Capítulo 11

Antes de o sol despontar no horizonte, Sato já estava de campana, vigiando a mansão Li. Queria não precisar cumprir as ordens de Ken, mas este desconfiaria de algo. A ociosidade já estava deixando o chefe irritadiço e seria burrice apressar os movimentos, quando estava tão perto de alcançar seus objetivos.

Do ponto do bosque onde se escondera, ele tinha uma boa visão de uma varanda que dava para o jardim da casa. Era um local bem freqüentado pelas mulheres da casa, que passavam as tardes fazendo alguma atividade lá, enquanto curtiam um pouco de sol.

Desde modo, para Sato só restava esperar Black Linx aparecer e dar um jeito de entregar a mensagem sem que ninguém percebesse. Enquanto isso não acontecia, ele aproveitava para observar Lau Ma.

Como uma sombra, o homem acompanhava a rotina da jovem empregada, vendo cumprir suas tarefas, uma a uma, sem reclamar. De vez em quando, ela parava e seu olhar perdia-se, fitando o nada, como se estivesse se lembrando de alguma coisa ou pensando em alguém.

Será que ela pensava nele? Seria possível? Afinal, ela só o vira duas vezes: a primeira quando esbarrou nele sem querer e a segunda, no outro dia, na feira. Mas estavam um pouco distantes... Ela teria lhe reconhecido?

Não devia estar pensando nela, mas não podia evitar... Ela lhe trazia tantas lembranças de seu passado... De Akane... De seu juramento... Crispando as mãos, Sato foi tomado por recordações de seu passado, de uma época em que não havia preocupações e ele era apenas um garoto feliz.

Os Sato viviam bem, numa província perto de Tohoku, ao norte do Japão. Era uma família humilde, que trabalhava o campo para sobreviver. O pai, Kazuo, tinha orgulho de ser fazendeiro e passara este amor pela terra para Hiroshi e Akane, seu casal de filhos com Mitsuko, sua esposa, uma mulher robusta, que trabalhava na região como parteira.

As crianças gostavam de correr pelas plantações de arroz, brincando de pega-pega. Hiroshi, o mais velho, levava vantagem sobre a irmãzinha Akane, mas sempre a deixava ganhar. Os dois passavam o dia passeando pela chácara do pai, subindo em árvores, tomando banho no ribeirão ou deitados na grama, olhando as formas das nuvens. Eram irmãos unidos e o menino fazia de tudo para proteger a irmã caçula.

Era uma época muito boa... Até a viagem de Hiroshi a Tóquio.

Vozes divertidas e risadas chamaram a atenção de Sato. Ele voltou sua atenção para a casa e viu Lau Ma sair, junto de uma menina. As duas se dirigiam para o riacho que havia vários metros atrás da mansão. Carregavam baldes de madeira nas mãos e iam conversando despreocupadas. Sato, não resistindo a tentação, as seguiu.

Lau Ma deu uma gostosa gargalhada. Yuelin era uma menina divertida, que gostava de contar histórias. E acabara de narrar uma de suas aventuras com a irmã, Pei-Pei.

"Aposto que vocês ficaram de castigo", comentou a criada, colocando os baldes na água.

"É claro!", riu a menina. "Acha mesmo que papai não faria nada depois do estrago que fizemos na cozinha dele?".

Elas se olharam. Ambas sabiam como Huike venerava seu local de trabalho. Para ele, a cozinha era sagrada.

"Não mesmo!", disseram ao mesmo tempo, rindo.

Estavam terminando a tarefa, quando Lau Ma foi apossada de uma estranha, porém familiar sensação. Uma impressão de ser observada. A mesma que sentira na feira dois dias antes, quando avistara aquele homem. Olhou em volta, mas tudo lhe pareceu normal e calmo. 'Então por que raios estou sentindo isso', pensou ela, intrigada. Resolvida a dar uma averiguada, largou os baldes na margem.

"Yuelin, vá para casa", ordenou para a garota.

"Mas srta. Lau Ma... Ainda não terminamos".

