Capítulo 03

Existem poucas coisas na vida que deixam a gente de baixo astral. Essas coisas podem ser grandes problemas ou pequenos problemas.

Os grandes problemas são mais fáceis de resolver; há uma porção de coisas em jogo quando se lida com grandes problemas. Os pequenos problemas, por outro lado, são aqueles que te atormentam e te enlouquecem. Aqueles que ficam martelando em sua cabeça até você gritar "chega!".

O grande problema do 87o. Distrito era o presunto. Afinal, não é todo dia que aparece um desses. E o pequeno problema era o vigarista.

Ele vinha fazendo da vida de Sirius Black um inferno. Sirius não gostava se ser enganado, assim como não gostava que outras pessoas também fossem enganadas. O maldito vigarista e seu comparsa estavam se aproveitando de cidadãos honestos, que queriam apenas viver sua vidinha pacata em paz.

Ultimamente, Sirius andava agressivo, mal-humorado, impaciente como nunca, carrancudo, enfim um homem difícil de lidar. Os vigaristas estavam tirando seu sono, estragando seu apetite e até mesmo atrapalhando sua vida sexual. Sem falar que seus companheiros de trabalho, sempre tão atenciosos e cheios de consideração, faziam tudo para tornar aquela investigação ainda mais difícil, caçoando dele a cada instante. Se não resolvesse logo esse caso, Sirius tinha certeza que acabaria com uma úlcera.

Decidiu começar a investigação pelos arquivos da polícia. Provavelmente os golpistas tinham uma ficha criminal, algo que pudesse ajudá-lo a seguir seus passos. Por isso, Sirius não tinha tempo para brincadeiras. Ele só tinha tempo para os arquivos.

Ronald Weasley, naquele mesmo momento, ocupava-se com outro tipo de leitura.

Ele estava de pé, diante do quadro de avisos na sala dos detetives. A escala de férias fora afixada naquela manhã.

Ron e mais dois detetives liam com atenção. Um deles era Remus Lupin, um cara boa praça e bem-humorado, conhecido no Distrito por sua paciência quase sobrenatural. E o outro era Severus Snape. Snape era um dos mais antigos policiais do grupo. Ele era um homem alto, de rosto macilento e nariz adunco. Os cabelos negros davam a impressão de não terem sido lavados há muito tempo. Os outros policiais comentavam que Snape andava envolvido com negócios sujos. Nada fora comprovado, mas existia uma grande suspeita.

Os três estavam de olho na escala de férias e Ron, contrariado, percebeu que pegara a pior data de todas. Tudo bem, ele era o mais novo na equipe. Acabara de ser transferido, mas havia feito planos para aquele verão... Ele e Hermione numa casa de praia... Nem mesmo pensar na noiva ajudou a melhorar seu humor, que só piorou quando Snape reparou na data que ele havia recebido.

— Pegou dez de junho, Weasley? Ora, ora, não é uma ótima data para começar as férias? É a melhor época. Ainda faz um friozinho e sol não está tão forte... Puxa, você tirou a sorte grande. Já pensou deixar essa deliciosa sala de trabalho durantes os sufocantes meses de julho e agosto? Seria uma maldade.

Ronald ouvia tudo impassível. Não queria começar uma discussão. Ainda mais com Snape. Praguejando mentalmente contra todos os antepassados do colega, virou-se para se afastar, porém sentiu a mão magra e gélida de Severus agarrar seu antebraço.

— Tome muito cuidado com seus planos, Weasley... – disse ele num tom soturno. — Não vá fazer nada que o faça se arrepender depois...

Ronald sentiu o ódio borbulhar dentro de si e involuntariamente cerrara o punho do braço livre. Estava pronto para socar Snape.

— Solta ele, Snape. – Remus resolveu interferir. Não sentia nenhuma simpatia por Severus, e a brincadeira já estava passando dos limites.

Severus olhou para Ronald e depois para Remus. E percebeu que estava em desvantagem.

— Ninguém mais tem senso de humor nesta espelunca – ele resmungou, soltando o braço de Ron.

— Por que você não vai ajudar Sirius no caso do vigarista? – Lupin sugeriu e foi como se houvesse pedido a Severus para pular na linha do trem. Ele viu o colega sair pisando duro, enquanto o ruivo massageava o braço.

— Esse cara é um babaca... – desabafou Ronald.

— Eu sei disso – Remus concordou. — Mas isso não é motivo para começar uma briga aqui dentro, certo? Ou você não quer aproveitar o mês de junho com sua garota?

Ron olhou para o colega. Remus era uma pessoa boa, amigo de praticamente todos os investigadores do Distrito. Não faria mal algum se trocasse umas idéias com ele...

— Na verdade, essa maldita data pode complicar as coisas. Não sei se você sabe, mas Hermione está na faculdade e é bem provável que esteja fazendo os exames finais no começo de junho.

— Vocês estão planejando estas férias há algum tempo? – Remus perguntou com simpatia.

— Sim... – a expressão de Ron tornou-se sonhadora, enquanto ele pensava em Hermione. — Já faz algum tempo, sim... Nós estamos apaixonados...

Talvez só para atazanar, Snape resolveu dar uma espiada no que Black estava fazendo. E encontrou o colega lendo as fichas criminais, dezenas delas.

— O seu problema, Black, – ele disse, parando ao lado da mesa de Sirius. — É que você é apaixonado por esse maldito trabalho.

— Eu passo a maior parte do meu tempo nesta sala – Sirius nem se deu ao trabalho de levantar a cabeça e olhar o outro detetive. — Seria horrível se eu não gostasse do que faço.

— Discordo de você. Eu, por exemplo, odeio ser policial.

Esta colocação chamou a atenção de Black.

— Então por que você não cai fora?

