Capítulo 04
Os dias iam passando lentamente. E a mensagem de Xiaolang logo chegou a seu amigo, Eriol Hiiragisawa. O jovem doutor estava na Áustria, numa palestra que reunia grandes gênios da Medicina Ocidental, mas ao ler a carta do amigo, largou todos os compromissos e partiu para a China.
Eriol e Xiaolang eram amigos há muitos anos, desde que a família do jovem japonês mudara-se para Hong Kong. O Sr. Hiiragisawa também era médico e gostava de viajar para obter novos métodos e mais conhecimento naquilo que considerava a mais incrível das ciências. Quando o pequeno Eriol tinha seis anos, ele e sua família partiram para a China, acompanhando o pai numa de suas longas viagens. Chegando lá, se tornaram vizinhos de uma influente família no local, a família Li. Li Shang e Li Yelan tinham cinco filhos e Xiaolang, o mais novo, era da mesma idade de Eriol. Os dois passaram a treinar juntos, a pedido do Sr. Hiiragisawa, e logo deram início a uma estranha, porém forte amizade.
Eriol e Xiaolang eram como água e óleo. Completamente diferentes. Eriol era um menino extrovertido, sorridente e comunicativo, enquanto que Xiaolang era sério, compenetrado, muitas vezes era rude com os outros. Mas as diferenças entre eles tornavam a amizade mais intensa. Quando a guerra contra os hindus explodiu e Xiaolang, contrariando a família, juntou-se às tropas do General Ching, Eriol acompanhou o amigo. E a guerra trouxe grandes conseqüências para os dois jovens.
Ver homens sendo esquartejados, decapitados, mortos a sangue frio, foi impactante para os dois rapazes. Eriol, graças aos estudos que tivera com o pai, fora selecionado para servir no esquadrão que auxiliava os cirurgiões e ajudava os feridos. Xiaolang, por outro lado, por sua habilidade técnica, foi escolhido para uma frente de infantaria. Depois de semanas de batalha, os hindus foram derrotados, mas a vida daqueles dois amigos havia mudado drasticamente.
Xiaolang se enclausurara numa das mansões da família, junto com alguns empregados mais fiéis, enquanto Eriol, decidido a aprender mais para ajudar o amigo, partira para o Ocidente, a fim de adquirir novos conhecimentos. Depois de estudar em na Universidade de Oxford e receber seu diploma de Medicina. E então, partiu para outros países, estudando, pesquisando, curando pessoas.
Esporeando o corcel negro que montava, Eriol sorriu ao lembrar do amigo. Estava contente por Xiaolang finalmente aceitar receber sua ajuda. Tentaria de todos os métodos curar seu grande amigo.
* * *
Todos os dias, Sakura se perguntava porque Xiaolang havia contratado-a para ser sua governanta. Não que ela não gostasse do trabalho... Ela adorava! Estava feliz por conviver com pessoas maravilhosas como Mu Bai e Lau Ma. A mansão Li tinha poucos empregados, mas eles eram leais à seu mestre e se mostravam muito gentis com Sakura. Já havia se passado mais de um mês desde que ela chegara ali, desde o fatídico dia em que seu pai e seu irmão morreram e, apesar da saudade da família, ela se sentia bem. A única coisa que a incomodava era aquele beijo.
Ela deixara a curiosidade de lado depois do ocorrido. Não fazia a menor idéia de como sucumbira a um desejo tão intenso. Mesmo tendo sido criada num estilo diferente do convencional, Sakura jamais permitira esse tipo de liberdade com ninguém. E então como deixara que seu patrão a beijasse com tanto ardor? E o pior de tudo é que ela sequer vira o rosto dele. Para ela, Xiaolang era apenas um vulto, uma sombra, uma figura indistinta... Inúmeras perguntas pululavam em sua mente... Por que Li vivia no escuro? Por que ele jamais permitia que ela se aproximasse? Por que ele a beijara daquele jeito? E por que ela se pegava sempre pensando naquele maldito beijo?
Sacudindo a cabeça, pegou o pincel e tentou retomar o desenho que estava fazendo. Mas não conseguiu se concentrar. As sensações que a assaltaram com tamanha intensidade naquela noite retornaram com furor, fazendo estremecer. O que era aquilo que estava sentindo? Por que não conseguia esquecer aquele simples toque? Um beijo era apenas um toque, certo? Lábios que tocavam lábios, mas que faziam sua pele se arrepiar à simples lembrança. Como algo comum podia parecer excitante, extasiante... Simplesmente perfeito? Queria voltar para os braços de Li e lá ficar para sempre. Sentira-se segura, protegida, confortável, desejável, de uma maneira tão profunda que ainda se assustava ao se recordar.
