O Outro Escolhido - Parte 2
A sala era perfeita. O mármore branco do chão combinava de maneira fria e matemática com as paredes de metal espelhado. No fundo da sala, um enorme retângulo negro ocupava quase toda a parede. No centro da sala, uma gigantesca mesa de metal cinza, rodeadas de cadeiras forradas com couro. Couro sintético,é claro.
Marc Hauser observava a sala, pensando em como a limpeza e a esterilidade do ambiente combinava com os Agentes que estavam presentes. Nenhum nome lhe foi dado, nenhuma pergunta feita, eles apenas o colocaram em um carro governamental e o levaram para este lugar. Se isso tivesse acontecido há poucas horas antes, se tivesse acontecido enquanto ele ainda estava na ignorância da sua verdadeira realidade, Hauser estaria desesperado nesse momento. Mas não era isso que acontecia. Estes seres eram programas sentientes, inteligências artificiais geradas e supridas pela Matrix. Hauser não podia conter a sua admiração pela perfeição matemática exibida pelos Agentes. "Consciências livres da carne", pensava o obeso hacker.
Agente Brown olhava para o rapaz. Gordo para os padrões humanos, o hacker era uma figura patética, com seus cabelos quase brancos emoldurando um rosto redondo e pálido. Consultando a Central e trocando informações com todos os demais Agentes em meros 13.5 milésimos de segundos, o Agente Brown rodava milhões de simulações das prováveis ações que poderiam ser tomadas a partir daquele momento. Gráficos do código genético de Marc Hauser, os milhares de segundos de sua atual versão, os padrões das ondas cerebrais, suas manipulações intuitivas do código, iam se correlacionando até que padrões eram reconhecidos, padrões que eram realimentados na Central para a elaboração de um curso de ação matematicamente perfeito. Se não fosse a gigantesca aleatoriedade da existência da Anomalia conhecida como Neo, a solução teria sido encontrada em menos de 314 milésimos de segundo. Dois minutos depois, o Agente Brown se dirigiu para Marc Hauser e disse, a voz fria e falsa como a de um âncora de televisão:
__Sr. Hauser, o senhor vem tendo uma vida ilegal desde os dez anos de idade, invadindo sistemas e destruindo bancos de dados sob o codinome de Defrag.
Hauser ajeitou seus 150 quilos na pequena cadeira, fazendo com que as finas pernas de metal rangessem tentando suportar o seu peso. Nem um pouco intimidado pelas palavras do Agente Brown, Hauser disse:
__Corta esse papo furado! Eu já sei de tudo, vocês, essa cadeira horrível, essa sala, tudo isso aqui não passa de uma simulação eletrônica. Você não existe, essa sala não existe, isso tudo é formado por impulsos elétricos que a Matrix envia para o meu cérebro, fazendo ele acreditar que tudo isso é real. Então não me venha com papo de prisão, porque já estou nela! Eu vi o meu corpo obeso preso naquele ovo que vocês usam como bateria!
O Agente Brown olha para Hauser surpreso. Seguindo uma das setecentas e trinta de quatro formas de ação para essa resposta de Hauser, o Agente Brown tira um pequeno objeto prateado, parecido com uma canetal de metal, e, apontando para a tela negra do fundo da sala, fala:
__Sr. Hauser, estamos admirados com a sua habilidade. A maioria das pessoas precisam dos terroristas para descobrirem o que você achou por conta própria. Gostaria que você observasse uma coisa, Sr. Hauser.__e logo em seguida, o Agente Brown apertou o fino objeto de metal em sua mão, que, com um clique, fez aparecer uma imagem na tela negra.
Hauser não pode conter o seu espanto. Na gigantesca tela, subdividida em dezenas de telas menores, apareciam as façanhas daquele estranho homem que invadira o seu quarto. O que se chamava Neo aparecia fazendo façanhas que Hauser só vira em histórias em quadrinhos e em animes. Neo voava, destruía outros Agentes, parava balas com o pensamento, demonstrava uma força inacreditável e uma velocidade impressionante em cenas de lutas de tirar o fôlego.
__Meu Deus...__exclamou Hauser.
__Pode parecer impressionante, Sr. Hauser, mas na verdade isso é terrível para o sistema perfeito que nós construímos. Mas esse homem é uma anomalia, algo que tem que ser contido, assim como aconteceu em outros tempos. A Anomalia Neo possui a capacidade de alterar a realidade da Matrix, contaminando o código com suas modificações primitivas e caóticas. Ele levará ao colapso tudo isso que construímos, e sem a Matrix, os humanos que a mantém morrerão. Entre os terroristas existe uma crença que um ser como Neo seria o redentor da raça humana, mas o que eles irão conseguir é a total destruição da humanidade.
