Aqui está o capítulo 3, finalmente, eu sei que demorei um pouco com
esse capítulo, mas as férias ainda são piores que a escola! Obrigada
a todos os que revisaram os anteriores capítulos. Espero que aqueles
que começaram a ler essa fic desde o princípio não se tenham farto
ainda ^_^ Como eu postei o capítulo 2 em partes diferentes, espero
que não se tenham esquecido de ler o final.
Capítulo 3- Á noite...
No final do capítulo dois não tive coragem para revelar aquilo que vou revelar agora, no capítulo três, que foi quando a Snitch disse que seria capaz de passar a ferro o Harry com o carro dela, e em vez de «um olhar concupiscente» com o Harry, como diria o prontuário, eu troquei um olhar concupiscente com a Snitch. Com uma rapariga! A sério. Compartilhamos um «um olhar concupiscente». No meu subconsciente ouvi o Harry dizer-lhe: «Tu serias capaz de me passar a ferro com um cilindro!» Mas foi como se ele tivesse falado do fundo de um túnel porque a minha atenção se encontrava centrada na energia da Snitch.
-Acho que posso aprender muito contigo- disse-lhe. Ela estendeu a mão para a minha e apertámo-las. O seu aperto de mão revelava firmeza e confiança.
-Agora era só o que nos faltava era a Snitch a dar lições à Boo- disse o Ron. Fiquei a pensar no que ele quereria dizer com isso.
Vou contar-lhes outra coisa que está errada neste romance, para além do facto de a relação protagonista/antagonista ter falhado- quer dizer, logo desde a altura em que ela chegou eu soube que não ia odiar a Snitch , e mesmo que ela fosse a namorada do Harry, bem, só o que posso dizer é que ele era um rapaz com muita sorte. Mas continuando a história, decidimos, com a concordância da minha mãe, ir de manhã comprar uma árvore bem grande para que o Ron pudesse reviver os Natais do passado e pendurar todos os antigos enfeites da sua infância não muito longínqua. E fomos todos deitar-nos, mas não adormecemos logo.
O quarto do Harry ficava separado do meu por um quarto de banho comum. Isto fazia-me sentir inibida. Apesar de eu estar muito aflita para lá ir não queria ir porque talvez também o Harry estivesse aflito e poderíamos ir os dois ao mesmo tempo, e ele poderia dizer- me: «Vai tu primeiro», e eu diria «Não, vai tu primeiro», mas teria de ser eu em primeiro lugar, e não consigo fazer nada quando estou sobre tensão. Ás vezes, quando vou ouvir a Orquestra de Câmara de St. Paul, preciso de ir á casa de banho no intervalo e tenho de ir para a fila e ficar à espera porque é Inverno e está frio, o que significa que toda a gente tem vontade de lá ir, mas quando finalmente chega a minha vez, entro e sento-me e fico com um ar aparvalhado, como um alce que tivesse chocado contra uma árvore. E tenho a certeza de que as senhoras que estão na fila me vêem ali sentada, parada, pela frincha entre a parede e a porta; há sempre uma frincha demasiado larga.
Estava eu obcecada a pensar no problema de compartilhar a casa de banho, quando a Snitch disse:
-Tenho a bexiga quase a rebentar- e foi a correr, mas nesse preciso momento o Harry também saiu do quarto e chocaram um com o outro.
-Primeiro vou eu- gritou a Snitch, empurrando o Harry.
Ele empurrou-a também- Nem penses!- disse, rindo-se na sua cara.
Mas a Snitch conseguiu ir por trás dele e passar por baixo, e sentou-se na sanita, exclamando:
-A necessidade impõe-se!- E foi a sua vez de rir.
Fiquei com medo que o Harry resolvesse abrir o fecho das calças, contudo ele afastou-se, fechando a porta do quarto de banho, que a Snitch imediatamente trancou à chave pelo lado de dentro. Mas logo de seguida ele começou a bater na porta.
-Snitch, já estás despachada?- perguntava-lhe ele.- Snitch, já estás despachada? Vê se te despachas, sim?
Bem, se aquilo se tivesse passado comigo acho que nunca mais seria capaz de fazer chichi até ao fim da minha vida, mas a Snitch era muito mais desinibida do que eu. Despejou a bexiga de uma só vez e, quando acabou, perguntou-me:
-Ginny, queres vir tu agora, antes que o Harry deite a porta abaixo?
