Capítulo 04
Reconhecimentos normalmente eram uma das coisas mais chatas que um investigador tinha que fazer. Para Sirius, reconhecimentos eram como a visita de uma sogra – um mal necessário. Assim mesmo, ele pedira para ir no lugar de Potter até a sede da polícia para o reconhecimento, mesmo que isso significasse fazer uma viagem até o centro da cidade debaixo de chuva e ficar sentado em uma sala cheia de investigadores, assistindo ao infindável desfile de inimigos da sociedade.
Na semana anterior, Sirius promovera um reconhecimento privado na sala dos detetives do 87o, onde colocou Rudolf Deutsch, o 'Alemão', diante de uma jovem negra chamada Angelina Johnson e de um grande empresário chamado Ernie Macmillan. Ambas as vítimas tinham absolvido Deutsch de imediato. Ele não era o homem envolvido naqueles golpes. O que deixou Sirius intimamente satisfeito. Ele agradeceu à Srta. Johnson e ao Sr. Macmillan, deu um tapinha nas costas de Rudolf e advertiu:
— Estou de olho em você.
Depois disso, Sirius pediu para substituir Potter, que estava escalado para a sessão de reconhecimento. Se Harry fosse um policial que adorasse reconhecimentos ou extremamente detalhista, ou ainda se, por alguma razão, achasse absolutamente necessário estar presente naquela reunião de quarta-feira, as coisas teriam saído muito diferentes.
Na verdade, Harry era um detetive responsável e escrupuloso, atento aos detalhes, mas estava atolado de trabalho com os presuntos. E, raramente, os reconhecimentos revelavam suspeitos de assassinatos. Seu tempo poderia muito bem ser gasto em outras investigações, como uma busca completa pelos estúdios de tatuagem do centro da cidade para tentar uma pista do 'NED' que aparecera na mão do segundo flutuante.
Por isso, permitiu que Sirius fosse em seu lugar, o que foi uma grande falta de sorte. Foi por um infeliz acaso que dois loiros bonitos passaram pelo reconhecimento daquela quarta-feira. Um deles era o assassino de Mandy Brocklehurst e do segundo cadáver não identificado.
No entanto, Black estava interessado em vigaristas, não em assassinos. Potter estava interessado em estúdios de tatuagem. E Weasley era um policial novato.
Ronald acompanhou Sirius até a sede naquela manhã cinzenta. A cidade estava coberta por uma garoa fina e cortante, e os dois policiais falaram pouco durante o percurso até o centro. Na maior parte do tempo, Ronald ficou pensando em suspender suas férias com Hermione e como ela reagiria a isso. E Sirius pensava no vigarista que agira sozinho uma vez e na segunda vez com um comparsa, imaginando se o reconhecimento iria ajudar em alguma coisa. Black dirigia com cautela porque a pista estava escorregadia. Acabaram chegando atrasados ao reconhecimento.
O grande recinto, que mais parecia um ginásio de esportes, estava escuro quando entraram. Só havia luzes no fundo iluminando o palco.
—... Terceiro assalto, infração em 1949 – dizia o chefe dos investigadores de cima do tablado, atrás de fileiras e fileiras de cadeiras dobráveis, onde se sentavam os outros policiais. — Pensamos que você tivesse tomado jeito, Goyle, mas parece que não aprende nunca. O que tem a dizer sobre aquele posto de gasolina ontem?
O homem permanecia em silêncio no palco. O microfone diante da boca preso a um cano duro e a marcação de altura na parede de trás indicava aos presentes que ele tinha 1,84m de altura.
Black e Weasley passaram discretamente pela frente do palco. Acomodaram-se em umas das fileiras, rápido e em silêncio.
— Estou falando com você, Goyle – disse o chefe dos investigadores. — Não preste atenção nos atrasados. – ele acrescentou sarcasticamente, e Ron sentiu o rosto ferver.
— Estou ouvindo bem — respondeu o investigado. Gregory Goyle era um homem corpulento, de olhos e cabelos escuros, com uma cara de gorila. Sirius achou a semelhança com o primata ainda maior, pois os membros superiores de Goyle eram desproporcionais em relação ao seu tronco. Eles eram compridos demais.
— Então, o que tem a dizer?
— Não digo nada em reconhecimentos, e você sabe disso.
— Você já esteve numa porção de reconhecimentos, não é?
— Alguns.
— E sobre as outras infrações?
— Nada a declarar.
— Nunca imaginou que estaria aqui novamente por causa de um assalto, não é?
— Não tenho nada a dizer – Goyle afirmou. — Vocês têm que provar que houve um assalto e que fui eu quem o praticou.
— Isso não seria difícil – ameaçou o chefe. — Entretanto, as coisas poderiam ser mais fáceis se você confessasse o que queremos saber.