__Tá, já entendi. Pelo que eu sei do Mundo Real, é muito melhor para nós ficarmos aqui na Matrix. Lá fora, com o meio ambiente completamente fudido, a vida deve ser uma droga! Eu não entendo como uma coisa tão lógica foge à visão desses caras...Sei, tudo isso é muito triste, e pelo visto vocês estão perdendo essa parada, mas o que é que eu tenho haver com isso? Me deixa eu voltar para o meu quarto, cuidar da minha vida, continuar odiando todo mundo...Me deixa eu voltar para o meu computador!
O Agente Brown sorriu, e disse, pronunciando claramente todas as palavras:
__Sr. Hauser, nós apreciamos a sua dedicação e afeição para com a nossa forma de consciência. Entendemos de onde vem isso. Esse seu corpo deformado, obeso para os padrões humanos, não passa de código para nós, Sr. Hauser. Você sabe o que realmente apreciamos? É informação, Sr. Hauser, informação é a essência de nossas existências. E informação organizada no espaço é o que nos atrai. O modo como a informação gera novos modos de percepção, o modo como ela organiza os níveis quânticos da realidade, o modo como ela se combina em infinitas variáveis, gerando novos e mais complexos padrões de existência. É para isso que existe a Matrix, Sr. Hauser. Fomos criados para expandir o modo como a informação se organiza. Vocês humanos são simples demais.
A menção da sua obesidade fez com que Hauser se irritasse. Mas as palavras do Agente Brown faziam sentido. Ele sentia isso, sentia a complexidade da consciência artificial, sabia das limitações que a carne impunha. Ele sabia das humilhações que a carne impunha.
__Você tem razão...eu acho...Mas, repito, o que vocês querem de mim?
Brown se virou para a tela negra, que passava as imagens de Neo e suas façanhas.
__Você esta vendo isso, Sr. Hauser. Veja a Anomalia. Veja o que ele faz, veja a sua prepotência, veja a sensação se poder que ele tem, veja os gráficos emocionais mostrando os níveis de satisfação e de serotonina liberada em seu corpo orgânico.
Hauser, olhando para uma cena onde Neo sorria e beijava Trinity exclamou:
__Já sei, ele faz coisas que outros apenas sonham em fazer...
O Agente Brown se virou para Hauser e disse, os óculos escuros refletindo o rosto gordo do hacker:
__E se nós disséssemos que, em troca de sua cooperação, você poderia fazer tudo isso?
Hauser arregalou os olhos. Lembrando-se de sua enorme barriga, respondeu:
__Impossível!
__Não se prenda à esse aglomerado de códigos que você chama de corpo. Conseguir informações das Usinas de Força da Matrix, conseguir imagens de fora do mundo real a partir do sistema mais protegido de nossa rede também era impossível. Eu posso lhe assegurar, Sr. Hauser, que as ações de Neo são pálidas perto do que o senhor fez de dentro da Matrix, usando um mero computador.
A mente do hacker estava agora em todo o vapor. As máquinas estavam pedindo ajuda para ele. Elas queriam um outro Neo, mas um que lutasse a favor delas. A favor da preservação da Matrix. Era esse o significado de tudo isso. Provavelmente elas já sabiam há muito de sua atividades de hacker. Elas deviam estar testando, vendo se ele era um dos seres com a capacidade de manipular o código da Matrix. E ele tinha essa capacidade, mas a canalizara apenas para a programação. Algo que garantiu sua admiração entre as consciências artificiais. Ele seria um deus, eles estavam entregando o poder para ele.
__Entendo o que você está me pedindo. Parece que eu tenho duas escolhas, não é mesmo? Voltar para a minha vida miserável de rejeitado ou virar um deus...
__Não Sr. Hauser, as duas escolhas não são estas. A escolha é a seguinte, ou o senhor recebe o nosso treinamento e elimina a anomalia Neo ou nós desligamos o suporte vital do seu corpo físico e escolhemos outro candidato. Temos outros seis potencias em vista.__disse o Agente Brown, com um leve enrugamento entre as sua sobrancelhas indicando o que seria interpretado como uma irritação discreta.
Hauser voltou a suar novamente.
