19. ATRAVESSANDO O FOGO



Anne lia um livro, sentada na cadeira em frente à mesa, em seu quarto. Os longos cabelos escuros estavam rigorosamente presos, e, estranhamente, o cabelo combinava com a expressão do seu rosto. Séria, concentrada, sem passar nenhuma emoção. Nem quando o elfo bateu na porta.

- Senhorita Adrianne, senhor Andrew querer falar com senhorita na biblioteca.

Anne desviou o olhar do livro e respondeu sem emoção.

- Estarei lá em três minutos.

Anne anotou algo em um pergaminho, e depois de guardar o livro, se levantou e arrumou a veste de um tom escuro e impessoal que vestia. Em seguida, ela saiu do quarto e foi para a biblioteca. Exatamente três minutos depois do elfo ter deixado o seu quarto, Anne bateu na porta de madeira nobre, e depois de ouvir a autorização do pai, entrou e se aproximou da mesa a qual Andrew estava sentado.

- O que o senhor deseja falar comigo? - ela perguntou sem curiosidade ou raiva, e sem olhar diretamente para o pai.

O homem desviou o olhar dos documentos que estudava e encarou a filha. Andrew Snape havia mudado um pouco no último ano, mas o olhar soberbo e autoritário ainda era o mesmo.

- Estive conversando com Richard Goyle, e está tudo acertado. Você irá casar com o filho dele em outubro.

Um brilho de revolta surgiu no rosto de Anne enquanto ela encarava o pai, mas não durou um segundo. Andrew não havia feito uma pergunta, mas sim uma afirmação, e pela expressão no rosto do homem, ele não iria admitir ser contestado.

- Algum problema? - ele disse quase que desafiando a filha a contrariá-lo, mas uma expressão neutra surgiu no rosto de Anne.

- Não, senhor, de forma alguma.

- Ótimo. Agora saia, a última coisa que eu preciso agora é de uma interrupção - Andrew voltou a atenção para os papéis, e dispensou a filha com um gesto impaciente.

- Sim, senhor - Anne respondeu, sem que o pai demonstrasse ter ouvido, e saiu da biblioteca.

Anne caminhava em passos discretos e silenciosos. Não havia vida em seu olhar, e com a roupa escura, ela quase se misturava às sombras do castelo. Enquanto caminhava pelo longo corredor, sentiu que aquelas paredes a sufocavam. Fazia pouco mais de um ano que havia concluído os estudos em Hogwarts, mas ainda sentia a mesma sensação de aprisionamento, de que estava sendo cercada por todos os lados, que sentiu depois que voltou para casa. Em alguns aspectos, ela continuava sendo a mesma Anne de quando estava com Sirius, mas ela não era mais a mesma garota que queria acreditar que poderia ter esperança. Anne sabia que a vida dela seria assim depois que ela entrou na passagem secreta, há apenas um ano, mas um ano que parecia ter durado uma vida inteira. Esconder-se na passagem salvou a vida de Anne, mas destruiu todos os planos que ela havia feito para o seu futuro.

-x-x-x-

O ataque a Hogwarts não havia dado certo. Sirius e Lílian conseguiram reforçar os feitiços que protegiam a escola até a chegada de Dumbledore, que expulsou os seis comensais antes que eles entrassem no castelo. E depois do segundo ataque sem conseguir os resultados que queria, Voldemort desistiu de atacar Hogwarts.

Anne ficou livre de qualquer ameaça, mas ter que encarar Sirius no salão principal e nas aulas de Poções e Defesa Contra as Artes das Trevas se tornou pior do que tudo o que ela havia passado. O rapaz não evitava olhar para a garota, mas o olhar dele era de desprezo, e com dificuldade, Anne fingia não se importar. A única coisa que poderia fazer a garota sentir-se melhor seria o quadribol, mas depois do ataque, Dumbledore achou mais prudente cancelar o campeonato. Os alunos do sétimo ano pensaram que a festa de despedida também seria cancelada, mas o diretor não cancelou a festa, e na noite anterior ao último dia deles em Hogwarts, houve uma comemoração. Nenhum dos concludentes parecia alegre, apesar da festa, pois dois alunos da Corvinal e uma aluna da Lufa-lufa haviam morrido no ataque a Hogsmeade.

O discurso de Dumbledore na festa de despedida nunca foi esquecido por Anne. Ela nunca esqueceria o momento que o professor entrou no salão, e, sem precisar pedir para os alunos se calarem, começou a falar.

- Durante sete anos, Hogwarts foi um segundo lar para vocês. Em alguns casos, o único lar. - o diretor olhou para os alunos cujos pais haviam morrido, mas também olhou para Anne e Severo e alguns outros sonserinos - Nós tentamos ir além do nosso dever de dar aulas ao longo desses sete anos com nossos aconselhamentos, nossa proteção, mas, especialmente, nós tentamos prepará-los para a nova fase que começará a partir de amanhã na vida de vocês quando deixarem Hogwarts. Todos sabemos o terror que estamos passando. Muitos de vocês sentiram na própria pele. Por causa disso, muitos problemas poderão surgir no caminho de vocês, problemas tão difíceis de resolver, que às vezes vocês pensarão em desistir. Mas o que eu posso dizer para que vocês não desistam nesses momentos é: tenham esperança. Quando vocês acharem que não há mais volta, não se desesperem. Sempre há uma nova chance. Eu só posso pedir para que sejam fortes. Sejam fortes para os que precisam da ajuda de vocês. Sejam fortes para continuar indo em frente. E, acima de tudo, sejam fortes o bastante para acreditar.

