Os primeiros raios de luz atravessaram a copa das árvores sem cerimônia.Mais uma vez, os sons e as cores da floresta mudavam do mistério da noite para a beleza do dia.
- Hum...Amanhecendo...
Rin sentiu o Sol chegando, antes mesmo de abrir os olhos.Ainda sonolenta, virou-se de bruços e respirou fundo, sentindo o cheiro de grama dar-lhe novo ânimo.Sentou-se, e com a visão ainda nublada, distinguiu à sua frente os restos da fogueira noturna.
- Sesshoumaru-sama e Jaken-sama já estão acordados...
Caminhou sem pressa na direção do rio, logo avistando as margens úmidas e o curso d'água fluindo tranqüilamente, a perder de vista.Era um lugar bonito.
- Deve ser verdade que os tempos de guerra estão acabando...Mesmo com gente por perto, o rio continua assim, puro...
A primeira coisa que fez foi lavar o rosto para espantar o sono que restava.Depois, olhou com mais cuidado para o seu reflexo.
- Ou será que sou eu pensando em coisas bobas?
Passeando os olhos pela correnteza, encontrou um braço do rio que seguia floresta adentro.Só podia ser aquilo o que dava origem ao seu laguinho escondido.Fixou-se nele.Não esqueceria tão facilmente daquele lugar.
- Foi a primeira vez que Sesshoumaru-sama...Me encontrou...
Lembrou-se do inesperado convite.
- Pode andar ao meu lado?
- Foi a primeira vez disso também...
O reflexo na água ruborizou levemente.Depois, sorriu.
- E eu quase morrendo de vergonha...Ele deve ter percebido, porque eu não disse uma palavra...Se mal conseguia respirar...
Encarou o céu, a única testemunha de suas impressões.
- Parece que eu estou sendo boba de novo, né!
Voltou a olhar seu reflexo.Não costumava fazer isso duas vezes, por isso nunca notava seus cabelos arrepiados e as roupas amassadas de sempre.Suspirou.
- Essa sou eu, e daí.O que posso fazer?
Pensou por um momento, até que pareceu ter uma idéia.Abaixou-se, mergulhando rapidamente a cabeça e encharcando todo o cabelo.Então, torceu-o para retirar o excesso de água e passou os dedos pelos fios devagar, alisando-os.
- Assim fica bem mais fácil!
Por último, endireitou como pôde a faixa e a gola do kimono.Também aproveitou para refrescar os pés, chapinhando-os na água fresquinha, e estava acabado o seu tratamento de beleza.Bem na hora.
- Rin, vamos!!!
Tão logo ouviu aquela voz, correu alegremente na direção de onde ela vinha, ansiosa por mais um dia de caminhada.
- "Ao lado dele novamente, se fosse possível, por um instantinho só!"
- Oh, esssa garota ssempre no mundo da lua!Ela quer nos atrassar, issso ssim!!! – esbravejou Jaken, ao ver que a garota havia sumido dos arredores enquanto ele e Sesshoumaru estavam fora dali.
- Você parece um velho senil, Jaken.É irritante.
- O ssenhor deve ter raszão, Ssessshoumaru-ssama.Mass é que criançass prescissam de dissciplina!
Vendo Jaken falar como um entendido do assunto, Sesshoumaru riu levemente.
- Rin tem mais disciplina do que você.
- ACK! – Jaken pareceu profundamente ofendido, mas não tentou defender-se.Mesmo porque, no fundo sabia ser esta a verdade.Sesshoumaru repreendeu a reação dele.
- Que cara de bebê chorão é essa?Controle-se...Rin, vamos!
Meio segundo após o chamado, os dois youkais podiam ouvir os passos rápidos dela.Jaken deu um suspiro de resignação, já esquecido da "terrível ofensa", e sorriu, ao ver as atenções do mestre fixas na direção de onde Rin apareceria.
- Claro que ele esstá tranqüilo.É ssó chamar uma vesz messmo!E odeio admitir, mass a danadinha conssegue messmo roubar a cena...