Com a cara mais limpa do mundo, Severus respondeu simplesmente:

— Ora, vocês precisam muito de mim.

Sirius controlou-se para não rir na cara do outro.

— Sim, sim, claro...

— Estou falando sério. O Distrito não agüentaria uma semana se eu não estivesse aqui para segurar a barra...

— Dá um tempo, Snape...

Mas Severus continuou impassível, como se não tivesse sido interrompido.

— O crime iria aumentar, a cidade iria ficar cheia de ladrões, teríamos o caos...

— Está certo, espertinho... Já que não podemos ficar sem você, dá uma olhada nisto aqui.

Sirius estendeu um prontuário para Snape. Era a ficha criminal de Rudolf Deutsch, também conhecido como "Alemão".

— O que você está procurando?

— Um vigarista.

Com a prática de quem é investigador há muitos anos, Snape examinou o papel. Não havia muitos dados. Informava o endereço atual e por que Deutsch fora preso: ele era perito em aplicar contos do vigário. Variava os golpes a cada investida, e seu comparsa nunca fora preso.

— Pode ser... – ponderou Severus, depois de ler toda a ficha.

— O que me chamou a atenção é que ele faz qualquer tipo de coisa. Geralmente um vigarista se especializa num único golpe, desde que esteja ando certo. Esse cara não... Ele gostava de inovar. Só tem uma coisa que me irrita.

— O quê?

— Quero saber quem foi o imbecil que fez essa ficha. Ela deveria esclarecer onde ele foi sentenciado e por quê.

— Que diferença isso faz?

— Quero saber com quem estou lidando.

— Como assim? – Severus ergueu a sobrancelha, intrigado.

— Estou indo agora mesmo procurar nosso amigo Alemão.

Segundo o prontuário da polícia, Rudolf Deutsch fixara residência no Hotel Carter.

E o Hotel Carter era, em todos os aspectos, uma espelunca vagabunda.

Para Sirius, que já estava sem paciência por causa da longa leitura dos arquivos e da chuva que castigava a cidade sem parar, o hotel era uma espelunca muito vagabunda. Imaginando ser um agente secreto, ele levantou a gola de seu impermeável e adentrou no saguão do hotel. Examinou o ambiente, tentando controlar a vontade de fechar o nariz. O cheiro do lugar era insuportável.

Um atendente estava apoiado no balcão da recepção, lendo uma revista masculina, com fotos de mulheres nuas. E dava a impressão de estar coberto de sujeira e decadência como o resto do recinto. No seu peito, numa plaquinha encardida, podia-se ler seu nome: Argus Filch. Uma gata preta de olhos amarelos estava sentada ao seu lado. Sirius sentiu um arrepio quando a felina o fitou.

— Bom dia. Tem um homem Rudolf Deutsch registrado aqui?

O homem ergueu os olhos de uma loira excepcionalmente voluptuosa.

— Quem quer saber? – resmungou.

— A polícia quer saber – respondeu Sirius, mostrando o distintivo. Não estava com humor para aturar tipos ignorantes como aquele atendente.

A postura de Filch mudou num instante.

— Vou checar – disse ele, enquanto pegava o livro de registros. — Sinto muito, senhor. Nenhum Rudolf Deutsch.

— Me deixe ver isso aqui. – Sirius pegou o livro e leu os nomes de cada hóspede. Parou em um levemente suspeito. — Quem é Roger Davies?

— Quem?

— Roger Davies. – o detetive indicou o nome com o dedo. — Quem é?

— Ah... É um dos fixos...

— Há quanto tempo ele está aqui?

— Uns dois anos, acho... Talvez mais, não tenho certeza.

— Ele se registrou como Davies quando chegou?

— Claro.

— E como ele é?

— Alto, loiro, meio magricela... Do tipo bonitão.

Sirius ergueu uma sobrancelha. A descrição batia com a do prontuário e com a das vítimas que prestaram queixa no Distrito.

— Ele está aqui agora?

— Acho que sim. Por quê? Pensei que você estivesse procurando um tal de Deutsch...

— E estou. Me dê a chave do quarto dele.

— Pra quê? Você precisa de um mandado de busca antes de ir invadindo...

— Eu não estou invadindo... – a voz de Sirius era baixa e educada, mas seus olhos brilhavam perigosamente. Filch engoliu em seco. — Estou apenas visitando um conhecido e você foi muito gentil me deixando entrar...

Rapidamente Argus lhe deu a chave. No chaveiro estava escrito 312. Sirius fez um sinal com a cabeça, agradecendo, e seguiu para o elevador, que não estava em melhores condições que o saguão.

— Terceiro – ele disse ao ascensorista.

Sirius se apoiou na parede do fundo enquanto o elevador subia. Davies podia muito bem ser Davies e não Deutsch. Mas seu faro policial não o enganava. Roger Davies, Rudolf Deutsch... Mesmas iniciais. Bem prático para alguém que tinha toda sua bagagem, camisas, lençóis e toalhas impressas com monogramas. Além disso, no arquivo, o hotel era o último endereço de Deutsch. Talvez a ficha estivesse errada. E se estivesse certa, por que o imbecil que a preencheu, o mesmo que descobriu onde o Alemão morava, também não mencionava que ele costumava usar nomes falsos? Sirius não gostava de serviços mal-feitos. O desleixo o irritava. Elevadores vagarosos também.

Quando chegaram ao terceiro andar, ele se voltou para o ascensorista.

— Isso não fere os seus tímpanos?

— O quê? – o homem piscou sem entender.

— Romper a barreira do som dessa maneira! – E seguindo sem olhar pra trás, não viu a cara estarrecida do pobre homem.