Passos apressados tiraram Sakura de seu devaneio. Ela virou a cabeça e viu a pequena Yuelin se aproximar. A filha mais nova do cozinheiro Zhang Huike era a mais jovem na mansão e era umas das alunas preferidas de Sakura.
A governanta perguntara ao patrão se podia ensinar os empregados mais interessados a ler e escrever. A reação de Li não fora uma das mais agradáveis e eles tiveram uma pequena discussão que Sakura se lembrava muito bem...
"Queria me ver, Srta. Sakura?", perguntou ele assim que ela entrou no aposento sombrio.
Sakura sentiu o arrepio costumeiro que sempre a assaltava quando ouvia a voz do patrão. "Sim, mestre Li. Eu gostaria de lhe fazer um pedido".
"Diga". Xiaolang nem sequer se mexeu do lugar. Continuava de pé, parado ao lado da lareira apagada. Fazia frio, mas ele não parecia se importar.
Engolindo em seco, a jovem forçou-se a continuar. "Eu queria saber se o senhor permitiria que eu ensinasse aos empregados mais jovens".
"Ensinar? Ensinar o quê?".
"A ler, escrever, pintar, tocar música... O que eles estivessem mais interessados. Tenho muito tempo livre, senhor. O trabalho da casa não é muito, pois todos cumprem bem sua parte. Além disso, eles são muito gentis comigo. Gostaria de poder retribuir de alguma forma".
Um silêncio pesado se seguiu. Sakura desejava que houvessem velas acesas ali para que pudesse ver a expressão de seu patrão. Ela detestava o fato de não poder saber quais seriam as reações daquele homem misterioso. A impressão que tinha era que estava pisando num terreno muito frágil que a qualquer momento racharia e ela provavelmente iria cair num abismo sem fim.
"Quais são suas verdadeiras intenções, Srta. Sakura? Ser gentil e agradável com meus empregados até fazê-los esquecer de sua lealdade a mim? Quer tirá-los de mim, é isso?", a voz dele era baixa e rouca, dando a impressão que ele estava bem zangado.
"Juro que jamais pensei nisso, meu senhor", Sakura respondeu rapidamente, de cabeça baixa. "Só quero ajudar".
"Ajudar?!", ele estava a ponto de gritar com ela. "Ajudar dando a eles meios de se rebelarem contra mim?".
"Não!". Apesar de assustada, Sakura não ia recuar em seu propósito. "Meu pai sempre me disse que a educação é a melhor coisa que se pode oferecer a uma pessoa, mestre Li. Não vejo como o fato de aprender a ler e escrever poderá fazer pessoas que gostam verdadeiramente do senhor afastarem-se. Não darei a eles meios de se rebelarem, mas sim novas ferramentas para viver a vida". Ela calou-se ao perceber que estava enfrentando seu patrão.
A tensão que se formou dentro do aposento podia ser cortada com uma faca. Sakura sabia que não havia mais como voltar atrás e, mesmo se pudesse, não voltaria. Queria fazer algo em benefício daquelas pessoas que a acolheram tão bem. E faria escondido, se Li não permitisse.
"Vejo que além de curiosa, você também é corajosa e determinada, Srta. Sakura. Isso são qualidades admiráveis, mas não em uma mulher. Sinto que poderá ter grandes problemas se não souber se controlar...". A voz dele era totalmente fria e impessoal. "Mas tenho que concordar com a senhorita... Portanto, veja todos aqueles que desejam ter aulas. Peça a Mu Bai que providencie todo o material necessário".
Sakura não podia acreditar. Ele tinha concordado! Momentaneamente, ficou sem palavras.
"Sim, mestre...", disse ela depois de sair de seu torpor. "Farei isso imediatamente. Com sua licença". E depois de curvar-se graciosamente, ela saiu da escura biblioteca.
Isso fora há duas semanas atrás e Sakura ainda não acreditava que Li permitira que ela ensinasse os outros empregados. Sempre que ela se preparava para encontrar seus alunos, temia que Xiaolang voltasse atrás e acabasse com as aulas... Mas nada disso acontecera. Todos estavam animados com as lições e Sakura sentia-se feliz por poder retribuir a gentileza com que era tratada por todos.
"Senhorita Sakura!", disse a menina com voz animada. "Ele chegou! Ele chegou!".
"Quem, Yuelin?".
"O amigo do mestre Li! Acabou de chegar!". Terminando de falar, a garota disparou para a porta principal. Sakura seguiu atrás, não com pressa igual, mas com certeza com a mesma ansiedade, afinal iria saber quem era o misterioso hóspede. Chegou à entrada a ponto de ver os grandes portões de madeira sendo fechados. Um homem se aproximava, montado num belo garanhão negro. A distância não permitia que Sakura visse suas feições, mas ela pôde notar as roupas finas e a postura elegante.
