Capítulo 06
Sentada em sua cama, no escuro da noite, Sakura pensava nos acontecimentos passados. De como fora parar na mansão Li e como se envolvera com Xiaolang e as outras pessoas que viviam ali: Eriol, Lau Ma, Mu Bai, Pei Pei, Yuelin... Sentia-se como se fizesse parte de uma grande família.
Mas o que estava assombrando a jovem era o novo e estranho comportamento de Xiaolang. O guerreiro, sempre introvertido e fechado, parecia ter aberto um pouco a barreira de proteção que erguera em volta de si mesmo. E assim, Sakura pôde perceber o que havia de errado com seu patrão.
Xiaolang era cego.
Depois do primeiro jantar juntos, Sakura teve certeza disso. O homem que salvara sua vida e lhe dera um emprego, um lugar para dormir não podia ver a luz. Isso causava um estranho aperto no peito de Sakura.
Apoiando a cabeça nos joelhos, ela suspirou e começou a lembrar-se da tarde anterior, quando ela, Eriol, Lau Ma e Mu Bai voltaram da feira.
Mu Bai carregou todo o material comprado por Eriol para o quarto que o jovem médico transformara em uma espécie de laboratório. Xiaolang, que passara o dia inteiro fechado em sua sala de treinamento, apareceu algum tempo depois, pronto para começar seus primeiros exames. Assim que percebeu a presença de Sakura no recinto, tentou expulsá-la dali.
"Saia daqui, Srta. Kinomoto", ele grunhiu. "Você não tem nada a ver com isso".
Apesar de magoada com o tom de voz usado por ele, Sakura não saiu do lugar. "Não sairei", respondeu ela, com firmeza. "Quero ajudar".
"Não preciso de sua ajuda. Saia!", ele exclamou.
"Não!".
"Quer ficar e se divertir às custas do sofrimento alheio, não é, Srta. Kinomoto?", Xioalang disse em um tom calmo, mas uma veia pulsante em seu pescoço mostrava bem como ele estava irritado. "Você e sua maldita curiosidade! Quer mesmo saber o que eu tenho? Pois muito bem, Srta. Kinomoto, aqui está sua resposta: eu sou cego. Está contente agora?".
Ouvir aquelas duras palavras foi um choque para Sakura. Ele era cego. Agora as coisas começavam a fazer sentido. Os treinos noturnos, a casa sempre fechada, o afastamento e isolamento. Sim, tudo se encaixava perfeitamente. Mas Sakura não estava feliz em saber a resposta. Na verdade, sentia-se muito triste.
Um pesado silêncio se seguiu. Eriol e Mu Bai não acreditavam que Xiaolang finalmente revelara seu tão guardado segredo de forma tão repentina.
"Não, não estou contente, meu senhor", Sakura falou depois de alguns segundos, surpreendendo todos. "Jamais poderia me alegrar com seu infortúnio".
Xiaolang ficou sem palavras. Mesmo não podendo vê-la, sabia que Sakura estava triste. A voz trêmula dela era um sinal claro disso. Ela ficara, apesar da maneira rude como a tratara.
"Por favor, deixe-me ajudar", a ouviu pedir. Como poderia negar? Assentindo com a cabeça, deixou-a ficar.
"Xiaolang", Eriol disse, chamando a atenção do casal para si. "Conte-nos como foi que tudo aconteceu".
Li ficou parado no lugar, com olhar perdido e sem vida.
"Foi durante a batalha final contra os hindus", disse ele por fim. "Nosso pelotão havia massacrado o contingente deles quando fomos surpreendidos por uma grande cavalaria avançando pelo norte. Estávamos em maior número, porém estávamos muito cansados. Éramos um alvo fácil. Movi meu cavalo e galopei de encontro ao homem que parecia ser o líder. Se pudesse derrotá-lo, talvez houvesse uma chance de salvar os meus companheiros. Mas não esperava que fosse meu novo inimigo fosse Ken".
Passando as mãos pelos cabelos, Xiaolang respirou fundo. As lembranças ainda lhe causavam sofrimento.
"Não podia imaginar que um próprio companheiro poderia nos trair. Perguntei porque motivo ele estava passando para o lado dos hindus. Ele olhou para mim e riu, dizendo que sua espada estava a serviço daquele que pagasse melhor. Isso inflamou a minha ira. Começamos a lutar e apesar do cansaço, eu estava ganhando. Os homens pararam de lutar para assistir nossa disputa de vida ou morte. Foi quando ele jogou algo nos meus olhos, um líquido viscoso, com um cheiro forte... Não sei o que era...".
