Fuga Em Meio Ao Frio


Parecia ter passado uma eternidade desde o acidente do trem, foi o que imaginou Mihoshi ao recobrar a consciência. Se erguendo com dificuldade em meio a pilha de corpos espalhados pelo vagão, ficou triste como houve tantas mortes de gente com quem compartilhou vários momentos no campo e alguns que nem chegou a conhecer. Felizmente, era um número bem pequeno se comparado ao que tinha embarcado. Sem dúvida, a grande maioria pôde escapar do trem, largando pra trás os que faleceram ou achavam ter morrido.

Mihoshi era abençoada por ter saído viva de um desagradável acidente ferroviário e pra sua sorte, o vagão caiu de rodas pra baixo, ou seja, dava pra sair, porém um tanto sentida pelos pobres infelizes que morreram antes de serem considerados livres.

Olhando ao redor, buscou ver se não havia nazistas de vigia na busca por prisioneiros desgarrados. Por milagre, não tinha nenhum e tudo graças a Kiyone por ter trazido tão poucos guardas, podendo facilitar a escapada, e falando em Kiyone, a loira de pele escura correu até o vagão de passageiros, rezando que sua amiga pudesse estar bem.

Adentrando no recinto, a situação se assemelhava ao vagão dos prisioneiros: todo virado devido ao acidente e os guardas lá dentro, todos mortos no desastre. Mihoshi pensou em chorar pela perda de sua querida companheira, contudo essa reação nem se deu, já que Kiyone, ou ao menos seu corpo, não estava lá. Mihoshi ficou mais tranquila, mas por que ela não se encontrava lá? Achar que tinha fugido e a deixado pra trás, sem possibilidade. Era a pessoa que mais amava e seus sentimentos eram recíprocos. Claro que deve ter se dado algo e iria desvendar, mas antes de ir, pegou um revólver, um fuzil e munição dos soldados mortos, mais um kit de primeiros socorros num armário, roupas e alguma comida e abandonou o vagão tombado, indo com cautela caso mais nazistas estivessem ao redor.


Indo pra longe do trem derrubado, Mihoshi seguiu mata adentro em silêncio com a arma na mão, preparada para o que quer que pudesse se dar. Notou como o tempo pareceu esfriar lentamente, lembrando que o inverno estava chegando e de como a Alemanha era rigorosa nessa estação.

"Brrr. Tá ficando gelado. Bem sei como o frio pode ser de rachar. Tenho que encontrar Kiyone logo e..."

"Vamos lá, cretina. Cadê sua coragem, hein?" Ouviu-se uma voz um pouco mais adiante e a loira resolver ver, temendo ser nazistas que tomaram alguns presos para usá-los como diversão antes de executá-los. Não podendo ficar de braços cruzados por imaginar tal maldade, quis verificar e salvar quem fosse o oprimido ou oprimidos.

Chegando mais perto, haviam três homens com roupas de prisioneiros, sem dúvida fugitivos dos vagões e aos pés deles, uma mulher com a roupa rasgada e bem ferida. Pelo uniforme, era uma oficial alemã e parecia sofrer maus bocados nas mãos deles. Quando viu com mais clareza, Mihoshi na hora reconheceu o longo cabelo verde escuro da mulher.

Kiyone.

Estava aliviada por tê-la achado, mas caiu em pânico ao ver como aqueles homens a espancavam, sem saber quem ela era de fato. A loira de pele bronzeada tinha de agir com urgência ou sua companheira iria morrer. Dava para escutar os sons perversos dos risos emanados daqueles homens que pareciam inofensivos e pobres coitados, contudo, capazes de atos quase tão hediondos como o de machucar uma mulher.

"Kiyone está em apuros. Tenho que agir rápido, e acho que sei como."

"Tá legal, piranha. Não é tão valentona sem seus soldadinhos pra protegerem seu rabo, não é?" Um dos homens segurou Kiyone pelo cabelo, lhe desferindo um forte tapa. "Gostou dessa, vadia?"

"Anda logo, Fritz. Quero dar umas nela antes de matá-la."

"Ele tá certo, Fritz. Vai de uma vez."

"Certo, como queiram, mas vou deixar algo nela pra levar pro túmulo." Fritz puxou uma faca e a aproximou do rosto de Kiyone, só não indo pra mais perto graças a entrada de Mihoshi na clareira.

"Ei, amigos. Parem agora."

"Hão? Parar por quê? Ei, espera. Não é aquela guria que foi morar com um dos nazistas? Qual é a sua? Veio defender seus novos amiguinhos?"