Mu Bai e Lau Ma já se encontravam no pátio, prontos para receber o recém-chegado, que os abraçou alegremente. Uma das centenas de perguntas que Sakura tinha na mente foi respondida naquele momento, diante de tal visão. Todos já conheciam aquele misterioso hóspede, que cumprimentava os demais empregados com a mesma jovialidade. Sakura tinha certeza que ele sabia muito bem o motivo de Li Xiaolang viver escondido entre as sombras.
Ela se aprumou quando o pequeno grupo, formado pelo homem, Mu Bai, Lau Ma e Yuelin, se aproximou. Percebendo que era fitada com curiosidade, Sakura se curvou, fazendo uma graciosa mesura.
"Seja bem-vindo à mansão Li, senhor", disse ela.
"Obrigado", foi a resposta educada. Ele a olhava com atenção, tentando entender o porquê da presença dela ali.
Sakura então resolveu se apresentar. "Sou Sakura Kinomoto, governanta do Sr. Li. Espero que sua estadia aqui seja bastante agradável".
Ele piscou à menção da palavra 'governanta' e pareceu levemente aturdido, mas rapidamente se recompôs e sorriu para Sakura.
"É um prazer conhecê-la, Srta. Kinomoto. Eu sou Eriol Hiiragisawa, um velho amigo de seu mestre".
Sakura pode enfim ter uma boa visão do homem a sua frente. Ele era alto, como seu falecido pai, e usava roupas ocidentais: um grande casaco negro, com gola de pêlo de urso por cima de um paletó escuro. Os cabelos dele eram negros e compridos, presos num rabo de cavalo, na base da nuca. Os olhos brilhavam por trás de um par de óculos de aros redondos, que não escondiam a cor intensa daqueles orbes: azuis escuros, como o céu de meia-noite.
Corando fortemente após perceber que estava encarando o visitante, Sakura indicou o interior da casa. "Seu quarto já está pronto, meu senhor e Mestre Li o aguarda em seus aposentos. Mu Bai irá acompanhá-lo até lá".
"Obrigado, Srta. Kinomoto", ele respondeu, sem parar de fitá-la e sorrir.
"Estarei aqui se precisar de alguma coisa", disse ela, antes de se curvar outra vez.
Eriol entrou e seguiu Mu Bai até seu novo quarto. Ficou surpreso ao deparar-se com a governanta que Xiaolang contratara. Sakura Kinomoto era uma bela mulher. O que dera no amigo para ter uma atitude impulsiva como essa e permitir que uma estranha habitasse em seu refúgio? Só saberia quando o encontrasse.
* * *
Numa sala de treinamento, envolto em suas habituais sombras, Xiaolang meditava. Tentava lembrar todos os acontecimentos da guerra de cinco anos antes que o levaram a ficar naquele estado. Lembrava-se de Ken e de sua traição. Ken... Ken fora seu amigo. Ele, Xiaolang e Eriol entraram juntos para o exército de Ching. Haviam lutado lado a lado por dias, semanas. O que o levara a cometer ato tão vil? Por que lhe estragara daquele jeito?
Levantando-se devagar, Li começou a fazer seu alongamento. Continuara com os treinamentos, mesmo em sua condição, o que o deixara com os sentidos mais aguçados, ciente da realidade à sua volta. Lentamente, aqueceu os músculos com movimentos leves e ágeis. Era um guerreiro e por mais que o destino tivesse lhe pregado uma peça, permaneceria como tal. Quando se sentiu satisfeito, pegou sua espada, a única lembrança que restara de seu pai, e iniciou um exercício mais forçado, explorando tudo de si. A lâmina zunia, cortando o ar de modo letal. Parou o treino quando ouviu a porta deslizar.
"Vejo que continua o mesmo, Xiaolang".
"Eriol!". Os dois homens se cumprimentaram efusivamente. Li não esperava que seu amigo respondesse a seu chamado tão rápido. Virando-se para o assistente, ordenou. "Mu Bai, vá buscar um pouco de chá para nós".
O rapaz fez uma mesura e se retirou em direção à cozinha, deixando os dois velhos companheiros sozinhos para conversar.
"Ainda está em forma, meu amigo", disse Eriol, encarando seu anfitrião. Xiaolang realmente não mudara naqueles cinco anos. Ainda era o guerreiro implacável e temido por seus adversários. Mas algo lhe faltava. O antigo brilho talvez? Não saberia dizer.
"Que tal um pequeno combate? Apenas por diversão? Como nos velhos tempos...", apesar de não sorrir, Li estava satisfeito com a chegada de Eriol.
"Ah, não!", o médico riu. "Decerto, eu perderia! Não quero passar esta vergonha. Não pego numa espada desde que parti para a Inglaterra".
"Você está sendo um covarde, Eriol", caçoou Xiaolang.