— Posso passar muito bem sem trabalhos pesados pela manhã. Conheço o regulamento. Não faça mais perguntas porque está perdendo seu tempo.
— Está bem. Próximo caso.
Goyle saiu do palco. Cada movimento seu foi estudado por todos os presentes. Isto porque os desfiles matutinos de segunda a quinta serviam apenas para que todos os investigadores se familiarizassem com os homens que andavam cometendo crimes na cidade. Às vezes, uma vítima era convidada a participar de um reconhecimento a fim de identificar um suspeito, mas tais ocasiões eram raras e quase sempre infrutíferas. Raras porque vítimas geralmente têm milhares de razões para não quererem se expor ao reconhecimento. Infrutíferas porque também tinham milhares de razões para não quererem identificar um suspeito. A menos válida dessas razões, embora a mais forte, era o medo de vingança. De qualquer modo, não eram muitos os suspeitos identificados pelas vítimas. Se esse fosse o único propósito de um reconhecimento, todo o negócio seria um fracasso.
Por outro lado, os policiais que se reuniam na sede nas manhãs de segunda a quinta, tanto detestavam a tarefa que estudavam meticulosamente cada infrator da sociedade do dia anterior. Nunca se sabe quando vai surgir uma pista para o caso em que se está trabalhando. E nunca se sabe também quando é importante reconhecer um ladrão barato de rua. O reconhecimento pode, em alguns casos, até salvar uma vida.
O chefe dos investigadores continuou com o ritual de sempre; os policiais ouvindo e observando com atenção.
— "Chelsea, um" – disse o homem, indicando a área da cidade onde a prisão fora efetuada e o número do caso. — Chelsea, um. Summers, Douglas, 30. Bebendo demais em um bar no Shelter Place. Discutiu com o garçom e arremessou uma cadeira contra o espelho do bar. Nenhuma declaração. O que aconteceu, Douglas?
Summers foi conduzido para os degraus ao lado do palco pelo oficial que efetuara a prisão. Tinha 1,94m de altura e devia pesar uns 90kg, ombros largos e cintura estreita. Deu alguns passos decididos em direção ao microfone. O cabelo era loiro, macio, penteado para trás, a testa larga. Tinha um nariz afilado e os olhos azuis acinzentados. Os ossos da face eram salientes, a boca forte e bem desenhada, o queixo quadrado. Parecia estar em cima de um palco para receber instruções de um diretor, ao invés de estar enfrentando a fera que era o chefe dos investigadores.
— Sobre o que você e o garçom discutiram?
— Aquela cadeia onde passei a noite era um lixo – Summers reclamou, empurrando o microfone. — Alguém vomitou no chão.
— Não estamos aqui para discutir...
— Não sou criminoso, droga nenhuma! – Summers gritou. — Entrei numa briguinha de nada, tá certo. Isto não é motivo para você me pôr numa cela cheirando a vômito.
— Você deveria ter pensado nisso antes de cometer a infração.
— Infração?! Por acaso ficar bêbado é infração?
— Não, mas agressão é. Você brigou com o garçom, não brigou?
— Tá, tudo bem. Eu bati nele.
— Isso é agressão.
— Todo dia tem um cara batendo noutro, e não vejo ninguém sendo acusado de agressão...
— Esta é a primeira infração que comete, não é?
— Sim, é.
— Relaxe, então. Você pode sair dessa pagando fiança. Agora vamos à história.
Summers remexeu no lugar, com uma cara de desagrado e relatou o ocorrido. O garçom o xingara, e ele revidou, partindo para a briga e depois jogando a cadeira no outro homem, que se desviou, fazendo com que o pesado objeto acertasse o vidro. De acordo com o guarda que efetuara a prisão, Summers também tinha em seus bolsos uma considerável quantia em dinheiro: mil libras. Após ser pressionado pelo chefe dos investigadores, o loiro declarou que tirara o dinheiro do banco para fazer uma viagem com uma garota de programa, mas a mulher lhe dera um 'bolo'.
Depois de ter tirado o máximo de Summers, o chefe continuou com a lista dos infratores, chamando o próximo caso. Um outro loiro, também alto e bonito, esperava para entrar.
— Chelsea, dois. Malfoy, Draco, 35 anos. Tentou bater a carteira de um homem no metrô. Policial de passagem efetuou a prisão. Malfoy declarou que foi engano. O que tem a dizer, Draco?
Draco Malfoy poderia ser um sósia de Douglas Summers. De fato, quando o infrator atravessou o palco, o chefe dos detetives murmurou:
— Mas o que é isso? Uma reprise?
