Capítulo 14
"Ficar nesta ansiedade toda não vai fazê-la voltar mais rápido".
Eriol voltou-se e encontrou Li e Sakura se aproximando da varanda. O médico havia montado um posto de vigia ali desde que Tomoyo e Sato haviam partido. Era algo que ele não podia evitar. Preocupava-se com a bela mulher de olhos violeta e só ia descansar quando a visse passar pelo portão, ilesa.
"Não estou ansioso...", resolveu responder ao amigo.
"Então por que não saiu daí desde que ela partiu?", Xiaolang alfinetou, com aquele sorrisinho irônico que era sua marca registrada.
Eriol abriu a boca para responder, mas parou quando um grito ressoou pelo pátio.
"CAVALEIRO SE APROXIMANDO!".
Li redobrara a vigilância e a segurança da mansão, além de ter colocado todos seus homens sob treinamento intensivo. Ele próprio conduzia os treinos e as lutas. Quem não estava vigiando a casa e as mulheres, estava descansando. Quem não estava descansando, estava treinando. Era desse modo que eles passaram aqueles dois dias agonizantes. A tensão tomava conta de todos.
"Abram os portões!", exclamou Mu Bai, indo direto à guarita.
Da varanda, Li, Sakura e Eriol viram os portões serem abertos e o cavalo de Tomoyo passar disparado por eles. Ela apeou antes mesmo do animal parar e começou a caminhar, sem perceber os amigos.
"Tomoyo!", exclamou o médico, correndo para a amada.
Parecendo finalmente dar-se conta de onde estava, a moça ergueu a cabeça. Avistou o médico, e logo atrás dele a prima e seu noivo. Dando um longo suspiro, olhou ao redor. Havia cavalgado num desespero tão grande que nem sabia como chegara viva até ali. Sentiu os braços de Eriol em volta de sua cintura e uma onda de alívio e segurança a engolfou.
"Eriol...", murmurou cansada, retornando o abraço.
"Você está bem?", ele perguntou, passando as mãos pelos cabelos dela.
"Sim... Estou cansada... cavalguei a noite e o dia todo...".
"Srta. Daidouji?", Li se aproximou, acompanhado por Sakura. "Como foi? Deu tudo certo?".
Tomoyo ergueu a cabeça do peito de Eriol e olhou para o noivo da prima. Apesar de estar sério como sempre, ela percebeu que ele parecia um pouco ansioso. Aliás, todos estavam ansiosos... O que ela fora buscar naquele maldito acampamento representava a cura da cegueira de Xiaolang e uma ajuda para o combate contra Ken. Separando-se do médico, a moça mexeu numa bolsinha que trazia na cintura e pegou um frasco.
"Acho que isso é seu, Sr. Li", ela colocou o objeto nas mãos de Xiaolang.
A mão grande e calejada de Li fechou-se em torno do pequeno frasco. "Obrigado, Srta. Daidouji".
"Não me agradeça", ela respondeu. "Apenas fique curado".
"Como faremos o tratamento?", perguntou Sakura, que tinha os olhos verdes cheios de lágrimas.
"Aplique isso nos olhos dele, Sakura, várias gotas por dia... A sensibilidade retornará aos poucos... Bem como a visão. Vamos torcer que faça efeito nos poucos dias que nos restam".
"Tomoyo!", alguém chamou.
Era Masaki que se aproximava correndo, com uma expressão de alívio e felicidade no rosto. Avô e neta se abraçaram, apertado. As palavras duras que ele dirigira à ela foram esquecidas e enterradas, restando apenas o carinho que sempre os unira.
"Você conseguiu, minha querida! E voltou sã e salva!", constatou o homem quando se afastou para olhar a jovem de novo.
"Sim, vovô...", Tomoyo sorriu.
"Vamos entrar, comer alguma coisa...", disse Sakura. "E durante a refeição, Tomoyo pode nos contar tudo que aconteceu".
O grupo voltou para a grande mansão. Por aquele momento, estavam felizes, porém sabiam que algo maior os esperavam e precisavam estar preparados.
* * *
De longe, Lau Ma olhava o grupo entrar na mansão. Escutara o vigia anunciar a chegada de um cavaleiro e sentiu o coração disparar. Sua preocupação com Hiroshi era tamanha que não conseguiu dormir ou descansar naqueles últimos dias. E ao ver Tomoyo voltar sozinha, sentiu-se mortificada. Apesar de saber que Sato não ia voltar, tinha esperança que algo acontecesse e que ele aparecesse ali, no pátio, com seus olhos escuros que a faziam estremecer e aquele ar sério e distante.