Respondi-lhe que tinha de ir buscar umas peças de roupa à cave e corri para baixo, onde existe uma sanita solitária num canto por trás do aquecedor de água. É um velho sanitário cheio de manchas de calcário, que sempre evitei, mas naquela altura senti-me muito feliz pela sua existência. Levei comigo uma camisa de noite, de flanela. Eles estariam apaixonados, a Snitch e o Harry? Aqueles empurrões recíprocos seriam apenas fruto de uma tensão sexual? Não sabia, mas gostaria de ser eu a passar por isso.
Quando voltei para cima a Snitch tinha vestido uma t-shirt comprida e tinha retirado da minha estante um livro de contos americanos de autores recentes. Passou pela minha secretária e parou.
-O que é isto?- perguntou, examinando os papeis que eu lá deixara.- «Considerações Preliminares sobre Desdémona»- leu. Era uma sensação estranha ouvi-la a ler as minhas coisas em voz alta.
-Tenho de escrever um trabalho de pesquisa sobre a obra Otelo e pensei fazê-lo sobre a Desdémona.- Disse eu, enfiando os braços pelas mangas da camisa de flanela.
Com o dedo indicador, ela seguia uma lista que eu tinha feito.
-Escrevi um artigo sobre Desdémona para um curso monográfico sobre Shakespeare- murmurou.
Provavelmente, era especialista no assunto. Leu em voz alta mais algumas das minhas notas: «Detesto o facto de o Otelo a matar, estando ela inocente.»
Desejei não ter deixado ficar as notas em cima da secretária.
-Há muitos alunos que têm escrito trabalhos acerca da inocência dela- disse eu.- Queria fazer um trabalho diferente, mas não sei bem como. Gostava de abordar o assunto de outra forma.- Cheguei para trás os cobertores da cama. Mas hei-de conseguir. Pelo menos, costumo conseguir.- E sentei-me na beira da cama.
A Snitch voltou-se para mim, ficando de costas para a secretária.
-A inocência dela não tem nada a ver com o resto- disse. Tinha os braços cruzados junto ao peito, com um ar de professora.- Quero dizer,- continuou- e se ela não estivesse inocente? E se ela tivesse dormido com o Cassio e o Barbantio e com toda a marinha italiana?
-O quê?- fiquei de boca aberta. Não sabia onde ela queria chegar.
-Estaria certo ele matá-la se ela tivesse ido para a cama com uns e com outros? Será que ele não estava enganado acerca dela?
-Mas ele estava enganado...
-E se não estivesse? E se ela fosse mesmo culpada? É justo um homem matar a mulher por adultério?
-Nunca pensei nisso- respondi.- Mas não, não seria justo, embora todos tenhamos de ler a peça como se fosse perfeitamente natural...
-Pois temos!- e concedeu-me um sorriso largo e benevolente.- Bem vinda ao criticismo feminista!
O seu sorriso soube-me bem. Nunca conseguiria competir com ela.
-Se quiseres, amanhã de manhã posso escrever-te uma lista com o nome de alguns artigos. E o teu trabalho será o único do género.
-Seria óptimo!- eu estava deitada na minha cama, apoiada sobre um cotovelo, com as costas voltadas para a janela.
A Snitch inclinou-se por cima de mim para olhar lá para fora.
-Ainda está a levar- disse quase sem respirar, como se a neve fosse algo mágico.
Voltei-me para olhar também.
-Vamos ter um Natal perfeito!- exclamei.- Provavelmente irá continuar a nevar nos próximos dois dias.
-Um Natal perfeito- parecia hipnotizada vendo a neva cair.- Foi por isso que eu vim- murmurou.
-Por causa da neve?
-Sim- depois pareceu ter mudado de ideias.- Bem, na verdade não foi só por causa da neve.
Fiquei a pensar se ela estaria com esperanças de ficar noiva no Natal. Eu não podia evitar tal eventualidade. Tinha de por de parte a ideia de ficar com o Harry. Era uma ideia que eu construíra e alimentara ao longo dos últimos quatro anos, em que ele esteve ausente. Agora parecia-me completamente idiota
A Snitch sentou-se á beirinha da minha cama.
-Tenho ouvido o Ron e o Harry conversar acerca das suas famílias e, sabes...- parecia embaraçada, desviando o olhar de mim e virando-se de novo para a neve- Bem, as famílias deles parecem-me ser muito tradicionais e muito...- procurou a palavra adequada- muito sãs.
