frente:

-Não podiamos suportar outro Natal sem neve este ano, e quando disseram que havia quase um metro da altura de neve no chão, decidimos vir.

-És tu, Ronald Weasley?- gritei, fechando a porta atrás de mim. Chocámos um com o outro entre o hall e a sala de jantar.

-É bom voltar a ver-te Boo!- disse ele. Abraçamo-nos. Ele ainda tinha a parka vestida.

-Estás cá!- foi tudo o que consegui dizer. Ainda não acreditava. Olhei para a cara dele. Os meus óculos estavam um bocado embaciados, tal como é hábito quando venho de um sítio frio. Belisquei o seu braço- Parece magia ter-te aqui connosco!

-Demoramos três dias até aqui; isso não é magia- a Hermione apareceu por trás do ombro dele, e fui a correr abraçar a minha cunhada.

-Estou tão contente por vos ver!- exclamei eu!

-Ginny, estás maravilhosa. Gosto do teu novo visual.

-Obrigada.

Eu sei que já mencionei a minha altura (um metro e oitenta). Mas falei dos óculos? É uma pergunta retórica. Não os mencionei de propósito, para que me imaginassem parecida com a Nicole Kidman. Uso óculos desde os três anos e, mesmo quando estou com armações Giorgio Armani, os meus olhos aumentam o seu tamanho cerca de três vezes com estas lentes grossas. Não posso usar lentes de contacto porque tenho cataratas congénitas. Trata-se de uma situação complicada, mas a realidade é que tenho de optar entre usar óculos ou não ver nada. Sei que podem ficar desapontados com esta caracteristica da heroína deste romance, mas se não forem daquele leitores que facilmente desanimam, vão continuar.

O Ron insistiu para que a Hermione me chamasse Boo.

-É o nome dela- dizia. Já anteriormente ele tinha tido esta conversa ainda não desistira.

-Ginny condiz mais com ela do que Boo- dizia a Hermione. Eu gostava dela.

-Ninguém me chama Boo excepto o Ron e os seus amigos idiotas- disse.

-Como eu?- Harry Potter entrou naquele momento.

Vá lá, isto merece uma brilhante salva de palmas. O herói chegou. E eu corei porque ele já era o meu herói muito antes de eu começar a escrever este romance. De facto, desde que me lembro. Ele tinha mais quatro anos agora, claro, e era mais baixo do que eu me recordava, mas eu também não media um metro e oitenta há quatro anos atrás. Os seus olhos- preciso da ajuda do prontuário do escritor de romances para descrever aqueles olhos:

-profundamente lúgubres e impenetraveis?

Não!

-com tonalidades de verde e âmbar?

Talvez.

-olhos de um verde acinzentado?

Não sei. Talvez.

-imprescrutáveis como os de um falcão?

Decididamente não! Quero lá saber! Eram olhos calorosos. Eram os olhos do Harry. Não me interessa se eram esbugalhados. O Harry Potter estava á porta da sala de jantar.

-Olá!- disse-lhe eu e avancei para um aperto de mão, quando tropecei na borda do tapete oriental e caí com os cotovelos para cima dele. Não foi uma cena muito agradável. Ele soltou um gemido porque lhe dei uma cotovelada no diafragma. Estava demasiado incapacitado para me amparar graciosamente nos seus braços. Em vez disso, fui agarrada por uma rapariga linda que surgiu por trás do Harry, com a mão no seu ombro.

Esta história seria mais bonita se eu simplesmente mentisse, mas eu quero um romance verdadeiro. E a verdade é que ao ver o Harry Potter, após quatro anos de separação, deixei-o sem respiração e não dei com a cara no chão graças á sua namorada.





Então, o que acharam? Devo continuar? Revisem, por favor! ^_^