"Não se preocupe, Lau Ma. Ele está bem".
Assustada, Lau Ma deu um pulo e se virou, para encarar Min Soo, a copeira. A mãe de Pei Pei e Yuelin tinha o péssimo hábito de andar silenciosamente. Ela ia e vinha pela casa sem que ninguém a notasse ou a ouvisse. Lau Ma admirava-se com isso. Desde que se entendia por gente, Min Soo era daquele jeito: calada, discreta. Tão diferente de Huike, seu marido, sempre tão animado e fanfarrão.
"Desculpe, querida... Não queria assustá-la", falou a mulher, passando a mão pelos cabelos da jovem, como fazia com suas filhas. "Apenas confortá-la. Ele voltará para você, não se preocupe".
O susto deu lugar à curiosidade. Ainda ofegante e com as mãos no peito, Lau Ma inclinou a cabeça. "Como sabe?".
"Apenas sabendo... Pode chamar isso de intuição... Passaremos por momentos difíceis em breve, mas tudo dará certo", a senhora sorriu e começou a se afastar. "Você precisa dormir um pouco. Ficar insone não lhe fará nada bem".
A moça concordou com a cabeça. De algum modo, as palavras de Min Soo acalmaram seu pobre e angustiado coração. "Obrigada, Min Soo".
A copeira apenas sorriu antes de se virar e voltar para a mansão.
* * *
Depois da gostosa comida feita por Zhang e de ter contado o roubo umas duas ou três vezes, omitindo, é claro, o acontecido com Dae, Tomoyo pediu licença a todos e se dirigiu ao seu quarto. Tomou um banho demorado e vestiu roupas limpas. Mesmo assim, sentia remorso corroer-lhe as entranhas. Ficara parada, vendo e ouvindo uma jovem inocente ser abusada e não fizera nada. Deitou-se na cama, mas não conseguia dormir. Ficou com os olhos pregados no teto até o cansaço vencê-la.
Tomoyo sentia-se leve. Um estranho frenesi ia se apossando de seu corpo, algo que ela só experimentara uma vez. Olhou ao redor e viu que estava num quarto vagamente familiar. Então, o rosto de Eriol surgiu a sua frente, os olhos azuis escuros brilhando com intensidade.
"Tomoyo", ele murmurou enquanto diminuía o espaço entre eles. O beijo que se seguiu foi ardente, cheio de paixão.
A jovem se perdeu no desejo, que enevoava sua mente e seus sentidos. O médico parecia saber exatamente o que fazer e onde tocar. Era difícil conter os gemidos ofegantes. De repente, tudo se tornou frio e sombrio. Eriol ergueu a cabeça e Tomoyo arregalou os olhos, pois diante de si, não estava mais seu amado médico e sim Ken, com seus olhos cheios de luxúria.
"Aí está você, minha pequena... Vamos nos divertir um pouco", disse ele, de um modo tão lascivo que causou uma onda de enjôo nela.
Debatendo-se, esperneando, Tomoyo tentava se libertar, mas Ken era mais forte. Quando sentiu o peso do corpo dele sobre o seu, que ela percebeu que revivia tudo o que acontecera com Dae.
"Não!", berrou à plenos pulmões. "NÃÃÃOOOOOOOOOO!!!!".
Erguendo-se de supetão, Tomoyo sentou-se na cama. Ofegante, passou as mãos pelo rosto frio e úmido de suor. Tivera um sonho, ou melhor, um pesadelo. Como ia conviver consigo mesma depois do que acontecera no quarto de Dae? Ouviu batidas na porta. Levantando-se devagar, foi atender. Era Eriol.
"Tomoyo? Está tudo bem?", ele inquiriu preocupado. "Estava passando e ouvi um grito... Aconteceu alguma coisa?".
"Não foi nada...", ela tentou respondeu, mas Eriol a interrompeu.
"Você está trêmula...", tocou o rosto dela com as costas da mão. "E fria... O que aconteceu?", insistiu.
"Foi um pesadelo... Só isso. Estou bem agora".
Eriol estreitou os olhos. Algo não estava cheirando bem naquela história. "Não foi só um pesadelo, não é? Tem algo mais aí... posso sentir. O que é?".
A moça suspirou, esfregando os olhos com as mãos. Ela afastou-se para o lado e pediu para o médico entrar, fechando a porta com cuidado depois que ele passou. Indicando a cama, Tomoyo pediu que Eriol sentasse e com poucas palavras, contou sobre o sonho e sobre o que realmente tinha acontecido na fazenda.
