Capítulo 12
Como se o teto tivesse desabado sobre sua cabeça. Foi assim que Tomoyo se sentiu ao ser descoberta por Sakura e Eriol. A decepção estampada nos olhos do médico fazia seu coração e consciência doerem ainda mais. Pensava desesperadamente no que dizer que acabou se distraindo e quando percebeu a aproximação de sua prima, não teve tempo de desviar.
Por toda sua vida, Sakura jamais tivera tanta ira de alguém como tinha de Tomoyo naquele momento. Vê-la ali, abraçada em Xiaolang, toda arrumada e perfumada, fez a jovem ver tudo vermelho. Sem pensar, fez a primeira coisa que lhe veio na cabeça. Cruzou rapidamente o espaço que a separava do casal e deu um soco na outra, pegando-a completamente desprevenida. Touya havia lhe ensinado um pouco de defesa pessoal, mas jamais imaginara que usaria isso contra alguém. Com um prazer sórdido, viu Tomoyo estatelar-se no chão.
"Sakura!", exclamou Eriol, segurando-a antes que pudesse bater de novo na Srta. Daidouji.
Parado em seu lugar, Xiaolang estava totalmente surpreendido, mas ao mesmo tempo, um pouco lisonjeado por causa da atitude de Sakura. Não imaginava que a noiva reagiria de forma tão passional. Tentou fazer uma imagem mental, mas sabia que nada seria tão fiel a realidade. E se pudesse ver a noiva, ficaria mais surpreso. Sakura estava transtornada e furiosa: olhos brilhantes, rosto corado, respiração acelerada. Estava dando um enorme trabalho para Eriol mantê-la segura.
"Como você se atreve!?", explodiu Sakura. "Ele é meu noivo! Meu!".
Tomoyo levantou-se e arrumou a roupa, apertando bem o quimono. Passou a mão pelo rosto. A prima tinha um punho forte, apesar da aparência delicada. "Sakura, eu...", tentou falar, mas a governanta ainda tinha muito pra falar.
"Você não tinha o direito fazer isso!", lágrimas de raiva saiam dos olhos verdes. "Víbora! Falsa!".
"Sakura, eu não sabia que você e o senhor Li estavam noivos... Sinto muito...", disse Tomoyo, tentando manter a compostura. Entendia muito bem a zanga da outra.
"E saber ia impedi-la de fazer isso?!". A ladra ficou calada, com a culpa expressa na cara.
Sakura tentou se soltar de Eriol para agredir a prima outra vez, mas o médico a segurou firme. "Sakura, acalme-se!".
Respirando fundo, a jovem olhou o amigo e depois, o noivo. Eles estavam visivelmente aborrecidos. Passou a manga da túnica que usava pelo rosto, para enxugar as lágrimas. "Pode me soltar, Eriol", pediu. Mas, diante do ar incerto do homem, ela disse: "Não vou tentar mais nada... Pelo menos não agora".
"Acho que a srta. Daidouji tem muitas coisas para nos explicar", ponderou Li após uns instantes de silêncio.
Tomoyo sentiu as atenções voltarem para si. Por onde começaria? Havia tanta coisa para ser dita... "Eu realmente sinto muito, Sakura, embora você não acredite em mim agora". O olhar que a prima lhe lançou poderia fazer Tomoyo arder em chamas. "Eu fiz o que fiz porque fui obrigada... Era uma questão de vida ou morte... Você tem que entender e me perdoar...".
"Eu poderei até entender, mas não vou perdoar tão cedo...", foi a resposta de Sakura.
"Srta. Daidouji?", Xiaolang a chamou. "Por que entrou aqui e me beijou?".
"Como disse, eu fui ameaçada e obrigada", ela respondeu.
"Então, deixe-me adivinhar...", falou Eriol. "Foi Ken que a seqüestrou e depois de espancá-la até quase a morte, a mandou para cá, assim nós cuidaríamos de você e você nos trairia".
"Eu juro para vocês que não queria fazer nada que ele ordenou, mas não pude evitar! Ele disse que mataria a mim e ao meu avô!".
"E o que ele mandou você fazer?", Sakura perguntou.