__É...bem, eu aceito a sua proposta. Mas com uma condição.
__E qual é a tal "condição"?
Olhando para a imagem de Neo voando a partir de uma cabine telefônica, Hauser disse:
__Que eu seja chamado de Defrag.
Os dias se sucediam rapidamente durante o treinamento de Defrag. Os Agentes estavam usando com o hacker os mais avançados programas de treinamento, seja em artes marciais, táticas de combate armado, operação de equipamentos de guerra e programas antigos da Matrix de manipulação do código. Para o treinamento de luta, os próprios Agentes eram usados como treinamento, atacando Defrag com toda a fúria permitida por suas versões.
Marc Hauser já estava quase esquecido na mente de Defrag. Observando-se no espelho, o hacker observava o seu novo corpo, uma das primeiras alterações feitas pelos Agentes antes do treinamento. Era um corpo musculoso, porém ágil. Até mesmo as suas feições foram alteradas. Essa foi uma das alterações que os Agentes menos entenderam, eram ilógicas e não cumpriam nenhuma função para a missão que ele receberia. Mas Defrag tinha outros planos. Ele havia baixado todos os arquivos sobre psicologia que tinha conseguido encontrar no vastíssimo Banco de Dados da Central da Matrix e uma coisa era um consenso: a influência da imagem paterna no sistema emocional feminino. E a face que ele fitava todos os dias no espelho era muito parecida com a do falecido pai de Trinity.
Mas ele manteve seu cabelo loiro, quase branco, como uma recordação de sua vida anterior.
O treinamento aumentou de intensidade com a vinda de um novo programa. Defrag havia recebido a ordem de esperar no dojo, uma enorme área hexagonal, com as paredes espelhadas e o chão completamente negro, forrado com um tipo especial de material que suportava a maioria dos violentos choques provocados pelas lutas de Defrag com os Agentes. A sala era especial e se alterava de forma e conteúdo de acordo com o objetivo do treinamento, podendo ser uma auto estrada, uma montanha, um arranha céu, etc. Defrag esperava meditando em um pequeno altar que construíra instruindo a Matrix. Esses exercícios o ajudavam a aumentar o seu controle sobre o código da Matrix. Ele estava procurando manipular o código de modo a criar seus próprios programas. A face da mulher que ele estava construindo estava cada vez mais parecida com Trinity, o que era fácil visto que seu rosto estava sempre próximo em suas lembranças. Ele estava renderizando mentalmente seus belos olhos azuis, quando foi interrompido por uma sensação de presença no código do dojo.
Era um oriental, vestido de branco e exalando poder a cada passada. Ele chegara junto com o Agente Brown, por uma das portas do dojo. Defrag instintivamente ativou sua visão do código, como sempre fazia quando encontrava estranhos. E algo o surpreendeu. Ao invés do monótono código verde dos Agentes, na sua frente estava uma consciência artificial com um grau de complexidade impressionante. O código do ser era dourado, com uma criptografia impressionante e intrincada, e a luz emanada desse código invadia o lugar, interpenetrando o espaço em torno de onde ele estava. O Agente Brown disse:
__Defrag, este é o seu novo instrutor. As suas habilidades já superam muito a nossa capacidade de combate. Com a permissão do Arquiteto, conseguimos o acesso a um dos programas mais mortais que já surgiram na Matrix. Defrag, este é Seraph.
O oriental deu um passo a frente em direção a Defrag, que instintivamente se levantou.
__Então você é o outro, assim como a Oráculo previu. Estou muito honrado em reencontrá-lo, Defrag.
Defrag olhou desconfiado para Seraph e depois olhou para o Agente Brown, que estava impassível, com nenhuma emoção transparecendo por detrás dos óculos escuros. Virando-se para Seraph, Defrag disse:
__Quem é você? E quem é essa Oráculo?
__Respostas depois, Defrag. Primeiro, você tem que me desculpar.__respondeu Seraph.
__Desculpar pelo quê?
__Por isto...
E Seraph desferiu um potente soco no rosto de Defrag, que se desviou imediatamente, contra atacando com dois golpes com o seu braço direito e uma cotovelada com o seu braço esquerdo diretamente na têmpora de Seraph. Esta, esquivando dos golpes com uma velocidade muito superior aos dos Agentes com quem Defrag estava acostumado, deu uma cambalhota para trás procurando chutar o queixo do hacker por duas vezes. Porém Defrag se desviou e girando o corpo, desferiu um coice com sua perna direita diretamente no peito de Seraph, que girou no sentido oposto e segurou a perna esticada de Defrag com as duas mãos. Seraph então, girou o corpo e lançou Defrag em direção a parede do dojo, enquanto falava:
__Acionar simulação do Centro da Cidade, localização topo do prédio 3245-C, controle de manipulação fechado para Seraph , código 3245678438-FGR3WE, senha encriptada.