"Não é sua culpa, Tomoyo...", disse Eriol, olhando a ladra andar de um lado para o outro do quarto, como um animal encurralado. "A culpa é de Ken...".
"Ele é um monstro, Eriol! Ele a machucou... Ele a violentou... Na minha frente...", os olhos violeta ficaram cheios de lágrimas. "Não pude fazer nada pra evitar...".
"Mas Tomoyo... O que você poderia fazer?", ele se levantou, caminhou até ela e a segurou pelos ombros, fazendo-a parar. "Se você a ajudasse, iria se entregar... E Ken poderia matá-la...".
"Isso não faz eu me sentir melhor, Eriol...", ela abaixou a cabeça, suspirando. "Sinto-me egoísta demais por ter pensado só em mim... Só no nosso problema...".
"Tomoyo... Quando tudo isso acabar e Ken for derrotado, iremos buscar Dae e eu, pessoalmente, cuidarei dela, prometo".
"Acha mesmo que ela vai agüentar tanto tempo, Eriol? Dae estava fraca, magra... Ela deve até passar fome lá... Sem contar nas inúmeras agressões que já sofreu... Ela não resistiria muito tempo... E se Ken não for derrotado? Ele vai nos matar e a ela também...".
"E o que você quer fazer, Tomoyo? Diga-me!".
"O que eu quero fazer? Oras! Voltar e tirar Dae de lá! Já entrei lá uma vez... Consigo de novo, com certeza".
"Ficou louca, mulher!?", Eriol disparou. "Ontem você teve a ajuda de Sato para distrair todos... E roubou algo pequeno, que eles não darão falta tão cedo... Mas agora... Quer tirar a garota de lá? Ken vai perceber o sumiço dela antes que você tenha conseguido chegar no rio!".
"E eu fico aqui, de braços cruzados, enquanto ele estupra Dae outra vez?!", ela exclamou. "Nem pensar! Vou tirar aquela garota de lá, Eriol. Estou resolvida. E nem você, nem ninguém vai me fazer mudar de idéia".
* * *
"Como está se sentindo?", Sakura perguntou pela centésima vez.
Li contou até dez, ansiando por mais paciência. "Sakura, estou bem... Eriol acabou de colocar o antídoto nos meus olhos... Não faz efeito imediato, sabia?".
"Eu sei...", ela respondeu, constrangida. "É que... Ah, Xiaolang... Você voltará a enxergar! Isso não deixa você entusiasmado?".
O guerreiro nada respondeu. Tinha passado os últimos cinco anos de sua vida na escuridão e mais do que ninguém almejava por aquilo, mas não queria ter falsas esperanças. Eriol disse que, devido a demora do tratamento, talvez o soro tivesse uma reação mais lenta do que imaginavam ou nem fizesse efeito. O que significaria que ainda estaria cego quando Ken invadisse a mansão, dali a quatro dias.
"Sim, Sakura...", ele disse por fim, mas de uma maneira tão fria que até espantou a moça.
"Xiaolang... O que há? Está sabendo de alguma coisa que eu não sei?", Sakura sentiu um frio na barriga e o coração disparar de nervoso e medo.
"Não é nada, minha flor", Li tentou confortá-la, segurando-lhe as mãos entre as suas. "Estou preocupado com as coisas que estão por vir, apenas isso. Vai fazer o que pedi, não vai?".
"Não posso deixá-lo aqui, Xiaolang...", ela sentiu os olhos arderem, com vontade de chorar.
Eles tiveram aquela conversa na noite da partida de Tomoyo e Sato. Xiaolang havia pedido à Sakura para partir para a cidade um dia antes que Ken chegasse, junto com as outras mulheres da casa. Lá elas procurariam a polícia e ficariam longe da batalha. Li temia pelo mal que aqueles marginais poderiam inferir à sua noiva e suas empregadas. Estava tomando providências para protegê-las dos homens da gangue de Ken. Escrevera para a mãe, contando-lhe tudo o que estava acontecendo e pedindo abrigo para Sakura e as demais. Se algo lhe acontecesse, sua flor não ficaria desamparada.
"E eu não posso deixar que fique aqui e se exponha ao perigo, Sakura... Quanto antes partir, será melhor...".
A jovem abraçou-se ao noivo como se não houvesse amanhã. "Não vou deixar você, Li Xiaolang. Nada no mundo vai me afastar de você...".
"Sakura...", ele a beijou suavemente nos lábios. "Talvez nós não possamos derrotar Ken... E ele pode nos matar... Não quero que isso aconteça a você... Vá para a cidade, logo um mensageiro de minha mãe irá buscá-la".