O salão estremeceu com os aplausos da maioria dos alunos. Alguns sonserinos deixaram de aplaudir, outros aplaudiram por educação, mas Anne aplaudia por admiração. Ela havia sido teimosa para com o diretor, muitas vezes havia sido rude, mas mesmo assim, Dumbledore sempre a tratou com consideração.

No trem, a garota pensou com tristeza que nunca mais veria o castelo, mas estava conformada. Ela havia feito a sua escolha. Porém, ao contrário do que o diretor havia dito, Anne não poderia escapar.

Andrew não havia conseguido concretizar seu plano de matar a filha, mas não a receberia de braços abertos. Assim que Anne entrou no castelo, ela foi proibida de usar a varinha, e foi avisada que o castelo estava protegido por um feitiço que impedia que ela aparatasse e que a passagem que havia no quarto agora estava fechada. Além disso, não poderia entrar em determinados lugares do castelo Snape, inclusive no quarto de Severo, a não ser se soubesse o feitiço, e mesmo se soubesse, ela não tinha a varinha para usá-la.

Mas todo o cuidado de Andrew havia sido para nada. Se ele esperava que Anne gritasse, ficasse enfurecida e protestasse, ele se enganou terrivelmente. Anne não fez nada. Simplesmente entregou a varinha para o pai quando ele pediu, e foi para o quarto, sem se importar se ficaria trancada lá para sempre, ou se o pai havia pensado em outra coisa.

A submissão de Anne surpreendeu Andrew, mas ele achou que tudo não passava de um truque, e manteve as proteções. Com o tempo, porém, o homem se convenceu que as maneiras submissas de Anne eram verdadeiras, devolveu a varinha da filha, e aos poucos, foi retirando as proteções, até que só sobrou o feitiço que impedia a aparatação, mas também não havia necessidade desse feitiço. Anne não tinha para onde fugir, de qualquer maneira.

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Quando Anne passou em frente ao quarto do irmão, ela parou e entrou, esperando que Severo estivesse lá. Não eram raras as vezes em que entrava no quarto e o encontrava vazio. Cada vez mais Severo era requisitado como Comensal, e quando isso acontecia, ele ficava semanas longe de casa, e quando voltava, geralmente estava ferido, sujo e cansado. As semanas longe do irmão eram as piores para Anne, que tinha que suportar a solidão do imenso castelo e o desejo de soltar o grito de rebeldia que mantinha preso na garganta todos os dias.

- Oi, Severo. - ela começou a dizer, mas quando viu as portas do armário abertas e o irmão segurando uma bolsa de viagem, soube que ele iria viajar outra vez, e não conteve a decepção - Outra vez, Severo? Você voltou há poucos dias!

- Você sabe que eu não posso simplesmente deixar de ir - ele respondeu secamente.

Anne olhou indignada. Se tivesse a liberdade que o outro tinha, sairia imediatamente daquele castelo, sem olhar para trás. Ela não podia acreditar que Severo desperdiçava a oportunidade que tinha.

- É claro que você pode! Você pode fazer o que quiser. Pode sair e nunca mais voltar!

Severo desviou a atenção das roupas para a irmã, e disse com firmeza.

- Eu nunca vou deixar você sozinha.

Anne levantou-se, furiosa.

- Pelo amor de Merlin, você deveria aproveitar a oportunidade que tem e nunca mais voltar, você pelo menos tem uma chance!

Severo olhou surpreso para Anne. Fazia um longo tempo que ele não a via daquele jeito. Ela percebeu, e baixou o olhar.

- Eu não deveria ter feito isso...

- Não deveria mesmo - Severo limitou-se a responder com seriedade, enquanto colocava algumas vestes na mala.

Anne sentou-se na beira da cama, e perguntou, tentando recomeçar a conversa.

- Quando você volta?

- Eu não sei. - ele voltou os olhos para a irmã - Você fez a pesquisa do feitiço que eu pedi?

- Ainda não. Estou quase terminando. Você vai precisar dos resultados?

- Uhum. - Severo concordou com um aceno de cabeça - Mas parece que não vai mais ser necessário.

Anne sentiu-se inútil. Severo estava bastante furioso, embora não demonstrasse, e ultimamente, ele quase sempre estava assim. Anne pensava, com medo, que Severo estava ficando igual a Andrew, mas ela não sabia que o irmão agia dessa forma por causa de tudo o que ele passava. Lidar com a morte estava se tornando um hábito, e isso fazia com que qualquer sentimento de bondade desaparecesse ou se escondesse debaixo de uma máscara impenetrável de indiferença. Era a única forma que Severo havia encontrado para manter sua sanidade.

- Eu posso acabar, se você quiser... - Anne disse, humilde.

- Não precisa, eu tenho que ir agora.

- Mas, eu...

Severo interrompeu a irmã.

- Anne, eu tenho que ir agora, entendeu?

O irmão encarou Anne com um olhar de quem não admitiria ser contrariado, fazendo ela se sentir como se fosse uma criança.

- Está bem, eu vou para o meu quarto terminar a sua pesquisa, talvez eu termine antes de você ir.

- Eu irei pegar antes de ir embora.