"Eu precisava 'preparar' a chegada dele...".
"Preparar?".
"Sim... Tinha que subjugar Li e me livrar de obstáculos indesejados...".
"Como assim?", Xiaolang estava muito interessado no que seu inimigo estava planejando.
"Ele queria que eu seduzisse Li e eliminasse todo aquele que pudesse ser um empecilho no seu comando aqui na mansão".
"E quem seriam estes empecilhos?".
Tomoyo hesitou. "Dr. Hiiragisawa, Sakura... Provavelmente Mu Bai e Lau Ma...".
"Quer dizer que além de agarrar e seduzir o meu noivo, você ainda ia nos eliminar? Matar as pessoas que fizeram tanto por você? Que salvaram e acolheram você com tanta gentileza?". Sakura estava indignada. Aquele era o pagamento por serem tão educados? A morte?
"Eu não pretendia fazer...", Tomoyo lutava contra as lágrimas. "Juro! Mas não tive outra opção...".
"Não lhe passou pela cabeça, srta. Daidouji, nos pedir ajuda?", perguntou Eriol.
Tomoyo fitou o médico, cuja expressão era neutra, mas sabia muito bem como ele estava desapontado com ela... De todos na mansão, Eriol era a pessoa com quem ela mais tivera contato. Havia entre eles algo especial, mais forte que uma simples amizade. Jamais teria coragem de matá-lo.
"Ele disse que ia matar meu avô... e eu não podia deixar isso acontecer. Meu avô é muito importante para mim".
"Mas não foi só isso, não é?", Eriol a encarou. "Ainda há mais coisa nisso... Se não, você podia ir à polícia e denunciar Ken... Mas era só mencionar o seqüestro e você ficava nervosa... O que mais você esconde, senhorita?".
Xiaolang não estava impressionado com a sagacidade do amigo, como Sakura e Tomoyo certamente estavam. Eriol sempre teve uma mente muito ágil e analítica. E, às vezes, deixava Li exasperado com sua capacidade de observar as coisas e as pessoas em sua volta.
"Vocês lembram do assalto à casa do prefeito semanas atrás?", ele ouviu a srta. Daidouji perguntar. Ela fez uma breve pausa, provavelmente esperando pela concordância de todos. "Fui eu".
'Hoje é o dia das surpresas', pensou Sakura. Por essa, ninguém esperava. A educada e fina Tomoyo Daidouji era Black Linx, o ladrão que fizera as autoridades da vila de idiotas. Isso era realmente surpreendente.
"Ken tem provas suficientes para me fazer pegar a prisão perpétua ou ser executada. Por isso, ele está me chantageando. Só que ele não tinha idéia que ao vir para cá, eu encontraria um parente...", Tomoyo disse, olhando para Sakura. "Ou faria amigos...", olhou para Eriol. "Eu não ia fazer nada contra vocês, se não houvesse um homem dele me vigiando".
Todos ficaram alertas. "Há um homem de Ken nos espionando?". Tomoyo concordou com a cabeça.
"Eriol, procure Mu Bai e convoque todos os nossos homens", ordenou Xiaolang. "Faça uma busca rigorosa por toda a propriedade. Revire todos os lugares: os estábulos, o pomar, o rio, o bosque... Tudo! Temos que encontrar esse cara agora!".
O médico se afastou à procura do assistente de Li, deixando Xiaolang, Sakura e Tomoyo no salão. A assaltante olhou para o casal. "Sr. Li, Sakura... Eu não queria machucar ninguém... Por favor, peço que me desculpem".
"Você podia ter nos dito a verdade, Srta. Daidouji", replicou Li. "Nós também temos muitas contas a acertar com Ken. Ele me deixou cego, matou a família de Sakura... Teríamos encontrado uma solução para seu problema...".
"Eu sei... E me arrependo profundamente de não ter lhes contado tudo", disse ela, com voz baixa. "O que farão comigo agora?".
"Pode se recolher a seus aposentos, se quiser", respondeu Xiaolang. "Não se preocupe, não vou entregá-la a Ken ou à polícia... E acho melhor conversar com seu avô. Ele também tem que saber".