"Eu sei, querida... Mas vá assim mesmo... Depois eu levo. Ande". A menina olhou uma última vez para Lau Ma e fez o que lhe foi mandado.

Assim que Yuelin se afastou, Lau Ma caminhou a passos lentos, observando tudo a sua volta atentamente. Entrou no bosque que havia no limite da propriedade, onde a srta. Daidouji fora encontrada, e continuou sua procura, mesmo sem saber o que estava procurando. Havia se embrenhado na parte mais escura da floresta e estava quase desistindo, quando sentiu uma mão cobrir-lhe a boca e outra a segurar pela cintura contra algo rígido.

"Não se preocupe... Não vou machucar você", uma voz soou bem próxima de seu ouvido. "Eu solto você se prometer não gritar".

Trêmula e assustada, Lau Ma concordou com a cabeça. Todos na mansão sabiam que havia bandidos naquela região. Por que fora estúpida entrando na floresta sozinha? Sentiu seu corpo ser girado e deparou-se com uma túnica masculina. Ergueu a cabeça para ver quem a segurava e encontrou um par de olhos negros, que a fitava com intensidade.

"Você!?", ela soltou a respiração que nem sabia que estava segurando. "O que faz aqui?".

Levemente surpreso por ter sido reconhecido, Sato começou a pensar rápido. Não tinha intenção de se revelar para ela, mas não pode evitar. Ela caminhara direto para ele, parecendo saber o local exato que ele estava. E também não podia dizer que estava ali para espionar o patrão dela.

"Vim ver você". Era uma meia verdade. Gostava de observá-la, acompanhar seus passos.

Lau Ma sentiu o rosto esquentar. Seu medo ia, aos poucos, sendo substituindo por uma sensação mais agradável. "Mas como...?", tentou perguntar.

"Vocês são bastante conhecidos na vila", disse Sato, apreciando o modo como as bochechas dela se tornavam cada vez mais rosadas.

Balançando a cabeça, Lau Ma desviou o olhar e só então percebeu a posição de se encontravam. Ele segurava sua cintura com as duas mãos, enquanto ela se apoiava no tórax firme. Respirando fundo, deu dois passos para trás, se afastando de Sato. Ficou ainda mais vermelha.

Um leve sorriso surgiu nos lábios de Sato. Há quanto tempo ele não sorria? Há quanto tempo não se sentia tão bem com alguém, mesmo que só houvessem trocado olhares e pouquíssimas palavras? Ele se aproximou de Lau Ma novamente e pegando em sua bochecha, ergueu o rosto dela até que seus olhos se encontrassem de novo.

"Como se chama?", ela perguntou baixinho.

"Hiroshi".

"Hiroshi...", ela murmurou, sem tirar os olhos dele.

Sato jamais havia dado seu nome para ninguém. Não depois do que acontecera com sua família. Há cinco anos era conhecido apenas por seu sobrenome. E ouvir aquela mulher pequenina, de olhos brilhantes, sussurrar seu nome de um modo tão íntimo, mexeu com ele. Inclinando-se, ele tomou os lábios dela nos seus, num beijo arrebatador. Rígida no começo, Lau Ma foi relaxando aos poucos nos braços de Hiroshi e se entregando à carícia.

Os dois se perderam nas sensações maravilhosas que sentiam até que um grito os fez se separar.

"LAU MA!".

Assustada, a moça recuou rapidamente, coração aos pulos, olhos arregalados. 'Mu Bai!', pensou, alarmada. "Eu tenho que ir...", disse para Hiroshi.

"Espere...".

"Não! Você não entende?!", disparou ela, em voz baixa. "Se meu irmão nos pegar aqui, nos mata!".

Sim, Hiroshi entendia. Se visse sua irmãzinha nos braços de um desconhecido, com certeza faria um escândalo. O correto era deixá-la partir. Mas ele não estava pensando corretamente naquele momento. Puxou Lau Ma para si e beijou-a novamente.

"Eu vou voltar", falou contra os lábios dela antes de soltá-la e sumir bosque adentro.

Lau Ma ficou estática, meio que em choque, olhando para o lugar que vira Hiroshi se afastar. Outro grito a tirou daquela letargia.