Em seguida, Anne saiu do quarto do irmão e foi para o seu quarto. Imediatamente, ela começou a terminar uma análise de um feitiço que estava sendo usada pela Ordem para impedir que os Comensais conseguissem usar as varinhas e escapar quando estavam sendo atacados.

Aquele era um feitiço antigo, pouco usado, mas Anne não perguntou para Severo como ele havia descoberto aquele feitiço. Quanto mais ficasse longe dessa guerra, Anne ficaria mais satisfeita. Ela balançou a cabeça, tentando espantar os pensamentos sobre a guerra, e voltou a se concentrar na pesquisa. Durante horas, só escreveu sobre como o feitiço poderia ser desfeito e como poderia ser impedido. Já era noite quando ela terminou o relatório, os olhos ardiam e as mãos estavam cansadas, mas ela estava orgulhosa do trabalho, e voltou para o quarto de Severo.

- Severo, eu terminei o... - ela disse entrando de uma vez no quarto, mas o quarto estava vazio. Decepcionada, ela voltou para o próprio quarto, mas encontrou um dos elfos caminhando pelo corredor - Bennie!

O elfo olhou para Anne, assustado.

- Senhorita Adrianne, eu voltar imediatamente para a cozinha... - o elfo começou a apressar o passo, mas ela o segurou.

- Espera, Bennie, eu quero saber onde está meu irmão.

O elfo parou, e respondeu.

- Senhor Severo ir embora pela tarde.

O elfo continuou o caminho, enquanto Anne olhava para os papéis com tristeza antes de voltar ao quarto.

-x-x-x-

Fazia cinco dias que Severo havia ido embora, porém, para Anne, fazia muito mais tempo. Os dias dela eram vazios, havia pouca coisa a ser feita no castelo com tantos elfos, e, principalmente, havia Andrew Snape. As únicas distrações dela eram os livros da imensa biblioteca, mas nem ler ela podia. A biblioteca estava fechada desde o dia da partida do irmão. Anne, então, ficou a maior parte do tempo no quarto, pensando no que o pai havia dito para ela.

Casar! Anne só havia pensado nisso uma vez, mas evitava lembrar disso. Pensar em casamento fazia com que ela se lembrasse de Sirius, e desde que havia deixado Hogwarts, ela evitava pensar no rapaz a todo o custo. Pensar em Sirius trazia dolorosas lembranças de um futuro que ela nunca teria. O futuro de Anne era, agora, casar-se com Goyle. Os dois estudaram juntos em Hogwarts, no mesmo ano, mas apesar disso, ela nem se lembrava do rosto do rapaz. E iria se casar com ele.

Anne pensava no absurdo dessa situação quando ouviu um grito. Ela saiu do quarto e caminhou apressada.

- Severo? É você? - ela perguntou preocupada, mas em vez do irmão, uma figura miúda e assustada surgiu em sua frente.

- Senhorita Anne, senhorita Anne, senhorita precisar vir comigo imediatamente, senhorita ter que vir comigo!

- Acalme-se, Dittie, eu não estou entendendo nada do que você está falando! - ela disse com arrogância.

O elfo, que pela voz era uma mulher, olhou nervosa para Anne.

- Ah, senhorita, não ser culpa minha, não ser culpa minha!

Anne começava a se impacientar com o elfo. Se algo tivesse acontecido com Severo e ela não pudesse ajudar o irmão, seria culpa dela.

- Fale devagar, eu não estou entendendo...

Antes que Anne pudesse protestar, o elfo a puxou até a biblioteca.

- Não ser culpa minha, senhorita! Dittie estar ir limpar biblioteca, porta estar trancada, Dittie... - o elfo pareceu hesitar, e disse quase num sussurro - Dittie usar magia e abrir porta...

Anne quase riu da expressão de pânico no rosto do elfo.

- Cuidaremos disso depois. - ela disse com autoritarismo - O que aconteceu depois que você entrou?

O elfo fechou os olhos, e soltou um guincho.

- Ah, senhorita Anne, não ser culpa minha, não ser culpa minha!

Anne soltou um suspiro impaciente, e entrou na biblioteca. A primeira coisa que ela sentiu foi o forte cheiro de carne podre, e levou a mão ao nariz, tapando-o. O elfo a seguia, dizendo o tempo todo que não era culpada, mas Anne não viu nada de anormal, exceto pelo mau cheiro. Andrew estava sentado na cadeira em frente à mesma mesa na qual estava quando conversou com a filha, a diferença era que a cabeça estava caída num ângulo esquisito, e o rosto estava de uma cor estranha.

- Oh, Merlin! - Anne soltou uma exclamação de surpresa misturada com susto, e teve que usar de todas as forças para não desmaiar.

Andrew Snape estava morto.

-x-x-x-

Horas depois, a porta abriu abruptamente, e Severo entrou de uma vez no quarto de Anne. Depois que viu o corpo do pai, ela mandou uma coruja para o irmão, e correu para o quarto. Não queria ficar perto do cadáver do pai.

Assim que recebeu a coruja, Severo aparatou para um lugar perto de casa, e quando chegou ao castelo, encontrou a irmã no quarto, sentada no chão, encostada na parede.

- Ele está morto? Tem certeza? - não havia nenhuma preocupação na voz de Severo. Talvez um pouco de medo da resposta que a irmã daria.