"Está certo", Tomoyo concordou e, depois de se curvar graciosamente, agradeceu e saiu.
Sakura estava quieta, pensando e ruminando as informações que acabaram de receber. Olhou para a comida que derramara no chão sem querer. Abaixou-se e começou a recolher as tigelas e os cacos. Quando terminou, levantou-se e preparou-se para sair também. "Vou buscar um pano e água para limpar esta sujeira", ela disse, sem olhar para Xiaolang.
"Sakura, espere...", ele pediu.
Ela depositou a bandeja no piso, limpou as mãos e se aproximou do noivo. "Você ainda está zangada?", ele perguntou.
A jovem suspirou tristemente. Sim, estava zangada, mas depois das explicações de Tomoyo, o que ela poderia fazer? "Um pouco", admitiu. "Ver vocês dois se beijando não foi muito agradável...".
"Eu não tive culpa", ele comentou.
"Eu sei... Mas, mesmo assim...", ela suspirou de novo. "Você também não ia gostar se me visse beijando Eriol".
"Infelizmente, Sakura, eu não posso ver".
Sakura sentiu vontade de bater na própria testa. Como pudera fazer um comentário tão idiota? "Desculpe...", ela esfregou os olhos, contendo a vontade de chorar.
"Tudo bem, minha flor", ele deu um sorriso fraco e estendeu os braços. "Venha cá".
"Eu não queria... Me desculpe...", ela murmurou enquanto se aconchegava contra o tórax dele. O calor de Xiaolang foi, aos poucos, afastando seus receios. Sentiu as mãos grandes e calejadas deslizarem por suas costas, numa carícia relaxante.
"Sei o que está sentindo", disse Li, depositando um casto beijo na testa dela. "Eu não gostava nada, nada de saber que você e Eriol passavam as tardes passeando no jardim... Falei pra você que dei um soco nele?".
"Não, não disse...", ela sorriu. "Vejo, então, que eu não sou a única ciumenta aqui".
"Não mesmo", ele respondeu também sorrindo.
Ficaram abraçados até que Sakura falou novamente: "Você gostou?".
"Como?".
"Do beijo. Você gostou?".
Xiaolang ficou levemente tenso. "Por que isso agora, Sakura?".
"Apenas responda a minha pergunta", ela pediu, se afastando um pouco para observá-lo melhor. "Gostou ou não?".
O que ele poderia responder? Aquele beijo tinha sido uma experiência nova... Nenhuma das mulheres que tivera tomara a iniciativa, ou tinha aquele cheiro exótico... "Foi diferente", ele disse por fim.
"Entendo". Apesar de esperar uma resposta sincera, Sakura não estava pronta para ouvir aquilo. Sentiu-se desapontada. Mas o que queria? Ele era um homem, certo? Que homem não gostaria de ser abraçado por uma garota cheirosa e disposta a tudo? Ela é que devia ter ficado de boca fechada e não ter perguntado nada.
Li esticou o braço e a puxou para si novamente. "Mas eu ainda prefiro beijar você".
"Por que?".
"Pensei que já soubesse a resposta, Sakura. Eu amo você".
Era a primeira vez que Xiaolang pronunciava aquelas três palavras em voz alta. E gostou de ter declarado seus sentimentos para sua flor de cerejeira. Sentiu os braços dela passarem por seu pescoço, num abraço apertado.
"Eu também amo você", disse Sakura, antes de beijá-lo com paixão.
Sim... Definitivamente, era bem melhor beijar Sakura, ele pensou, retribuindo o carinho de bom grado.
* * *
Os preparativos para o jantar que haveria naquela noite ocupavam todos os empregados. Na cozinha, Huike, Min Soo e suas assistentes corriam de um lado para o outro, preparando os pratos preferidos do seu senhor. No restante da casa, as arrumadeiras limpavam os móveis e os enfeites, deixando tudo impecável. E enquanto todos se agitavam, trabalhando sem cessar, Lau Ma fazia suas obrigações com a mente completamente distraída, pensando no que acontecera na noite anterior. Fechou os olhos e suspirou sonhadoramente. Lembrou-se de Hiroshi e do modo como ele a tocara, mas coisas que ele a fizera sentir. Jamais experimentara algo parecido. Suspirou de novo, perdida nas memórias...