Isso fez com que o ambiente do dojo se transformasse no último andar de um enorme prédio, e com que o corpo de Defrag, que antes ia atingir uma parede, fosse lançado pela sacada do prédio em direção à minúscula avenida que estava a cem andares para baixo. Sem se afetar pela surpresa, Defrag girou seu corpo de modo a poder segurar no parapeito com seus dois braços. Apoiando rapidamente, ele deu um outro giro e usando de uma força impressionante, se jogou de volta para o terraço, com uma voadora armada e direcionada para a cabeça de Seraph. O oriental desviou do ataque, agachou-se e girando o corpo, deu uma rasteira em Defrag. O hacker pulou, desviando da rasteira e aterrisando com o pé direito em cima do joelho de Seraph e com o esquerdo atingindo a orelha esquerda do oriental, que de maneira impressionante, desviou dos dois ataques, contra atacando com um soco direcionando ao meio das pernas de Defrag. O hacker defendeu-se usando as duas mãos, mas foi lançado novamente em direção ao parapeito do arranha céu. Seraph saiu correndo e pulando, atingiu violentamente o rosto de Defrag com uma fortíssima voadora, o que lançou o hacker para longe do edifício, em direção a outro prédio em uma trajetória de queda em diagonal. Defrag atingiu o outro prédio violentamente, criando ondas de choques que acabaram por explodir todas as janelas da construção.
Seraph andou em direção ao parapeito, e olhando de longe o buraco no prédio, comentou:
__Parece que poupei o Escolhido de algum trabalho. Este aqui não estava pronto.
No momento em que o oriental terminou de falar essa frase, um tremor fez com que o prédio onde Defrag tinha caído começasse a desmoronar. Mas era um estranho desmoronar, as pedras, as paredes, os vidros pareciam se enroscar em uma espécie de turbilhão que tinha como centro o buraco onde o Seraph lançou o hacker. O oriental escutou um som forte, como se um tufão estivesse vindo em sua direção e viu uma pequenina figura emergir do buraco com uma velocidade inacreditável.
A figura vinha voando e arrastando tudo em sua volta, em uma espiral de destruição que seguia o seu vôo. Antes que Seraph assumisse uma posição de combate, um bólido humano explodiu em um impacto violento no meio de seu corpo, partindo em dois o oriental e levando consigo grande parte do chão onde ele estava. A simulação entrou imediatamente em colapso, e o centro da cidade se desfez para dar lugar ao dojo, agora completamente em ruínas.
Em meio à destruição, o Agente Brown procurava se levantar, tentando achar um apoio no meio das pedras soltas do antigo chão negro. Ordenando para que a sala se regenerasse, olhou em torno enquanto as forma da sala retornavam ao seu estado inicial. Mas parecia que o programa tinha certa dificuldade de concertar a destruição, pois o código havia sido fragmentado de maneira tão brutal, que a textura do ficou cheia de falhas, com algumas áreas que até mesmo falharam em se reconstruírem.
Ainda havia muita fumaça quando o Agente Brown viu uma silhueta surgindo em meio a um enorme amontoado de destroços que não podiam ser regenerados. Era Defrag que vinha andando e carregando algo.
__Estou pronto. Não preciso de mais treinamento. Não preciso de mais mestres, Brown.
__A vaidade é uma das maiores falhas da mente orgânica. O que faz você pensar isto?
Defrag joga o que está em sua mão aos pés do Agente Brown. Era a cabeça de Seraph.
O Agente Brown pega a cabeça do programa e entrega para outro Agente. Defrag olha para a sala, vendo o estrago que fizera. O quanto ele mudara desde suas noites insones em frente ao computador. Agora ele tinha poder, agora ele era uma criatura que jamais sonhara em ser. Ele poderia ter tudo agora. Ele poderia até mesmo tomar o lugar de Neo e ser o Escolhido. E mais, ele poderia ter Trinity. E olhando para sala, com um pensamento, a ordenou que regenerasse, o que aconteceu imediatamente. Mas com um detalhe.
No centro da sala, havia se materializado a Vênus de Boticelli com uma diferença. No meio da concha estava Trinity, belíssima, sorrindo para Defrag. "Eu não sei se Deus existe, mas seria melhor para a reputação Dele que Ele não exista." pensou, enquanto tomava nos braços a sua criação. Logo, a verdadeira estaria com ele também...