"Nada disso. Fugi do trem porque soldados estavam chegando e capturando todos os presos que viam, os executando sem dó. Escapei, mas temo ter sido vista entrando na floresta. Vocês precisam fugir ou acabarão como os demais."

"Soldados? Vindo pra cá? Eu que não espero por eles, não."

"Nem eu. Vamos rapar daqui. Fritz, larga essa cadela aí e vamos dar o fora." Ambos os homens correram para o leste, esquecendo seu companheiro e as duas mulheres.

"Só vou depois de dar cabo da nazista aqui." O ex-preso já ia desferir o golpe quando Mihoshi o deteve.

"Não perca seu tempo ou irá perder sua liberdade de novo. Sai daqui que eu me encarrego dessa inútil." Mihoshi mostrou o revólver obtido no trem, mostrando uma certa raiva. "Tenho contas pra ajustar com ela e bem mais profundas. Ela me acolheu pra ser sua serviçal e brinquedo de exposição aos colegas militares dela. Cada dia que passei...nem descrevo, mas jurei que daria cabo dela. Olha, pode ir que eu termino o serviço. Vai logo, ou prefere voltar pro inferno?"

Fritz não tinha certeza, mas preferiu não discutir com a arma empunhada pela moça à sua frente, sendo que deu o fora, esperando alcançar seus amigos. Assim que saiu, parou um pouco sem saber se tinha tomado a decisão certa, mas bastou o som de dois tiros para se convencer que ela deu cabo, fugindo pela floresta.

Mihoshi largou o revólver recém-disparado cujas balas somente acertaram uma pedra no chão e tratou de erguer sua amiga ferida, esperando acordá-la.

"Kiyone? Kiyone, por favor, me responde. Tudo bem?"

"Mi...Mihoshi? Há, creio que sim." Ela disse sorrindo apesar das feridas, abraçando sua namorada. "Graças a Deus que nos encontramos. Quando o trem bateu, escapei por um triz de morrer e fui te procurar, mas alguns homens me viram e quiseram me pegar. Pensei em me esconder na floresta e despistá-los para depois vir te buscar, mas me cercaram e daí...bem, pode imaginar o resto. Quando puseram pra me bater, só pensava onde você estaria e se te veria novamente. Como disse, era só ter esperança e acreditar nela."

"Oh, querida. Me apavorei com a ideia de que não a encontraria de novo, mas não desisti e te achei. Espera que vou ajeitar você." Mihoshi tirou de sua bolsa o kit de PS e com o uso de gaze, água e remédios, limpou os machucados mais sérios de Kiyone e os enfaixou, além de lhe dar uma camisa nova, já que sua roupa havia sido toda rasgada. Depois de tratada, se pôs de pé e por milagre, não tinha nenhum osso quebrado ou machucado mais grave.

"Isso deve bastar por hora. Vem e se apoia em mim. Vamos achar um abrigo e urgente, pois o inverno aqui é rigoroso e pode haver soldados na nossa cola."

Kiyone se apoiou na amiga e tratou de andar, o que não exigiu muito esforço embora um tanto fraca da surra que tomou. Todavia, estar junto de Mihoshi, por algum motivo, lhe deu forças pra prosseguir na fuga pela mata, sem notarem que alguém as observava e a seguiu em total silêncio.


Já tinha se passado mais de uma hora desde que Mihoshi e Kiyone se distanciaram do trem acidentado, não parando sob nenhuma circunstância pelo medo de serem capturadas e executadas, se tivessem essa sorte, pois muito pior ia ser fossem levadas de volta ao horrível campo de concentração e por volta disso, o truque de fingir ser uma oficial alemã não ia colar de novo.

O vento frio ia ficando mais forte por causa da chegada do inverno, como previu Mihoshi, e sem um abrigo decente, eram poucas as chances de que sobreviveriam. Embora trêmulas pela queda de temperatura, a vontade de viver era bem mais forte e ambas iam dar sem melhor até que não pudessem fazê-lo mais, algo que não ia se dar agora.

"Brrr. Tá o maior gelo. Mal consigo soltar meus braços por causa disso."

"Mas não podemos parar, Mihoshi. Obviamente, os soldados não terão condições de nos seguirem, já que a neve está cobrindo os rastros. Temos essa vantagem, mas sem um abrigo..." Nisso que Kiyone freou bruscamente, levando o impacto de Mihoshi em sua retaguarda, quase derrubando-a. "Ai, Mihoshi. Toma mais cuidado."