Depois de se amarem e alcançarem o prazer juntos, Hiroshi e Lau Ma permaneceram abraçados e ofegantes. Dando-se conta que era pesado demais para ela, o guerreiro rolou para o lado e puxou-a para perto, depositando a cabeça dela sobre seu peito.
Lau Ma ficou ali, deixando as batidas do coração dele embalá-la gentilmente. Mas apesar de languidez que sentia, não dormiu. Sua mente fervilhava... Tinha um conhecimento básico sobre sexo, afinal convivia com mulheres casadas e ouvia seus comentários além, é claro, de ver os animais que haviam na propriedade cruzando... Porém não fazia a menor idéia que os toques, os beijos e o corpo de um homem poderiam lhe dar tamanha satisfação.
Afastou-se um pouco e ergueu-se sobre os cotovelos. Apoiando o rosto nas mãos, passou a examinar Hiroshi com atenção. A luz da lua cheia atravessava a copa das árvores, iluminando-os fracamente. Seu amante estava relaxado, mas tinha a expressão séria. Notou a fina cicatriz que havia na bochecha. Com cuidado, passou o dedo sobre a marca, que ia do canto do olho direito até a linha da mandíbula.
"Como foi que ele conseguiu isso?", ela perguntou baixinho.
"Um juramento de sangue", ele respondeu.
Assustada, Lau Ma recuou a mão. "Desculpe... Pensei que estivesse dormindo...".
Sato se sentou, sem responder. Começou a recolher as roupas que estavam por perto e jogou a camisola sobre ela. Vestiram-se e após um incômodo silêncio, ele tornou a falar: "Minha família vivia numa pequena fazenda, no Japão... Era uma vida dura e humilde, mas éramos felizes". Fazendo uma pausa, ele se voltou para ela. "Quando fiz 15 anos, meu pai decidiu que estava na hora de eu aprender novas coisas, coisas que eu não ia aprender numa fazenda. Mandou-me para o dojo de um parente, para treinar. Fiquei lá por seis longos anos. E todos os dias, pensava em voltar e reencontrar minha mãe e minha irmã. Mas quando eu voltei...", a voz dele tremeu levemente. "Quando voltei, a casa estava em brasas... Tudo o que eu mais prezava e amava, destruído... Meus pais, mortos".
"Eu sinto muito...", Lau Ma sentiu lágrimas nos olhos.
"Fiquei desesperado. Não encontrava Akane em lugar nenhum... Até que a avistei no meio da plantação de arroz, na lama. Ela estava muito machucada e morreu nos meus braços, implorando por justiça. Então eu jurei que vingaria nossa família". Sato olhou Lau Ma dentro dos olhos e ela pode ver a dor que havia na alma dele, a sede de vingança. "Cortei meu próprio rosto para me lembrar do meu juramento sempre que olhasse meu reflexo".
A jovem se aproximou de Hiroshi e tocou a cicatriz. "Mas você nunca se esqueceu, não é?".
"Não... Sempre que fecho os olhos, revejo os corpos mutilados dos meus pais... Minha irmã agonizando nos meus braços... Eu nunca me esquecerei".
"E quem foi que fez isso a sua família?".
"Ken Ryu".
Lau Ma estremeceu com esta lembrança. Hiroshi havia se juntado a gangue de Ken buscando vingança. Ele disse que, por meses, seguiu a quadrilha, observou seus atos e, quando um dos homens de Ken cometeu um erro, colocando a vida do chefe em perigo, Sato apareceu e o salvou, ganhando assim a confiança do bandido. Passou a ser o braço direito de Ken, executando suas ordens sem questionar, porém sem esquecer seu verdadeiro objetivo.
Barulho de passos e vozes alteradas chamaram sua atenção. Discretamente, se aproximou para ver o que estava acontecendo. Avistou Eriol e Mu Bai dando ordens para o grupo de homens responsáveis pela proteção da mansão.
"Procurem em todos os lugares, em todos os cantos", ela ouviu Eriol dizer. "Temos que encontrar o espião agora!".