Ele parou do lado de fora do quarto 312 e remexeu por baixo do casaco. Puxou o 38 do coldre do ombro, destravou-o, pegou a chave que o porteiro lhe dera e colocou lentamente na fechadura com a mão esquerda. Dentro do quarto houve uma rápida movimentação. Sirius virou a chave depressa e abriu a porta num chute. Havia um homem na cama, e ele estava quase alcançando uma arma sobre a mesa de cabeceira.

— É melhor deixar onde está. – Sirius alertou.

— O quê? O que significa isso?

Roger Davies, ou melhor, Rudolf Deutsch tinha uma aparência bem melhor ao vivo do que na foto da polícia. E era mesmo do tipo bonitão, como Filch o descrevera. Alto, cabelos claros, olhos azuis, que no momento pareciam dois pires, de tão arregalados. Estava usando uma camiseta regata branca e uma calça preta, bem a (à) vontade, como se acabasse de chegar.

— Vista uma camisa – ordenou Sirius. — Quero falar com você no caminho para o Distrito.

— Sobre o quê? – o rapaz não fez movimento algum.

— Contos do vigário.

— Nem pensar!

Sirius ergueu uma sobrancelha, cinicamente.

— Olha, cara – Davies percebeu que não era brincadeira. — Estou limpo, tão limpo quanto a Virgem Maria.

— E é por isso que você usa uma arma?

— Eu tenho licença.

— Podemos verificar isso lá também.

— Você não pode me prender... Precisa de um mandado...

— Não preciso de droga nenhuma! – Sirius falou rispidamente. — Agora, Alemão, levanta esse traseiro branco dessa merda de cama, ponha uma camisa e venha comigo. Ou será que terei que ajudá-lo? Olha, aposto que você não vai gostar da minha ajuda.

Roger deslizou para fora da cama e apanhou a carteira.

— Ei, cara... Será que não podemos conversar aqui... Veja estou limpo. – Ele entregou um documento para o detetive.

Sirius os examinou. A licença para dirigir e o porte de arma estavam em nome de Rudolf Deutsch.

— Tudo bem... Por que você se registrou com um nome falso?

— Você não entenderia – Roger deu de ombros.

— Por que não tenta?

— Mas que merda está acontecendo afinal? Sou inocente até que provem minha culpa. Existe alguma lei que proíba registrar-se num hotel com nomes falsos?

— Existe. Uso de nome ou endereço falso com o propósito de tapear as pessoas...

— Eu não estava tentando tapear ninguém! – o loiro se justificou.

— Sabia que posso arranjar uma ordem policial contra você sem nenhuma prova de que você tenha lesado ou logrado ninguém? Então deixe de babaquice. Não me importa que nome você quer usar pro resto da vida. Só quero saber por que resolveu se esconder atrás de um nome falso.

— Acertou na mosca, meu chapa.

A expressão de Sirius deixou bem claro que ele não havia entendido nada. Ele viu Davies sentar e sorrir. Aquele devia ser o sorriso que ele usava para enganar suas vítimas.

— Como eu disse antes, você não me entenderia... Mas tudo bem. Eu passava contos do vigário desde os dezessete anos. Era muito bom. Ninguém desconfiava de mim...

Sirius podia entender. Com aquela cara de artista de cinema, ele podia fingir ser o perfeito inocente.

— Mas cometi um deslize e fui pego. Estava com vinte e quatro. Passei um ano e meio na cadeia. Você tem idéia do que é isso? Passei dezoito meses convivendo com todo tipo de marginal que se possa imaginar: traficantes, bichas, viciados, assassinos. Odiei aquilo tudo. Quando saí, não agüentei mais. Nunca mais quis saber daquilo. Decidi andar na linha. Sabia que se fosse pego outra vez, não seriam apenas dezoito meses, seria muito mais. Eles pensariam que eu sou como algum daqueles marginais e jogariam a chave da minha cela fora.

— Mas você não é como eles... – argumentou Sirius, com um leve sorriso nos lábios.

— Não, não sou. Eu enganei um monte de gente, mas sempre fui um cavalheiro e dane-se você se não acreditar. Passar contos do vigário sempre foi um trabalho pra mim e por isso sou tão bom nisso. Ainda uso as roupas que comprei quando as coisas iam bem. Mas o que ganho com isso? Qual é a vantagem? Alguns anos de boa vida e resto preso junto com a ralé? Era isso que eu queria? Foi o que perguntei a mim mesmo. Então resolvi tomar jeito. – Depois de uma pausa, ele continuou. — Não foi muito fácil. As pessoas não querem saber de ex-vigaristas trabalhando para elas. Você pode achar tudo isso besteira. Mas essa é a realidade. É duro conseguir emprego quando a gente está fichado. As pessoas dão meia dúzia de telefonemas e descobrem que Rudolf Deutsch cumpriu pena, bem, até logo, Rudolf, foi um prazer conhecê-lo.

— Então você adotou o nome de Roger Davies, certo?

— É isso aí.

— O que você está fazendo atualmente?

— Trabalho num banco. Sou guarda de segurança. – Deutsch olhou para Sirius rapidamente para ver se ele estava sorrindo. Enganou-se. Sirius estava sério. — É por isso que tenho um porte de arma... Não estou te enrolando... Você pode checar.

— Podemos checar muitas outras coisas – alertou o detetive. — Agora vamos.

— Pra onde? Já contei tudo!

— Para o Distrito. Quero que uns otários vejam você.

Rudolf olhou para Sirius com olhos arregalados.

— Uma sessão de reconhecimento? Meu Deus, eu tenho que ir lá?

— Não. Vou pedir às vítimas que venham aqui.

— Cara, já te falei... Estou limpo! Não tenho com que me preocupar. O problema é que eu odeio sessões de reconhecimento.

— Por quê?