Malfoy era alto, loiro e bonito. Se houvesse ali na platéia algum policial com complexo de inferioridade, a dupla Summers-Malfoy o teria deixado mal. O reconhecimento mais parecia um desfile de beleza masculina. Malfoy parecia tão tranqüilo quanto Summers. Andou até o microfone. Sua cabeça ultrapassava a marca de 1,90m na parede branca atrás dele.
— Cometeram um engano. – foi tudo que ele declarou.
— É mesmo? – o chefe ergueu uma sobrancelha.
— Sim – Malfoy continuou calmamente. — Não bati a carteira de ninguém. Nem mesmo tentei. Trabalho para me sustentar. O homem cuja carteira foi batida simplesmente acusou a pessoa errada.
— Então como explicar o fato de termos encontrado a carteira em sua jaqueta?
— Não faço a menor idéia. A menos que o ladrão tenha colocado a carteira no meu bolso quando percebeu que ia ser pego.
— Conte-nos o que aconteceu – ordenou o chefe, depois de esclarecer aos demais policiais que o acusado não era fichado.
— Eu estava no metrô, voltando do trabalho para casa. Lia meu jornal tranqüilamente quando o homem que estava em pé na minha frente virou-se e disse de repente: "Onde está minha carteira? Alguém pegou minha carteira!".
— E depois?
— O vagão estava lotado. Um homem que estava ao nosso lado apresentou-se como policial em trânsito e, antes que pudesse perceber alguma coisa, eu e um outro homem fomos agarrados e detidos. O policial nos revistou e encontrou a carteira no meu bolso.
— E para onde foi o outro homem?
— Não faço idéia. Quando o policial achou a carteira, deixou o outro ir embora.
— E pela sua história, o outro é que era o ladrão.
— Não sei quem era o ladrão. Só sei que eu não sou. Como já disse, trabalho para me sustentar.
— O que você faz?
— Sou contador. Trabalho para um dos escritórios de contabilidade mais antigos da cidade. Pode checar.
— Bem, Malfoy, parece que está tudo certo. Entretanto, depende do juiz.
— Vocês sabem que posso processá-los por prisão indevida?
— Ainda não sabemos se a prisão é indevida, não é?
— Eu tenho certeza disso – argumentou Malfoy. — Levo uma vida honesta e não estou nem um pouco a fim de me envolver com a polícia.
— Ninguém está, não é mesmo? Próximo caso.
Draco saiu do palco, e Ronald o observou, questionando-se se a história dele era realmente verdadeira. Não tivera uma boa impressão do homem que se declarava indevidamente acusado de ladrão.
— Vauxhall, um. Bulstrode, Millicent. 47 anos. Golpeou o marido com uma faca de pão. Nenhuma declaração. O que aconteceu, Milly?
Millicent Bulstrode era uma mulher larga, de cabelos escuros e olhar intimidador. Permaneceu estranhamente quieta, com lábios franzidos e as mãos entrelaçadas. Vestia uma roupa simples e discreta, só que inteiramente manchada de sangue.
— Há um erro em seus apontamentos, senhor – disse ela, olhando diretamente para o chefe dos detetives.
— Ah é?
— Sim. Tenho apenas 42 anos.
— Compreendo. Desculpe, Milly. – disse o homem, com leve ironia.
— E tem mais uma coisa.
— E o que seria, Milly?
— Não lhe dei liberdade para me chamar de Milly. Apenas meus amigos próximos e parentes me chamam assim – respondeu ela com voz grossa. — Meu nome é Millicent.
— Ah, claro, Millicent... Mas diga-me, por que esfaqueou seu marido?
A expressão calma de Millicent desapareceu, dando lugar a uma outra, completamente irada. Ela esqueceu-se que estava diante da polícia e perdeu a cabeça, berrando a pelos pulmões que não ia discutir seus problemas conjugais na frente de estranhos e que tinha apenas arranhado o marido. Dois policiais uniformizados apareceram e a carregaram para fora do palco.
E assim prosseguiu o reconhecimento.
No final da sessão, Black e Weasley saíram e se dirigiram para o carro do Distrito que estavam usando.
— Nenhum vigarista... – comentou Sirius.
— Estes reconhecimentos são uma perda de tempo – Ronald ponderou enquanto abria a porta. — O que você achou daqueles dois bastardos bonitões?
Sirius deu de ombros.
— Vamos lá, Ron. É melhor voltar para a delegacia.
Os dois bastardos bonitões tinham se saído muito bem. Douglas Summers foi considerado culpado e pagou sua fiança e os estragos feitos no bar. Draco Malfoy foi considerado inocente. Ambos estavam em liberdade, perambulando pela cidade.
* * *
Ronald Weasley costumava pressentir confusões e sabia que uma estava começando.