"Não irei, Xiaolang", ela estava irredutível. "Ficarei aqui e lutarei por esta casa, que se tornou meu lar, e por você, que se tornou a minha vida. Eu amo você e não vou partir".
"Também amo você, Sakura".
Os dois se beijaram com fervor. Li passava suas mãos pelo corpo pequeno e frágil de sua noiva, desejando poder mudar seu passado, assim teria um homem inteiro para defendê-la. Desfez o coque que prendia os cabelos dela e passou os dedos longos pelas madeixas castanhas. Lentamente, foi inclinando Sakura na cama. Esta mergulhara de cabeça na paixão. Sentia todo seu corpo arder e vibrar, ansiando pelos toques, pelos beijos de Xiaolang. Se iriam morrer naquela 'guerra' contra Ken, antes ela ia entregar o que tinha de mais importante para Li: seu corpo, pois seu coração já era dele há muito tempo.
Sentindo a noiva tremer em seus braços, Xiaolang hesitou. Não queria machucar, nem assustar Sakura, mas precisava dela. "Não tenha medo", ele sussurrou, com voz rouca, no ouvido dela.
"Com você jamais terei medo...", foi a resposta de Sakura.
Experiente, Li sabia como provocar e estimular uma mulher. E mesmo lhe faltando a visão, usava seus instintos e seus demais sentidos para aumentar o deleite de sua flor. Então, o casal se entregou, sem reservas, ao amor. Depois do prazer que alcançaram, ficaram deitados na cama, abraçados, pernas entrelaçadas. Xiaolang passava os dedos longos nas costas dela, numa carícia lânguida e sensual, enquanto Sakura ouvia as batidas do coração do amado, com a cabeça no peito dele.
"É sempre assim?", ela perguntou de repente.
"Como?".
"É sempre assim... entre um homem e uma mulher?", ela indagou de novo.
"Não...", respondeu Xiaolang. "O que aconteceu conosco aqui foi único e especial, Sakura".
"E agora?", ela ergueu-se um pouco, para fitar o rosto másculo.
"Agora o quê?".
"O que será de nós, daqui pra frente?".
Ele a abraçou mais apertado. "Daqui pra frente, você será minha mulher, Sakura Kinomoto. E quando toda esta confusão acabar, nos casaremos, teremos nossos filhos e seremos felizes".
"Eu te amo, Xiaolang".
"Também te amo, Sakura".
* * *
E do outro lado da mansão, Eriol não conseguia mais conciliar o sono. Andando de um lado para o outro, o médico pensava na conversa que tivera com Tomoyo. Estava preocupado com a moça e tinha medo que ela tomasse alguma atitude precipitada e desesperada. Sentia uma queimação na boca do estômago e decidiu manter o olho na bela ladra.
Saiu apressado de seu quarto, dirigindo-se diretamente para os aposentos da jovem. Bateu na porta, mas não houve resposta. Bateu novamente e esperou. Nada. Sentindo a queimação aumentar, abriu a porta devagar, apenas para deparar-se com o dormitório vazio. E, pela janela aberta, entrava a leve brisa noturna.
"Droga!", praguejou, enquanto corria para os estábulos. Ao chegar nas coxias, encontrou Tomoyo, vestida de negro, arrumando um alforje em seu cavalo. "Que diabos você pensa que está fazendo?", ele perguntou com raiva, puxando-a pelo braço.
"Você sabe o que vou fazer, Eriol...", respondeu ela no mesmo tom. "E não adianta tentar me impedir. Vou tirar Dae daquele lugar. De qualquer maneira".
"Isso é loucura, mulher!", disparou ele. "Eles podem pegar você... Quer morrer?".
"Já discutimos isso e eu não vou mudar de idéia!", Tomoyo replicou. "Entenda, Eriol... Não posso deixar aquela menina lá, sofrendo... O que vai acontecer com ela quando Ken resolver partir? Ele vai matá-la! Já basta o que ela passou até hoje... Não posso ficar de braços cruzados, permitindo que ela padeça mais... Já fiz isso uma vez e não poderei conviver comigo mesma se não fizer algo para ajudar... Não posso deixar ela lá...".
Fitando os olhos violeta, Eriol encontrou determinação e desespero. Sabia que não poderia fazê-la mudar de idéia, porém poderia protegê-la. Assim, tomou sua decisão.
"Está certo...", ele assentiu. "Pode ir. Mas eu vou com você".
"O quê?", espantou-se Tomoyo.
"Também irei. Vou ajudar você. Não deixarei que passe por tudo isso sozinha".