Anne acenou positivamente com a cabeça antes de responder, e ergueu os olhos para o rosto do irmão.

- Sim, Severo. Ele está morto - ela disse como se tivesse tentando convencer a si mesma.

Severo olhou para a irmã, duvidando se o que ela havia visto era verdade, e foi para a biblioteca. O cheiro que invadiu as suas narinas deveria ser o suficiente para que acreditasse que o pai estava morto, já conhecia aquele cheiro de morte, mas tratava-se de Andrew Snape, ele só acreditaria quando visse o corpo. E Severo viu. Sentado, com a cabeça caída, na mesma posição que Anne encontrou, o corpo do pai continuava na biblioteca. Severo soltou um suspiro, como se tivesse saído de uma prisão. Agora tinha certeza de que o pai estava morto.

O cheiro da carne em princípio de estado de putrefação começava a dar ânsias ao rapaz, e ele não ficou mais um momento na biblioteca. Não queria carregar aquele odor no corpo pelo resto da vida, e Severo sentia que aquele cheiro já havia penetrado suas vestes. Ele teria que mandar queimar a roupa, e isso o deixou irritado. Aquele era uma das suas melhores roupas.

Com passos decididos, ele foi até a coruja da casa, e escreveu para o Ministério, informando o falecimento do pai.

-x-x-x-

Alguns dias depois, Andrew Snape era enterrado no cemitério bruxo. Anne não desviou o olhar do caixão até que ele foi totalmente coberto por terra. Queria ter certeza de que o terrível homem não poderia mais atingi-la.

Severo segurava a mão da irmã, que estava fria, mas ele não a repreendeu. Ela tinha razão por estar assim. Se ele não tivesse vivido tanta coisa, também estaria assim. O rapaz olhou o caixão descer com um pequeno sorriso irônico. Quem diria que um enfarte fulminante acabaria com a vida de um dos mais cruéis bruxos das trevas?

Com o caixão enterrado, Severo soltou a mão de Anne.

- Vamos embora daqui de uma vez.

Anne concordou com a cabeça. Não estava triste nem abalada, mas não tinha a atitude firme de Severo.

Os dois começaram a sair do cemitério. Eles não podiam aparatar ali, o cemitério era protegido, portanto eles teriam que procurar um lugar discreto para voltarem ao castelo, mas antes que eles saíssem do lugar, um homem alto e bastante magro, com óculos pequenos e penetrantes, e uma barba curta e branca foi até os dois.

- Vocês devem ser os filhos de Andrew Snape, não?

- Sim. Eu sou Severo, e essa é Adrianne. - ele olhou com autoridade para o homem - E quem é você?

- Oh, desculpe minha falta de educação. - o homem disse sem se importar com o olhar do outro bruxo - Meu nome é Gerald Walden. Eu sou o advogado de seu pai.

- Advogado? - Severo perguntou, intrigado - Para quê meu pai precisaria de um?

- Para fazer o testamento dele, por exemplo. - o homem disse com um sorriso astuto - Eu só quero avisar que a leitura do testamento será daqui a meia-hora no Ministério. Agora, se me dão licença...

O bruxo desapareceu, mas ele não havia aparatado. O advogado havia usado uma chave de portal, desaparecendo em seguida, deixando uma Anne encarando um Severo tão espantando quanto ela.

- Você sabia sobre esse testamento? - ela perguntou, intrigada.

- Não, Anne, ele nunca me disse nada sobre testamento. - ele balançou a cabeça, irritado com o pai. Até depois de morto tentava mandar na vida dele e na de Anne - Deve ser só burocracia. Você sabe como ele gostava das coisas do jeito dele.

Anne não respondeu, e com Severo, saiu do cemitério em seguida.

Meia-hora depois, os dois estavam na sala do advogado no Ministério. Todo o poder do advogado era exibido em cada objeto da sala, desde as cadeiras acolchoadas por um tecido de veludo vermelho à pena de ouro em cima da mesa.

Gerald Walden era o único bruxo advogado na Inglaterra. O pai era um trouxa, e a mãe bruxa, mas apesar de também ter sangue bruxo, a magia nunca foi seu principal interesse. Ele sempre achou emocionante o mundo dos advogados, mas quando cresceu, percebeu que poderia unir os dois, e tornou-se advogado no mundo trouxa antes de se especializar nas leis do mundo mágico. Como era um dos poucos advogados que conhecia a fundo a lei dos bruxos e dos trouxas, enriqueceu rapidamente, e ao longo dos anos, se tornou um dos bruxos mais influentes do mundo mágico, graças à sua política de não se importar em burlar a lei.

Anne não sabia disso quando Gerald entrou na sala, mas Severo estava em alerta. Já havia ouvido falar dele, e se preparava para contestar qualquer coisa que ele dissesse.

- Boa tarde. - ele disse, e os Snape se levantaram, mas o bruxo sorriu - Não, podem sentar-se. Vai ser melhor.

Anne olhou tensa para Severo. Estava com medo do que poderia acontecer. Talvez Andrew tivesse encontrado uma forma de aprisioná-los mesmo depois de morto, no final das contas.

O advogado sentou-se atrás da mesa, e com um gesto da varinha, fez com que uma pasta pairasse no ar até descer gentilmente sobre a mesa.