Olhou para mim.
-Sentia o desejo de passar o Natal junto de pessoas assim.- Ao dizer isto corou, o que a tornou ainda mais bonita, se possível.
-E a tua família, não é?- não pude deixar de perguntar.
Ela respondeu um pouco contrariada:
-Não!- e o rubor da face desapareceu de imediato.
-Mas também decerto não serão propriamente uns degenerados...
Ela abanou a cabeça:
-Não são como os teus pais. O Ron não estava a exagerar quando falava deles- e baixou o olhar sobre as mãos.
Eu desviei as pernas para que ela pudesse sentar-se mais à vontade.
-Quer dizer que te agradam o Arthur e a Molly Weasley?
Ela riu-se.
-E também me agradam os seus dois filhos perfeitos, o Ronald e a Virgínia Weasley.
-O Ron não é perfeito!- sorri com a insinuação.
-Vou ler só um bocadinho- e pegou no livro- a não ser que a luz te incomode.
-Não, não me incomoda. A sério.
Acendeu a luz junto á cama.
Eu tirei os óculos para esfregar os olhos. O quarto transformou-se numa névoa amorfa.
-Por que motivo não usas lentes de contacto?- perguntou a Snitch, do seu canto.- Ficas melhor sem óculos- hesitou- quero dizer...
-Não faz mal, eu sei- respondi- os meus olhos nunca conseguiram adaptar-se a lentes de contacto, se eu pudesse já há muitos anos teria começado a usá-las.
-Como é que vês sem óculos?- quis saber.
Eu ri-me.
-Sei que és essa mancha aí ao fundo, mas se não conhecesse tão bem este quarto nem sequer perceberia que és uma figura humana.
-Vês assim tão mal?
-Pois vejo. Mas já estou habituada.- E voltei a pôr os óculos.
Provavelmente, os leitores de histórias de amor americanas gostariam que eu avaliasse agora os meus sentimentos. Afinal de contas, já estou no terceiro capítulo, se calhar aproximo-me do final, e este será o momento ideal para fazer essa avaliação. O prontuário oferece-me uma imensidão de frases para descrever os sentimentos da heroína:
-a dor no seu peito tornava-se uma tortura doentia e ardente?
Não, não era nada disso que eu sentia. Embora estivesse triste por saber que tudo o que fantasiara sobre o Harry- pensava que quando ele me visse já crescida descobriria que era comigo que queria casar- iria por água abaixo se ficasse noivo da Snitch. E talvez ainda mais triste do que isso fosse eu chegar á conclusão de que, mesmo se eles não ficassem noivos, eu teria de perder as esperanças nele.
-os seus seios arfavam ao compasso da sua respiração difícil?
É certo que me sentia cansada, se querem saber a verdade. Mas a minha respiração não era difícil.
-uma amálgama de sentimentos agitava o seu peito ?
Porquê toda esta obsessão com peito e seios? Eu raramente me lembro que os tenho, e agora aqui estão eles a emergir de todas as páginas do prontuário. Seios por toda a parte: palpitando e torturando-se e arfando e salientando-se e agitando-se. Que nojeira!
Do outro lado da rua, a casa dos Black estava ás escuras, com excepção de uma janela no andar de cima. Tinha sido o Sirius quem os mandara desligar a máquina de ténis há anos atrás e pusera o braço em volta do meu ombro, perguntando-me se eu estava bem.
É claro que estava, e melhor fiquei quando o Harry pegou na minha raqueta e tirou das cordas o rato esborrachado, atirando-o para uns arbustos.
-É melhor jogares com bolas- dissera-me ele, sorrindo de um modo que me faz sentir como igual e não apenas como a irmãzinha mais nova do Ron.
E o Ron gritara:
-O mesmo se aplica a ti, Potter!
E desataram os dois a correr um atrás do outro, á nossa volta, o que fez desanuviar a cena . Mas ainda hoje gosto de recordar aquele sorriso que o Harry me dirigiu depois de ter tirado o rato da minha raqueta.
E também gosto de recordar o Sirius, que nos ensinou a todos a jogar ténis e insistia que éramos todos uns campeões.
Senti uma grande tristeza ao ver que este ano as árvores em frente da casa dos Black não estavam decoradas com todas aquelas luzinhas que costumavam lá pôr todos os Natais. A casa deles era a mais escura do quarteirão.
Tirei os óculos, recostei-me e suspirei pelos Natais do passado e pelo Natal do presente. Gostaria tanto que o Sirius estivesse feliz nesta época!
