Capítulo 05
Xiaolang não sabia o que mais o irritava: se era o fato de Muu Bai ainda não ter retornado com os materiais pedidos por Eriol, ou se eram as risadas que escutava da janela de seu quarto todas as tardes desde que o amigo havia chegado. Estava treinando em dobro para tentar não pensar em Eriol e Sakura passeando por seus jardins. Sentia vontade de quebrar a cara do amigo. Mas não tinha esse direito, afinal nada o ligava a jovem japonesa. Ela era apenas sua governanta. O fato de terem trocado um beijo não influenciava em nada, pois jamais ouvira uma palavra a respeito disso da parte dela.
E o que Sakura faria com um homem como ele? Obrigado a viver na penumbra, isolado do mundo, contando apenas com a caridade de empregados fiéis. Sakura merecia um homem inteiro, completo e não um incapacitado como ele. Estava certo disso. Mas então por que raios não conseguia parar de pensar nela?
Pegou a espada e começou uma seqüência de golpes que daria inveja a qualquer lutador. Não parou quando ouviu a porta deslizar.
"Você me parece nervoso, Xiaolang. Algo o aflige?".
A voz de Eriol foi como uma faísca num rastilho de pólvora. Li só percebeu o que estava fazendo depois de ter acertado um soco direto no rosto do companheiro. Aquilo, com certeza, fora um golpe baixo, mas estava se sentindo bem melhor.
"Pode me dizer por que me bateu?", o médico continuava tranqüilo, apesar da súbita explosão de Xiaolang.
"Fiquei com vontade", foi a resposta.
"Ah... Quer dizer que quando acorda com vontade de socar alguém, você vai lá e bate? É isso?", Eriol perguntou enquanto juntava seus óculos, que haviam caído no chão.
"Não, não é isso. E você sabe muito bem".
"O que eu sei muito bem?".
"Ora, Eriol! Não se faça de desentendido, pois sei muito bem que de tolo você não tem nada. Você está fazendo isso de propósito!", exclamou Xiaolang, muito zangado.
"O que eu estou fazendo de propósito?".
"Se você continuar com isso, eu vou lhe bater outra vez...", o guerreiro ameaçou, mas o médico apenas riu.
"Admita que está com ciúmes, meu caro!".
"Eu?!", Xiaolang estarreceu-se. "Com ciúmes?! Você está delirando!".
"Não estou delirando, amigo. Estou coberto de razão. Você está com ciúmes da Srta. Kinomoto. Porque ela passa mais tempo comigo do que com você". Eriol falou isso com calma, como se comentasse a respeito do tempo.
"Não estou com ciúmes de Sakura...", Li falou por entre os dentes.
"Então me dê um bom motivo para ter me batido". Eriol cruzou os braços.
Xiaolang abriu a boca para responder, mas nada saiu. Mas o que poderia dizer afinal? Sentia vontade de bater em Eriol desde que descobrira sobre aqueles passeios vespertinos. Queria estar no lugar do amigo, de braços dados com Sakura, aproveitando o calor da tarde, sentir-se vivo novamente e não ficar preso ali entre as sombras.
"Você gosta dela, Xiaolang". Não era uma pergunta. Era uma afirmação.
"Mas isso não vai mudar em nada minha condição".
"Não, não vai. Mas fará você perceber o mundo por um novo ângulo. E se por um acaso do destino, eu não conseguir curá-lo... Você terá Sakura ao seu lado".
"Não quero que ela fique comigo por piedade, Eriol".
"E como vai saber que ela sente apenas piedade por você, se não a deixa se aproximar?".
Xiaolang ficou em silêncio, refletindo as palavras do amigo. Será que Sakura poderia gostar dele, mesmo sob a condição em que se encontrava? Eriol deve ter notado seu conflito interior, pois se retirou sem fazer barulho.
* * *
A vida pulsa durante o dia. Pessoas trabalham, estudam, andam, comem, brigam, conversam, brincam, riem, choram, aumentando ainda mais essa confusão que são os dias. E, durante a noite, elas aproveitam para descansar, dormem e sonham, na esperança de que a manhã seguinte seja melhor que a anterior.