- Eu sei que esse deve ser um momento difícil para vocês - o advogado começou a dizer num tom solene, sem conseguir convencer ninguém -, mas isso é necessário. Nesse papel, o pai de vocês declara sua última vontade, que deverá ser absolutamente cumprida. - ele retirou dois maços de folhas, e entregou um para Severo, e outro para Anne - Cada um de vocês estará recebendo uma cópia do testamento e uma lista de todos os bens do seu falecido pai.

O advogado pigarreou antes de começar a leitura, atraindo a atenção de Anne e Severo.

- "Eu, Andrew Donovan Snape, de plena posse de minha sanidade mental e de livre espontânea vontade, declaro meu filho, Severo Loring Snape, como meu único herdeiro. No caso de falecimento de meu filho, todos os meus bens deverão ser passados para os descendentes de Severo Loring Snape. A guarda de minha filha Adrianne Susanne Snape fica nas mãos de Severo Snape até ela completar 25 (vinte e cinco) anos ou quando se casar. Andrew Donovan Snape, Ashington, 8 de agosto de 1979."

Anne olhou para Severo, sem acreditar. O testamento havia sido feito no dia da morte de Andrew, e nesse mesmo dia, Severo havia viajado para mais uma reunião. Pelo menos foi nisso que Anne acreditou, mas agora ela não estava tão certa. Talvez ele soubesse o tempo todo sobre o testamento. Talvez Severo tivesse inventado aquela viagem somente para não ter que encará-la e sentir pena dela por ela não ficar com nada da fortuna de Andrew. Anne se lembrou de como Severo estava estranho quando foi vê-lo no quarto antes do rapaz viajar.

Se Anne não estivesse tão irritada por causa do testamento, teria percebido que Severo estava tão surpreso quanto ela, talvez mais ainda.

- Isso só pode ser uma brincadeira... - Anne foi a primeira dos dois a falar, sentada na ponta da cadeira, com o orgulho abalado - A maioridade bruxa é aos dezessete anos, eu não seria...

O advogado interrompeu Anne.

- Creio que não seja, senhorita Adrianne. Seu pai era responsável por você, ele poderia escolher quem seria seu tutor e por quanto tempo você seria tutorada. Além disso, o testamento foi protegido por inúmeros feitiços, e assinado por duas testemunhas, como a lei manda. Esse testamento é totalmente válido.

- Não pode ser... - ela disse, encostando-se à cadeira.

Severo colocou a mão sobre a de Anne.

- Não se preocupe, Anne, tudo vai ficar bem.

Gerald Walden levantou-se, e tentando parecer gentil, falou.

- Bem, vocês já têm o testamento do pai de vocês, minha parte está encerrada.

Severo levantou-se, entendendo que o advogado os dispensava, e os dois foram embora. Quando Anne conseguiu pensar em outra coisa senão o testamento, eles já estavam no castelo Snape.

Severo jogou a capa que vestia em uma cadeira e se aproximou da irmã, colocando a mão no ombro de Anne, num gesto protetor. Desde Hogwarts ele sempre a protegeu, e ela gostava disso, gostava da segurança que o irmão transmitia, mas com o tempo, ela percebeu que a proteção de Severo era uma proteção egoísta. Severo queria as atenções da irmã somente para si, e afastava qualquer um que se aproximasse dela. Até mesmo Lestrange só se aproximou dela porque Severo deixou. Anne começava a achar que talvez Narcisa não fosse a única culpada pela solidão dela.

- Não se preocupe, Anne, eu vou proteger você...

Anne se desvencilhou de Severo, e olhou com fúria para o irmão.

- Você sabia sobre esse testamento, não é?

- É claro que não, Anne! Eu estou tão surpreso quanto você, eu... - ele disse sorrindo, achando sem fundamento a opinião da irmã.

- É claro que você sabia! Ele nunca iria deixar você ser meu tutor, a não ser se você o convencesse! Ele sabia que você gostava de mim!

- Se o problema é você ter um tutor, você não deveria se preocupar com isso, pois eu sou seu tutor, e não qualquer eu, e além disso, eu posso... - Severo disse com impaciência por causa da raiva desnecessária de Anne, e pensou que tudo estaria resolvido, mas agora que Andrew estava morto, Anne não iria mais segurar a raiva, e o grito que estava preso explodiu antes que o irmão terminasse a frase.

- Faça o que você quiser!

Em seguida, Anne subiu as escadas, apressada, e foi para o quarto, de onde só saiu na noite seguinte, quando um dos elfos a avisou que o jantar estava servido, e que Severo queria falar com ela.

Por alguns instantes, ela pensou na possibilidade de não descer, mas estava com fome, e também havia tomado uma decisão, então desceu.

Severo estava sentado à cabeceira da enorme mesa, e um elfo afastou a cadeira à direita do rapaz, onde Anne se sentou.

- Temos que conversar - Severo disse, sério.

- Eu também preciso falar com você - ela falou, tão séria quanto o irmão.

Severo olhou sombrio para a irmã.

-Primeiro, vamos comer - ele quase disse que fazia um dia que ela não comia, mas não quis demonstrar preocupação. Sabia que o que a irmã queria era independência, então se calou, e comeu.

Anne fez o mesmo, mas de vez em quando, olhava curiosa para o irmão. Ainda pensava que o rapaz sabia sobre o testamento, pois Andrew não iria querer que Severo ficasse perto dela depois que ele morresse, por isso havia combinado o casamento dela com Goyle. Talvez Severo tivesse feito um acordo com Andrew, e esse pensamento a irritou mais ainda. Anne se achava madura o suficiente para cuidar de si mesma.