Por fim, pensei na Snitch e no facto de ela preferir passar o Natal com estranhos.
Para mim, nada disto fazia sentido.
Capítulo 3- Á noite...
No final do capítulo dois não tive coragem para revelar aquilo que vou revelar agora, no capítulo três, que foi quando a Snitch disse que seria capaz de passar a ferro o Harry com o carro dela, e em vez de «um olhar concupiscente» com o Harry, como diria o prontuário, eu troquei um olhar concupiscente com a Snitch. Com uma rapariga! A sério. Compartilhamos um «um olhar concupiscente». No meu subconsciente ouvi o Harry dizer-lhe: «Tu serias capaz de me passar a ferro com um cilindro!» Mas foi como se ele tivesse falado do fundo de um túnel porque a minha atenção se encontrava centrada na energia da Snitch.
-Acho que posso aprender muito contigo- disse-lhe. Ela estendeu a mão para a minha e apertámo-las. O seu aperto de mão revelava firmeza e confiança.
-Agora era só o que nos faltava era a Snitch a dar lições à Boo- disse o Ron. Fiquei a pensar no que ele quereria dizer com isso.
Vou contar-lhes outra coisa que está errada neste romance, para além do facto de a relação protagonista/antagonista ter falhado- quer dizer, logo desde a altura em que ela chegou eu soube que não ia odiar a Snitch , e mesmo que ela fosse a namorada do Harry, bem, só o que posso dizer é que ele era um rapaz com muita sorte. Mas continuando a história, decidimos, com a concordância da minha mãe, ir de manhã comprar uma árvore bem grande para que o Ron pudesse reviver os Natais do passado e pendurar todos os antigos enfeites da sua infância não muito longínqua. E fomos todos deitar-nos, mas não adormecemos logo.
O quarto do Harry ficava separado do meu por um quarto de banho comum. Isto fazia-me sentir inibida. Apesar de eu estar muito aflita para lá ir não queria ir porque talvez também o Harry estivesse aflito e poderíamos ir os dois ao mesmo tempo, e ele poderia dizer- me: «Vai tu primeiro», e eu diria «Não, vai tu primeiro», mas teria de ser eu em primeiro lugar, e não consigo fazer nada quando estou sobre tensão. Ás vezes, quando vou ouvir a Orquestra de Câmara de St. Paul, preciso de ir á casa de banho no intervalo e tenho de ir para a fila e ficar à espera porque é Inverno e está frio, o que significa que toda a gente tem vontade de lá ir, mas quando finalmente chega a minha vez, entro e sento-me e fico com um ar aparvalhado, como um alce que tivesse chocado contra uma árvore. E tenho a certeza de que as senhoras que estão na fila me vêem ali sentada, parada, pela frincha entre a parede e a porta; há sempre uma frincha demasiado larga.
Estava eu obcecada a pensar no problema de compartilhar a casa de banho, quando a Snitch disse:
-Tenho a bexiga quase a rebentar- e foi a correr, mas nesse preciso momento o Harry também saiu do quarto e chocaram um com o outro.
-Primeiro vou eu- gritou a Snitch, empurrando o Harry.
Ele empurrou-a também- Nem penses!- disse, rindo-se na sua cara.
Mas a Snitch conseguiu ir por trás dele e passar por baixo, e sentou-se na sanita, exclamando:
-A necessidade impõe-se!- E foi a sua vez de rir.
Fiquei com medo que o Harry resolvesse abrir o fecho das calças, contudo ele afastou-se, fechando a porta do quarto de banho, que a Snitch imediatamente trancou à chave pelo lado de dentro. Mas logo de seguida ele começou a bater na porta.
-Snitch, já estás despachada?- perguntava-lhe ele.- Snitch, já estás despachada? Vê se te despachas, sim?
Bem, se aquilo se tivesse passado comigo acho que nunca mais seria capaz de fazer chichi até ao fim da minha vida, mas a Snitch era muito mais desinibida do que eu. Despejou a bexiga de uma só vez e, quando acabou, perguntou-me:
-Ginny, queres vir tu agora, antes que o Harry deite a porta abaixo?