O coração de Lau Ma disparou. Eles sabiam sobre Hiroshi! Mas como? Respirou fundo várias vezes para se acalmar. Precisava fazer alguma coisa. Saiu correndo em direção ao riacho. Tinha que encontrá-lo antes de Eriol e os homens de Li. Estava preocupada demais para pensar em ser discreta e não percebeu que seu irmão a avistara.
* * *
Cabisbaixa, Tomoyo fez o caminho de volta para seu aposento imersa em pensamentos. Quando passou pela porta do quarto do avô, parou. Xiaolang tinha razão. Masaki precisava saber da verdade e seria melhor saber por ela do que por outra pessoa, ou até mesmo pela polícia. Bateu levemente na porta.
"Pode entrar", respondeu o Sr. Amamiya. Ele sorriu ao avistar a neta. "Olá, minha querida! Como está se sentindo hoje?".
"Melhor, vovô. E o senhor, como passou a noite? Dormiu bem?".
"Oh, sim! Tive uma noite ótima. Descansei bastante".
"E acordou inspirado, pelo que vejo", observou ela, vendo o homem separar alguns materiais de pintura.
"É verdade", ele riu. "Acordei com uma vontade imensa de pintar".
Tomoyo sabia que o avô adorava pinturas, mas que não pintava há vários anos. Vê-lo tão entusiasmado quase mudou a resolução dela de contar sua verdadeira história. "Fico feliz pelo senhor, vovô".
"Obrigado, querida. Sabe, há muito tempo eu não me sinto tão inspirado", ele confessou. "Mas agora as coisas estão diferentes... Afinal, encontrei minhas netas... Minha família está reunida de novo. Estou muito feliz, mesmo que uma delas praticamente nem fale comigo".
"A relação de vocês está tão ruim assim?", Tomoyo perguntou curiosa.
"Ela só fala comigo o estritamente necessário, tipo 'bom dia', 'boa tarde', 'boa noite', 'o almoço está pronto'... Sei que fui duro com Sakura, mas ela poderia me tratar com mais respeito... Eu sou avô dela...". Masaki suspirou e tomou a mão de Tomoyo entre as suas. "Tenho certeza que se você estivesse no lugar dela, as coisas seriam bem diferentes... Você é tão meiga, Tomoyo...".
A jovem sentiu outra vez o peso da culpa. Engoliu em seco e abaixou a cabeça. "Não diga isso, vovô... Tem muitas coisas ao meu respeito que o senhor não sabe...".
"O que quer dizer?", estranhou Masaki.
"Venha cá, vovô", Tomoyo se ajoelhou na cama e chamou o avô para ficar ao lado dela. "Tenho uma história muito longa para contar ao senhor...". E assim, ela contou tudo a seu respeito... Desde as agressões do pai à vida que levara nas ruas e como se tornara uma ladra... Dos assaltos que praticara em todas as grandes cidades que eles conheceram viajando pelo mundo até o seqüestro pela gangue de Ken e a tentativa frustrada de seduzir Li. Podia ver a tristeza e a decepção no semblante do avô... Sentiu-se mal por tê-lo enganado durante todos aqueles anos que viviam juntos. Ele a retirara das ruas e dera um lar, amor e educação, algo que nunca tivera em sua própria casa.
Masaki ouvia tudo, pasmado e incrédulo. Sua neta só podia estar brincando ou delirando... As coisas que ela dizia eram irreais demais para serem verdadeiras... Porém o olhar dela dizia-lhe que era tudo a mais pura realidade.
"Tomoyo...", disse ele, se levantando. "Diga-me que tudo isso é mentira".
"Não posso, vovô...", ela respondeu baixinho, erguendo-se também. "Sinto muito...".
Tomado por uma raiva súbita, Masaki a agarrou pelos braços. "Como você foi capaz de me enganar durante todos esses anos?! Como pôde fazer isso comigo?!".
Assustada com a reação do avô, Tomoyo se encolheu. Não encontrava palavras para se desculpar. "Vovô, me desculpe... eu não queria...".
