Amarga Rotina
Desde que se reencontraram, Mihoshi e Kiyone faziam de tudo pra buscarem uma saída do campo de concentração Dachau e até que viesse tal chance, iam necessitar passar pelos horrores indescritíveis daquele lugar que mais parecia a ante sala do inferno.
Mihoshi agora ficava o tempo inteiro no alojamento de Kiyone, se fazendo passar por sua criada e de certa maneira a salvo dos sofrimentos que recebia, mas em parte triste por não pode estar mais com as crianças com quem gostava de brincar, mesmo aquelas que poderiam cedo ou tarde serem mortas por suas etnias ou origens ou até pelas péssimas condições de saúde recebidas, sendo que os nazistas só poupavam os mais capacitados ao trabalho e quanto ao resto, era câmara de gás, incineração ou sepultados vivos.
Para Kiyone, era pior ainda por precisar exercer seu papel de 'comandante do campo', supervisionando a rotina de serviço e precisando realizar tarefas terríveis para manter as aparências tipo castigar os prisioneiros que não faziam direito seus deveres ou até ordenar alguma execução pra entreter as tropas alemãs. Como forma de poupar o máximo possível de vidas, ela ordenava que os presos tivessem melhores condições de alimentação e vida como desculpa para serem mais produtivos ou do contrário, seriam os soldados a realizarem as tarefas, algo que não lhes agradava. Houve certos questionamentos sobre esse novo regime, mas não teve qualquer contestação devido a comandante ser uma 'oficial de confiança' indicada pelo fuhrer. Todavia, lhe doía o coração ver tanta gente morrer perante ela e não ser capaz de fazer nada pra ajudá-los.
As noites em que recebia seus colegas oficiais em sua casa, a situação era insuportável quando tinha de agir cruelmente com Mihoshi, apresentando-a como sua propriedade e animal de estimação, humilhando-a e a maltratando diante dos horríveis nazistas, porém ficando firme em não permitir jamais que alguém a toque, alegando ser seu 'brinquedo pessoal'. Cada castigo que aplicava nela soava como uma parte de seu coração arrancado. Mihoshi sabia como era necessário agir daquela maneira e aguentava os insultos e castigos impostos a ela, atuando de modo magnífico.
Somente a hora de dormir trazia algum conforto ao coração delas, principalmente Kiyone, tendo diversas noites chorando pela dor e horror que o povo trancafiado passava e de ser, de certo maneira, diretamente responsável por tudo, já que era vista como a líder. Mihoshi buscava consolá-la o mais que possível.
"É pavoroso, Mihoshi. Tantas pessoas passando o terror a cada dia, trabalhando até morrerem e se ficam inúteis, morrem de maneiras mais abomináveis como sufocadas por gás venenoso ou queimadas e tem caso onde ainda estão vivas. Snif, snif."
"Querida, não deixe a dor presa no coração. Pode chorar o quanto quiser. Sei que é difícil, mas tenha confiança e fé. Escaparemos daqui, nós e todos aqui presos, e buscaremos um novo lar. Basta ter esperança e deixá-la crescer."
"O-obrigada, meu anjo. Somente você me deixa de cabeça erguida. Sim, sairemos daqui um dia e até lá, tentarei de tudo pra poupar o máximo de vidas. Me beija?"
"Claro, quando quiser." Aquele gesto trouxe algum alívio ao coração das duas amantes, mostrando que seu amor era puro e verdadeiro e como a fé e a esperança, haverá de se fortalecer e crescer como uma linda planta.
Um mês mais tarde
Após um bem sucedido jantar entre os oficiais de alta escalão que haviam visitado o campo para saber como ia o desempenho de trabalho, Mihoshi terminava de limpar os pratos e talheres usados no jantar, dando graças a Deus por aquela noite ter acabado.
"Que horror tive que passar. Ver aqueles nazistas podres me secando a cada instante e pensando em seus desejos sujos. Entendo quanto foi pra Kiyone precisar me maltratar para manter a fachada. Afinal, eles podiam querer fazer algo pior. Certo, ao menos esta noite terminou, mas rezo que um dia saiamos daqui de uma vez."