"LAU MA!".

Tentou se recompôr e saiu correndo em direção à voz. Não queria que o irmão soubesse o que ela andara fazendo. No meio da corrida, tropeçou num galho de árvore, caindo de joelhos no chão. E foi aí que Mu Bai a encontrou.

"Lau Ma!", ele a agarrou pelos braços, muito zangado. "Que diabos você pensa que está fazendo?".

"E-eu ouvi um barulho...", gaguejou ela, alarmada com a raiva do irmão. "Só vim ver o que era...".

"Ficou louca?! Andar no bosque sozinha?! Por que não me respondeu?".

"Eu me perdi...". A expressão de Mu Bai fechou-se ainda mais e ela podia ver uma veia pulsando na testa. Encolheu-se um pouco. "Sinto muito, irmão... Não queria aborrecê-lo...".

"Venha", ele a puxou pelo braço. "Vamos para casa".

Os dois caminhavam rapidamente. Os joelhos de Lau Ma doíam um pouco, mas ela não se atreveu a reclamar. Na entrada do bosque, encontraram outros homens. Mu Bai ordenou que eles vasculhassem o bosque, em busca de algo suspeito. A moça sentiu um tremor pelo corpo. E se eles encontrassem Hiroshi? Queria olhar para trás, mas não o fez, com medo de que alguém desconfiasse de alguma coisa.

Alguns minutos depois, eles estavam de volta à casa. Na cozinha, foram recebidos por Min Soo e Pei-Pei, enquanto Yuelin chorava nos braços de Sakura.

"Yuelin!", Lau Ma correu para a menina e a abraçou. "Oh, querida... Não chore...".

"Eu fiquei com medo, srta. Lau Ma...", soluçou a garota.

"Agora está tudo bem, meu anjo... Não chore mais".

Lau Ma olhou para Sakura e para Min Soo, enquanto embalava a amiguinha. Mu Bai já não estava mais no aposento.

"Por que ela está assim?".

"Mu Bai brigou com ela", foi Pei-Pei quem respondeu, passando a contar o que acontecera com a irmã mais nova.

Quando voltara para a mansão, sem os baldes e sem Lau Ma, Yuelin foi abordada por todos, que lhe fizeram uma enxurrada de perguntas. Assustada, a menina tentava explicar, mas dizia coisas incoerentes. Mu Bai, tomando uma atitude mais enérgica, pegou a garota pelos braços e deu uma forte sacudida, fazendo-a chorar de dor e de medo.

Lau Ma irritou-se com o irmão. Ele não tinha o direito de machucar Yuelin. Teria uma conversa séria com ele mais tarde.

* * *

A primícia de um bom ladrão era a observação. Observar bem seu alvo. No caso de Tomoyo, seu alvo era Li Xiaolang. Porém, haviam dois problemas. Primeiro, desde que chegara na mansão, jamais vira Li. Era como se ele não estivesse na casa, ou como se não existisse. Segundo, para todo lugar que ela ia, Eriol estava presente. Sentia que, de alguma forma, o médico estava lhe seguindo.

'Ou vigiando', pensou ela, enquanto caminhava pelo jardim, que era seu lugar preferido da mansão. Ali, ela podia ficar sozinha, pensar e tentar encontrar uma solução para seu problema.

No entanto, por mais que pensasse, refletisse, analisasse, Tomoyo sabia que não tinha muitas opções. Se tentasse fugir, Ken mataria ela e o avô. Mas se cumprisse sua parte no acordo, teria que entregar à Ken e à própria sorte pessoas boas como Mu Bai, Lau Ma, Zhang, Min Soo e suas filhas, e os demais empregados. Sem contar que teria que matar a própria prima... E Eriol.

Sentou-se num banco para descansar. Ainda sentia dores, principalmente no peito. Suas costelas ainda estavam cicatrizando e não deveria estar fora da cama ou fazer qualquer tipo de esforço, mas sentia-se tão cansada de seu aposento, precisava sair um pouco, pegar sol, respirar ar fresco.