Do mesmo modo repentino que a agarrou, Masaki a soltou, fazendo perder o equilíbrio e quase cair. E a passos duros, se retirou do aposento. Tomoyo seguiu atrás do homem, preocupada.
"Aonde o senhor vai?".
"Vou procurar o Inspetor Kim", respondeu Amamiya sem se voltar. "Não vou permitir que continue enganando as autoridades assim".
Os olhos de Tomoyo se arregalaram. Seu avô ia entregá-la à polícia! "Não faça isso, vovô... Por favor!", ela implorou, segurando-o pelo braço.
"Não me toque!", ele disparou, puxando o braço. "Nunca mais chegue perto de mim, sua mentirosa!".
Os dois haviam alcançado a sala e alguns empregados, que faziam a limpeza, observavam tudo com grande interesse. Afinal, não era todo dia que havia uma confusão daquelas na mansão...
"Vovô...", Tomoyo olhou para o homem à sua frente com olhos suplicantes. Ela passaria a vida inteira na prisão se ele a denunciasse.
"Não me chame mais assim! Você não é mais minha neta!".
O coração da jovem apertou-se. Masaki sempre fora sua família, seu porto seguro. Jamais tivera a intenção de magoá-lo. Tentando consertar seu erro, ela se aproximou e cometeu o erro de tocar no avô novamente. Ele ergueu a mão e preparou-se para dar um tapa nela. Fechando bem os olhos, Tomoyo esperou pelo golpe, que não veio. Ergueu a cabeça e abriu seus grandes orbes violetas para deparar-se com um cena inesperada: Eriol segurava o pulso de Masaki com mão de ferro. Ele fazia tanta força que as articulações estavam lívidas.
"Nunca mais tente fazer isso de novo", falou o médico entre os dentes cerrados.
"Está defendendo essa mentirosa, Dr. Hiiragisawa?", o velho perguntou no mesmo tom.
"Só não gosto de ver uma dama apanhar, Sr. Amamiya".
"Ela não é uma dama!".
"Mas é sua neta. E o senhor devia ter mais respeito!", rebateu Eriol.
Soltando um suspiro indignado, Masaki puxou o braço. Em seu pulso pôde ver as marcas dos dedos de Eriol. Olhou para o médico, depois para a neta e se retirou, voltando para seu quarto. O casal ficou a sós na sala, num pesado silêncio.
"Obrigada por me defender, Eriol", disse Tomoyo por fim.
"Cumpri apenas com minhas obrigações... Como falei, não gosto de ver uma mulher apanhando".
Ela suspirou. "Obrigada mesmo assim".
Pela primeira vez desde a cena no salão de treinamento, Eriol a fitou. "Por quê, Tomoyo? Por que você fez tudo isso? O que levou você a ter essa vida dupla?".
"No início, foi uma questão de sobrevivência...", ela respondeu, abatida. "Se eu não roubasse, não teria o que comer no dia seguinte... Mas depois, quando vovô me encontrou, senti falta da emoção, do risco, da aventura... Acho que foi isso que me fez voltar a roubar...".
Eriol a olhava com intensidade. Apesar do rosto ainda marcado pela surra que levara de Ken e seus homens, Tomoyo era uma mulher bonita. E ele ainda estava interessado nela... 'Fraco!', sua mente gritou. 'Como pôde gostar de uma criminosa?'. 'Não posso evitar', foi a resposta sincera de seu coração.
"Emoção e aventura...", ele murmurou. "Pois bem, olhe-se no espelho... E veja onde a emoção e a aventura levaram você...". E após dizer isto, o médico se afastou.
Tomoyo acompanhou com o olhar o homem sair da sala. Abraçou-se em busca de algum conforto. Podia suportar o ciúme de Sakura, a raiva de Masaki, mas a indiferença de Eriol era o que mais lhe doía na alma. Sentiu algo escorrer pelas bochechas... Lágrimas... Estava chorando pela primeira vez desde que toda aquela confusão começou. Passou a mão nos olhos para enxugá-los quando teve um repentino estalo.
"Olhos... Olhos... É isso!".