— Porque tem um monte de vagabundo lá, sabia? E eu não sou mais um vagabundo.

* * *

Uma chuva fina cortante caía sobre a cidade, escurecida pelo céu pesado e cinzento. As águas do Tâmisa, batendo nos embocadouros, produziam um murmúrio triste e contínuo. Os parquinhos infantis na margem do rio estavam totalmente silenciosos, e o asfalto preto, lustroso e escorregadio, brilhava sob o insistente martelar da chuva.

Aquele era um cenário perfeito para se cometer um assassinato.

Talvez por isso mesmo, uma mão surgisse de repente na superfície da água, com dedos rijos e esticados.

O movimento do rio empurrava lentamente o corpo rígido e inerte para a margem cheia de entulhos, e a chuva continuava caindo, sem cessar.

E os homens do 87o. Distrito descobriram que tinham mais um presunto flutuante.

* * *

Obviamente tinham cometido em erro na tatuagem.

A de Mandy Brocklehurst era quase idêntica. As duas estavam no mesmo lugar: na dobra da pele entre o polegar e o indicador da mão direita. Era um coração com a palavra MED dentro.

O segundo presunto também era uma moça. E também possuía uma tatuagem na dobra da pele entre o polegar e o indicador da mão direita. E era um coração.  E havia uma palavra dentro do coração. E a palavra era NED.

Obviamente houvera um engano.

É claro que quem fez a tatuagem cometeu um deslize. Com certeza, pediram a palavra MED no coração para ligar indelevelmente aquele nome de homem à carne da moça. Mas alguém se enganara. Talvez se o tatuador estivesse bêbado, ou cansado, ou talvez simplesmente não dava a mínima para seu próprio trabalho. De qualquer forma, o nome ficara errado.

Não era um MED desta vez, mas sim um NED.

O homem que jogara as moças no rio devia ter ficado furioso. Afinal, ninguém gosta que seu próprio nome seja escrito errado.

* * *

A idéia era unir o útil ao agradável.

Uma idéia que Harry Potter não apreciava particularmente, mas ele prometera à Ginny que a encontraria no centro da cidade às oito em ponto, e o encontro no estúdio de tatuagem fora marcado para às sete e quarenta e cinco. Era tarde demais para alcançá-la em casa. De qualquer forma não dava pra telefonar, pois o telefone era uma coisa que ela não podia usar. Em outra ocasião, ele teria mandado um mensageiro com um aviso, mesmo contra as normas da polícia. Mas provavelmente ela já teria saído de casa. Agora ele estava ali, parado numa esquina, debaixo de uma marquise, esperando sua esposa. Assim como esperava que aquela maldita chuva cortante, que penetrava nos ossos e fazia sua cicatriz latejar, parasse de cair.

Resolveu deixar as dores de lado e embarcar no seu devaneio predileto: pensar em Ginny. Ele sabia que havia algo desesperadamente adolescente no modo como ele a amava, mas não havia muito que fazer para mudar os sentimentos. É claro que existiam mulheres mais bonitas que ela, mas ele não tinha olhos para vê-las. Provavelmente também havia mulheres mais doces, mais puras, mais quentes e mais apaixonadas. Ele duvidava. Ele realmente duvidava disso. A realidade, a simples verdade era que ela o agradava. Ela o encantava. Ginny tinha um rosto que ele nunca se cansaria de admirar. Quando ela se maquiava, os olhos castanhos brilhavam sob os cílios realçados pelo rímel, e os lábios se sobressaíam desenhados com batom. E ele amava aquela aparência sofisticada, meticulosamente calculada. De manhã, ela era outra pessoa; ainda quente da cama, os olhos limpos, o rosto lavado, os lábios intumescidos, o cabelo ruivo espalhado pela fronha do travesseiro, o corpo flexível e dócil. E ele a amava assim também.

Muitos homens esperavam a vida inteira pela sorte grande. Para Harry, a sorte grande já chegara e trouxera boas perspectivas. Havia momentos, é claro, que ele desejava que a sorte fosse maior. Ela estava meia hora atrasada. E embora nunca se cansasse de pensar nela, preferia que Ginny estivesse ali em carne e osso.

De repente, ele a avistou. Não se surpreendeu com o efeito que a presença dela produzia nele. Ele já se acostumara com a aceleração instantânea de seu coração e com o sorriso espontâneo e natural. Ele observou com prazer alguns operários que trabalhavam na calçada se voltarem para vê-la passar.

Assim que Ginny o avistou, passou a andar mais rápido. Harry não sabia direito o que havia entre eles que tornava uma curta separação parecer um exílio de dez anos no deserto. O que quer que fosse, era assim que se sentiam. Ginny caiu em seus braços, e ele a beijou ardorosamente, sem se importar com as pessoas em volta olhando.

— Você está atrasada – ele avisou depois que se separaram. — Mas não precisa se desculpar. Você está linda, sabia?

Ela sorriu carinhosamente.

— Vamos ter que passar num lugar antes do jantar. Você se importa?

Os olhos dela questionaram Harry.

— Um estúdio de tatuagem no centro da cidade. O cara acha que se lembra de Mandy Brocklehurst. Estamos com sorte. Como é um trabalho do Distrito, estou com a perua da polícia, o que significa que não teremos que pegar o metrô pra voltar pra casa. Previdente seu marido, não?

Ginny sorriu e apertou o braço dele. Os dois seguiram até o carro e enfrentaram toda confusão do trânsito da cidade. Os limpadores de pára-brisas estalavam no contato com a água e os pneus chiavam contra o asfalto. Harry dirigia com cautela, por causa da chuva, mas estava plenamente ciente da bela mulher sentada a seu lado.

— Deus, como eu amo você... – murmurou ele, colocando mão na coxa dela, enquanto parava num semáforo. — Você está tão cheirosa... Que perfume é esse?