Porém as noites também têm sua agitação. Enquanto a maioria das pessoas dorme, embaladas nos braços de Morfeu, outras saem de seus refúgios e esconderijos, ansiosos por seus momentos à luz da lua. E assim também era o vulto escondido sobre uma árvore, atrás da casa do prefeito de Hong Kong. Criatura noturna, ele estava à espreita, esperando o momento ideal, que surgiu quando um dos guardas que fazia a ronda passou ali. Num piscar de olhos, pulou sobre o homem, acertando o pescoço com um golpe certeiro. O pobre coitado sequer percebeu o que o acertara.
Silenciosamente, correu até o muro e o escalou sem dificuldades. Caindo dentro da propriedade, esgueirou-se para a casa, escondido pelas sombras. Encostou-se a uma coluna e apurou os ouvidos, para tentar descobrir se sua presença fora notada. Escutou apenas os roncos do dono da casa.
Foi até a porta e, tirando uma adaga da cintura, encaixou-a no trinco. A lâmina da fria brilhou ao luar. Não demorou muito e ouviu um clique baixinho. E, em silêncio, entrou na abastada residência.
Todos na cidade sabiam que o prefeito era muito rico, visto que o gorducho fazia questão de ostentar seu luxo, andando pelas ruas com túnicas bordadas com fios de ouro e os braços cobertos por jóias cheias de pedras preciosas. Mas em pouco tempo, não sobraria mais nada para ele exibir. O vulto deslizava pela casa sem fazer barulho, confiscando tudo de valor que encontrava. Desde dinheiro, jóias à louças, pratarias e esculturas.
Quando terminou seu trabalho, a misteriosa pessoa saiu tão sorrateiramente quanto entrou carregando sacolas pesadas. Mas antes deixou para o prefeito 'bolo-fofo' uma lembrancinha...
* * *
Era uma noite normal para Sakura. Ela supervisionara o preparo do jantar e agora, via Pei Pei e Yuelin servirem a mesa. Todos os empregados faziam as refeições juntos, na área da mansão que lhes era reservada. As duas meninas tagarelavam animadas, ansiosas pela aula que teria logo mais. Sakura estava lhes ensinando a tocar hu-ch'in, uma espécie de violino tocado verticalmente, pertencente às irmãs de Xiaolang.
Um sorriso brotou nos lábios da jovem japonesa diante da visão das duas meninas à sua frente. Elas eram tão cheias de vida, esfuziantes, como duas pequenas borboletas, prontas para voar pelo céu. Sakura gostaria de também poder ser assim, alegre e despreocupada, vivendo com seus pais e irmão na casa simples que possuíam no Japão. Mas sua família morrera e ela ficara sozinha, contando apenas consigo mesma e mais ninguém.
"Srta. Sakura?".
A voz de Mu Bai a trouxe de volta de seus devaneios. Sobressaltada, voltou-se para o assistente de seu senhor.
"Sim?".
"Mestre Li solicita sua presença nos seus aposentos, senhorita".
Sakura não acreditou no que ouvira. "Como?", perguntou, franzindo as sobrancelhas.
"Nosso mestre pede que se junte a ele para o jantar, Srta. Sakura".
"Ele quer que eu jante com ele e o Sr. Hiiragisawa?".
"Sim, senhorita".
"Por quê?". Sakura não entendia nada. O que dera em Li para chamá-la para jantar? Já vivia na mansão há mais de um mês e ele jamais fizera um pedido desse, mesmo depois daquele beijo...
"Não sei dizer, senhorita...".
"Está certo. Vamos...". Ela ajeitou sua túnica e seguiu atrás do jovem até a ala oeste.
A ala privativa de Xiaolang era como uma pequena casa dentro da mansão. Havia o aposento principal, os aposentos de hóspedes, o quarto de banho, a biblioteca e a sala de jantar. E foi para esta que Sakura e Mu Bai se dirigiram. Quando lá chegaram, a jovem se assustou. O cômodo, geralmente escuro, estava iluminado por algumas velas. Não eram muitas, mas já era o suficiente para iluminar o lugar. E para Sakura ter sua primeira visão de Li Xiaolang.