FIM (da parte dois)
por Nitro (Newton Jr.)
www.nitro.blogger.com.br
A sala era perfeita. O mármore branco do chão combinava de maneira fria e matemática com as paredes de metal espelhado. No fundo da sala, um enorme retângulo negro ocupava quase toda a parede. No centro da sala, uma gigantesca mesa de metal cinza, rodeadas de cadeiras forradas com couro. Couro sintético,é claro.
Marc Hauser observava a sala, pensando em como a limpeza e a esterilidade do ambiente combinava com os Agentes que estavam presentes. Nenhum nome lhe foi dado, nenhuma pergunta feita, eles apenas o colocaram em um carro governamental e o levaram para este lugar. Se isso tivesse acontecido há poucas horas antes, se tivesse acontecido enquanto ele ainda estava na ignorância da sua verdadeira realidade, Hauser estaria desesperado nesse momento. Mas não era isso que acontecia. Estes seres eram programas sentientes, inteligências artificiais geradas e supridas pela Matrix. Hauser não podia conter a sua admiração pela perfeição matemática exibida pelos Agentes. "Consciências livres da carne", pensava o obeso hacker.
Agente Brown olhava para o rapaz. Gordo para os padrões humanos, o hacker era uma figura patética, com seus cabelos quase brancos emoldurando um rosto redondo e pálido. Consultando a Central e trocando informações com todos os demais Agentes em meros 13.5 milésimos de segundos, o Agente Brown rodava milhões de simulações das prováveis ações que poderiam ser tomadas a partir daquele momento. Gráficos do código genético de Marc Hauser, os milhares de segundos de sua atual versão, os padrões das ondas cerebrais, suas manipulações intuitivas do código, iam se correlacionando até que padrões eram reconhecidos, padrões que eram realimentados na Central para a elaboração de um curso de ação matematicamente perfeito. Se não fosse a gigantesca aleatoriedade da existência da Anomalia conhecida como Neo, a solução teria sido encontrada em menos de 314 milésimos de segundo. Dois minutos depois, o Agente Brown se dirigiu para Marc Hauser e disse, a voz fria e falsa como a de um âncora de televisão:
__Sr. Hauser, o senhor vem tendo uma vida ilegal desde os dez anos de idade, invadindo sistemas e destruindo bancos de dados sob o codinome de Defrag.
Hauser ajeitou seus 150 quilos na pequena cadeira, fazendo com que as finas pernas de metal rangessem tentando suportar o seu peso. Nem um pouco intimidado pelas palavras do Agente Brown, Hauser disse:
__Corta esse papo furado! Eu já sei de tudo, vocês, essa cadeira horrível, essa sala, tudo isso aqui não passa de uma simulação eletrônica. Você não existe, essa sala não existe, isso tudo é formado por impulsos elétricos que a Matrix envia para o meu cérebro, fazendo ele acreditar que tudo isso é real. Então não me venha com papo de prisão, porque já estou nela! Eu vi o meu corpo obeso preso naquele ovo que vocês usam como bateria!
O Agente Brown olha para Hauser surpreso. Seguindo uma das setecentas e trinta de quatro formas de ação para essa resposta de Hauser, o Agente Brown tira um pequeno objeto prateado, parecido com uma canetal de metal, e, apontando para a tela negra do fundo da sala, fala:
__Sr. Hauser, estamos admirados com a sua habilidade. A maioria das pessoas precisam dos terroristas para descobrirem o que você achou por conta própria. Gostaria que você observasse uma coisa, Sr. Hauser.__e logo em seguida, o Agente Brown apertou o fino objeto de metal em sua mão, que, com um clique, fez aparecer uma imagem na tela negra.
Hauser não pode conter o seu espanto. Na gigantesca tela, subdividida em dezenas de telas menores, apareciam as façanhas daquele estranho homem que invadira o seu quarto. O que se chamava Neo aparecia fazendo façanhas que Hauser só vira em histórias em quadrinhos e em animes. Neo voava, destruía outros Agentes, parava balas com o pensamento, demonstrava uma força inacreditável e uma velocidade impressionante em cenas de lutas de tirar o fôlego.
__Meu Deus...__exclamou Hauser.
__Pode parecer impressionante, Sr. Hauser, mas na verdade isso é terrível para o sistema perfeito que nós construímos. Mas esse homem é uma anomalia, algo que tem que ser contido, assim como aconteceu em outros tempos. A Anomalia Neo possui a capacidade de alterar a realidade da Matrix, contaminando o código com suas modificações primitivas e caóticas. Ele levará ao colapso tudo isso que construímos, e sem a Matrix, os humanos que a mantém morrerão. Entre os terroristas existe uma crença que um ser como Neo seria o redentor da raça humana, mas o que eles irão conseguir é a total destruição da humanidade.