Ginny esfregou uma mão na outra como se as lavasse a seco.

— Sabonete? Só sabonete? Você é surpreendente, faz até um sabonete parecer perfume francês – deu um leve apertão na perna dela antes de voltar a segurar a direção. — Querida, o assunto no estúdio não vai levar mais do que alguns minutos. Eu tenho algumas fotos de Mandy aqui no carro, e talvez a gente consiga alguma pista do cara. Depois vamos jantar e fazer o programa que você quiser, certo?

Ginny balançou a cabeça, satisfeita.

O estúdio de tatuagem não ficava muito longe, (vírgula) e o homem que o dirigia era um chinês. O nome na placa da vitrine era Chen. Ele era um homenzinho redondo e gorducho, e todas as suas banhas balançavam quando ria. Tinha um pequeno bigode, dedos grossos, com um anel oval de jade no indicador da mão esquerda.

— Você, investigador, né? – ele perguntou.

— Sim, sou. – Harry simpatizou imediatamente com o chinês.

— Esta senhora, senhora da polícia?

— Não, esta senhora é minha esposa.

— Ih! Muito bom! Muito bom! – Chen exclamou sorridente. — Muito bonita. Ela quer tatuagem, talvez? Chen faz uma linda borboleta para ela ombro. Muito bom com camisola decotada. Muito bonita. Muito decorativa.

Ginny sacudiu a cabeça, sorrindo.

— Muito bonita senhora. Você, detetive, tem sorte – Chen olhou para Ginny. — Linda borboleta amarela talvez? Muito bonita! Todo mundo diz bonita.

Ginny sacudiu a cabeça novamente, negando.

— Talvez você gosta mais vermelha? Vermelho sua cor talvez? Linda borboleta vermelha?

Ginny não pôde evitar um sorriso. Ficou sacudindo a cabeça e sorrindo, sentindo-se parte do trabalho do marido, feliz porque ele teve que fazer a visita ao chinês e feliz porque ele a levara. Era curioso, ela pensou, mas não conhecia Harry como policial. A função dele era uma coisa alheira a ela, embora sempre conversassem sobre o trabalho. Ela sabia que Harry lidava com criminosos e freqüentemente se perguntava que tipo de homem o marido era no trabalho. Impiedoso? Ela não conseguia imaginá-lo assim. Cruel? Não. Duro? Agressivo? Talvez.

— Quero saber da moça que lhe falei – Harry explicou ao tatuador. — Quando ela esteve aqui?

— Ih! Muito tempo atrás. Talvez cinco meses, talvez seis. Bonita senhora. Não igual esposa sua, mas muito bonita.

— Ela estava sozinha?

— Não. Homem alto junto – Chen olhou bem para Harry, examinando seu rosto. — Mais bonito que você, detetive.

— Como era ele? – Harry perguntou sorrindo.

— Alto. Artista de cinema. Muito bonito.

— De que cor era o cabelo dele?

— Loiro.

— Os olhos?

Chen sacudiu a cabeça. Não se lembrava da cor dos olhos do homem alto.

— Tem alguma coisa que você se lembre dele, Sr. Chen?

— Ele sorriso o tempo todo – Chen comentou. — Grandes dentes bonitos. Dentes muito bonitos. Homem muito bonito. Artista de cinema.

— Conte-me o que aconteceu? – Harry insistiu.

— Eles entrar juntos. Ela segura braço dele. Ela olhar sempre para ele. Estrelas nos olhos. – Chen fez uma pausa. — Igual sua mulher. Mas não bonita igual.

— Eles eram casados?

Chen sacudiu os ombros.

— Você viu um anel de noivado ou aliança no dedo dela?

— Eu não ver – Chen olhou para Ginny, que retribuiu o sorriso. — Você gosta borboleta preta? Asas pretas bonitas? Venha. Chen mostra.

Ele os conduziu para dentro de um estúdio. Uma cortina (cortina) de contas separava a sala dos fundos. As paredes estavam forradas de desenhos de tatuagem. Um calendário com uma garota nua estava pendurado na parede perto da cortina. Por brincadeira, alguém tatuara o corpo inteiro da garota e desenhara um par de mãos sedentas sobre os seios volumosos da loira. Chen apontou para o desenho de uma borboleta em uma das paredes.

— Esta. Você gosta? Você escolhe a cor. Qualquer cor. Chen faz. Ombro fica bom. Muito bonita.

— Conte-me o que aconteceu com a moça, Sr. Chen – Harry insistiu em tom amável.

Ginny olhou para o marido, curiosa. Sem dúvida, ele gostava de escutar o chinês, mas não abandonava o objetivo da visita. Ele estava lá para conseguir uma pista do homem que matara Mandy Brocklehurst. Ela percebeu que, se a conversa mole continuasse por mais tempo, ele daria um basta.

— Eles entrar no estúdio. Ele diz que moça querer tatuagem. Eu mostra desenhos na parede. Chen tenta vender borboleta para ela. Ninguém quer borboleta. Meu desenho exclusivo. Muito bonita. Bom para ombro. Eu tenta vender borboleta para ela, mas homem alto dizer que ela quer coração. Ela dizer que quer coração também. Com estrela nos olhos, sabe? Grande amor, coisa forte, tudo brilhando. Eu mostra para eles coração grande. Muito bonito, complicado, muitas cores.

— Eles não queriam coração grande?

— Homem quer coração pequeno. Ele mostra onde – Chen estica o polegar e o indicador. — Aqui. Muito difícil. Lugar muito sem carne. Agulha pode ferir. Muito dolorido. Muito difícil. Ele dizer que quer a tatuagem ali, ela quer ali também. Loucura.

— Quem sugeriu as letras para colocar dentro do coração?