Ele era um homem alto, como seu irmão. Lembrando-se da noite em que o vira treinar com Muu Bai, sentiu o rosto esquentar. Recordava-se claramente do corpo esguio, com músculos definidos e ombros largos. No entanto, o rosto foi uma surpresa para ela. Em sua fértil imaginação, Sakura pensara coisas horrorosas a respeito de seu mestre. Feições deformadas por cicatrizes. Ou então que faltava um olho ou um pedaço do rosto... Mas podia constatar finalmente que Xiaolang era um homem normal. E bonito. Os cabelos eram castanhos e rebeldes, com uma franja caindo sobre os olhos. Tinha o nariz afilado, olhos castanhos, a boca fina era bem desenhada e o queixo quadrado.
"Boa noite, Srta. Sakura", disse Eriol se aproximando. "Que bom que veio se juntar a nós".
"Hã? Ah... Boa noite, Sr. Hiiragisawa... Mestre Li...", ela se curvou, soltando a respiração. Nem havia percebido que tinha a prendido. "Obrigada pelo convite".
"Não precisa agradecer, Srta. Sakura", respondeu Xiaolang. "Por favor, vamos sentar e comer".
Os três se acomodaram e, com eficiência, Mu Bai começou a servir os pratos. O jantar consistia de talharim de arroz, acompanhado de postas de salmão ao molho, temperados no alho poro e gengibre e uma salada com cogumelos frescos, rabanetes e tomates. Como sobremesa, pãezinhos de canela. Tudo isso acompanhado por um delicioso vinho.
O clima na sala era tenso, afinal Sakura não tinha idéia do porquê estava ali e Xiaolang pensava o tempo todo em como fora um idiota aceitando as sugestões do amigo. E se ela percebesse? O que ele faria? Sobrou para Eriol a difícil tarefa de animar o ambiente. Contando histórias engraçadas de seu tempo na Universidade de Oxford, o médico conseguiu a façanha de relaxar a jovem governanta.
Ao final da refeição, Eriol pediu a Sakura que tocasse um pouco de música. Ele já a ouvira tocando o hu-ch'in e sabia que ela tinha muito talento. A pedido de Li, Mu Bai foi buscar o instrumento, voltando rapidamente.
Logo uma melodia suave encheu o recinto. Fechando os olhos, Xiaolang entregou-se à música, recordando-se de seu passado, dos tempos felizes vividos com o pai, a mãe e as irmãs... Queria muito se sentir amado daquele jeito novamente. Mas o destino lhe pusera um grande obstáculo para ultrapassar.
Sakura tocava com habilidade. Seus dedos tiravam belas notas das cordas do hu-ch'in, compondo uma ária harmoniosa. Também se entregando àquela sensação de paz que a música sempre lhe proporcionava, a jovem divagou em seus desejos mais profundos, que era ter sua própria família. Filhos para cuidar, um marido para amar. Quando finalmente a peça terminou, ela abriu os olhos, percebendo que estava sozinha com Xiaolang na sala. Os dois ficaram em silêncio. Ela sem saber o que dizer e ele com medo de dizer alguma coisa errada.
"Você toca muito bem, Srta. Sakura...", falou ele por fim. "Espero poder ter a oportunidade de ouvi-la mais vezes".
"Claro, mestre Li", respondeu a jovem de cabeça baixa.
"Virá jantar conosco amanhã?", a voz dele estava meio trêmula, traindo a ansiedade que sentia.
Mas Sakura não percebeu isso, pois estava igualmente nervosa. "Amanhã?".
"Sim... Er... Eu apreciei muito sua companhia... Sinto muito por não termos feito isso antes...".
Ele parecia sincero. E Sakura disse a única coisa que veio à sua mente naquele momento. "Eu adoraria, senhor".
Ficaram quietos outra vez. Mas não era um silêncio tenso ou constrangido. Era um silêncio agradável. De cabeça baixa, Sakura arriscou um olhar de relance em seu patrão. Ele estava sentado na posição principal da mesa, com uma postura rígida e alerta. Porém seus olhos pareciam sem vida, perdidos... Havia algo de estranho naquele olhar.
* * *
Eriol e Mu Bai espiavam o casal pela fresta da porta. O médico tinha certeza que se Xiaolang passasse mais tempo com Sakura, acabaria abrindo seu coração. E saindo daquelas sombras.