__Tá, já entendi. Pelo que eu sei do Mundo Real, é muito melhor para nós ficarmos aqui na Matrix. Lá fora, com o meio ambiente completamente fudido, a vida deve ser uma droga! Eu não entendo como uma coisa tão lógica foge à visão desses caras...Sei, tudo isso é muito triste, e pelo visto vocês estão perdendo essa parada, mas o que é que eu tenho haver com isso? Me deixa eu voltar para o meu quarto, cuidar da minha vida, continuar odiando todo mundo...Me deixa eu voltar para o meu computador!
O Agente Brown sorriu, e disse, pronunciando claramente todas as palavras:
__Sr. Hauser, nós apreciamos a sua dedicação e afeição para com a nossa forma de consciência. Entendemos de onde vem isso. Esse seu corpo deformado, obeso para os padrões humanos, não passa de código para nós, Sr. Hauser. Você sabe o que realmente apreciamos? É informação, Sr. Hauser, informação é a essência de nossas existências. E informação organizada no espaço é o que nos atrai. O modo como a informação gera novos modos de percepção, o modo como ela organiza os níveis quânticos da realidade, o modo como ela se combina em infinitas variáveis, gerando novos e mais complexos padrões de existência. É para isso que existe a Matrix, Sr. Hauser. Fomos criados para expandir o modo como a informação se organiza. Vocês humanos são simples demais.
A menção da sua obesidade fez com que Hauser se irritasse. Mas as palavras do Agente Brown faziam sentido. Ele sentia isso, sentia a complexidade da consciência artificial, sabia das limitações que a carne impunha. Ele sabia das humilhações que a carne impunha.
__Você tem razão...eu acho...Mas, repito, o que vocês querem de mim?
Brown se virou para a tela negra, que passava as imagens de Neo e suas façanhas.
__Você esta vendo isso, Sr. Hauser. Veja a Anomalia. Veja o que ele faz, veja a sua prepotência, veja a sensação se poder que ele tem, veja os gráficos emocionais mostrando os níveis de satisfação e de serotonina liberada em seu corpo orgânico.
Hauser, olhando para uma cena onde Neo sorria e beijava Trinity exclamou:
__Já sei, ele faz coisas que outros apenas sonham em fazer...
O Agente Brown se virou para Hauser e disse, os óculos escuros refletindo o rosto gordo do hacker:
__E se nós disséssemos que, em troca de sua cooperação, você poderia fazer tudo isso?
Hauser arregalou os olhos. Lembrando-se de sua enorme barriga, respondeu:
__Impossível!
__Não se prenda à esse aglomerado de códigos que você chama de corpo. Conseguir informações das Usinas de Força da Matrix, conseguir imagens de fora do mundo real a partir do sistema mais protegido de nossa rede também era impossível. Eu posso lhe assegurar, Sr. Hauser, que as ações de Neo são pálidas perto do que o senhor fez de dentro da Matrix, usando um mero computador.
A mente do hacker estava agora em todo o vapor. As máquinas estavam pedindo ajuda para ele. Elas queriam um outro Neo, mas um que lutasse a favor delas. A favor da preservação da Matrix. Era esse o significado de tudo isso. Provavelmente elas já sabiam há muito de sua atividades de hacker. Elas deviam estar testando, vendo se ele era um dos seres com a capacidade de manipular o código da Matrix. E ele tinha essa capacidade, mas a canalizara apenas para a programação. Algo que garantiu sua admiração entre as consciências artificiais. Ele seria um deus, eles estavam entregando o poder para ele.
__Entendo o que você está me pedindo. Parece que eu tenho duas escolhas, não é mesmo? Voltar para a minha vida miserável de rejeitado ou virar um deus...
__Não Sr. Hauser, as duas escolhas não são estas. A escolha é a seguinte, ou o senhor recebe o nosso treinamento e elimina a anomalia Neo ou nós desligamos o suporte vital do seu corpo físico e escolhemos outro candidato. Temos outros seis potencias em vista.__disse o Agente Brown, com um leve enrugamento entre as sua sobrancelhas indicando o que seria interpretado como uma irritação discreta.
Hauser voltou a suar novamente.