Respondi-lhe que tinha de ir buscar umas peças de roupa à cave e corri para baixo, onde existe uma sanita solitária num canto por trás do aquecedor de água. É um velho sanitário cheio de manchas de calcário, que sempre evitei, mas naquela altura senti-me muito feliz pela sua existência. Levei comigo uma camisa de noite, de flanela. Eles estariam apaixonados, a Snitch e o Harry? Aqueles empurrões recíprocos seriam apenas fruto de uma tensão sexual? Não sabia, mas gostaria de ser eu a passar por isso.
Quando voltei para cima a Snitch tinha vestido uma t-shirt comprida e tinha retirado da minha estante um livro de contos americanos de autores recentes. Passou pela minha secretária e parou.
-O que é isto?- perguntou, examinando os papeis que eu lá deixara.- «Considerações Preliminares sobre Desdémona»- leu. Era uma sensação estranha ouvi-la a ler as minhas coisas em voz alta.
-Tenho de escrever um trabalho de pesquisa sobre a obra Otelo e pensei fazê-lo sobre a Desdémona.- Disse eu, enfiando os braços pelas mangas da camisa de flanela.
Com o dedo indicador, ela seguia uma lista que eu tinha feito.
-Escrevi um artigo sobre Desdémona para um curso monográfico sobre Shakespeare- murmurou.
Provavelmente, era especialista no assunto. Leu em voz alta mais algumas das minhas notas: «Detesto o facto de o Otelo a matar, estando ela inocente.»
Desejei não ter deixado ficar as notas em cima da secretária.
-Há muitos alunos que têm escrito trabalhos acerca da inocência dela- disse eu.- Queria fazer um trabalho diferente, mas não sei bem como. Gostava de abordar o assunto de outra forma.- Cheguei para trás os cobertores da cama. Mas hei-de conseguir. Pelo menos, costumo conseguir.- E sentei-me na beira da cama.
A Snitch voltou-se para mim, ficando de costas para a secretária.
-A inocência dela não tem nada a ver com o resto- disse. Tinha os braços cruzados junto ao peito, com um ar de professora.- Quero dizer,- continuou- e se ela não estivesse inocente? E se ela tivesse dormido com o Cassio e o Barbantio e com toda a marinha italiana?
-O quê?- fiquei de boca aberta. Não sabia onde ela queria chegar.
-Estaria certo ele matá-la se ela tivesse ido para a cama com uns e com outros? Será que ele não estava enganado acerca dela?
-Mas ele estava enganado...
-E se não estivesse? E se ela fosse mesmo culpada? É justo um homem matar a mulher por adultério?
-Nunca pensei nisso- respondi.- Mas não, não seria justo, embora todos tenhamos de ler a peça como se fosse perfeitamente natural...
-Pois temos!- e concedeu-me um sorriso largo e benevolente.- Bem vinda ao criticismo feminista!
O seu sorriso soube-me bem. Nunca conseguiria competir com ela.
-Se quiseres, amanhã de manhã posso escrever-te uma lista com o nome de alguns artigos. E o teu trabalho será o único do género.
-Seria óptimo!- eu estava deitada na minha cama, apoiada sobre um cotovelo, com as costas voltadas para a janela.
A Snitch inclinou-se por cima de mim para olhar lá para fora.
-Ainda está a levar- disse quase sem respirar, como se a neve fosse algo mágico.
Voltei-me para olhar também.
-Vamos ter um Natal perfeito!- exclamei.- Provavelmente irá continuar a nevar nos próximos dois dias.
-Um Natal perfeito- parecia hipnotizada vendo a neva cair.- Foi por isso que eu vim- murmurou.
-Por causa da neve?
-Sim- depois pareceu ter mudado de ideias.- Bem, na verdade não foi só por causa da neve.
Fiquei a pensar se ela estaria com esperanças de ficar noiva no Natal. Eu não podia evitar tal eventualidade. Tinha de por de parte a ideia de ficar com o Harry. Era uma ideia que eu construíra e alimentara ao longo dos últimos quatro anos, em que ele esteve ausente. Agora parecia-me completamente idiota
A Snitch sentou-se á beirinha da minha cama.
-Tenho ouvido o Ron e o Harry conversar acerca das suas famílias e, sabes...- parecia embaraçada, desviando o olhar de mim e virando-se de novo para a neve- Bem, as famílias deles parecem-me ser muito tradicionais e muito...- procurou a palavra adequada- muito sãs.
Olhou para mim.
-Sentia o desejo de passar o Natal junto de pessoas assim.- Ao dizer isto corou, o que a tornou ainda mais bonita, se possível.
-E a tua família, não é?- não pude deixar de perguntar.