"MIHOSHI. MIHOSHI." Kiyone entrou praticamente atropelando os móveis da sala na busca por sua amante. Pelos gritos, não tinha cara de estar portando más notícias. Mihoshi imediatamente foi vê-la.
"Kiyone, o que aconteceu? Alguma tragédia?" Perguntou bem preocupada, mas o rosto de sua companheira de cabelo verde expressava uma reação oposta.
"Que nada, só boa noticia. Aliás, duas delas." "Sério isso? Me conta então." As duas se ajeitaram bem confortáveis no sofá. Via-se como Kiyone parecia radiante e elétrica, muito mais do que no dia em que reencontrou Mihoshi.
"Tá preparada? Se sim, escuta isso. Sabe o sistema de comunicação a base de código morse? Sabe que ando estudando esse código." A loira deu um positivo. "Bem, não somente estou por dentro de como mandar mensagem, ou seja, sei escrever em morse, mas sei onde está o aparelho usado pra enviar mensagens."
"Verdade? E mandou alguma?" "Acertou em cheio, querida. De noite, enquanto tudo estava quieto, entrei na sala onde mandam as mensagens e de posse de um caderno contendo códigos obtidos por espiões, pude fazer contato com uma base norte-americana e dei a localização do campo. Custou pra convencê-los que não era um truque ou embuste e responderam que mandariam soldados para este lado."
"Quer dizer...que teremos ajuda? Vamos poder sair daqui quando chegarem?"
"Na real, iremos sair daqui mais cedo. Esta é a segunda boa notícia." Mihoshi mostrou-se um tanto atrapalhada pelo que tinha ouvido.
"Sairemos cedo? Como assim?" "É que hoje de tarde, todos que estiverem em condições de viajarem, serão levados de trem até outra cidade para troca de prisioneiros. Resumindo, é o nosso bilhete da liberdade."
"Vamos...sair daqui? KIYONE, QUE MILAGRE. ELE SE REALIZOU." Mihoshi agarrou sua amante num forte abraço, mantendo-se junto dela por minutos. Seu rosto se molhava pelo choro de alegria exaustado por tudo aquilo, mas sem aviso, algo lhe passou pelo cérebro. "M-mas, Kiyone. Como irá embora comigo? Como 'comandante' aos olhos deles, precisa ficar aqui. E não vou sair sem você, e não insista."
"Nem vou, pois irei junto. Disse que conduziria o trem pessoalmente para me assegurar de levar a carga com segurança. Traduzindo, vamos dar o fora ao mesmo tempo."
"Mesmo? Ufa, agora me assustei. A ideia de você não estar comigo me fez entrar em pânico. Se algo ou alguém nos separasse..." Kiyone lhe segurou a mão e beijou-a.
"Fica descansada, minha flor. Nada deste mundo irá nos separar, não interessa quem possa ser. Nosso amor é nossa força." Kiyone falou convicta e estando bem segura daquelas notícias que reacenderam sua esperança e alimentou o fogo de fé da companheira. "Agora, temos que nos preparar. O trem parte em duas horas e vou cuidar que fique no vagão anterior ao meu. Dessa forma, não tem perigo de nos perdermos uma da outra."
A moça bronzeada consentiu e voltou ao quarto para preparar a bagagem, pois ia ser uma jornada das mais importantes e a única oportunidade de sair daquela existência maldita.
O trem recebia diversos presos das mais variáveis pessoas, de raças até crentes de suas próprias religiões. A maioria via esta uma chance dourada depois de cada dia de pavor, dor e sofrimento infligido em suas carnes e espíritos. Outros que deviam estar contentes por irem embora sentiam-se abatidos e pesarosos por amigos e parentes falecidos, incapacitados e perdidos que não estavam lá para usufruir do momento de liberdade recebido.
Kiyone supervisionava a entrada dos prisioneiros nos vagões de carga(outra piada dos nazistas era de que os 'indignos', como citava Hitler, deviam ser tratados como animais e portanto, conduzidos como animais), lamentando no intimo o fato de nem todos os presos pudessem estar juntos, mas na mesma hora, feliz de ter tido a chance de resgatar tantas vidas e tirá-las do jugo nazista.
Mihoshi foi a última a embarcar e manteve-se no vagão anterior ao carro de passageiros onde Kiyone viajaria. Seus subordinados quiseram entender seus motivos de cuidar de tamanha tarefa.