Ela o alertou. "Pode ser perigoso".
"Mas isso não está impedindo você, está?".
Tomoyo deu um leve sorriso. "Não... Não está". E depois agradeceu. "Obrigada, Eriol".
"Não me agradeça ainda", disse ele, sério. "Se quiser me agradecer, faça isso quando voltarmos vivos de lá". Em silêncio, Eriol voltou para a mansão. Trocou de roupa, pegou algumas provisões e sua espada. Não demorou muito para reencontrar Tomoyo no estábulo. Ela havia preparado outro cavalo para ele.
E depois de darem uma desculpa para o sentinela no portão, os dois partiram para a fazenda dos Wong, na calada da noite, para salvarem a jovem Dae.
* * *
A noite se foi, veio o dia e Eriol e Tomoyo ainda cavalgavam. Apesar de cansados pela noite mal dormida, ambos faziam o trajeto sem reclamar, dispostos a terminar de uma vez com aquela história. Queriam logo chegar ao acampamento e, por isso, seguiam num galope moderado, para não cansarem muito os cavalos e não precisarem parar para descansar. Estava no fim da tarde quando chegaram à margem do rio que passava por trás da casa dos Wong.
"Vamos esperar até ficar escuro", disse Tomoyo, em voz baixa. "Quando os homens estiverem jantando, poderemos entrar na casa".
Eriol concordou e soltou os cavalos, levando-os à beira da água para matarem a sede. Sentada no galho de uma árvore, Tomoyo contemplava a tranqüila vista, tão diferente do tumultuado momento que ela e seus amigos estavam vivendo. Ajeitando-se no lugar, sentiu uma lâmina fria lhe incomodar. Era uma de suas kunais. Suas companheiras de crime. Sempre que fazia um roubo, Tomoyo as levava, apesar de nunca tê-las usado para matar alguém. Sentia-se segura e protegida com elas. As kunais eram, para ela, uma espécie de amuleto da sorte.
A escuridão foi envolvendo-os devagar. A noite sem lua era ideal para um ataque silencioso. Quando acharam que era o momento oportuno, Tomoyo e Eriol seguiram pela trilha até alcançar os fundos da casa. O médico ficou nas proximidades, vigiando, enquanto Tomoyo, sorrateira quanto um gato, entrava na habitação. Ela encontrou Dae novamente no quarto. A menina estava encolhida, de olhos fechados, num canto do aposento. Tomoyo sentiu o coração confranger-se diante de tal cena.
"Dae", ela chamou, baixinho. A menina levantou a cabeça assustada. Encolheu-se ainda mais no seu cantinho.
"Não precisa ter medo, Dae...", continuou Tomoyo, falando com voz doce, enquanto se aproximada. "Lembra-se de mim?". Quando a garota assentiu, a ladra deu um sorriso. "Sabe, Dae... Eu voltei para buscar você".
Nos olhos arregalados da jovem, Tomoyo pode ver medo e descrença.
"Estou falando a verdade. Eu e um amigo meu viemos tirar você daqui. Nossos cavalos estão lá no rio...". Tomoyo olhou para os lados. "Não podemos perder muito tempo. Venha, vamos embora", disse ela, estendendo a mão para Dae.
Dae olhava hesitante para aquela mão estendida em sua direção, com medo que ela fosse uma aparição, fruto de seu desespero. Trêmula, ergueu-se devagar e tocou de leve na mão da moça de olhos violeta. Sentiu o coração disparar ao ver que ela era real e estava querendo tirá-la dali. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Desde que Ken e seus homens se instalaram em sua fazenda e assassinaram seus pais e irmão, Dae orava, implorando por um milagre. Já estava perdendo as esperanças e seu corpo já não suportava mais tanta agressão, quando aquela mulher, de feições delicadas, apareceu, dando-lhe uma oportunidade de fugir.
"Vamos?", perguntou Tomoyo. Dae assentiu com a cabeça. As duas saíram devagar e em silêncio. Encontraram Eriol na entrada do bosque.
"Você demorou, Tomoyo...", ele reclamou os sussurros.
"Não deu pra evitar", respondeu ela. "Vamos logo".
Eriol olhou para a garota que acompanhava a ladra. Devia ser uma adolescente por volta dos quinze anos. Apesar da pouca claridade da noite, Eriol pôde distinguir bem as marcas de agressões que ela tinha no rosto e no resto do corpo, que não estava coberto pela rota túnica. Sentiu ódio de Ken.