"Céus! O que vou fazer?". Sem perceber, pensou em voz alta.

"Acho melhor fazer o que foi combinado".

Assustada, Tomoyo virou-se rapidamente e se deparou com um dos homens de Ken, Sato. Os olhos de Tomoyo se arregalaram. "O que faz aqui?", ela quis saber.

"Vim trazer um recado de meu chefe".

"Mas como conseguiu entrar?".

"Pensa que só você pode entrar e sair dos lugares sem ser percebida?", falou ele com sarcasmo.

Tomoyo abriu a boca para responder, mas Sato a interrompeu, agarrando seu braço.

"Agora, me escute com atenção, Black Linx... Você fará tudo como mestre Ken ordenou. Você tem uma semana a partir de hoje para cumprir sua parte no trato... Nem pense em fugir ou chamar a polícia. Nós estamos de olho em você". Ele a largou e começou a se afastar. "Não se esqueça. Uma semana".

Tomoyo sentou-se no banco novamente, com o coração aos pulos e ofegante. Agora já não tinha mais jeito, precisava fazer o que Ken queria.

"Srta. Daidouji?".

Outra vez, Tomoyo se assustou. Pondo a mão no coração, tentou se acalmar quando viu que era apenas Eriol.

"Está tudo bem?", perguntou o médico.

'Não! Não está nada bem! Tenho que fazer coisas terríveis para poder continuar viva! Como posso estar bem?', gritou sua mente. "Sim", ela mentiu. "O senhor apenas me assustou".

"Desculpe, não foi minha intenção".

"Eu sei... Não precisa se preocupar", ela deu um triste sorriso. Como poderia matar aquele homem?

"Srta. Daidouji... Precisamos conversar", disse Eriol, sentando a seu lado.

"Conversar?".

"Sim... Sei que ainda está se recuperando, mas há coisas que precisamos saber...".

"Como o quê?".

"Quem lhe seqüestrou e por quê...".

Tomoyo levantou-se. "Eu não me lembro".

"Não é o que me parece", rebateu Eriol, levantando também. "Senhorita, precisamos descobrir quem fez tamanha barbaridade com você para que possamos puni-lo".

"Mas eu não me lembro!", ela estava à beira das lágrimas. "Por favor, Dr. Hiiragisawa, me deixe em paz!".

Ele, entretanto, se aproximou ainda mais. "Se nos contasse o que está acontecendo, o que aconteceu... Talvez possamos ajudar. Sinto que você carrega muita coisa e isto está lhe fazendo mal".

"Eu não me importo, está bem!?", replicou ela, resistindo a urgência de se abrir com ele. "Vá embora, me deixe sozinha!".

Eriol percebeu que já tinha chegado ao limite e não podia fazer mais nada. Sabia que Tomoyo guardava consigo uma grande mágoa e um grande segredo. Mas se quisesse descobrir e ajudá-la, teria que ter paciência e ir com calma. Recuou lentamente e saiu do jardim.

Trêmula, Tomoyo abraçou-se, tentando trazer um pouco de conforto a si mesma. Deixou as lágrimas, que há tanto tempo guardara, rolarem por suas bochechas. 'Como poderei fazer isso?', ela pensou angustiada.

* * *

"Sabe... Se estivéssemos no jardim... Ou na varanda, eu não teria tanto problema para terminar este livro", reclamou Sakura.

"É... Mas não estamos no jardim, nem na varanda...", replicou Xiaolang. "Então se quiser parar de ler, não me importo".

O casal estava confortavelmente instalado numa saleta, anexa ao quarto principal de Li. Este aposento, assim como todos os outros da ala oeste, era escuro e abafado. E apesar de algumas velas acesas, Sakura tinha dificuldades em continuar sua leitura.

"Ah, Xiaolang...", exasperada, ela fechou o livro. "Não há nada de mais sairmos um pouco, tomar sol, respirar ar fresco... Você está tão pálido...".

"Sakura, não comece, por favor".

Os dois já haviam tido esse tipo de conversa antes. Sakura insistia para que Xiaolang saísse daquela escuridão, mas o guerreiro era irredutível. Não sairia de seus aposentos e ponto final.