"Comandante, está certa disso? Não seria mais prudente um de nós conduzir a troca e a senhora, ficar segura no campo? Sabe de que se algo lhe acontecer..."
"Pode se acalmar, tenente. Quero fazer isso ao meu modo e não ouse me questionar. Gosto de realizar tudo ao meu próprio jeito. Estamos entendidos?" Só bastou a expressão ameaçadora que Kiyone exibiu para o tenente encerrar o assunto na hora. Assim que ficou sozinha, Kiyone viu sua companheira entrar em seu vagão para prosseguir a viagem. Queria de todo coração a companhia dela, mas não podia estragar seu disfarce. Só lhe restou aguardar e rezar que aquilo se encerra-se de uma vez por todas.
O trem se locomovia numa velocidade mediana, dando algum conforto aos presos nos vagões de gado, porém iam se segurando o mais firme que podiam, sendo que tal vagão não era acomodado para pessoas. Mihoshi ficava quieta num canto, sem tentar nada ou dizer coisa alguma. Sabia que falar algo indevido naquele momento resultaria no fim de tudo e perderia assim sua vida ao lado de Kiyone.
Algumas crianças com quem ela brincava no campo se achegaram junto dela, buscando sua segurança e carinho. Para elas, a loira de pele escura era vista como uma irmã ou uma mãe, além de acha-la divertida e extrovertida.
Mihoshi sentia-se confiante de que a esperança e a fé que tanto depositou estavam sendo recompensadas e tão logo a jornada ferroviária chegasse ao fim, iria estar com sua amada num lugar mais seguro e brilhante.
Contudo, seus pensamentos acabaram interrompidos com um súbito balanço, dando a ideia do trem parecer estar tombando, e era o que estava acontecendo.
Minutos antes
Em seu vagão de passageiros, Kiyone mal tocara na refeição diante dela, pensando como todos os prisioneiros deviam estar incômodos e amontoados nos carros anteriores, ainda mais Mihoshi. Por mais que tentasse estar consciente de que ela ia à salvo no carro atrás do dela, preferia mil vezes mais que ela estivesse presente e lhe dando todo amor e carinho reservado aos apaixonados.
Sim, Kiyone se sentia completamente atraída e cheia de paixão pela moça outrora sua melhor amiga e agora, seu grande amor. Nem ligava de ambas serem de sexo igual, já que nunca demonstrou tal atração por mulheres, mas com Mihoshi foi tudo diferente. Bastou saber que ela se encontrava viva e bem que seus sentimentos afloraram ao nível de paixão e com certeza, jamais houve tal paixão por mais ninguém.
"Aguente mais umas horas, Mihoshi. Tão logo o trem pare, sairemos às pressas antes que notem nossa ausência e sumiremos para um lugar mais seguro e próspero. Quem sabe a América. Contam sobre ser um lugar de oportunidades e assim..."
BLAM. O trem deu um solavanco tão violento que a jovem de cabeleira verde escura por um triz não caiu de sua poltrona. Perguntou a alguns soldados recém-chegados.
"Soldados. Dá pra explicar o que se deu?"
"O pior, comandante. Alguns trilhos à frente estão deslocados do percurso, talvez por causa da chuva forte dos dias anteriores e devido a tal, os trilhos não estão bem firmes e temo estarem se soltando."
"Se...soltando? Já falaram com o maquinista pra ir mais devagar ou..." Sem poder completar a frase, o trem foi se sacudindo como um navio no meio de uma tempestade. Ia se jogando gente de um lado pro outro do vagão, alguns até despencaram pra fora, caindo no meio do caminho.
Kiyone se segurou com firmeza, determinada a ir até a locomotiva para ela mesma o trem antes de ser tarde demais. Todavia, nada pôde realizar pois numa última jogada, todo o trem capotou e girou da locomotiva até o último vagão, já que perdera por completo o apoio dos trilhos agora entortados e soltos do seu ligamento. Faltando um pouco para o veículo tombar, tudo que Kiyone tinha em mente era só um nome.
"Mihoshi..." Em seguida, nada mais se ouviu ou foi dito, exceto os gritos dos prisioneiros antes da colisão.
Continua...