Severo e Anne comeram silenciosamente. Só se falaram quando o rapaz terminou de comer.

- Hoje de manhã eu falei com Goyle, e ele concordou comigo quando eu disse que você não se casaria mais com o filho dele. Eu também desfiz o feitiço que impedia aparatação no castelo, mas com relação à sua tutela, eu não vou abrir mão dela. Anne, antes de qualquer coisa, eu queria dizer que não sabia sobre aquele testamento. Dou a minha palavra quanto a isso. Eu fiquei tão surpreso quanto você. Nunca pensei que ele me fizesse seu tutor. Você sabe que ele sempre tentou nos manter separados, seria contraditório se ele me colocasse como seu tutor depois que ele morresse. Eu não sei o que Andrew queria com isso, e fiz questão de não pensar, mas já que ele me nomeou seu tutor, vou cuidar de você até os 25 anos, ou quando você encontrar um esposo à sua altura.

Enquanto Severo falava, Anne percebeu o que Andrew queria quando nomeou o rapaz como seu tutor. Ele só havia criado mais uma prisão para a filha. Andrew sabia que Severo amava a irmã, mas que ele a protegia porque não queria dividir o amor dela com ninguém, e que quando se tornasse tutor de Anne, nunca desistiria disso.

- Está bem. - Anne disse, séria, depois que o irmão falou - Eu aceito você ser meu tutor. Mas com uma condição. Eu vou trabalhar.

Severo encarou a irmã com espanto. Anne nunca precisou trabalhar quando Andrew ainda estava vivo e não dava dinheiro, além do necessário, para ela, então porque ela queria arrumar um emprego, quando o pai estava morto e agora era Severo quem controlava o dinheiro, e poderia dar para ela tudo o que ela quisesse?

- Para quê você quer ter um emprego? Eu posso comprar tudo o que você quiser, agora que eu sou o único herdeiro, o dinheiro é todo meu.

- Exatamente. O dinheiro é seu, e não meu. Ele deixou bem claro no testamento. Eu não tenho direito a esse dinheiro, e nem a continuar nessa casa, não se eu continuar a fazer nada, por isso eu vou precisar de um emprego, para pagar as despesas que você vier a ter comigo.

Severo não segurou uma risada de escárnio.

- O que eu gastar com você não vai ser nenhuma despesa, Anne, mas sim o meu dever.

Anne continuou séria.

- Você pode ser meu tutor, mas não tem nenhuma obrigação de me sustentar. - ela colocou os cotovelos na mesa, e apoiou a cabeça com as mãos - E então, você concorda ou não?

- Muito bem, você pode procurar um emprego.

O rosto de Severo estava impassível. Ele não queria deixar a irmã trabalhar, mas conhecia Anne muito bem, e sabia que ela não desistiria daquela idéia louca, então achou melhor concordar. Quando a irmã soubesse o que significava realmente trabalhar, ela desistiria do emprego e as coisas iriam ser do jeito dele.

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Fazia nove meses que Anne estava trabalhando no Ministério, no Departamento de Reversão de Feitiços Acidentais. Como ela era boa em Transfiguração quando estudava em Hogwarts, trabalhava no escritório de Controle de Catástrofes Transfiguratórias. Ela e mais outra bruxa, Margareth Grant, eram responsáveis em desfazer os feitiços transfiguratórios quando eles não funcionavam como deviam.

Era um trabalho que exigia toda a concentração de Anne. Muitas vezes, deveria desfazer feitiços complicados, mas ela nunca teve nenhum problema. E o dinheiro que ela recebia, entregava quase todo para Severo. Ela guardava uma parte porque isso fazia parte do que havia pensado desde a leitura do testamento do pai.

Anne estava planejando morar sozinha, em uma casa própria, e não de Severo, ou de Andrew. A descoberta de que teria um tutor só adiou a realização do plano para quando conseguisse provar que poderia se sustentar sozinha, e Anne queria provar que era capaz disso com o emprego. Por causa do seu desejo de liberdade, ela teria suportado qualquer espécie de emprego.

Severo não estava suspeitando de nada, e achava que estava satisfazendo mais um capricho da irmã. Para ele, era só mais um capricho passageiro, e como a paixão infantil que ela sentiu por Black, desapareceria logo. Por isso, quando Anne começou a procurar emprego, Severo, usando sua influência, fez com que ela fosse aceita em um cargo no Ministério, mas quando percebeu que Anne não iria desistir do emprego, se arrependeu do que havia feito, pois agora, não poderia fazer com que a irmã fosse demitida sem que ela suspeitasse dele.

Durante esses nove meses, Severo continuou com suas súbitas viagens, desaparecendo sem avisar, e aparecendo do mesmo modo, para ficar somente alguns dias no castelo antes de sumir outra vez. Se Anne lesse o Profeta Diário, saberia que enquanto o irmão viajava, sempre acontecia um ataque dos Comensais.

Naquela manhã de maio, Severo estava em casa. Havia chegado três dias antes, mas Anne não estava em casa naquele momento, estava de plantão, e demoraria para voltar. Aproveitando isso, o rapaz arrumava novamente suas coisas em uma pequena mala de mão. Havia recebido a coruja há apenas cinco minutos, com a mensagem urgente de que teria que viajar outra vez.