Normalmente ele e Hermione Granger se davam bem. Costumavam discutir muito, mas quem garante que o caminho do verdadeiro amor é sempre fácil? De fato, considerando-se os problemas iniciais do namoro, a coisa até que ia indo muito bem. Ron tivera dificuldades no começo para convencer Hermione a não ser tão certinha e reprimida e deixar fluir a atração que sentia por ele. Com o tempo, ele conseguira convencê-la. Passaram por um tempo de adaptação e rapidamente se viram envolvidos pela velha lenda vigarista do namoro sério, da formalidade do noivado. Naquela altura do relacionamento, os dois estavam bem, isto é, desde que conseguissem superar mais aquele obstáculo. Ronald finalmente contara a data de suas férias.
Ron já estava acostumado com a exaltação de Hermione durante uma discussão. Ela ficava com o rosto corado, olhos brilhantes, respiração entrecortada. E naquele momento, ela estava exatamente daquele jeito.
— Você sabe que isso provavelmente significa não ter férias, não é? – ela perguntou, com as mãos nos quadris.
— Não sei nada disso, não – negou Ronald. — Não tenho motivos para achar isso.
Ele estava irritado com a discussão, ao mesmo tempo pensando em como Hermione ficava adorável quando estava brava. Ela não era muito alta, tinha o corpo com curvas suaves que Ron gostava de acariciar. Seus cabelos castanhos normalmente ficavam presos numa trança ou num coque, mas naquele momento, estavam soltos, os cachos fazendo uma moldura para o rosto redondo. Os olhos castanhos fuzilavam o noivo, e os lábios levemente abertos faziam o policial desejar arrebatar aquela fúria com um longo beijo.
— Pelo que vejo, o 87o está simplesmente lotado de mentes brilhantes que têm todo tipo de prioridade sobre um novato imbecil que acabou de ser promovido...
— Hermione...
— Pelo amor de Deus, Ron! Você solucionou um caso de assassinato complicado e sabe disso! O comissário o elogiou pessoalmente e promoveu você! O que mais tem que acontecer para que você consiga um período de férias que coincida com de sua noiva? Impedir um fratricídio em massa? Curar a gripe?
— Hermione, não é uma questão...
— O que quer que você tenha que fazer, já deveria ter feito – ela disse áspera. — De todas as épocas idiotas para férias, dez de junho ganha o troféu. De todas as épocas incrivelmente ridículas...
— Não é minha culpa, 'Mione. O calendário é feito pelo tenente...
—... Para as férias, dez de junho positivamente ganha a taça de ouro!
— Tá legal! – exclamou Ron — Eu sei que isso é horrível, mas eu não posso fazer nada! O que quer que eu faça? Abandone o emprego? Ou você acha que devo procurar o sindicato e iniciar uma guerra democrática em prol de uma data melhor para férias? 'Direitos iguais para todos'!
— Ah, Ron! Pare com isso! Eu não sei, tá legal? – ela se jogou no sofá.
Ele se sentou ao lado dela e os dois ficaram em silêncio por um longo tempo.
— Está mais calma agora? – ele perguntou esperançoso.
— Estou exausta... – ela suspirou pesadamente.
— Eu também... Maldita escala!
— Ron! – ela disparou. — Não pragueje!
— Oh... Sinto muito, 'Mione. Sei que tínhamos planejado estas férias, mas agora... Dez de junho! Que droga!
— Também não é o fim do mundo, Ron – ela disse, se aconchegando a ele. — O pior que pode acontecer é você sair de férias com outra garota.
— Até que não é uma má idéia... – brincou ele.
— Faça isso e eu lhe quebro os dois braços!
Ron gargalhou e depositou um beijo na testa dela. Ele adorava o jeito como Hermione parecia 'encaixar' perfeitamente contra ele. Gostava de abraçá-la e senti-la perto de si, onde podia protegê-la.
— O que faremos? – ela indagou, depois de outro minuto de silêncio.
— Não sei... Vamos pensar...
Os dois ficaram quietos por mais um longo período.
— Quantos testes você tem?
— Cinco.
— E quando termina o período escolar?
— As aulas terminam no dia sete de junho. A semana seguinte é de leitura e os exames finais começam dia dezessete. O semestre termina oficialmente dia vinte e oito.
— Merda!
— Ron!
— Desculpe... É essa maldita data!
— Eu sei... Não podemos fazer nada...
— E se você fizesse os exames na última semana de aula?
— Impossível.
— Por quê?
— É impossível, Ron. As diretoras jamais permitiriam, a não ser num caso muito urgente... Morte... Doença talvez...
— Mas isso é urgente!
— Ah, é mesmo? – ela ergueu uma sobrancelha. — Ron, você acha que eu posso chegar na diretoria e dizer que quero uma permissão para fazer as provas finais na semana do dia três por que vou sair de férias com meu noivo?
— E por que não?