"Acha que vai dar certo, Sr. Eriol?".
"Talvez, Mu Bai. Tudo depende deles".
"Seria muito bom para Mestre Li encontrar alguém que cuide dele... Depois de tudo o que aconteceu...".
"Eu sei disso, meu caro. E torço para que meu amigo encontre a felicidade. Acho que a Srta. Sakura pode muito bem preencher o vazio que há na vida de Xiaolang".
Mu Bai concordou com a cabeça. "E o senhor, Sr. Eriol? Não quer encontrar alguém que lhe dê felicidade também?".
"Claro que sim, Mu Bai", Eriol sorriu. "Sei que a mulher da minha vida está aí em algum lugar... Em breve, irei encontrá-la, tenho certeza".
* * *
Sato observava os movimentos da cidade naquela manhã. Obedecendo às ordens de Ken, ele estava seguindo o grupo que saíra da Mansão Li e rumara até o mercado. De onde estava, podia ver claramente Eriol Hiiragisawa, Sakura Kinomoto, Lau Ma e Mu Bai. Estava muito longe para ouvir o que falavam, mas sabia que estavam procurando algumas ervas, pois era naquele local do mercado que estas eram vendidas.
Não entendia o motivo pelo qual seu chefe queria manter vigilância constante nos moradores da Mansão Li. Também não entendia o ódio de Ken por Li Xiaolang. A única coisa que sabia era que os dois haviam lutado juntos na guerra de anos atrás. O que acontecera para que os dois guerreiros se voltassem um contra o outro?
Andando pelo meio da multidão, Sato mantinha os olhos fixos no grupo mais a frente e também podia escutar as conversas e fofocas que rolavam à sua volta. As pessoas comentavam sobre o assalto que ocorrera na casa do prefeito na noite anterior.
"Levaram todas as coisas de valor. Limparam a casa dele", disse um homem.
"E o ladrão ainda teve a ousadia de deixar seu nome pintado na parede...", falou uma mulher.
"É verdade... Disseram que estava escrito 'Black Linx'. O que significa isso?", perguntou sua companheira.
"Não sei", disse a primeira mulher. "Mas eu gostei desse cara. Aquele gordo ganancioso bem que mereceu".
As notícias eram tantas que Sato escutava mesmo sem querer. Não se comentava outra coisa na cidade. A casa do prefeito fora assaltada por um ladrão chamado Black Linx, Lince Negro. O ousado gatuno entrou na luxuosa residência, pegou tudo de valor e saiu, sem ninguém perceber. E ainda assinou seu nome na parede. A única pessoa que podia ter avisado sobre o assaltante foi um dos guardas da ronda noturna, mas este só acordara de manhã com uma terrível dor de cabeça, graças a um golpe que ele nem sabia de onde viera.
Uma idéia começou a brotar na mente de Sato. Se Ken queria saber tudo o que se passava dentro da Mansão Li, uma olhadinha lá dentro não seria ruim. Se conseguissem encontrar esse tal de Black Linx, poderiam convencê-lo a entrar na casa de Xiaolang e espiar. Tinha que conversar com Ken sobre isso assim que voltasse para a fazenda.
* * *
N/A: As coisas estão começando a esquentar. Finalmente, Xiaolang abriu uma brecha em sua concha de proteção para Sakura entrar. Será que a jovem vai conseguir conquistar o coração do guerreiro? E afinal, o que há com Xiaolang? E quem é este novo personagem misterioso, Black Linx? Nossa... Ainda tem tantas coisas para acontecer...
Bem, quero dizer também que a partir dessa semana, os capítulos de 'Luz da Minha Vida' e dos outros fics que estou escrevendo ('O Vigarista' e 'Reencontros' – que podem achar na seção de Livros, em Harry Potter) vão demorar um pouco mais para serem postados, devido a alguns compromissos que terei este mês. Tentarei colocar pelo menos um capítulo por semana.
Quero agradecer também a todos que estão acompanhando esta história, às pessoas que me mandaram e-mails e às que deixaram comentários. Obrigada a todos. Um grande abraço e até o próximo capítulo.