* * *
Sentado no galho de uma grande árvore, Sato remexia em seu alforje. Encontrou um pão dormido e um pedaço de queijo seco. Teria que ir até a cidade em busca de provisões, senão morreria de fome. O único problema é que estava sem dinheiro e não queria assaltar ou matar ninguém para poder comer. Talvez Lau Ma pudesse lhe arranjar algo da casa, mas isso seria colocá-la ainda mais em risco.
Deu uma mordida no pão e enquanto tentava engolir aquele monte de farinha velha, tornou a lembrar de sua pequena... 'Um momento aí! Desde quando ela virou minha pequena?!', pensou assustado. 'Desde o momento que se deitou com ela, seu idiota!', respondeu a voz de sua consciência. Um leve sorriso brotou nos lábios de Sato. A noite passada fora surpreendente. Apesar da timidez inicial, Lau Ma se revelou uma amante ardente, muito disposta a aprender... Ele não se lembrava de ter tido tanto prazer com outra mulher antes...
Barulho de galhos e folhas pisadas chamaram sua atenção. Endireitando-se, espreitou os olhos, escaneando as redondezas. Avistou Lau Ma se aproximando, correndo.
"Hiroshi!", ela chamou. O tom de voz dela parecia preocupado. Descendo da árvore num pulo, ele se expôs.
"Oh, graças aos céus!", Lau Ma exclamou, o abraçando. Mas depois se soltou dos braços dele e começou a puxá-lo pela mão. "Você tem que ir embora agora! Eles estão te procurando", ela disse rapidamente.
"O quê?", estranhou Sato.
"Você tem que partir!", ela repetiu, um pouco mais nervosa. "Os homens da casa sabem que você está aqui".
Hiroshi a olhou acusadoramente. Viu a expressão dela mudar de apreensiva para magoada. "Não fui eu", ela disse, voltando a andar.
O guerreiro xingou-se mentalmente. Claro que não havia sido ela... Se Lau Ma houvesse dito que ele estava ali, teria que dizer também como foi que o descobrira... E ela não estaria ali para ajudá-lo. Como pôde pensar que fora ela? Esticou o braço e a agarrou pelo pulso, fazendo-a se virar. Quando Lau Ma o encarou, ele a beijou.
"Hiroshi...", disse ela, entre os beijos. "Você precisar ir".
"Eu sei", ele respondeu, sem a menor vontade de parar.
Continuaram abraçados, se beijando e trocando carícias apaixonadas quando uma voz soou atrás deles. "Tire essas mãos imundas da minha irmã!".
Recuando rapidamente, Lau Ma deparou-se com Mu Bai, a alguns passos de distância, espada em punho, pronto para atacar. O olhar que ele lançava era de pura ira e moça sabia que o irmão só descansaria depois que matasse Hiroshi.
Sato também percebeu a raiva do outro homem. Mu Bai estava disposto a defender a honra da irmã. Seria uma luta interessante. Desembainhou a espada e encarou o adversário de volta, um sorriso zombeteiro nos lábios.
As espadas se chocaram com fúria. Pequenas faíscas foram lançadas ao ar. Anos de treinamento árduo era posto à prova naquele momento, por ambos guerreiros. Mu Bai tentava controlar seus sentimentos, pois sabia que estes o levariam a cometer algum erro. Não podia perder...
Prosseguiram trocando golpes, até que Mu Bai, aproveitando uma brecha na guarda do oponente, aplicou um chute nas costelas de Sato, lançando-o para trás e fazendo-o perder a espada. Endireitando-se, Hiroshi limpou a testa suada. Estava longe de sua arma para poder pegá-la de volta. Agora teria que ser combate corpo-a-corpo. Posicionou-se, pernas ligeiramente abertas para um melhor apoio e equilíbrio, braços protegendo o corpo e punhos fechados. Mu Bai deixou sua espada cair, aceitando o desafio. Ficaram se encarando até que partiram para cima um do outro, trocando socos, ganchos, chutes, joelhadas...
Lau Ma tremia, vendo o irmão e o amante lutarem com vontade. Não queria tomar partido de ninguém, mas também não queria que aquilo continuasse.
"Parem com isso, por favor!", ela suplicou, mas nenhum dos dois a atendeu.