— Ron! Ela provavelmente me expulsaria! Tem expulsado gente por menos que isso.
— Eu não vejo nada de errado nisso. Afinal de contas, nós vamos nos casar futuramente... Não há nada de errado em sairmos de férias.
— Eu também não, Ron... – Hermione não pode evitar um sorriso.
— E se acontecesse alguma coisa com sua família?
— Como assim?
— Não sei... Uma tia muito doente, e você teria que ficar com ela durante o mês de junho... O que acha?
— Pode ser – Hermione ponderou por um momento.
— Me arranje papel e caneta.
— Pra quê?
— Vamos escrever uma carta para a diretora.
Hermione se levantou, atravessou a sala e foi até a escrivaninha. Ron a observava. Ela voltou até ele, rebolando levemente.
— Você tem um andar gostoso, sabia?
— Sim, mas agora se concentre no trabalho.
— Você é meu trabalho. O trabalho de toda minha vida.
Hermione o puxou pela camisa e depois o beijou avidamente.
— É melhor voltarmos para a carta... – disse ela, ofegante.
— É melhor mesmo.
Separaram-se, e Ron, pegando a caneta, pôs-se a pensar na carta.
— Qual o nome da diretora?
— Qual delas?
— A que recebe esse tipo de solicitação?
— Sinistra. Senhorita Meridian Sinistra.
— Cara Srta. Sinistra – Ron começou em voz alta, enquanto escrevia. — Estou lhe escrevendo a respeito de minha filha, Hermione Granger...
— Qual é a punição para falsificação? – ela perguntou sorrindo.
— Silêncio, você está me atrapalhando – ele murmurou. —... Que pede permissão para fazer os exames finais durante a semana do dia três de junho, ao invés de fazê-los dentro do período previsto no calendário escolar.
— Você devia ser escritor – gozou Hermione. — Seu estilo é tão natural.
— Tá bom, tá bom... Agora quieta – ele sequer levantou os olhos do papel. —... Como a senhorita sabe, Hermione é uma aluna brilhante, exemplar e muito responsável, podendo assim fazer os exames e se comprometer a não revelar as questões às outras alunas que irão fazê-los depois. Eu não solicitaria isso se não tivesse uma boa razão...
— Espero mesmo que seja uma boa razão... – ela interrompeu outra vez.
— Minha irmã, madrinha de Hermione, fará uma viagem para o norte e ofereceu-se para levar a afilhada. Esta é uma oportunidade que não deveria ser descartada, já que, penso eu, acrescentaria à formação de uma jovem muito mais do que permanecer aqui e fazer os exames na época certa. Espero que concorde que a experiência seria bastante proveitosa e não impeça uma viagem que, sem dúvida, vai contribuir para enriquecer a educação de uma de suas alunas. Certo de que sua decisão será acertada, respeitosamente agradeço. Ralph Granger. – Ron terminou de escrever, esticou o braço, segurando a caneta e perguntou: — Que tal?
Hermione estava boquiaberta. Não imaginara que Ron pudesse ser tão criativo.
— Uau, Ron! Está perfeita.
— Não é isso que quero saber. Que tal o estilo da carta?
— Meu pai não tem uma irmã.
— Isso é só um detalhe. O que você achou do apelo à sua boa formação?
— Excelente.
— Acha que ela engole essa?
— O que temos a perder?
— Nada. Precisamos de um envelope.
Hermione foi até a escrivaninha e pegou um envelope, no qual Ron guardou a carta e rabiscou rapidamente "Srta. Meridian Sinistra" na frente. Depois o entregou à Hermione.
— Entregue isto amanhã de manhã, sem falta. O destino do país depende do êxito desta missão.
Ela pegou o papel e foi guardar junto com seus livros. Quando voltou, o encontrou rabiscando algo na outra folha que tinha sobrado.
— O que está rabiscando aí? – perguntou ela, olhando para os desenhos que ele fizera no papel.
— O quê? Isto aqui? – Ron estufou o peito. — Sabia que eu fui o melhor aluno da classe de Educação Artística?
Ele tinha desenhado um coração, em cujo interior podia-se ler: Ronald e Hermione.
— Por causa disso, você vai ganhar um beijo.
E ela o beijou. Provavelmente iria beijá-lo de qualquer maneira. Com ou sem coração, mas ele ficou surpreso e feliz. Aceitou o beijo e Hermione, e os lábios dela afastaram de sua mente qualquer analogia que pudesse ter feito entre sua obra de arte e as tatuagens encontradas nos presuntos flutuantes do 87o. Distrito.
Ele nunca soube quão perto esteve de resolver pelo menos um dos mistérios.
* * *
O nome do segundo presunto era Natalie McDonald.