Voltaram pela trilha, tomando cuidado para que não fizessem barulho. No entanto, Dae estava fraca e tropeçou num galho seco, causando um ruído alto.
"Dae, está tudo bem? Se machucou?", inquiriu Tomoyo, ajudando a menina a se levantar. Esta concordou com a cabeça, tirando a poeira da roupa.
De repente, passos foram ouvidos ali perto. Gelados no lugar, os três não sabiam o que fazer. Tomoyo fitou Eriol de olhos arregalados, enquanto Dae agarrava-se à assaltante, buscando amparo.
O som dos passos foi ficando mais alto e, de um dos arbustos, saiu um homem alto, de cabeça raspada. Os olhinhos de azeviche fixaram-se no trio e se estreitaram ao reconhecer a garota do chefe e a ladra.
"Ora... O que temos aqui? A pequena vadia, a bandida e um otário... Aonde pensam que vão?", perguntou com deboche. "Acho que mestre Ken ficará satisfeito quando eu levar vocês até ele...". Ao sorrir, sua gengiva com poucos dentes ficou à mostra.
"Não quero voltar...", choramingou Dae, caindo no chão. "Não quero voltar...".
Eriol preparou-se para lutar. Mesmo que o careca fosse o dobro do seu tamanho, faria de tudo para defender Tomoyo e a garota. Postou-se diante das duas e avaliou seu oponente. O homem era grande, gordo e não muito musculoso, o que possivelmente fazia dele um lutador lento. Isso seria uma vantagem.
"Ah! O idiota quer lutar?", o homem riu com gosto. "Tudo bem, frangote. Vamos lutar e depois que eu quebrar todos seus ossos, vou me divertir com a vadiazinha do chefe e com essa vagabunda aí...".
Tomoyo viu o grandão se aproximar e desferir um soco em Eriol, que habilmente desviou, agachando-se e usando o impulso de seu movimento, aplicou uma rasteira no adversário. O careca caiu no chão, seu impacto causando um leve tremor no chão.
Zangado, o homem se levantou. "Ninguém derruba Zung! Ninguém!". E dando um urro, partiu para cima de Eriol.
No entanto, Zung parou no meio do caminho. Levando as mãos ao pescoço, sentiu uma faca. E um líquido quente. Sangue. Seu sangue. Erguendo a vista, olhou para quem fizera aquilo. A mulher de pele clara estava de pé, segurando uma segunda kunai, pronta para atacá-lo de novo.
"Maldita vadia...", gemeu Zung, caindo de joelhos no chão, agonizando. Puxando lentamente a kunai do pescoço, ele gemeu mais uma vez. "Maldita...". E então, ele sangrou até morrer.
O olhar assombrado de Eriol ia de Tomoyo para o capanga de Ken. Aproximando-se do homem, ele constatou a sua morte. "Ele está morto".
Tomoyo deixou a outra kunai cair no chão. Seus olhos estavam fixos no homem que jazia diante deles. "Matei um homem...", murmurou.
Preocupado com o fato daquela pequena comoção atrair os homens de Ken, Eriol agarrou Tomoyo pelo braço. "Precisamos sair daqui, Tomoyo!". Ela assentiu com a cabeça, sem desviar o olhar do morto. "Vamos!", Eriol chamou de novo. Juntos, eles pegaram Dae e partiram o mais rápido que puderam para os cavalos.
* * *
"Ouviram isso?", perguntou Shun, um dos homens de Ken, parando de comer subitamente.
Todos estavam reunidos em volta de uma grande fogueira, como era de costume na hora das refeições. Enquanto alguns comiam, outros limpavam e afiavam facas e espadas. Junto ao falante grupo, estavam Ken e Sato. Este vinha sendo tratado como um campeão desde a luta com Guang, o que lhe causava imenso desgosto.
"Ouvir o quê, Shun?", Sato quis saber. Como era o que estava sentado mais perto do colega, parecia ter sido o único a escutar sua pergunta.
"Um grito... Você ouviu?".
Franzindo as sobrancelhas, Sato negou. Com todo o barulho das conversas e risadas do restante do grupo, não havia como ouvir muita coisa. Entretanto, Sato conhecia bem Shun, que era um dos melhores rastreadores da gangue, se não o melhor. Alto, magro, nariz aquilino e cara de roedor, Shun era capaz de seguir rastros dificílimos, além de ter visão e audição aguçadas. Por isso, se ele dizia ter ouvido alguém gritar, era bem provável que fosse verdade. Mas, a questão era: quem gritou?
"Vou dar uma olhada por aí...", disse Shun, se levantando.
"Vou com você", falou Sato.