A jovem não sabia mais o quê fazer quando ouviu pessoas se aproximando. Eram os outros homens de Xiaolang. Logo, a pequena trilha onde estavam ficou repleta de guerreiros armados. Sentiu um aperto no peito quando eles renderam, amarraram e arrastaram Hiroshi em direção a casa.
"O que vão fazer com ele?", ela perguntou para o irmão.
"Mestre Li é quem vai decidir", respondeu Mu Bai, seguindo os companheiros. "Eu preferia matá-lo de uma vez".
Os olhos de Lau Ma se arregalaram e ela correu atrás da 'tropa'. Seguiu os homens até chegarem ao pátio principal da mansão. Para sua surpresa, Xiaolang estava lá de pé, ao lado de Eriol e Sakura. Um pouco mais atrás, estavam Huike, Min Soo e os demais empregados da casa.
"Achamos o espião, mestre Li", anunciou Mu Bai.
"Muito bem, Mu Bai", falou Xiaolang. "Tragam ele até aqui". Os homens jogaram Sato aos pés de Li.
Hiroshi ergueu a cabeça e olhou o inimigo de Ken. Começava a entender porque seu chefe tinha tanta raiva daquele homem. Mesmo cego Xiaolang tinha uma aura de força e poder, que o envolvia por completo. Era um guerreiro imponente.
"Qual é seu nome?", Xiaolang perguntou. Mas Sato nada respondeu. "Quais são os planos de Ken? O que ele quer conosco?".
E novamente Sato nada disse. Simplesmente porque não sabia se poderia confiar em Li. Com o canto do olho, viu Lau Ma se aproximando. Sentiu-se mal. Não queria que ela o visse naquele estado.
"Não quer colaborar, hm?", concluiu Li. E virando-se para Mu Bai, ordenou: "Matem-no".
"NÃO!". O grito sofrido de Lau Ma espantou a todos, inclusive Hiroshi. Ela se aproximou correndo e ajoelhou-se na frente de Sato, olhando para Li. "Por favor, Mestre Li, não faça isso...", suplicou entre lágrimas. "Não o mate... Hiroshi não é mau... Ele quer apenas se vingar...".
"Fica quieta, mulher", disparou Sato. Apesar de estar preso e, provavelmente, quase morto, não queria passar a vergonha de ser defendido por uma mulher.
Li ficou quieto por alguns segundos, sentindo a mão de Sakura apertar seu braço. Sabia que a noiva também não concordava com seu plano, mas era o único modo de fazer o homem falar. Só não contava com a interferência de Lau Ma... Aliás, por que ela estava protegendo aquele bandido?
"Levem ele", foi a resposta final.
"Não!", Lau Ma se agarrou a Sato. "Conte a eles a verdade, Hiroshi!".
Antes que ele pudesse responder, Mu Bai a puxou e dois homens o arrastaram para longe. Lau Ma se debatia e esperneava nos braços do irmão.
"Não faça isso, Sr. Li".
Li, Eriol e Sakura se voltaram e viram Tomoyo na porta da sala. Ela tinha um ar sério e determinado.
"Não mate esse homem", ela pediu. "Se o que Lau Ma disse é verdade, talvez ele seja de grande ajuda".
"Ajuda?", estranhou Xiaolang.
"Sim", Tomoyo respondeu. "Vou precisar de ajuda para voltar ao acampamento de Ken".
"Voltar ao acampamento?", disparou Eriol. "Ficou maluca?!".
"Não... Não fiquei maluca", ela sorriu. "Vou apenas fazer meu último assalto".
* ~ * ~ *
N/A: Para quem estava esperando um capítulo maior, sinto muito... Estou com uns problemas de saúde, que acabaram com toda minha inspiração... Não sei quando o capítulo treze ficará pronto. Tentarei não demorar muito.
Falta pouco para a conclusão deste fic... As coisas estão começando a se desenrolar... O que será que Tomoyo vai roubar desta vez? Será que Sato estará disposto a ajudar? Bem, vocês só ficarão sabendo no próximo capítulo! Um beijo e até mais!
Andréa Meiouh