- Estou aqui, Sesshoumaru-sama!!! – ela acenou, feliz como sempre.Talvez por ciúmes, ou mau humor matinal, Jaken tentou roubar a cena também.
- Acordou csedo hoje sssó para arrumar esssess cabelosss, imagino...
- Obrigada por notar, Jaken-sama!Eles estavam me incomodando um pouco, sabe? Oh, Unn e Ann estão aqui!!!
As duas cabeças relincharam em cumprimento à garota, que sempre tratara o youkai como um belo mascote, assim ganhando a simpatia dele.
- Tudo bem com vocês?Vocês também acha que estou bonita hoje, como Jaken-sama disse?Ele é muito cavalheiro, não é?
Ela roçava o rosto nos dois focinhos do animal, e, distraída com a chegada dele, não percebia a expressão derrotada de Jaken.Sesshoumaru olhou sério para o servo - o suficiente para faze-lo baixar a cabeça, envergonhado.Mas no fundo, o mestre achava divertido como a meiguice de Rin quebrava qualquer gelo.Qualquer gelo mesmo...
Com o calor do meio-dia, Rin aproveitou a boa vontade do youkai cavalo para tirar um cochilo, confortavelmente instalada no meio das provisões.O silêncio tomava conta do ambiente, como se o calor murchasse os ânimos de tudo.Ou talvez fosse só a ausência da voz da garota.
- Jaken. – Sesshoumaru cortou a quietude.
- Ssim, Ssesshoumaru-ssama?
- Existe uma aldeia humana nas redondezas, não é?
Jaken estranhou muito a pergunta, mas não demonstrou.
- Bem...sse eu não esstou errado, algunss quilometross a nordesste...ssim, é um pouco perto...mass...
- Já está bem.
Jaken imaginou ter notado uma certa alteração na voz do mestre, por uma fração de segundo.
- Será que existem rapazes de bem lá?
Como aquilo parecia mais um pensamento em voz alta do que uma pergunta propriamente dita, Jaken resolveu ficar calado.Mesmo porque, não saberia responder algo assim.Mas Sesshoumaru deve ter captado a curiosidade nos olhos do servo.
- Não posso dizer para você não ficar curioso, não é?
- Ahn?...Eu...
- Mesmo assim, não fique.
- Claro, Ssesshoumaru-ssama!
Discretamente, Sesshoumaru olhou na direção onde Rin dormia, e uma sombra de amargura pareceu passar rapidamente pelo seu rosto.
- Rin, precisamos conversar.Venha,
- Sim!
O céu misturava tons de vermelho e azul, anunciando o crepúsculo.As sombras das árvores começavam a crescer e os pássaros paravam aos poucos de cantar, mas o vento noturno demoraria a vir, mantendo o frio afastado por um tempo.
Sesshoumaru havia parado perto do rio, de costas para Rin.A garota não respirava, com a impressão de que o comportamento do mestre tinha algo de estranho, e que aquilo não devia ser nada bom.Ora, ela o conhecia, ao menos o observava, já a tempo o suficiente para perceber isso.
- Com quantos anos você está agora? – a voz saiu metálica, quase cortante.Rin sentiu-se ainda pior, mas controlou-se e tentou agir como sempre.
- Ahn...Eu estou com 17 anos!
- É, o tempo passa.
Os pássaros calaram-se de vez, e as sombras aumentaram durante o intervalo que se seguiu.Rin não tinha coragem de falar nada, embora o nervosismo a instigasse a isso.
- Já está quase na idade.
- I...Idade? – Sesshoumaru, falando como se estivesse sozinho, levava a menina quase ao pânico.Ela esforçou-se para não sair correndo dali.
- Você cresceu afastada dos costumes de sua espécie, Rin.Mas moças humanas de sua idade pensam no futuro, em casamento.
Ela pensou ter entendido mal, não poderia ser realmente aquela palavra.