Eriol, Sakura e Mu Bai escutavam com atenção. Nem ousavam piscar.
"Por alguns instantes, eu me distraí e foi o suficiente para Ken se aproveitar e me atacar com fúria. Levei algum tempo para me defender. Meus sentidos estavam atrapalhados e minha visão começou a borrar. Em volta de mim, as coisas se transformaram num pedaço do inferno. Eu podia ouvir os gritos, os sons das espadas se chocando... Meus homens estavam lutando ao meu lado e isso me deu força para superar Ken. Consegui derrotá-lo, mas ele fugiu. Por fim, general Ching e seus homens chegaram ao campo de batalha. Fui levado até a barraca onde você estava cuidando dos demais feridos, Eriol. E na manhã seguinte, já não enxergava mais nada".
As lágrimas que Sakura se esforçara para não derramar durante todo o tempo em que ficara no laboratório de Eriol e ouvia o relato de Xiaolang sobre como tudo começou, finalmente venceram a batalha e escorreram livres pelas bochechas da jovem. Deitando-se, chorou até adormecer.
* * *
Eriol também estava com dificuldades de conciliar o sono. As palavras de Xiaolang martelavam em sua mente. Aquele óleo fora o responsável pela cegueira do amigo. Mas de que substância ele era feito? Como poderia curar Xiaolang?
Revirando-se na cama, suspirou. Aquela seria uma longa noite.
* * *
Black Linx cavalgava para fora da cidade de Hong Kong. Seu plano fora um sucesso. Conseguira entrar na casa do prefeito e roubar todo dinheiro e objetos de valor. Mas o que lhe dera maior satisfação foi ver os rostos felizes das pessoas que ajudara naquela manhã.
Roubar era sua profissão, mas fazia isso apenas para ajudar os mais pobres e necessitados. Era uma pessoa com boas condições financeiras, não precisava de seus furtos para sobreviver. No entanto, tomara gosto por aquela vida de aventuras.
Era uma criança pequena quando sua mãe morreu. Sem ter para onde ir, passou a viver nas ruas, vivendo de esmolas e da caridade alheia. Um dia, conhecera um grupo de assaltantes. Eles lhe ofereceram uma boa gratificação se os ajudassem. Tudo o que tinha que fazer era entrar por uma janela e abrir-lhes a porta. Aceitou a proposta. E naquela noite, sua vida no mundo do crime começara. Alguns meses depois, um parente distante de sua mãe apareceu. Era um homem muito bondoso, dizendo ser seu avô. Tirara-lhe das ruas e lhe dera um lar, roupas novas e limpas, educação. Mas, o estrago já havia sido feito. Já tinha tomado gosto por seu 'emprego'. Então, passou a viver duas vidas: de manhã, entre os nobres e intelectuais; à noite, entre prostitutas e assaltantes.
Aproveitava as viagens que fazia com o avô para roubar lugares diferentes. E foi seu avô quem lhe trouxera para Hong Kong, há algumas semanas atrás, a procura de uma prima perdida. E desde que chegara à cidade, vira a ostentação e soberba do prefeito. Assaltá-lo foi realmente um imenso prazer.
Barulhos de cascos chamaram sua atenção. Espreitando atentamente a sua volta, tentou descobrir quem estava lhe seguindo. Instigando sua montaria, passou a galopar freneticamente na estrada até atingir um bosque. Talvez conseguisse despistar seu perseguidor entre as árvores. Mas não foi uma boa idéia. Na floresta, haviam mais homens lhe esperando. Caíra numa armadilha.
Sentiu o corpo ser preso por um laço, largando as rédeas, perdeu o controle do cavalo e caindo no chão em seguida. Viu os desconhecidos se aproximarem. Era um grupo de oito no total. O que parecia ser o líder se achegou e se ajoelhou a seu lado.
"Vamos ver agora quem é o tão comentado 'Black Linx'...", disse o homem antes de arrancar sua máscara num único movimento. "Uma mulher!?".
* * *
Ken estava sentado na varanda da fazenda que tomara como covil, esperando o retorno de Sato e seus homens. Estava ansioso para conhecer o ladrão que seu braço direito comentara desde que fora à cidade. Seria ele realmente capaz de entrar na mansão de Li Xiaolang?