"Não sei quantas vezes já falei que não saio da casa durante o dia", resmungou Li.

"E toda vez que você fala isso, eu digo que não há problema nenhum em sair", devolveu Sakura. "Todos aqui o conhecem, e sabem o que você tem".

"Nem todos sabem".

Por uns momentos, a moça o fitou, confusa. "Do que está falando?".

"Sua família".

Sim, os 'novos' parentes de Sakura não sabiam da condição de Li. Nem Masaki, nem Tomoyo tiveram chance de conhecê-lo. As ordens eram para dizer que ele não se encontrava na mansão e mantê-los afastados da ala oeste, assim como fizera com Sakura.

"Por que não quis que eu contasse que você é meu noivo?", perguntou ela, curiosa.

Depois da confusão armada por Masaki no outro dia, Xiaolang pedira para a noiva manter sua identidade em segredo. Não queria que eles soubessem que o futuro marido de Sakura era ninguém menos que o dono da mansão.

"Tudo a seu tempo, minha flor", respondeu o guerreiro. "Logo anunciaremos nosso noivado a todos".

"A licença já está pronta? Já podemos nos casar?".

"Em poucos dias, não se preocupe... Enquanto isso, eu quero que organize um jantar para a noite de amanhã".

"Um jantar?", ela estranhou. "Pra quê?".

"Você verá", os lábios dele se curvaram num sorriso misterioso.

"Mas Xiaolang...", ela insistiu.

"Não adianta nem tentar, Sakura", ele a interrompeu, desta vez rindo abertamente. "É melhor continuar com sua leitura".

Apesar de estar frustrada com o noivo, Sakura suprimiu um sorriso. Era bom ver Xiaolang rir. Era difícil vê-lo tão relaxado... Dando um suspiro resignado, a moça pegou o livro e pôs-se a procurar a página na qual parara. De repente, sentiu a mão de Li lhe puxar e, no instante seguinte, estava sentada no colo dele.

"Irritei você", ele constatou, com voz divertida.

"Não...", ela mentiu, para depois admitir a verdade. "Quero dizer, sim! Ah! É essa sua teimosia. Às vezes me pergunto como pode existir alguém tão cabeça-dura?".

Ele riu novamente. "Sou apenas um homem determinado, minha flor".

"Xiaolang, eu só quero ajudar!", ela protestou. "Como posso fazer alguma coisa se você nada me conta?".

Li passou a mão pelos cabelos dela, desfazendo o coque e chegando-a mais para perto. "Se não conto, é apenas para preservar você... Não fique preocupada, está bem? Faça apenas o que eu pedi e tudo será esclarecido em breve". E tomando o rosto dela com a outra mão, acariciou-lhe a bochecha. "Agora, que tal mudarmos de assunto?".

"Quer que eu continue lendo?".

"Não... Quero algo bem melhor", disse ele, antes de beijá-la.

* * *

Como um gato, Tomoyo se esgueirava pelas sombras da mansão, silenciosamente. Depois do encontro que tivera aquela manhã com Sato, tinha que encontrar Li e com urgência. Suspeitava que ele se escondia na misteriosa ala oeste. Afinal, por que aquela parte da casa ficava fechada o tempo todo?

Quando se aproximou do corredor, ouviu alguma coisa. Era muito tarde e tinha certeza que todos estavam dormindo... Então, o que era aquele barulho e de onde vinha? Parecia algo como metal... Apurou os ouvidos e seguiu o som.

Parou diante de uma porta, na ala oeste. Podia escutar com mais clareza. Havia gente ali. Com cuidado, deslizou um pouco a porta e espiou o aposento. Era uma imensa sala de treinamento, iluminada por algumas tochas. E lá dentro, Tomoyo avistou dois homens. Um ela reconheceu de imediato: Dr. Hiiragisawa. Ela nunca tinha visto o outro, mas podia apostar tudo o que tinha como aquele era Li Xiaolang.