Os dois seguiram por uma trilha, com suas espadas desembainhadas, prontos para qualquer emboscada, porém nada encontraram. Até chegarem na parte de trás da casa. Lá, entre a habitação e o rio, acharam um corpo, numa poça de sangue.
"É Zung", constatou Shun, depois de dar uma boa espiada no defunto.
"Deve ter sido ele quem gritou", concluiu Sato.
"O que significa que alguém invadiu a fazenda", constatou o rastreador. "Vou avisar mestre Ken".
Sato olhava o corpo flácido, pálido e inerte, estirado ali, pensando em quem na mansão Li tivera coragem de ir à fazenda. Só uma pessoa sabia o caminho. Black Linx. E assim que avistou a pequena faca na mão de Zung, teve certeza que fora ela quem estivera ali. Mas por que?
"E quem foi que fez o serviço?", Sato ouviu o chefe perguntar com um tom de voz desprovido de qualquer emoção.
"Não sa-sabemos, me-mestre... A-acabamos de encontrar o cor-corpo", gaguejou Shun. Ele e os demais se aproximavam. E logo que alcançou a trilha, Ken pousou seu olhar frio no cadáver. Abaixou-se e pegou a kunai que estava na mão de Zung. Virou a arma entre os dedos, sem se importar com o sangue. Depois, fitou Sato de maneira gélida.
"Pegue Shun e rastreie a área. Encontre o responsável. Agora". Sato assentiu com a cabeça e, junto com Shun, saiu pela noite, procurando quem havia cometido aquela morte.
Ken analisou a kunai. 'É uma arma pequena, leve e discreta... Perfeita para homens de pequeno porte ou então mulheres...'. Em sua cabeça, a imagem da bela Black Linx surgiu. 'Ela não faria isso... Seria preciso muita coragem...'. E um bom motivo, concluiu. Por que Black Linx iria voltar até ali? Que razões ela teria? Apenas para desafiá-lo? Ou ele teria alguma coisa que a interessava?
"Não...", largando a faca no chão, correu até a casa e entrou abruptamente. Olhando em todos os cômodos, não encontrou Dae em lugar nenhum. Foi até o aposento principal, onde guardava suas coisas, e remexeu no seu alforje. De dentro, retirou uma pequena bolsa de couro. Sem pensar duas vezes, abriu-a e pegou o frasco. Tirou a rolha e cheirou.
"Maldita...", grunhiu, apertando o frasco na mão até partir. "MALDITA!". O grito de Ken ressoou pelo acampamento.
Quando Sato e Shun voltaram, encontraram seu chefe na varanda, arrumado para a batalha, com sua espada na bainha e a kunai que matara Zung atravessada no cinto. Notaram o corre-corre dos homens em volta deles. Estavam se preparando para partir. E, talvez, para uma luta.
"Para que lado ela foi?".
"Eles seguiram para o oeste, mestre", informou Shun.
"Oeste...", Ken repetiu a palavra, ponderando. "Perfeito". Olhou para os dois homens à sua frente. "Vão pegar suas coisas. Estamos partindo".
Sato e Shun se entreolharam. "Para onde, mestre", perguntou Sato.
"Para a mansão Li".
* * *
Eriol instigava o cavalo. Porém o animal estava cansado, já que carregava duas pessoas: o médico e a única sobrevivente da família Wong. Foi penoso convencer Dae de que estaria segura com o amigo de Li. E depois de cavalgar tensa e dura como uma pedra, o cansaço da garota falou mais alto. Agora, ela dormia, aninhada nos braços do médico.
Ao lado deles, seguia Tomoyo. O rosto pálido denunciava o tumulto que passava em seu interior. Naquele momento, Eriol imaginava o tormento que ela sofria. Estivera na guerra e vira muitos homens mutilados, agonizantes e até mesmo mortos; cuidara de feridas horrendas e suturara grandes cortes, mas ainda se lembrava da sensação horrível que o invadira quando matara alguém pela primeira vez. Tentava consolar-se, dizendo a si mesmo que se tratava apenas de um inimigo, um bandido que, num momento de vida ou morte, não teria dó nem piedade dele, mataria num piscar de olhos.
Viu Tomoyo balançar de leve na sela. "Está tudo bem?".
Negando com a cabeça, a moça oscilou mais uma vez. "Preciso parar...", ela gemeu.
"Não podemos, Tomoyo. Quando encontrarem o corpo, virão atrás de nós. Precisamos colocar uma boa dianteira e avisar aos outros do perigo".