Levantou-se quando ouviu o tropel dos cavalos. O grupo todo estava de volta, acompanhado por uma figura inusitada. Uma mulher de longos cabelos negros, que balançavam ao sabor do vento, conforme sua formidável montaria trotava.
"Sato, meu caro... Que surpresa é esta que me trazes?", perguntou, cruzando os braços, quando Sato parou a sua frente e apeou.
"Ela é Black Link, Mestre Ken", respondeu o subalterno.
Ken fitou a amazona com indisfarçável desejo. Era uma linda mulher. Os cabelos negros faziam um belo contraste com a pele clara. Os olhos grandes eram de uma cor que Ken jamais vira em alguma garota antes: violeta. Os lábios estavam pressionados numa linha fina e as sobrancelhas escuras franzidas num claro sinal de desgosto.
"Você está me dizendo, Sato, que esta mulher é o assaltante que limpou a casa do prefeito na noite passada?".
"Exatamente, senhor".
"Isso é realmente uma surpresa", Ken sorriu, tirando a corda que prendia a ladra das mãos de Sato. Com um puxão forte, fez a jovem cair da sela. Aproximando-se, pegou-a pelos cabelos, erguendo a cabeça dela de modo que pudesse fitá-la nos olhos.
"Muito bem, Black Linx...", disse, correndo o indicador da mão livre pela bochecha pálida dela. "Qual é o seu verdadeiro nome?".
"Não direi nada, seu porco", replicou ela, cuspindo no rosto de Ken.
Ken estreitou os olhos e puxou os cabelos dela com força, fazendo gemer de dor. "Eu perguntei qual é seu nome, vadia!", ele exclamou. "Responda ou vou espancá-la!".
"Daidouji. Tomoyo Daidouji", ela respondeu entre os dentes.
"Tomoyo Daidouji... Belo nome... Tão belo como você", Ken a acariciou outra vez, seus olhos emanando luxúria. "Eu tenho um serviço pra você, Tomoyo Daidouji. E espero que seja cumprido à risca, pois não hesitarei em matá-la se algo sair errado". O medo que surgiu nos olhos violetas o alegrou imensamente.
* * *
A rotina na mansão Li sofreu algumas alterações nos dias que se seguiram. Eriol, ajudado por Sakura e Lau Ma, começou um estudo para descobrir que tipo de substância poderia cegar uma pessoa. Ele tinha certeza que o tal líquido que Ken jogara nos olhos do amigo era responsável por tudo.
Enquanto isso, Xiaolang e Mu Bai treinavam até a exaustão. O guerreiro queria esquecer que todos já sabiam de seu grande segredo. Não queria a pena de ninguém. Isolara-se do mundo para não ter que agüentar a compaixão das pessoas, mas sabia que não conseguiria se curar sem a ajuda de Eriol e de Sakura. Estava no meio de um treino com espadas quando ouviu o barulho da porta da sala de treinamentos se abrindo.
"Mestre Li. Mu Bai". Era Sakura. "O almoço está pronto".
"Terminamos isso mais tarde", disse Li, abaixando sua katana.
"Certo, meu senhor. Com sua licença". Muu Bai se curvou, mesmo sabendo que seu mestre não podia ver e se retirou, deixando Xiaolang e Sakura sozinhos.
"Precisa de ajuda, senhor?", perguntou Sakura após alguns momentos de silêncio.
"Não", foi a resposta curta e seca.
Sakura engoliu em seco, segurando as lágrimas que estavam se tornando comuns desde que soubera que Li era cego. Permaneceu quieta, vendo seu senhor limpar cuidadosamente as espadas e guardá-las no paiol, juntamente com as outras armas. Sempre se admirava com as habilidades de Xiaolang. Ele se movia com confiança, sem medo, como se ainda fosse capaz de ver.
"Por que não foi embora, Srta. Kinomoto?", ele perguntou de repente, sem se virar para ela.
"Como?", pega de surpresa, Sakura não soube o que responder.
"Por que não foi embora? Por que não partiu depois que soube qual era o meu problema?". Xiaolang questionou novamente, ainda de costas.
"Acha mesmo que eu iria embora depois que descobrisse tudo?", ela estava pasma.
"Claro. Por que você ficaria?".
"Quero ficar para ajudá-lo, meu senhor".
"Por que você quer me ajudar? Só por que sou seu patrão ou por piedade?".