"Ah, me desculpe, mas você parou sem avisar. Como ia evitar?"

"Oh, claro, tem razão. Me desculpa, mas está vendo o que estou vendo?"

Mihoshi fixou seus olhos pra onde Kiyone apontava e notou ser uma grande cabana numa encosta cercada de árvores. Esperançosas pela chance dos moradores poderem abrigá-las, as duas amantes apertaram o passo pra chegarem na casa.

"Olá? Alguém em casa? Por favor, precisamos de abrigo." Kiyone bateu na porta, mas não houve resposta alguma. Novas batidas foram dadas, e nenhum pio emitido.

"Será que saíram, ou está abandonada?"

"Por que não entramos? Sei que não se deve entrar sem convite, mas com o frio que está se formando, não creio que vão se incomodar."

"Pode crer, Mihoshi. Ei, aqui parece ter uma chave." A jovem de cabelo esverdeado pôs a mão num buraco da parede e sentiu algo com a forma de uma chave. Tomando-a, abriu a porta e ambas correram pra dentro, fechando pra evitar a entrada do ar gelado.

"Ufa. Aqui dentro está bem melhor. Quem quer que more ou morasse aqui, pensou em tudo para manter o frio pra fora."

"Verdade, querida, e seja quem for, já não está ou volta aqui há tempos. Veja só." Kiyone passou o dedo numa poltrona, revelando uma grossa camada de poeira. "Os moradores devem ter ido embora daqui quando a guerra começou. Do contrário, não ia estar tão suja."

"Bom, suja ou limpa, aqui é bem escondidinho e dá pra usarmos por uns tempos, assim que limpar tudo aqui." Mihoshi pegou um espanador e se colocou a dar uma geral nos móveis antes de dar uma sentada neles. Kiyone buscou dar um auxílio, saindo da casa pra pegar alguma lenha pra lareira, uma vez que o frio ia se intensificando.

Por sorte, havia um machado guardado num barracão dos fundos, junto com mais ferramentas e com isso, pôde cortar alguns pedaços de madeira pra lenha e ia tr que fazê-lo logo, já que a noite ia caindo gradativamente.


Tão logo terminou de espanar e limpar, Mihoshi deu uma acendida na lareira com a pouca madeira que tinha dentro da casa e foi pra fora ajudar Kiyone a pegar mais. As duas trabalhavam juntas e com vontade, felizes por terem a companhia uma da outra.

"Preciso dizer, Mihoshi. Não sei se ia poder prosseguir sem você comigo."

"Sei como é. Estivemos juntas desde a infância antes da guerra estourar e não importava o que se seguia, nossa amizade lutou contra tudo. Tanto que você se arriscou em vir me procurar, mesmo sabendo do perigo."

"Não há perigo suficiente que me impedisse de ir atrás de você. Minha melhor amiga e agora, minha namorada. E te prometo: assim que fugirmos pra América, quero me casar com você. Você aceita?"

"Mais do que toda a riqueza do mundo." A loira veio pra perto de sua amada e a abraçou, comovida pelo que tinha ouvido e feliz por estar junto de quem mais amava. As duas iam se achegando para se beijarem e na hora que ia se dar, um barulho veio de um arbusto, assustando ambas.

"Aahhh. Quem está aí?" Mihoshi perguntou em pânico.

"Sai daí e não tente nada." Kiyone pegou o machado para defesa. Em segundos, quem saiu da mata era uma menina ruiva de olhar apavorado, tendo em mãos um ursinho de pelúcia. Não parecendo ameaça, Kiyone baixou o machado, lhe sorrindo.

"Uma menininha. Deve ter escapado também e se perdido. Venha, meu bem. Não te faremos mal."

A criança pareceu receosa de começo, mas decidiu ir adiante. Mihoshi e sua amante lhe tomaram as mãos em segurança, mostrando-lhe estar segura.

"Qual seu nome, querida?" Perguntou Mihoshi.

"E-eu? Sou Sasha. Vocês são amigas?"

"Somos sim e fique calma, pois estamos com você. Vamos lá dentro que iremos fazer um bom e quente jantar. Daí, vai se sentir melhor."

Sasha ainda parecia preocupada, mas o argumento simpático de Kiyone lhe afastou o medo e receio, acreditando poder confiar nas duas mulheres que conheceu. Mihoshi a guiou até a cabana com Kiyone segurando a lenha necessária pra se aquecerem naquela que viria a ser a primeira das noites livres do nefasto campo da qual fugiram.

Continua...