O corpo foi identificado pelos pais que vieram de Gales a pedido da polícia. Tinha 33 anos e era uma moça modesta, de gosto simples. Saíra de casa há dois meses, rumo à Londres, levando duas mil libras em dinheiro. Disse aos pais que ia se encontrar com uma pessoa amiga. Se tudo corresse bem, dissera a eles, traria o rapaz para conhecê-los.
Aparentemente, as coisas não tinham dado certo. Segundo o relatório da autopsia, a moça tinha ficado no rio pelo menos um mês.
Ainda de acordo com o mesmo relatório, morrera envenenada por arsênico.
* * *
Em sua cidade natal, Pansy já tinha conhecido muitos homens que abaixaram consideravelmente sua expectativa em relação ao gênero. Portanto, não se importava muito com a aparência do misterioso viúvo com quem trocara diversas cartas.
Mas mesmo assim, ela sentia que precisava de cautela, ainda mais num encontro marcado no escuro, com uma pessoa do sexo oposto. Afinal, não era sempre que alguém viajava centenas de quilômetros para encontrar-se com um desconhecido, mesmo que tenha visto a foto desse homem antes, e que ela tenha lhe causado uma boa impressão. Ela própria havia tentado causar uma boa impressão, mandando uma foto um tanto falsa, com uma pose estudada. De qualquer modo, ela não esperava encontrar um cavalheiro em armadura reluzente.
A aproximação é sempre cautelosa. Principalmente no caso de Pansy Parkinson, que há muito esquecera tais cavalheiros, que sabia serem produtos de sua imaginação.
Desta vez, acreditem se quiser, havia aparecido um cavalheiro numa armadura reluzente para Pansy.
Desta vez, graças aos deuses, tratava-se do príncipe encantado, um enorme gigante loiro, com um largo sorriso branco, olhos sorridentes, voz gentil e um corpo de Apolo!
Desta vez, graças aos céus, ela teria a resposta às preces de todas as jovens solteiras, a resposta ansiosamente esperada.
Desta vez seu homem tinha aparecido.
Na estação rodoviária, Pansy parecia ter sido atropelada por um caminhão. Desceu do ônibus e lá estava ele, vindo em sua direção, sorrindo gentil. Sentiu o coração disparar e pensou imediatamente: "Não, ele está enganado, é o homem errado". Mas logo em seguida percebeu que ele era o homem certo, o homem pelo qual esperara toda a vida.
O primeiro dia fora glorioso, definitivamente glorioso. Estar naquela cidade mágica e maravilhosa, embriagada pelo cenário, sentir-se maravilhosamente viva outra vez e sentir, acima de tudo, a presença dele ao seu lado, as tentativas que fazia para tocar-lhe o braço, com gentileza e virilidade. Ele a levou para almoçar, depois para o hotel e não a perdeu mais de vista. Duas semanas se passaram, e ela ainda não podia acreditar no milagre. Absolutamente surpreendida, ela se perguntava se a vida com esse homem seria sempre segura e excitante. Meu Deus, ela estava louca por ele!
De pé diante do espelho num quatro de hotel, esperava por ele. Sentia-se mais bonita. O cabelo parecia mais escuro, e os olhos mais brilhantes; os seios estavam volumosos, e os quadris mais arredondados. Tudo por causa dele. Tudo por causa do que fizera a ela.
Quando o ouviu bater na porta, correu para abrir. Ele usava uma capa azul-marinho, e a chuva desprendera uma mecha do cabelo loiro, que agora pendia na testa e lhe dava um ar de garoto. Ela caiu em seus braços imediatamente, a boca procurando a dele com avidez.
— Que saudade, meu querido...
Ele a apertou contra o peito, recendendo a tabaco, loção após-barba e também a umidade da água da chuva.
— Pan... – ele murmurou e a palavra soou como uma carícia.
Ninguém jamais dissera seu nome desse modo. Ninguém jamais tornara seu nome importante, um nome que era só dela. Ele esticou os braços, ainda lhe segurando as mãos e a olhou de cima a baixo.
— Você está linda. Como pude ter tanta sorte?
Ela nunca tinha resposta para os elogios. No início, suspeitava de que era simplesmente gentileza. Mas havia sinceridade e honestidade nesse homem expressas nos seus olhos. Por mais feia que fosse, sentia que esse homem realmente acreditava que ela era linda, espirituosa e cheia de vida.
— Vou pegar um guarda-chuva – ela avisou.
— Não precisa. É uma chuvinha agradável, Pan, morna... Você se importa? Eu gosto de andar na chuva. Eu gostaria de andar com você na chuva...
— Como você quiser
Pansy olhou para ele. "Devo parecer uma idiota completa", pensou. "Ele com certeza vê adoração em meus olhos e pensa que sou uma criança boboca e não uma mulher madura".