Eles estavam lutando com espadas, manejando-as com incrível habilidade. Ela tinha a impressão que Li levava vantagem sobre o médico e isso lhe causou um certo espanto e também admiração. Em sua mente, imaginara que Xiaolang era um homem fraco e debilitado, decaído por causa de sua condição. Jamais esperaria encontrar um exímio guerreiro, que naquele momento desarmava Eriol e o lançava no chão.

Viu Li ajudar o companheiro a se erguer e depois ambos se cumprimentaram. Não podia ouvir direito o que eles falavam, mas devia ser algo amigável, pois enquanto Eriol ria divertido, os lábios de Li estavam curvados num leve sorriso. Eles guardavam as espadas e Tomoyo notou como os movimentos de Li eram seguros e precisos. Era como se ele nem estivesse cego.

Fechou a porta antes que a vissem ali e seguiu para seu quarto o mais rápido e silenciosa que pôde. No caminho, ia pensando no que iria fazer. Tinha imaginado entrar no quarto de Li e seduzi-lo com palavras doces e carinhos, mas agora que o vira sabia que tinha que utilizar outra tática...

'Abordagem direta, talvez?', ela ponderou. 'É... Pode ser... Não tenho muito tempo mesmo...'.

Com a mesma frieza com que planejava seus assaltos, Black Linx começou a traçar seu novo plano, que seria executado na noite seguinte.

* * *

Outra que tinha uma noite agitada era Lau Ma. Não conseguia dormir, apesar do cansaço. Sentia-se frustrada, chateada... Tivera uma discussão com o irmão logo depois do almoço. Ela o acusara de ter machucado Yuelin sem motivo nenhum e Mu Bai replicara que era culpa dela, por ter sumido no bosque. E para isso Lau Ma não tinha resposta. Não podia sequer cogitar a possibilidade de falar para seu irmão o porquê de sua ida no bosque e o que acontecera lá. Ainda mais depois daquele beijo. Ele a mataria. E mataria Hiroshi também.

Hiroshi... Ele era um completo mistério para Lau Ma, mas, ao mesmo tempo, era como se já o conhecesse há muito tempo. Sentiu-se muito à vontade com ele... Por que outro motivo, então, ela permitiria que ele a beijasse daquela maneira? Que tipo de mulher ela era para deixar um desconhecido ter liberdades assim dessa maneira? Mas tinha que admitir a si mesma, o beijo foi maravilhoso.

Revirando-se na cama, Lau Ma soltou um longo suspiro. Ainda podia ouvir a voz de Hiroshi... 'Eu vou voltar'. Não sabia se ficava com medo ou feliz. O que aconteceria se seu irmão o encontrasse? O que aconteceria se o encontrasse de novo? Sentindo um súbito calor, ela se levantou, vestiu um velho quimono sobre a camisola e foi até a cozinha beber um pouco de água.

Quando passava na sala, escutou o barulho das espadas, vindo da ala oeste. 'Mestre Li ainda está treinando', constatou, seguindo seu caminho. Ao chegar na grande cozinha, foi direto no cântaro de barro, mas este estava vazio.

"Droga!", ela praguejou com raiva. Se quisesse beber alguma coisa, teria que ir lá fora, no riacho buscar água. Tirou a trava da porta, pegou o cântaro e saiu, disposta a matar a sede e diminuir o calor que sentia.

A noite estava muito bonita. O céu estrelado e a lua cheia iluminavam o caminho até o regato. E a grama, úmida do sereno, era um alívio aos pés descalços. Não demorou muito e chegou até o córrego. Ajoelhou-se e molhou o rosto, o pescoço e o colo, sem se importar em molhar a roupa, depois bebeu água com o auxílio das mãos. Por fim, encheu o cântaro.

Ao virar-se para voltar, Lau Ma levou um grande susto, quase derrubando a vasilha de barro. Hiroshi estava ali, a alguns metros de distância, fitando-a de um jeito que fizeram suas pernas tremerem.

"Eu disse que voltaria, não foi", falou ele, cruzando o espaço que os separava com poucos passos.