Mas, apesar das recomendações de Eriol, Tomoyo parou seu animal. Desmontou de maneira abrupta e caiu de joelhos no chão. E, como se o solo fosse tudo que seu corpo estava esperando para desabar, ela começou a vomitar.
Eriol acordou Dae e apeou. Pegou um dos bornais com água e ajoelhou do lado de Tomoyo. "Beba isso, tome. Goles lentos...". Ela fez o que ele ordenou e, pouco a pouco, foi se recompondo. "Está melhor?".
Tomoyo balançou a cabeça. Seu corpo se recuperava do choque, mas ficaria para sempre na sua lembrança a visão de Zung caindo no chão, com sua kunai enviada na veia do pescoço.
"Eu matei aquele homem, Eriol...".
"Era ele ou nós, Tomoyo. Não tinha outra escolha".
"Eu sei... Mas isso não torna as coisas mais fáceis".
"Não, não torna...", o médico concordou. E depois, pôs-se de pé. "Vamos. Precisamos chegar na mansão o mais rápido possível".
Montaram em seus animais e voltaram a cavalgar, desta vez num galope rápido. Tomoyo se sentia mais aliviada depois de esvaziar o estômago. O vento frio que sentia no rosto ajudava-a a se acalmar. Não podia se dar ao luxo de ter um chilique. Precisava estar o mais fria e composta possível, pois sabia que somente coisas ruins viriam dali por diante. Apertou os calcanhares no lombo do cavalo e apressou o passo.
* * *
Estava na hora do almoço e Sakura olhava o noivo andar de um lado para o outro. Aproveitava para admirar o rosto bonito e o corpo másculo. Haviam se amado nas duas noites anteriores e a moça ainda se lembrava, com deleite, dos beijos e carinhos do amado. Mas, naquele momento, Li estava preocupado com o amigo e havia se recusado a comer. Tentava entender o que dera na cabeça de Hiiragisawa para desaparecer daquela maneira. Por que diabos ele havia saído no meio da noite com Tomoyo? Estavam na eminência de uma grande batalha e aquele não era o melhor momento para sumir.
"Xiaolang...", falou a moça. "Acalme-se. Eles devem chegar em breve".
"Não se preocupa com sua prima, Sakura?", ele indagou.
"Claro que sim", respondeu ela. "Mas imagino que eles tiveram um bom motivo para sair".
"Ainda não acredito que ninguém veio me falar sobre essa 'saída' antes". Li estava zangado.
"Seus homens não têm motivos para desconfiar de Eriol", constatou Sakura. "Por que pensariam que ele estava mentindo? Afinal, ele é seu amigo...". Com pesar, Li admitiu que a noiva tinha razão.
Naquele momento, ouve um rebuliço do lado de fora e Sakura correu até a janela para ver. "Ah! Eles chegaram, Xiaolang!", disse ela, exultante. "E... Parece que trouxeram alguém...".
"Quem?".
"Não sei... Parece uma garota...".
"Vamos para fora", chamou Li. O casal saiu e encontrou os amigos na varanda.
"Li", Eriol disse, sério. "Precisamos conversar". Pelo tom de voz do amigo, Xiaolang soube que alguma coisa havia dado errado.
Depois de alguns minutos, todos estavam reunidos na sala. Tomoyo sentou-se ao lado de Dae, enquanto Eriol ficava de pé atrás das duas. Li, Sakura, Masaki, Mu Bai, Lau Ma e o casal Zhang esperavam pelas notícias.
Eriol relatou o que acontecera, acrescentando o que Tomoyo omitira. Explicou que haviam voltado à fazenda para buscar Dae e que, na volta, Tomoyo matara um dos homens de Ken. Um silêncio pesado se fez no aposento quando Eriol terminou a narrativa.
"O que faremos, mestre Li?", perguntou Mu Bai. "A esta hora, Ken já deve estar a caminho...".
"Vamos nos preparar".
* ~ * ~ *
Continua...
N/A: Ah! Finalmente, o capítulo 14!
Gente, eu quero pedir desculpas pela demora... Sinto muito, muitíssimo mesmo! Estava com uns problemas aqui em casa e agora, voltei a estudar... Meu horário ficou ainda menor... Mas farei de tudo para terminar este história, mesmo porque só faltam dois capítulos.
Quero agradecer a todos que enviaram e-mails e deixaram comentários. Obrigada, gente! Também quero agradecer a Kath pela ajuda que sempre me dá. Ela tem sido de grande importância para o andamento deste fic. Valeu, Kath!
Um grande beijo a todos e até o próximo capítulo.
Andréa Meiouh
Em 13/03/2003