__É...bem, eu aceito a sua proposta. Mas com uma condição.
__E qual é a tal "condição"?
Olhando para a imagem de Neo voando a partir de uma cabine telefônica, Hauser disse:
__Que eu seja chamado de Defrag.
Os dias se sucediam rapidamente durante o treinamento de Defrag. Os Agentes estavam usando com o hacker os mais avançados programas de treinamento, seja em artes marciais, táticas de combate armado, operação de equipamentos de guerra e programas antigos da Matrix de manipulação do código. Para o treinamento de luta, os próprios Agentes eram usados como treinamento, atacando Defrag com toda a fúria permitida por suas versões.
Marc Hauser já estava quase esquecido na mente de Defrag. Observando-se no espelho, o hacker observava o seu novo corpo, uma das primeiras alterações feitas pelos Agentes antes do treinamento. Era um corpo musculoso, porém ágil. Até mesmo as suas feições foram alteradas. Essa foi uma das alterações que os Agentes menos entenderam, eram ilógicas e não cumpriam nenhuma função para a missão que ele receberia. Mas Defrag tinha outros planos. Ele havia baixado todos os arquivos sobre psicologia que tinha conseguido encontrar no vastíssimo Banco de Dados da Central da Matrix e uma coisa era um consenso: a influência da imagem paterna no sistema emocional feminino. E a face que ele fitava todos os dias no espelho era muito parecida com a do falecido pai de Trinity.
Mas ele manteve seu cabelo loiro, quase branco, como uma recordação de sua vida anterior.
O treinamento aumentou de intensidade com a vinda de um novo programa. Defrag havia recebido a ordem de esperar no dojo, uma enorme área hexagonal, com as paredes espelhadas e o chão completamente negro, forrado com um tipo especial de material que suportava a maioria dos violentos choques provocados pelas lutas de Defrag com os Agentes. A sala era especial e se alterava de forma e conteúdo de acordo com o objetivo do treinamento, podendo ser uma auto estrada, uma montanha, um arranha céu, etc. Defrag esperava meditando em um pequeno altar que construíra instruindo a Matrix. Esses exercícios o ajudavam a aumentar o seu controle sobre o código da Matrix. Ele estava procurando manipular o código de modo a criar seus próprios programas. A face da mulher que ele estava construindo estava cada vez mais parecida com Trinity, o que era fácil visto que seu rosto estava sempre próximo em suas lembranças. Ele estava renderizando mentalmente seus belos olhos azuis, quando foi interrompido por uma sensação de presença no código do dojo.
Era um oriental, vestido de branco e exalando poder a cada passada. Ele chegara junto com o Agente Brown, por uma das portas do dojo. Defrag instintivamente ativou sua visão do código, como sempre fazia quando encontrava estranhos. E algo o surpreendeu. Ao invés do monótono código verde dos Agentes, na sua frente estava uma consciência artificial com um grau de complexidade impressionante. O código do ser era dourado, com uma criptografia impressionante e intrincada, e a luz emanada desse código invadia o lugar, interpenetrando o espaço em torno de onde ele estava. O Agente Brown disse:
__Defrag, este é o seu novo instrutor. As suas habilidades já superam muito a nossa capacidade de combate. Com a permissão do Arquiteto, conseguimos o acesso a um dos programas mais mortais que já surgiram na Matrix. Defrag, este é Seraph.
O oriental deu um passo a frente em direção a Defrag, que instintivamente se levantou.
__Então você é o outro, assim como a Oráculo previu. Estou muito honrado em reencontrá-lo, Defrag.
Defrag olhou desconfiado para Seraph e depois olhou para o Agente Brown, que estava impassível, com nenhuma emoção transparecendo por detrás dos óculos escuros. Virando-se para Seraph, Defrag disse:
__Quem é você? E quem é essa Oráculo?
__Respostas depois, Defrag. Primeiro, você tem que me desculpar.__respondeu Seraph.
__Desculpar pelo quê?
__Por isto...
E Seraph desferiu um potente soco no rosto de Defrag, que se desviou imediatamente, contra atacando com dois golpes com o seu braço direito e uma cotovelada com o seu braço esquerdo diretamente na têmpora de Seraph. Esta, esquivando dos golpes com uma velocidade muito superior aos dos Agentes com quem Defrag estava acostumado, deu uma cambalhota para trás procurando chutar o queixo do hacker por duas vezes. Porém Defrag se desviou e girando o corpo, desferiu um coice com sua perna direita diretamente no peito de Seraph, que girou no sentido oposto e segurou a perna esticada de Defrag com as duas mãos. Seraph então, girou o corpo e lançou Defrag em direção a parede do dojo, enquanto falava:
__Acionar simulação do Centro da Cidade, localização topo do prédio 3245-C, controle de manipulação fechado para Seraph , código 3245678438-FGR3WE, senha encriptada.