Severo não se importou por não poder se despedir da irmã, não gostava de encarar Anne sabendo das famílias que iria destruir nas próximas semanas. Apenas dez dias atrás, ele havia matado um casal de irmãos que o lembrou de si mesmo e da irmã, quando eram crianças. Como ele poderia olhar para Anne depois de ter sido o responsável por separar dois irmãos? Por isso Severo protegia Anne. Não deixaria que fizessem com eles o que ele mesmo fazia com os outros.

No andar debaixo, Anne acabava de aparatar. Ela estava cansada, mas satisfeita. Não pensava que ficaria tão contente com o trabalho, mas na verdade, o trabalho a distraía. Ela tinha que se concentrar somente nos feitiços, a ponto de esquecer dos problemas e de um certo rapaz. Além disso, Meg era uma boa companhia. Ela era três anos mais velha que Anne, e havia estudado na Corvinal, e não tentava ser amiga de Anne a todo o custo.

Anne mal teve tempo para soltar a veste que cobria o seu robe quando, como se tivesse surgido do ar, um rapaz jovem apareceu bem na sua frente, a poucos passos de distância.

Ele não parecia ter mais que dezessete anos. Seus cabelos eram loiros como palha, o rosto era levemente bronzeado e as sardas davam ao rapaz uma enganosa aparência de inocência.

Ela olhou com surpresa para o rapaz, sem entender o que ele estava fazendo ali, mas ele ignorou o olhar de Anne, e passou a encará-la abertamente. O rapaz parecia analisá-la da cabeça aos pés, fazendo Anne sentir-se estranhamente intimidada e impotente, como se não pudesse lutar contra o rapaz e o que quer que ele quisesse saber com aquele estranho olhar, como se ele estivesse atraindo-a com o olhar, e ela simplesmente não pudesse resistir. O rapaz, então, olhou fixamente para ela. A análise havia terminado, mas pelo sorriso no rosto dele, Anne percebeu que ele estava satisfeito.

Anne estava admirada e perturbada com aquele rapaz, e demorou um tempo antes que conseguisse fazer a pergunta que deveria ter feito desde o momento que notou o rapaz.

- Com que direito você entrou aqui?

O rapaz sorriu, e ele pareceu mais jovem ainda para Anne.

- Eu só vim ver Severo. Ele e eu vamos viajar, ele não disse? - pelo olhar intrigado de Anne, ele deduziu que não - Parece que não... Bem, então somos dois. Severo nunca me disse que tinha uma irmã desse jeito.

Era como se o rapaz estivesse enfeitiçando Anne apenas com o sorriso e o olhar. Se a ela tivesse controlando as emoções, teria expulsado o jovem no instante em que ele pisou no castelo. Mas Anne não estava, e quase não conseguiu perguntar, num sussurro.

- Desse jeito como?

O rapaz atravessou a pequena distância que o separava de Anne com passos curtos. Pouco mais de três centímetros estava entre os rostos deles, separando-os.

- Infinitamente misteriosa, e infinitamente tentadora.

O rapaz levou a mão ao queixo de Anne, levando o rosto dela em direção aos seus lábios, mas uma voz irritada impediu o beijo.

- O que você está fazendo aqui? Iríamos nos encontrar na cidade!

Anne piscou, e olhou para as escadas, na direção de onde tinha vindo a voz. E lá estava Severo, olhando com fúria para o outro rapaz, que estava inabalável.

- Você estava demorando, e eu pensei que talvez você precisasse de ajuda - ele disse de costas para Severo, sem desviar o olhar de Anne.

- Eu não preciso de nenhuma ajuda - Severo disse num tom feroz, e pela primeira vez, o rapaz deu as costas para Anne, e perguntou num tom travesso.

- Tem certeza?

- Vamos... Embora... Agora... - Severo disse entre dentes na direção do rapaz, e depois voltou-se para Anne - Estou indo viajar.

Em seguida, ele aparatou, mas o rapaz piscou para Anne antes de desaparecer no ar. Anne ficou parada por alguns instantes. Tinha o pressentimento de que iria ver outra vez aquele rapaz, e de que deveria ter medo disso, mas enquanto uma parte dela estava mais cautelosa, outra parte ansiava por aquele encontro.

-x-x-x-

Aquele misterioso rapaz não saiu da cabeça de Anne. Ela queria vê-lo outra vez, mas também queria ficar longe dele. Nunca havia sentido algo assim, nem por Sirius. Quando estava com Sirius, ela era o perigo, mas agora, o perigo era aquele rapaz, e Anne não sabia se conseguiria resistir.

- Algum problema, Anne?

Com um pequeno pulo, Anne voltou-se para a colega.

- Desculpe, Meg, estava distraída...

- Eu percebi. - ela sorriu, e continuou em um tom animado - Olha o que eu tenho aqui! - e, entregando um envelope para a outra, sentou-se na cadeira ao lado.

Anne abriu o envelope, e sorriu enquanto abria. Era o cheque com o seu salário, e pelo que já havia economizado, precisava somente do salário daquele mês para poder alugar um apartamento em Londres, no mesmo prédio onde Meg morava. Só precisava conversar com Gerald Walden para saber como conseguiria sua emancipação.

- Meg, você me cobre por um momento? Eu tenho que ver uma pessoa.