Iniciaram uma conversa amena até se calarem quando Mu Bai retornou com o chá.
"Srta. Sakura acrescentou uns biscoitos e doces, mestre", disse o rapaz, depositando a bandeja na mesa baixa, diante do patrão.
Ao ouvir o nome da governanta, Eriol observou a reação de Xiaolang, procurando por algum sinal, alguma pista do motivo pelo qual o amigo resolvera contratá-la. Viu o rosto de Li se contrair levemente. Mas apenas um observador atento que conhecesse bem o guerreiro teria notado isso.
"Diga-me uma coisa, Xiaolang...", disse Hiiragisawa depois que Mu Bai serviu o chá e saiu. "Com tantos empregados bons e leais, por que você precisa de uma governanta. Lau Ma não está cumprindo com suas obrigação corretamente?".
Li esforçou-se para não engasgar na quente bebida. "Você a viu?", foi a única coisa que perguntou.
"Sim", respondeu Eriol, ainda de olho no amigo. "Ela foi me receber na porta, assim como os outros empregados. Ela é muito bonita. Você realmente tem bom gosto para mulheres".
Soltando um 'humpf' zangado, Xiaolang colocou a xícara na mesa e voltou-se para o recém-chegado. "Eu tive que acolhê-la, Eriol. A família dela foi atacada por um grupo de assaltantes. Mu Bai a salvou, quando voltava de Xangai. Ela não tem mais ninguém no mundo". Percebendo que já falara demais, o guerreiro se calou.
"Assaltantes? Nestas redondezas?".
"Sim. E adivinha quem é o líder?".
"Quem é?".
"Ken".
Eriol ergueu uma sobrancelha, sua expressão fria e soturna, depois de ouvir aquele nome. Jamais perdoaria Ken por sua traição. Jamais. "Como sabe disso?", perguntou, depois de uns segundos em silêncio.
"Nos últimos meses, tenho recebido notícias de um bando de marginais, que andava agredindo fazendeiros e camponeses. Algo me dizia para investigar isso. E foi o que fiz. Reuni um bom grupo de homens, que recolheram muitas informações e descobriram que Ken estava por trás de tudo. Mu Bai voltava de uma dessas investigações quando se deparou com o ataque à caravana da família de Sakura. Chegou a tempo apenas de ajudá-la".
"E como ele sabia que era o grupo de Ken?".
"O homem que Mu Bai matou tinha uma tatuagem".
"Não me diga. Uma serpente preta?".
"Exato. Ken está marcando todos seus comparsas com esta tatuagem". Xiaolang respirou fundo antes de continuar. "Ele está atrás de mim, Eriol. Por isso preciso de sua ajuda".
"Vou precisar de alguns materiais e de um lugar para montar meu laboratório", respondeu o médico depois de ponderar por alguns instantes. "Você terá que me contar tudo o que aconteceu naquele dia, Xiaolang. Tudo. Qualquer coisa, por mais insignificante que seja, deve ser bem avaliada e considerada".
"Está certo. Faça uma lista de tudo o que precisar, que mandarei Mu Bai e Lau Ma providenciarem".
"E quanto à Srta. Kinomoto?".
"O que tem ela?". Novamente, rosto de Xiaolang se contraiu. Desta vez de forma mais perceptível.
"Talvez ela possa nos ajudar...", Eriol não pode continuar, pois foi imediatamente interrompido por Li.
"NÃO!", exclamou o guerreiro. "Ela não sabe de nada e deve continuar sem saber".
"Mas, Xiaolang...".
"Sem 'mas', Eriol. Não quero que ela saiba. Não quero que ela tenha pena de mim. Não quero".
Eriol sabia que não tinha como argumentar aquele assunto com Xiaolang. Se ele não queria envolver a jovem governanta, tudo bem. Mas seria difícil esconder dela por muito mais tempo a verdadeira condição de Li. Ainda mais porque em breve eles começariam com o tratamento.
"Bem, a decisão é sua, meu amigo", ele disse por fim. "Quero apenas dizer que acho que está agindo errado. Muito errado". Colocando-se de pé, Eriol olhou uma última vez para o amigo. "Vou para meu quarto, me refrescar e descansar um pouco. Foi uma viagem longa e cansativa. Conversaremos melhor mais tarde".
"Certo", foi a resposta curta e seca de Xiaolang.
* * *
N/A: Bem, não tenho muitas notas desta vez... Este capítulo, eu dedico ao Marcelo, por todo apoio, incentivo e ajuda que tem me dado. Obrigada, amigo! Quero também agradecer imensamente as pessoas que estão acompanhando a história e que mandaram um e-mail (ou deixaram um review). E também àqueles que não deixaram nenhum comentário, mas também estão lendo. Muito obrigada.