Mas antes que ele pudesse beijá-la de novo, Lau Ma se afastou. E munida de uma coragem que nem imaginava possuir, perguntou:

"Quem é você, afinal? E o que quer comigo?".

A expressão de Hiroshi mudou instantaneamente. A face suave deu lugar a uma séria, quase raivosa. Mas ele não respondeu nada.

Ficaram longos segundos ali, à beira do riacho, se olhando. Achando que ele não falaria nada, Lau Ma desistiu daquela guerrinha de nervos e começou a fazer seu caminho de volta. Se ele não quisesse falar, tudo bem, mas ela não ficaria ali a noite toda.

"Engraçado como são as coisas...", ela o ouviu dizer. "Nunca imaginei que encontraria aqui alguém tão parecido com Akane... Ela também era impaciente... Assim como você".

Lau Ma parou no lugar. Que raios ele estava falando? Antes que pudesse perguntar, ele continuou.

"Você quer mesmo saber quem eu sou?", diante da resposta afirmativa da moça, ele se apresentou. De verdade. "Meu nome é Hiroshi, Sato Hiroshi. Faço parte de uma quadrilha de criminosos, liderados por Ken Ryu. Eu sou o segundo no comando".

Desta vez, Lau Ma deixou o cântaro cair no chão. Não se importou com os cacos que lhe acertaram os pés, nem com a água que molhou a barra da sua camisola. Estava chocada demais para reagir. Seus olhos se arregalaram e seus lábios se abriram num 'O' silencioso.

"Chocada?", ele riu amargo. "Não estou surpreso...".

Depois de abrir e fechar a boca, Lau Ma conseguiu recuperar a voz. "Por que... Por que está aqui?".

"Tinha uma missão para cumprir".

"E já cumpriu?".

"Sim".

"Por que não foi embora?".

"Eu sempre cumpro a minha palavra", ele respondeu, olhando-a como uma fera, diante de uma apetitosa presa.

Lau Ma sentiu um arrepio. Ele ficara por ela? Isso era loucura! "Não tem medo que eu entregue você?".

"Não", Sato respondeu sem hesitar, fazendo-a arregalar ainda mais os olhos.

"Por que?".

"Por isso", ele a beijou com paixão.

Apesar de sua mente gritar para que parasse, que era errado, que ela estava confraternizando com o inimigo, Lau Ma se rendeu a Hiroshi. Podia sentir as mãos dele passando por seus cabelos, seu pescoço, seus seios e descendo mais... Fazendo-a sentir coisas que jamais imaginara. Como mandá-lo parar, se tudo o que queria era que ele continuasse?

Sato ergueu a jovem no colo e levou-a para o bosque, onde ninguém podia interrompê-los. Colocou-a no chão apenas para poder estender seu casaco debaixo de uma árvore. Logo a deitava ali, sentindo o prazer correr por suas veias. Um gemido baixinho foi a prova de que Lau Ma também estava apreciando aqueles carinhos.

Nos braços um do outro, se esqueceram do mundo. Não existia nenhum problema ali, naquele mundinho de êxtase que criaram juntos. Esqueceram que estavam em lados opostos de uma briga que não lhes pertencia. Lau Ma se esqueceu do medo que tinha do irmão. E Hiroshi da promessa feita no túmulo da família. E quando se tornaram um, tiveram a esperança de que as coisas, um dia, iriam melhorar.

* * *

Tomoyo acordou indisposta na manhã seguinte. Sentia repugnante por ter que fazer o que Ken queria, mas não tinha outra saída. Levantou-se e resolveu se preparar muito bem para a execução de seu plano. Tomou café com os demais na cozinha e pediu a Min Soo que lhe preparasse um bom banho. Escolheu seu melhor perfume e sua melhor roupa. Sabia que Li não ia ver mesmo o que estava usando, mas não se importava. Queria estar vestida de acordo com a ocasião.

Depois do demorado banho, se arrumou e penteou os longos cabelos. Estranhou que seu avô ainda não tivesse aparecido para lhe cumprimentar...  O que teria acontecido? Tirando Masaki da cabeça, voltou a se concentrar em Li. Tinha que dar tudo certo. Sua vida dependia disso.