Mordendo o lábio, Sakura abaixou a cabeça. Por que queria tanto ajudar aquele homem? O que a compelia a sentir tantas coisas quando estava junto dele? Naquele exato momento, tudo o que queria era abraçá-lo e confortá-lo, dizendo que tudo daria certo, que Eriol, com toda certeza, encontraria a cura para aquela inesperada cegueira... E que ela estaria sempre ao lado dele, dando todo apoio e carinho que ele precisava. No entanto, Sakura não podia dizer essas coisas. Ela era uma governanta. Uma empregada. Paga para servir e trabalhar. Apenas isso.
"Eu me preocupo com o senhor", disse ela por fim.
"Por que?", ele se voltou e Sakura pôde ver a expressão incrédula dele. "Por que se preocupa com uma pessoa que só lhe tratou com grosseria. Jamais lhe dei o respeito que merece... Por que?".
"Eu sou assim, meu senhor", ela respondeu. "Preocupe-me com as pessoas. E agora sei que toda as palavras rudes que me dirigiu tinham um único motivo. Evitar que eu descobrisse a verdade".
Xiaolang estava impressionado com aquela mulher que deixara entrar em sua vida. Quanto mais tentava afastá-la de sua mente, mais ela se insinuava em seus pensamentos. Não conseguia parar de pensar nela, desde que a acolhera em sua casa.
"Se me conhecesse, saberia que eu nunca o deixaria num momento desses", ele a ouviu dizer. Podia sentir que ela estava se aproximando.
"Eu jamais poderei conhecê-la de verdade...", disse Li, esforçando-se para não seguir seus instintos e abraçá-la ali mesmo.
"Por que não?". A voz dela estava próxima, muito próxima.
"Olhe bem pra mim. Sou cego. Não posso vê-la! Posso apenas...".
"Apenas?".
'Imaginar como você é. Sonhar com o que poderia acontecer se eu não fosse cego', pensou ele, mordendo o lábio para impedir-se de falar essas coisas. "Nada", foi o que respondeu.
"Eu quero ajudar", disse Sakura, tocando-o no braço. Sabia que tal intimidade era proibida para um empregado, mas não se importava. "Por favor, deixe-me ficar e ajudá-lo", implorou.
Um murmúrio incompreensível escapou dos lábios dele. No instante seguinte, Sakura sentiu um braço forte envolver-lhe a cintura enquanto dedos calejados acariciavam-lhe o rosto com extrema suavidade. Ela os sentiu deslizarem por sua testa, por sua sobrancelha, descendo pela bochecha até alcançar sua boca.
"Xiaolang...", ela murmurou, fechando os olhos, entregando-se ao toque.
Ouvi-la dizer seu nome levou Li à seu limite. Não podia mais resistir. Não queria mais resistir. Inclinando-se, tomou os lábios dela nos seus, num beijo apaixonado. Sentiu Sakura enrijecer levemente e depois relaxar aos poucos, passando os braços delicados por seu pescoço, aconchegando-se contra seu corpo.
Com a mente enevoada de paixão, Sakura perdeu toda a noção do mundo à sua volta. O que importava era Li, as mãos deslizando por suas costas... Agora sabia o real motivo por trás de toda sua vontade de ficar na mansão. Estava apaixonada por Xiaolang.
Ofegantes, os dois se separaram por falta de ar. Naquele momento, Xiaolang queria ter sua visão mais que tudo na vida. Para se capaz de ver a expressão de Sakura. Abraçou-a mais apertado, passando as mãos pelos cabelos espessos dela.
"Sakura", disse ele, por fim. "Eu quero que fique".
"Xiaolang-", ela começou, mas foi interrompida.
"Eu preciso que você fique aqui comigo. Como minha esposa".
* * *
N/A: Bem, pessoal, aqui está o capítulo seis.
Desculpem-me por ter levado tanto tempo para postá-lo. Eu havia prometido a mim mesma que não iria mais demorar tanto para atualizar meus fics, mas eu não esperava ficar tão ocupada estas semanas. Sei como é chato ficar esperando. Tentarei postar o próximo capítulo em breve.
Quero agradecer a todos que estão comentando os capítulos ou mandando e-mails. Muito obrigada. Saber que a história está agradando é que me dá mais força e estimulo para continuar escrevendo. Quero também mandar um obrigado especial para Isinha e Fantomas, cujas sugestões foram muito importantes para o desenrolar deste capítulo. E um abraço para Pritty, Marjaire, Saki_Kinomoto, Mel e Karol. Um beijo, garotas! Este capítulo é pra vocês.
Um grande abraço a todos e até o próximo capítulo.
Andréa Meiouh