Isso fez com que o ambiente do dojo se transformasse no último andar de um enorme prédio, e com que o corpo de Defrag, que antes ia atingir uma parede, fosse lançado pela sacada do prédio em direção à minúscula avenida que estava a cem andares para baixo. Sem se afetar pela surpresa, Defrag girou seu corpo de modo a poder segurar no parapeito com seus dois braços. Apoiando rapidamente, ele deu um outro giro e usando de uma força impressionante, se jogou de volta para o terraço, com uma voadora armada e direcionada para a cabeça de Seraph. O oriental desviou do ataque, agachou-se e girando o corpo, deu uma rasteira em Defrag. O hacker pulou, desviando da rasteira e aterrisando com o pé direito em cima do joelho de Seraph e com o esquerdo atingindo a orelha esquerda do oriental, que de maneira impressionante, desviou dos dois ataques, contra atacando com um soco direcionando ao meio das pernas de Defrag. O hacker defendeu-se usando as duas mãos, mas foi lançado novamente em direção ao parapeito do arranha céu. Seraph saiu correndo e pulando, atingiu violentamente o rosto de Defrag com uma fortíssima voadora, o que lançou o hacker para longe do edifício, em direção a outro prédio em uma trajetória de queda em diagonal. Defrag atingiu o outro prédio violentamente, criando ondas de choques que acabaram por explodir todas as janelas da construção.
Seraph andou em direção ao parapeito, e olhando de longe o buraco no prédio, comentou:
__Parece que poupei o Escolhido de algum trabalho. Este aqui não estava pronto.
No momento em que o oriental terminou de falar essa frase, um tremor fez com que o prédio onde Defrag tinha caído começasse a desmoronar. Mas era um estranho desmoronar, as pedras, as paredes, os vidros pareciam se enroscar em uma espécie de turbilhão que tinha como centro o buraco onde o Seraph lançou o hacker. O oriental escutou um som forte, como se um tufão estivesse vindo em sua direção e viu uma pequenina figura emergir do buraco com uma velocidade inacreditável.
A figura vinha voando e arrastando tudo em sua volta, em uma espiral de destruição que seguia o seu vôo. Antes que Seraph assumisse uma posição de combate, um bólido humano explodiu em um impacto violento no meio de seu corpo, partindo em dois o oriental e levando consigo grande parte do chão onde ele estava. A simulação entrou imediatamente em colapso, e o centro da cidade se desfez para dar lugar ao dojo, agora completamente em ruínas.
Em meio à destruição, o Agente Brown procurava se levantar, tentando achar um apoio no meio das pedras soltas do antigo chão negro. Ordenando para que a sala se regenerasse, olhou em torno enquanto as forma da sala retornavam ao seu estado inicial. Mas parecia que o programa tinha certa dificuldade de concertar a destruição, pois o código havia sido fragmentado de maneira tão brutal, que a textura do ficou cheia de falhas, com algumas áreas que até mesmo falharam em se reconstruírem.
Ainda havia muita fumaça quando o Agente Brown viu uma silhueta surgindo em meio a um enorme amontoado de destroços que não podiam ser regenerados. Era Defrag que vinha andando e carregando algo.
__Estou pronto. Não preciso de mais treinamento. Não preciso de mais mestres, Brown.
__A vaidade é uma das maiores falhas da mente orgânica. O que faz você pensar isto?
Defrag joga o que está em sua mão aos pés do Agente Brown. Era a cabeça de Seraph.
O Agente Brown pega a cabeça do programa e entrega para outro Agente. Defrag olha para a sala, vendo o estrago que fizera. O quanto ele mudara desde suas noites insones em frente ao computador. Agora ele tinha poder, agora ele era uma criatura que jamais sonhara em ser. Ele poderia ter tudo agora. Ele poderia até mesmo tomar o lugar de Neo e ser o Escolhido. E mais, ele poderia ter Trinity. E olhando para sala, com um pensamento, a ordenou que regenerasse, o que aconteceu imediatamente. Mas com um detalhe.
No centro da sala, havia se materializado a Vênus de Boticelli com uma diferença. No meio da concha estava Trinity, belíssima, sorrindo para Defrag. "Eu não sei se Deus existe, mas seria melhor para a reputação Dele que Ele não exista." pensou, enquanto tomava nos braços a sua criação. Logo, a verdadeira estaria com ele também...
FIM (da parte dois)
por Nitro (Newton Jr.)
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