Margareth olhou perspicaz para a colega, pensando que ela iria ver a pessoa que estava fazendo ela se distrair sempre.

- Claro.

- Obrigada - Anne respondeu, e saiu.

Não demorou muito para que Anne encontrasse a sala do advogado. A secretária, uma bruxa baixa com cabelos crespos castanhos e óculos pequenos demais para o rosto dela, tentou segurar a jovem.

- Ei, você não pode entrar sem hora marcada!

Anne ignorou a mulher. Já estava abrindo a porta, e entrou de uma vez. Gerald Walden estava atendendo um cliente, e os dois olharam espantados para ela.

- Senhor Walden, podemos conversar?

- Senhor Gerald, eu não tive nada a ver com isso, ela entrou de uma vez, e eu... - a secretária apressou-se a responder

- Sim, tudo bem, Gladys, pode voltar para a sua mesa...

A bruxa saiu da sala, enquanto o advogado se levantava, olhando surpreso para Anne antes de responder.

- Senhorita Adrianne... É Adrianne, não é? Bem, senhorita, eu estou com um cliente, mas se você fizer o favor de esperar do lado de fora, eu a receberei assim que terminar a conversa com esse cliente...

- Senhor Walden, eu não posso esperar, é urgente.

O cliente voltou o olhar para a jovem, e percebendo a expressão aflita no rosto dela, se levantou.

- Eu tenho que ir agora, de qualquer forma. Amanhã eu voltarei, Walden.

- Perfeitamente. - e depois que o cliente saiu, ele indicou a cadeira para Anne - Sente-se. O que você deseja? - ele perguntou, depois que ela se sentou.

Anne dobrou as pernas, e aproximou-se da mesa do advogado como se fosse contar um segredo, mas estava séria, e havia um olhar determinado no rosto quando ela falou.

- Eu quero provar que sou capaz de cuidar de mim mesma.

-x-x-x-

Durante toda a viagem, Severo não parou de pensar em Anne. Por nove meses, conseguiu protegê-la, mas desde o dia em que ele havia ido viajar, Severo não estava mais certo de que conseguiria seguir em frente.

Foi com alívio que Severo voltou para o castelo. Fez o possível para apressar a sua volta, e agora que estava em casa, sentia que talvez pudesse manter Anne longe do perigo. Assim que aparatou no castelo, ele foi para o quarto da irmã.

Quando entrou no quarto de Anne, Severo não conseguiu disfarçar um olhar surpreso. A cama estava arrumada, e perto da porta, estavam três malas. Ele ficou parado na soleira da porta, olhando aturdido, até que ouviu a voz da irmã atrás de si.

- Ainda bem que você chegou, eu não gostaria de ir embora sem que você soubesse.

- Ir embora?! - Severo pareceu mais surpreso ainda - Como assim?

- Bem, Severo, eu tenho um trabalho e eu tenho uma casa. O juiz achou que essas provas eram suficientes para que eu pudesse ser emancipada.

- Isso é... - ele gaguejou, mas continuou com firmeza - Nenhum juiz concordaria com isso!

- Os papéis estão no seu quarto, leia e descubra porque agora eu posso fazer o que quiser, independente do que você ache.

Severo contraiu os lábios, e fechou o pulso, tentando não perder o controle. Parecia que tudo o que poderia dar errado estava acontecendo ao mesmo tempo.

- Você não pode sair daqui, Anne! Se você for embora, eu não vou poder proteger você! - Severo disse em tom baixo, mas urgente.

- Você nunca me protegeu! Você sempre me manteve presa, do mesmo modo que Andrew fazia, tanto que ele nomeou você como meu protetor! - Anne gritou com raiva, e de seus olhos saíam faíscas.

Severo não disse nada. Sabia que a irmã estava certa, mas não queria admitir.

- Durante toda minha vida eu protegi você...

- Mas eu nunca precisei de um protetor. - ela interrompeu Severo - Eu só precisava de um irmão. O que eu nunca tive.

No mesmo tempo que disse essas palavras, Anne percebeu que tinha ido longe demais. Ela olhou com arrependimento para o irmão, e os dois ficaram em silêncio, até que Severo começou a caminhar na direção do seu quarto.

Anne olhou aflita para o irmão. Queria ir embora, mas não daquele jeito, com uma briga. Então ela fez uma coisa que havia aprendido a fazer com uma pessoa que conheceu há muito tempo, e essa lembrança doeu, como sempre doía quando ela pensava em Sirius.

- Severo, desculpe, eu não quis dizer isso, eu... - ela disse reconhecendo que havia errado.

- Mas você disse. - ele hesitou uns instantes antes de continuar - E talvez você tenha razão, pelo menos em parte. Eu deveria ter agido mais como irmão, algumas vezes, mas é que você é a coisa mais importante para mim.

Anne segurou as mãos do irmão.

- Eu sei, Sev. Você significa o mesmo para mim. - ela sorriu - Não se preocupe, eu venho visitar você, ou você vai me visitar, afinal, eu nunca sei quando você vai viajar...

Severo concordou com a cabeça, sorrindo, mas não era um sorriso feliz, era um sorriso triste. Finalmente havia percebido que, por mais que tentasse, não conseguiria proteger Anne. Sem perceber, ela estava sendo atraída pelo jovem rapaz, e começava a atravessar o fogo, em sua direção.