— Homem. Ele dizer: você coloca M-E-D dentro do coração.

— Ele pediu para pôr o nome MED dentro do coração?

— Ele não dizer nome MED. Ele dizer pôr M-E-D.

— E o que ela disse?

— Ela dizer sim. M-E-D

— Continue.

— Eu faz. Muito dolorido. Moça gritar. Ele segurar ombros dela. Muito dolorido. Ponto sensível — Chen sacudiu a cabeça. — Borboleta no ombro melhor.

— Ela mencionou o nome dele enquanto estava aqui?

— Não.

— Ela o chamou de MED?

— Ela não chamar ele nada – Chen pensou por um momento. — Sim, ela chamar ele querido, meu bem, amor... Palavras de amor. Nenhum nome.

Harry suspirou. Retirou as fotos de Mandy de dentro do envelope pardo que tinha nas mãos e entregou ao tatuador.

— Esta é a moça?

— Essa ela – Chen afirmou. — Ela morta, né?

— Sim, ela está morta.

— Ele matar ela?

— Não sabemos ainda.

— Ela amar ele – Chen afirmou, levantando a cabeça. — Amor muito especial. Ninguém devia matar por amor.

Ginny olhou para o chinês gorducho e, de repente, teve vontade de deixar que ele tatuasse sua obra prima em seu ombro. Harry pegou as fotos e as colocou de volta no envelope.

— Este homem voltou ao seu estúdio? Com outra mulher?

— Não. Nunca.

— Bom, muito obrigado, Sr. Chen. Se lembrar de alguma coisa mais, ligue pra mim, está bem? – Harry abriu a carteira. — Aqui está meu cartão. Basta chamar o investigador Potter.

— Você voltar – Chen disse. — Você trazer esposa. Eu faz linda borboleta no ombro – ele esticou a mão, e Harry a apertou; por um momento, os olhos de Chen ficaram sérios. — Você sortudo. Você não tão bonito quanto homem alto, mas esposa linda. Amor muito especial.

Ele virou-se para Ginny.

— Algum dia você quer borboleta, você volta. Eu faz bem bonita. – Ele piscou. — Marido detetive gostar. Eu prometo. Qualquer cor. Procura Chen. Esse ser eu.

Ele abriu um sorriso largo e fez uma mesura. Harry e Ginny saíram do estúdio, dirigindo-se para a perua da polícia que estava estacionada no outro lado da rua.

— Cara legal, não? – Harry comentou.

Ginny concordou com a cabeça.

— Gostaria que todos fossem como ele. Muitos não são. Para grande parte das pessoas, a presença de um policial produz um sentimento de culpa inexplicável. É verdade, Gin. Instantaneamente sentem que estão sob suspeita e se defendem. Acho que é por isso que acabamos encontrando cadáveres em armários pouco suspeitos. Você está com fome?

Ginny fez uma cara de quem estava morrendo de fome.

— Será que a gente procura um lugar por aqui mesmo ou você prefere ir para o outro lado da cidade?

Ginny apontou para o chão.

— Aqui?

Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Chinês?

Não.

— Italiano?

Sim.

— Que tal aquele restaurante no fim da rua?

Em poucos minutos, eles chegaram lá. Harry parou diante da janela de vidro para observar o ambiente.

— Não está muito cheio – ele comentou. — Parece limpo. Vamos arriscar?

Ginny deu o braço ao marido, e eles entraram no restaurante.

Bem, não era exatamente o lugar mais limpo do mundo. Apesar de preciso, o olhar rápido de Harry não avaliara direito o asseio. E talvez estivesse vazio porque a comida de lá não fosse muito boa. Mas isso não era tão importante, pois com a fome que estavam teriam comido até gafanhoto refogado.

O ambiente era simpático. Toalhas quadriculadas cobriam as mesas(vírgula) e velas nos gargalos de garrafas de vinho vazias, com cera escorrida em volta, iluminavam o local. Havia um balcão de bar ao longo da parede em frente às mesas. Harry reparou que tinha uma cabine telefônica de onde poderia ligar para o Distrito.

O garçom veio até a mesa. Parecia feliz em vê-los ali.

— Querem um aperitivo antes do jantar?

— Dois martínis e azeitonas, por favor. – Harry pediu.

— Gostariam de ver o cardápio mais tarde ou agora, senhor?

— Pode ser agora.

O garçom trouxe dois cardápios. Harry deu uma rápida olhada no seu, colocando-o sobre a mesa, depois de optar pelo espaguete. E enquanto Ginny examinava o cardápio, ele deu uma olhada pela sala. Um casal de velhos comia em silêncio numa mesa perto da cabine telefônica. Não havia mais ninguém na sala. No bar, um homem de jaqueta de couro estava sentado com uma dose de bebida diante dele e um copo de água. O homem olhava pelo espelho do bar. Os olhos estavam pregados em Ginny. Atrás do balcão, o garçom preparava os martínis.

Quando o garçom retornou com as bebidas, Harry pediu espaguete(vírgula) e Ginny apontou para a lasanha. Logo que o homem se afastou, eles pegaram os copos e brindaram.

— À sorte grande – Harry disse.

Ginny o olhou, confusa.

— Às belas coisas da vida... Ao amor.

Ela ainda o encarava sem entender muito bem o que ele queria dizer.

— Estou bebendo a você, querida – ele explicou, observando o sorriso suave de Ginny. — Esta cidade não pode ficar sem policiais poéticos. – Ele deu um gole no martíni e colocou o copo na mesa. — Vou ligar para o Distrito, querida. Volto já.

Tocou a mão dela num gesto de carinho e dirigiu-se para o telefone, vasculhando o bolso em busca de moedas, enquanto se afastava da mesa.

