Capítulo Dois: Apresentação inevitável



O único lugar onde se poderia encontrar Aline Hunter quando não estava em uma missão com o pai era a floresta de pinheiros distante quatro horas num vôo de vassoura do apartamento em Paris.

Caminhava entre as árvores, respirando o ar puro, escrevendo. Eram momentos muito íntimos e prazerosos nos quais Aline pensava sobre seus atos, podendo até divertir-se com alguma brincadeira de esquilos ou distrair-se vendo pássaros desenhando no céu. Não que ela constantemente pudesse estar ali. Às vezes passavam-se meses sem que ao menos visse a neve sobre as copas dos pinheiros ou o vento sacudindo os galhos na primavera. Cada vez mais raras tornavam-se essas horas calmas.

No momento, ela estava sentada entre as raízes do pinheiro centenário no centro da floresta, com um caderno apoiado nos joelhos. Ao lado, pão, uma garrafa de vinho e o tinteiro, o arco e a aljava e a caixa musical (no momento, Jethro Tull aparecia em uma apresentação no Arco do Triunfo). A tarde estava fresca, convidativa a uma longa conversa; entretanto, Aline não tinha amigos e, às vezes, fazia de seu caderno um confidente. Um confidente altamente confiável, embora após anos de uso estivesse se desmanchando.

Um barulho de folhas pisadas tirou sua atenção da página quase cheia. Seus olhos cinzentos procuraram até encontrar um enorme gato tigrado de rabo escovinha chegando sorrateiro. Ela sorriu e estendeu a mão para ele. Em resposta, ele pulou para o colo dela e enroscou-se.

- Onde você tem estado, hein, Mitia Bibikow!? Há séculos não o vejo!

Depois de dar um pedaço do pão molhado no vinho ao bicho, baixou a vista para o caderno e leu o que tinha escrito:

"No início admito que foi difícil perceber a diferença. Por que eu não seria como as outras crianças? Era divertido e ao mesmo tempo vergonhoso. Freqüentava os mesmos parques, as mesmas escolas, mas não via ou sentia o mesmo que elas. Adivinhava pensamentos, previa ações e, acima de tudo, fazia 'coisas' acontecerem. Acontecimentos estranhos fervilhavam ao meu redor. Então, aos sete anos, as orelhas tornaram-se diferentes e eu nunca mais fui ou fingi ser uma criança normal.

Meu pai nunca escondeu nada. Toda a minha vida soube bem quem era. Sabia que era filha de Timoth Hunter, um dos maiores bruxos do mundo, e da meio- elfo Laurëtinwe. Os Elfos puros desapareceram do mundo milhares de anos antes, deixando porém uma descendência entre os mortais. Dessa combinação incomum nos tempos atuais resultaram muitos poderes e muita responsabilidade, como vivem me dizendo os dois.

Minha mãe foi morta quando eu tinha três anos de vida. Lembro de cada detalhe, pois estava com ela quando aconteceu. Meu pai tentou manter-me no mundo dos 'trouxas', afinal eu não apresentava nenhum traço da raça élfica - exceto, dizem alguns, a beleza e os olhos argutos.E ele tencionava proteger-me dos bruxos, mas, quando as orelhas tornaram-se pontudas e minha pele irradiou uma luz prateada num momento de ira, me revelei e ele me ocultou. Não foi tão ruim. Passei a acompanhá-lo em suas missões, aprendendo a usar meus poderes. Assumia minha missão.

Papai tentou transmitir todo o conhecimento de sua luta contra os bruxos negros. Ele via o potencial de uma mistura como a que eu carregava: o olhar profundo, a interação com a natureza e a sensibilidade dos elfos; a força dos humanos e o domínio dos elementos dos bruxos. Jamais deixei de buscar o melhor de cada mundo, de modo que aproveitei o máximo possível no mundo 'trouxa' e no mundo 'mágico' (aprecio cinema e música, sobretudo; e um bom vôo de vassoura.), entretanto, não pertencia a nenhum deles.

Viajei por toda a Terra, em vários mundos que interagem constantemente e as pessoas não se dão conta. Caminhei por estradas subterrâneas e escuras; encontrei criaturas desesperadas e terríveis; busquei o céu e a luz das estrelas para descansar. A maioria das minhas experiências parece surrealista ou inacreditável a qualquer ser humano, bruxo ou não.

Aos dezenove anos eu conheço muito, contudo nunca estive longe de meu pai..."

Pareceu bom para ela, que estava cansada e finalmente pronta. Levantou-se com o amasso nos braços, ajeitou seus pertences na mochila pendurada na vassoura com um comando de pensamento. Deixou o felino descer.

- Não fique longe muito tempo.

"Quando voltar, terá muito que contar." - Ele abanou o rabo em despedida e partiu.

Aline concentrou-se, procurando sentir a presença de alguém. Encontrou apenas turistas acampados próximo ao riacho. Eles estavam tão entretidos que não viram a vassoura planando sobre a floresta com uma jovem montada, seguindo em direção a Paris.