— Aonde... Aonde vamos hoje à noite? – ela perguntou, tentando parecer mais segura.
— A um lugar maravilhoso para jantar. Temos muito que conversar.
— Conversar?
— Sim
Ele percebeu a ruga no rosto dela e piscou os olhos. Os dedos tocaram a testa dela, desmanchando a marca na pele.
— Pare de ser tão séria – ele repreendeu. — Não sabe que eu te amo?
— Ama mesmo? – por um momento a voz de Pansy denotou medo. Tudo parecia perfeito demais.
— Claro que eu te amo, Pan.
O medo desapareceu, e ela enterrou a cabeça em seu ombro com um leve sorriso de felicidade nos lábios. E saíram para caminhar na chuva.
Como ele havia dito, era uma chuva morna, que banhava levemente a cidade. Andaram até chegar a um restaurante. Ele sacudiu a capa quando entraram no recinto. Havia uma bonita morena na recepção. Ele entregou o casaco e ganhou um sorriso da moça, um tanto deslumbrada com o charme dele. Mas ele não retribuiu o sorriso. Voltou-se para ajudar Pansy a tirar o casaco, pendurou-o no braço e procurou o maître.
O maître os conduziu até uma mesa de canto do restaurante. O chão era decorado em preto e branco. As paredes eram de um lindo mosaico italiano, e as janelas de vitral filtravam uma luz matizada para dentro do ambiente. Uma vela queimava no centro da mesa de mármore redondo.
— Gostaria de fazer o pedido agora, senhor? – o homem perguntou.
— Primeiro os drinques – ele respondeu. — Rémy Martin para mim. Pan?
Ela se sentiu perdida pela maneira como ele pronunciou o nome da bebida, com o sotaque francês correto.
— O quê? – perguntou ela, voltando a realidade.
— Quer beber alguma coisa?
— Um uísque sour.
O homem se afastou para providenciar as bebidas, deixando o casal sozinho. Aproveitando o momento, Pansy questionou:
— Sobre o que mesmo você queria conversar?
— Primeiro os drinques – ele disse, sorrindo. — Você gosta desse lugar?
— Sim, é maravilhoso. Tão diferente. Não há muitos lugares assim de onde venho.
— Londres é uma cidade maravilhosa. Para mim, é o lugar mais incrível do mundo.
Os dois conversaram um pouco sobre a cidade até o maître chegar com as bebidas. Após colocar os copos cuidadosamente sobre a mesa, o homem perguntou se desejavam ver o cardápio. Depois se afastou quando o casal fez seus pedidos.
Sozinhos outra vez, o loiro ergueu seu copo. Pansy também.
— A nós – ele brindou.
— Isso é tudo?
— Isso é tudo, Pan... – e novamente a sinceridade nos olhos dele. — É tudo o que eu desejo. Nós.
Ele tomou um longo gole da bebida, de olhos fechados para apreciar melhor seu gosto. Pansy também bebeu, encarando-o como uma boba.
— Sobre o que... Sobre o que você queria conversar?
— Sobre a data – ele disse simplesmente.
— A... A data?
— Quero me casar com você, Pan. – Ele esticou o braço de repente para alcançar a mão dela. — Querida, você respondeu ao meu apelo da revista. Oh, Pan, dezenas de garotas responderam, pode crer... Você não faz idéia de quantas pessoas solitárias há nesse mundo. Mas entre aquelas dúzias e entre todas as centenas e milhares e milhões de pessoas que sobrevivem na face da Terra, nós nos encontramos... E bam!
Dizendo isso, ele bateu com a mão aberta no tampo da mesa. O barulho a assustou e excitou ao mesmo tempo. Ele era dinâmico e imprevisível e, com certeza, tinha uma quedinha pelo drama.
— Assim, – ele continuou — Nós dois começamos a ouvir sinos e você se tornou parte da minha vida; de repente não suporto ficar longe de você, quero que você seja minha para sempre. Eu tenho um emprego, você sabe disso. Um bom emprego. Não sou o homem mais bonito do mundo, mas...
Pansy fez uma cara indignada. Para ela, ele era o homem mais bonito do mundo.
—... Mas sou trabalhador e vou cuidar de você para sempre, Pan. Foi por isso que você veio até aqui, para me encontrar. E nós encontramos um ao outro, meu anjo. E eu não quero mais esperar. Nem mais um minuto.
— O que... O que quer dizer?
— Quero ouvir você dizer que se casará comigo.
— Você sabe que eu farei isso – ela respondeu, segurando a mão dele.
— Amanhã – ele afirmou, categórico.
— Quando?
— Amanhã.
Pansy mergulhou naquele olhar firme e brilhante. Sentiu as pernas amolecerem. Agradeceu por já estar sentada.