Satisfeita, Ginny ficou admirando os passos largos e atléticos do marido e o modo como ele sustentava a cabeça e os ombros. Percebeu que uma das coisas que a atraía era o modo como ele se movimentava. Havia uma agilidade e simplicidade de movimentos; um senso de objetividade visível. Parecia que antes de se mexer, Harry já sabia exatamente aonde ir e o que fazer. Isso produzia em Ginny uma incrível sensação de segurança.

Ela levou o copo aos lábios e tomou um longo gole. Não comera nada desde a hora do almoço e, por isso, não estranhou o rápido efeito produzido pelo álcool. Viu o marido entrar na cabine telefônica e discar para a delegacia. Devia estar falando com o sargento de plantão e depois com um investigador. Será que eles podiam imaginar que há poucos momentos atrás, ele falava de amor com ela? O que será que os outros tiras pensariam dele? Por momento ela se sentiu excluída, só e indesejada diante da privacidade impenetrável que era o trabalho de Harry.

Rapidamente virou o copo de martíni.

Uma sombra caiu sobre a mesa.

No primeiro momento ela achou que fosse impressão, mas quando olhou para cima, havia um homem de jaqueta de couro, de pé ao lado dela, sorrindo.

— Oi. – ele disse.

Olhando rapidamente para a cabine telefônica, viu que Harry estava de costas.

— O que você está fazendo com um verme daquele? – o homem provocou.

Ginny desviou o olhar e fixou-o no guardanapo em seu colo.

— Você é simplesmente a boneca mais bonitinha que já pôs o pé nesta espelunca. Por que você não se livra desse cara e me encontra mais tarde? Que tal?

Ela sentiu um bafo de uísque na respiração do homem. Havia alguma coisa de assustador em seus olhos, alguma coisa de insultante na maneia descarada como percorriam o corpo dela. Desejou não estar usando um suéter decotado. Inconscientemente, puxou o casaco, fechando-o sobre o volume dos seios.

— Vamos lá... – o homem insistiu. — Não faça isso.

Ginny o encarou e sacudiu a cabeça. Os olhos dela imploravam para que ele fosse embora. Ela olhou novamente para o telefone. Harry falava animadamente.

— Meu nome é Derrick. É um nome legal, não acha? Diferente... Derrick... Qual é seu nome?

Ela não podia responder e, mesmo se pudesse, não teria respondido.

— Vamos lá, relaxe... – ele olhou insinuante para ela. — Puxa, você é linda, sabe disso? Livre-se dele, tá? Livre-se dele e encontre-se comigo mais tarde.

Ginny balançou a cabeça, negando.

— Fale comigo. Quero ouvir a sua voz.

Ela sacudiu a cabeça novamente, suplicante desta vez.

— Quero ouvir a sua voz. Aposto que é a voz mais sensual do mundo. Quero ouvi-la.

Ginny fechou os olhos com força, as mãos tremendo no colo. Ela queria que o homem fosse embora e a deixasse só, que saísse dali antes que Harry voltasse para a mesa. Ela estava um pouco atordoada por causa do martíni e só conseguia pensar que Harry se irritaria, que pensaria que ela provocara a situação.

— Olhe, por que você fica aí, muda e fria como gelo? Aposto que você é bem quente. Fale alguma coisa

Novamente ela negou com a cabeça. Viu Harry desligar o telefone e abrir a porta da cabine. Ele sorria, mas quando olhou em direção à mesa, o sorriso se apagou dos lábios. Ginny sentiu um súbito pânico na boca do estômago. Ele saiu da cabine rapidamente, com a atenção fixa no homem de jaqueta de couro.

— Vamos lá... – Derrick insistiu. — Por que ficar desse jeito, hein? Tudo o que eu quero...

— Qual é o problema, senhor? – Harry o surpreendeu.

Ginny olhou para o marido, tentando fazê-lo entender que ela não tinha nada a ver com aquilo. Harry não se virou para olhá-la. Continuava encarando Derrick.

— Problema nenhum – Derrick respondeu, arrogante.

— O senhor está incomodando minha esposa. Dê o fora.

— Oh, eu estava incomodando? A mocinha aqui é sua senhora? – ironizou Derrick e, separando as pernas, deixou os braços balançando ao longo do corpo.

Harry percebeu naquele instante que o cara estava procurando confusão e não sossegaria enquanto não arrumasse uma.

— É melhor que a deixe em paz. Volte para sua mesa – ordenou Harry.

— Não vou para lugar nenhum. Este é um país livre. Vou ficar exatamente aqui.

Harry sacudiu os ombros, puxou a cadeira e sentou-se. Derrick permaneceu de pé ao lado da mesa.

— Você está bem? – Harry perguntou preocupado, pegando a mão de Ginny.

— Mas não é uma gracinha? – Derrick provocou. — Marido bonitão volta do...

Soltando a mão de Ginny, Harry levantou-se bruscamente. O casal de velhos, do outro lado da sala, olhou curioso.

— Olhe... – Harry advertiu com calma. — O senhor está me tirando do sério. É melhor o senhor...

— Estou incomodando vocês? Que diabo! Tudo o que estou fazendo é admirar um lindo espetáculo de...

Derrick não continuou. Harry o acertou em cheio. Direto na boca. Bateu de surpresa e com toda força. O arruaceiro cambaleou e caiu sobre a mesa vizinha, derrubando a vela no chão. Por um momento, apoiou-se na mesa; quando se levantou, a boca estava sangrando, mas continuava sorrindo.

— Eu sabia que você ia fazer isso, cara.

Examinou Harry por um momento e investiu contra ele.