Ela respondeu um pouco contrariada:
-Não!- e o rubor da face desapareceu de imediato.
-Mas também decerto não serão propriamente uns degenerados...
Ela abanou a cabeça:
-Não são como os teus pais. O Ron não estava a exagerar quando falava deles- e baixou o olhar sobre as mãos.
Eu desviei as pernas para que ela pudesse sentar-se mais à vontade.
-Quer dizer que te agradam o Arthur e a Molly Weasley?
Ela riu-se.
-E também me agradam os seus dois filhos perfeitos, o Ronald e a Virgínia Weasley.
-O Ron não é perfeito!- sorri com a insinuação.
-Vou ler só um bocadinho- e pegou no livro- a não ser que a luz te incomode.
-Não, não me incomoda. A sério.
Acendeu a luz junto á cama.
Eu tirei os óculos para esfregar os olhos. O quarto transformou-se numa névoa amorfa.
-Por que motivo não usas lentes de contacto?- perguntou a Snitch, do seu canto.- Ficas melhor sem óculos- hesitou- quero dizer...
-Não faz mal, eu sei- respondi- os meus olhos nunca conseguiram adaptar-se a lentes de contacto, se eu pudesse já há muitos anos teria começado a usá-las.
-Como é que vês sem óculos?- quis saber.
Eu ri-me.
-Sei que és essa mancha aí ao fundo, mas se não conhecesse tão bem este quarto nem sequer perceberia que és uma figura humana.
-Vês assim tão mal?
-Pois vejo. Mas já estou habituada.- E voltei a pôr os óculos.
Provavelmente, os leitores de histórias de amor americanas gostariam que eu avaliasse agora os meus sentimentos. Afinal de contas, já estou no terceiro capítulo, se calhar aproximo-me do final, e este será o momento ideal para fazer essa avaliação. O prontuário oferece-me uma imensidão de frases para descrever os sentimentos da heroína:
-a dor no seu peito tornava-se uma tortura doentia e ardente?
Não, não era nada disso que eu sentia. Embora estivesse triste por saber que tudo o que fantasiara sobre o Harry- pensava que quando ele me visse já crescida descobriria que era comigo que queria casar- iria por água abaixo se ficasse noivo da Snitch. E talvez ainda mais triste do que isso fosse eu chegar á conclusão de que, mesmo se eles não ficassem noivos, eu teria de perder as esperanças nele.
-os seus seios arfavam ao compasso da sua respiração difícil?
É certo que me sentia cansada, se querem saber a verdade. Mas a minha respiração não era difícil.
-uma amálgama de sentimentos agitava o seu peito ?
Porquê toda esta obsessão com peito e seios? Eu raramente me lembro que os tenho, e agora aqui estão eles a emergir de todas as páginas do prontuário. Seios por toda a parte: palpitando e torturando-se e arfando e salientando-se e agitando-se. Que nojeira!
Do outro lado da rua, a casa dos Black estava ás escuras, com excepção de uma janela no andar de cima. Tinha sido o Sirius quem os mandara desligar a máquina de ténis há anos atrás e pusera o braço em volta do meu ombro, perguntando-me se eu estava bem.
É claro que estava, e melhor fiquei quando o Harry pegou na minha raqueta e tirou das cordas o rato esborrachado, atirando-o para uns arbustos.
-É melhor jogares com bolas- dissera-me ele, sorrindo de um modo que me faz sentir como igual e não apenas como a irmãzinha mais nova do Ron.
E o Ron gritara:
-O mesmo se aplica a ti, Potter!
E desataram os dois a correr um atrás do outro, á nossa volta, o que fez desanuviar a cena . Mas ainda hoje gosto de recordar aquele sorriso que o Harry me dirigiu depois de ter tirado o rato da minha raqueta.
E também gosto de recordar o Sirius, que nos ensinou a todos a jogar ténis e insistia que éramos todos uns campeões.
Senti uma grande tristeza ao ver que este ano as árvores em frente da casa dos Black não estavam decoradas com todas aquelas luzinhas que costumavam lá pôr todos os Natais. A casa deles era a mais escura do quarteirão.
Tirei os óculos, recostei-me e suspirei pelos Natais do passado e pelo Natal do presente. Gostaria tanto que o Sirius estivesse feliz nesta época!
Por fim, pensei na Snitch e no facto de ela preferir passar o Natal com estranhos.
Para mim, nada disto fazia sentido.