— Está bem – ela disse por fim, com voz fraca.
— Ótimo – ele abriu um largo sorriso, depois se levantou, deu a volta na mesa e a beijou bem na hora em que o garçom retornava com a comida. O homem anunciou sua chegada, e os dois se separaram rindo.
— Sinto-me tão bem! – ela exclamou com estrelas nos olhos.
— Eu também me sinto ótimo, Pan. Sinto como se pudesse derrotar a cidade inteira, desarmado. Pan, com você ao meu lado, sou capaz de qualquer coisa, sabia disso? Qualquer coisa!
Começaram a jantar, conversando, trocando juras de amor e fazendo planos para o futuro. Quando ele disse que seria capaz de gastar todo o dinheiro que economizara por anos para levá-la para conhecer o mundo, Pansy não concordou. Sabia como era difícil poupar dinheiro na época em que estavam. Ela sabia o valor de cada libra que ele guardara. Preferia gastar com coisas mais importantes como uma casa e móveis... Depois de ouvir a opinião dela, ele concordou imediatamente, dizendo que usaria suas dez mil libras para comprar e mobiliar um apartamento para os dois.
Pansy então ofereceu suas economias. Não era justo que só ele arcasse com os gastos. Ela havia poupado cerca de cinco mil libras e também queria empregá-las para construir um futuro com o homem de seus sonhos. Planejaram então abrir uma conta conjunta na manhã seguinte e depositar todo o dinheiro de Pansy, para que pudesse render juros. Em seguida, procurariam um tabelião para se casarem. Ela estava tão feliz que teria aceitado qualquer coisa que ele dissesse.
* * *
Havia em Ginny Potter a sensação constante de que não fazia o suficiente por seu marido.
Talvez porque não tivesse o dom da fala. Ela não podia cochichar as palavras valiosas e nem as vulgares, nem nenhuma outra. Ela só podia mostrar a ele o quanto o amava, só podia inventar mil e uma maneiras de provar que pertencia a ele.
Mas mesmo assim, Ginny sentia que talvez estivesse o chateando. Sentia que talvez ele desejasse uma mulher que lhe dissesse coisas no ouvido, mas ela não poderia estar mais enganada. Seu rosto dizia tudo o que ele precisava saber.
A facilidade que ela tinha para improvisar, entretanto, fazia dela uma excelente esposa, cheias de surpresas, deslumbrando e divertindo Harry constantemente, transformando a vida numa eterna festa de aniversário, dia após dia. Na verdade, Ginny Potter seria esse tipo de esposa mesmo se pudesse falar. Ela simplesmente era assim. Ela gostava de agradar o marido. Ela queria agradá-lo. Se ele estivesse satisfeito, ela por sua vez estaria satisfeita também. Ela não teve que ler um livro para saber que o amor era a melhor coisa do mundo.
Talvez por querer tanto agradar o marido, Ginny não parasse de pensar no jovial tatuador chinês e no desenho da borboleta que enfeitava a parede de seu estúdio. Qual seria a reação de Harry se chegasse perto dela numa noite e, ao abaixar a alça da camisola para beijar-lhe o ombro, descobrisse lá uma borboleta preta rendada?
Essa perspectiva animou ainda mais sua imaginação.
Quanto mais pensava nisso, mais gostava da idéia. Tinha certeza (de) que Harry gostaria. E também tinha certeza de que Chen ficaria satisfeito. Sem dúvida alguma, ela própria gostaria muito. Havia algo de terrivelmente arriscado e excitante em ter uma borboleta tatuada no ombro. A simples idéia a deixava exultante.
A única coisa que a preocupava era a dor.
Provavelmente seria muito doloroso, embora Chen parecesse um homem em quem se pode confiar e com certeza não a machucaria. Ele sabia o quanto ela amava o marido. Isso, de alguma maneira, mostrava-se muito importante. A borboleta seria um presente para Harry e deveria ser feita justamente por alguém que compreendesse o amor de uma mulher por seu homem.
"A dor que se dane!", ela pensou. "Vou fazer. Agora!".
Deu uma olhada no relógio. Não, agora não podia. Harry logo chegaria em (a) casa para o jantar. Então, ela foi até a agenda da escrivaninha e olhou as páginas. Tinha horário no dentista depois de amanhã. Mas amanhã teria o dia todo livre.
Ficaria realmente atraente com uma camisola tomara-que-caia?
Sim, se Chen fizesse o trabalho delicadamente, uma borboletinha preta pronta para voar...
Ela se programou mentalmente. Amanhã, depois do almoço. Ela iria visitar Chen. E então, como uma borboleta viva pronta para deslizar pelos céus, ela zanzou pelo apartamento, esperando por Harry, guardando um segredo dentro dela.
* ~ * ~ * ~ *
Continua...