Ginny ficou sentada com as mãos entrelaçadas no colo, pálida e assustada. Olhou para o rosto do marido e não era o que ela conhecia e amava. Estava completamente inexpressivo, a boca como uma linha fina, os olhos apertados de modo que somente as pupilas enormes eram visíveis. Harry estava em pé com as pernas abertas, para dar mais equilíbrio e os punhos fechados. Ginny olhou para as mãos dele, que lhe pareceram ainda maiores, grandes e poderosas, armas letais que pendiam do lado do corpo esperando. Ele todo parecia estar esperando. Ela podia sentir a tensão eletrizante crescendo dentro dele enquanto esperava pela investida de Derrick. Naquele momento, seu corpo parecia uma máquina bem lubrificada que funcionava macio e que reagiria automaticamente assim que uma alavanca fosse acionada. Não havia nada de humano na máquina; qualquer resquício de humanidade abandonara Harry no momento em que seu punho atacou Derrick com violência.

O que Ginny presenciava era um policial altamente treinado e qualificado em ação, esperando que os botões certos fossem apertados. Mas Derrick não sabia disso. Ignorante, apertou os botões.

O punho esquerdo de Harry acertou o estômago, e Derrick se dobrou em dois de dor. Rapidamente, o detetive deu um soco que pegou o adversário no queixo, mandando-o até a mesa vizinha onde caiu estatelado. Harry movia-se com agilidade e, antes que Derrick pudesse se livrar da mesa, ele estava em posição de novo, esperando.

Quando Ginny viu Derrick agarrar uma garrafa, sua boca se abriu com angústia e choque. Mas ela sabia que ele não pegaria Harry desprevenido. De fato, o rosto do policial não se alterou; observava com calma o oponente quebrar a garrafa na mesa. Ginny temeu pelo marido, pois sabia que Derrick estava suficientemente bêbado para cometer uma loucura.

Derrick avançou lentamente, mas Harry permaneceu no lugar, aguardando o próximo movimento do adversário. Quando o homem investiu com o gargalo quebrado, mirando a virilha do policial, foi surpreendido pela mão direita de Harry apertando seu pulso. Rapidamente, o detetive deu um passo para trás, puxando Derrick, que caiu para frente, impotente, antes de sentir um forte golpe na cabeça, pois a mão esquerda de Harry o acertara em cheio na nuca, nocauteando o oponente de uma vez, que caiu no chão, com os braços estendidos, incapaz de qualquer movimento.

O garçom assistia à cena em pé na porta do salão com olhos arregalados, enquanto o casal de velhinhos parecia curtir tudo, como se estivessem num ringue de luta livre.

— Chame a polícia – Harry ordenou ao garçom com voz inexpressiva.

— Mas... – o homem hesitou.

— Sou investigador – Harry esclareceu, mostrando o distintivo. — Chame um guarda. Mexa-se!

— Sim, sim senhor. – o infeliz murmurou antes de sair apressado.

Em nenhum momento Harry fitou a esposa. Ele ficou onde estava, de pé ao lado do bêbado inconsciente até a chegada do outro policial. Mostrando o distintivo, ele explicou o que se passara e ordenou que prendesse Derrick como desordeiro, mas deixando de mencionar a fracassada tentativa de agressão. Acompanhou o guarda e o preso até a viatura e ficou fora por alguns minutos. Quando voltou, o casal de idosos já tinha partido, e Ginny estava sentada, olhos fixos no guardanapo no seu colo. Ele pagou a conta e os dois saíram do restaurante.

O caminho de casa foi feito em silêncio. Ninguém disse nada. Ela porque não podia, e ele porque não queria. Ao entrarem no apartamento, Ginny seguiu apressada para o quarto, antes que o marido a visse explodir em lágrimas.

Harry acompanhou a mulher com os olhos. Podia sentir a tristeza que emanava dela, e isso o deixou ligeiramente culpado. Mas o que ele poderia ter feito? Aquele homem estava mesmo a fim de arrumar uma boa briga e não descansaria enquanto não se envolvesse em alguma confusão. Abriu a porta do quarto e a encontrou sentada na beira da cama, lágrimas escorrendo pelos lindos olhos.

— Gin, sinto muito – disse ele, depois de se ajoelhar diante dela e segurar o rosto delicado entre as mãos, a fim de que ela o fitasse. — Eu não queria confusão hoje... Ele teria brigado com qualquer um, doçura. Estava louco por uma briga. Tenho certeza que ele ficará melhor numa cela... Podia ter machucado alguma outra pessoa...

Suspirando fundo, Ginny concordou com a cabeça. Não precisava mais visitar o Distrito para ver o marido em ação. Ela jamais se esqueceria da expressão fria de belo rosto, nem da agilidade das mãos dele, que até então ela conhecia como sendo muito carinhosas. Acabara de descobrir que o mundo não era habitado por homens gentis e bem-humorados. E que seu amado podia ser muito perigoso se quisesse.

Erguendo os braços, tomou as mãos do marido entre as suas. As dele grandes e calosas. As dela pequenas e suaves. Lentamente, ela beijou os dedos e depois as palmas de cada uma. E por fim, ela o encarou, tentando se expressar do único modo que sabia.

Harry se surpreendeu com o olhar intenso da esposa. Mas não foi necessário palavras para que ele entendesse o que ela queria lhe dizer. Diziam que os olhos eram o espelho da alma. No caso de Ginny, eles eram mais que isso. Os grandes olhos castanhos eram também seu meio de se comunicar com o mundo. E naquele momento, eles diziam o quanto ela o amava.

Diminuindo o espaço que os separava, ele a beijou com renovada paixão, ciente de cada pedaço dela colado nele. Os dois caíram na cama, e o mundo ficou esquecido do lado de fora daquelas quatro paredes... Nada mais importava, apenas eles dois e o amor que sentiam um pelo outro.

* ~ * ~ * ~ *

Continua...