As coisas pareciam estar a seu lado, pois todos na casa estariam ocupados na preparação do jantar 'formal' que haveria à noite, inclusive Eriol. Assim ela poderia andar pela casa sem ser notada. Prendeu as longas madeixas num coque no alto da cabeça, deixando algumas mechas soltas, enfeitando-lhe o rosto. Olhou-se no espelho antes de sair. Estaria mais bonita se os hematomas já tivessem desaparecido de seu rosto. Mas novamente lembrou-se que Xiaolang não perceberia nada disso.

Já estava na hora do almoço quando alcançou a ala oeste. Não sabia em qual quarto procurar primeiro. Resolveu arriscar o salão de treinamento outra vez. Pelo que vira na noite anterior e pelo que ouvia Ken dizer, só podia concluir que Li era um grande guerreiro. Talvez estivesse treinando novamente.

E seu palpite foi certeiro. Assim que chegou à porta do aposento, escutou barulho lá dentro. Deslizou a porta com suavidade e entrou. Li treinava com um bastão. Estava sem camisa e seu corpo estava úmido de suor. O rosto de Tomoyo corou um pouco. Ele até que era bem bonito.

"O que quer, Sakura?", ele perguntou, sem parar com os movimentos.

Tomoyo ergueu uma sobrancelha, curiosa. Por que ele pensava que ela era Sakura? Sua prima costumava freqüentar bastante aquela parte da casa? Mas não tinha tempo para isso... Ajeitou o quimono, aumentando o decote, e continuou a se aproximar dele.

"Sakura?", ele perguntou outra vez, desta vez interrompendo o treino.

"Não, Sr. Li", respondeu ela, com voz sedosa. "Não sou Sakura".

Xiaolang ficou alerta. Quem era aquela mulher? Conhecia a voz de todos os moradores da casa, exceto...

"Srta. Daidouji? O que faz aqui?".

"Vim lhe agradecer pessoalmente pelo que fez por mim, senhor...", disse Tomoyo, parando na frente dele.

Li não podia vê-la, mas podia sentir o perfume dela. Era uma fragrância exótica, que inebriava seus sentidos. Nunca tinha sentido algo parecido, nem mesmo em Sakura. Lembrar de Sakura o fez recuar um pouco.

Percebendo o deslocamento dele, Tomoyo avançou mais. "E também lhe entregar um presente".

"Presente?".

Antes que pudesse reagir ou entender, Xiaolang sentiu os lábios dela se colarem nos seus, num beijo passional. Atônito, ele deixou o bastão cair. Aproveitando a chance, a moça se achegou mais, roçando o corpo macio no tórax vigoroso, fazendo sobressair a essência do caríssimo perfume francês que ela usava.

Saindo do choque, Li colocou as mãos na cintura de Tomoyo, pronto para empurrá-la, quando...

"Xiaolang, eu trouxe seu al...–".

BLAM!

Tomoyo se afastou do guerreiro e olhou para a porta. E parada ali, com olhos arregalados, estava Sakura. Aos seus pés, a bandeja que caíra no chão. E ao seu lado, Eriol.

'Mas que droga!', praguejou a ladra mentalmente.

O médico foi o primeiro a quebrar o silêncio. "Alguém pode explicar o que está havendo aqui?".

* ~ * ~ *

N/A: Bem, pessoal, este foi o capítulo onze. Espero que tenham gostado. Por favor, eu quero saber a opinião de vocês! Mandem-me um e-mail ou deixem um review ou comentário. Não custa nada e vai me deixar muito feliz. E quando fico feliz, escrevo mais rápido! ^_^

Quero dedicar este capítulo a Kath, ao Marcelo e a Lullaby, que me deram uma forçona. Só o fato de vocês ouvirem minhas idéias absurdas, darem a suas opiniões e me fazer voltar a realidade já é uma grande ajuda. Acho que este capítulo não teria saído sem o apoio de vocês. Muito obrigada de coração.

Um beijo a todos e até o próximo capítulo!

Andréa Meiouh