- O senhor disse...ca...
- Casamento, sim.Casar, formar família, ter filhos, isso é o que humanos fazem.Não é perambular por florestas e rios, isso é como bichos vivem!
- E youkais... – ela queria ter dito mais, muito mais...Entretanto, agora era como se as palavras morressem na garganta antes mesmo de se formarem.
- E você nunca será nenhum dos dois.
A frieza de Sesshoumaru era terrível, quase palpável, assim como a parede de aço que ele impunha entre ambos.Isso não parecia o afetar, mas doía tanto em Rin que ela tremia da cabeça aos pés.Baixou a cabeça, derrotada, lhe restando apenas a súplica.
- Por que...?Por que está me dizendo essas coisas, Sesshoumaru-sama...?
- Amanhã pela manhã passaremos próximo a uma aldeia humana.Arrume as suas coisas.
Passou por ela como se passa por uma pedra, ignorando totalmente o estado em que se encontrava.Sua voz não se alterara um instante, seus gestos não tiveram uma hesitação durante aquele discurso.Rin compreendera a mensagem final.
- Mas...que...coisas? – nem para isso tinha a resposta.A verdade é que nunca tivera nada seu.Apenas o kimono que vestia – presente de Sesshoumaru quando o anterior ficara pequeno demais...Aquela lembrança piorou seu ânimo.
- Agora já pode cobrir essas pernas.E mantenha-o em bom estado!
- É lindo, Sesshoumaru-sama!!!Vou cuidar dele mais do que qualquer coisa!!!
Deixou que os joelhos cedessem, amolecidos.Acariciou o rosto nas mangas do kimono, exatamente como fizera na primeira vez que o vestira.Naquele dia, não cabia em si de felicidade.Parecia tão distante agora, quando o seu mundo acabava de desmoronar a sua volta.Abraçou-se à roupa, sem querer chorar, sem querer zangar-se, sem querer pensar em nada mais...O crepúsculo se fora, envergonhado por ser a testemunha de tanta maldade...
- Mas...Por quê?
Nem o vento frio, nem as primeiras estrelas da noite, poderiam dizer.
Era uma cena triste de se ver.Era como uma aparição perdida no mundo dos vivos.
Escondido nas sombras, Sesshoumaru observava e entendia cada gesto de Rin.Já a conhecia o suficiente para isso.E tinha consciência do que causara.
- "Perdoe-me, Rin... Você é a última pessoa do mundo que merece ouvir palavras tão cruéis. E só eu sei o quanto adiei esse dia. Talvez tenha feito mal, na verdade tenho certeza de que fui vil, mas... é preciso! Perdoe-me, eu só... eu só quero protegê-la".
A sua vontade era de ir até ela, dizer que havia cometido um grande erro, jurar que nunca mais faria algo assim e que tudo continuaria como sempre fora.Mas conteve-se, sabendo que não poderia retroceder, e ficou a olhar de longe sua Rin.Ficaria ali a noite toda, guardando-a, pela última vez.Era inevitável lembrar-se do acontecimento que o levara à tal decisão.
- "A última herança de meu pai?"
A revelação de Toutousai pegou Sesshoumaru de surpresa, fazendo seu sangue de youkai ferver.
- "Sim... não faz muito tempo que fiquei sabendo disso..." – o velho falava calmamente, sem interromper sua tarefa de ferreiro, ignorando a pressa do ouvinte.
- "Fale de uma vez, homem! De que se trata?"
- "Ora, isso é você quem deve descobrir! A herança é sua, não minha... feh... Eu só tenho uma pista.Quer saber?".
O interesse pela informação fez Sesshoumaru controlar sua língua ferina e não revidar o cinismo.
- "Sim, eu quero saber."
- "Eu imaginei.Feh!Escute...nas terras da Miko imortal...se encontra no cerne sagrado...o símbolo do maior tesouro..."
- "Poderia ser...mais uma das espadas de presa..." – o rosto de Sesshoumaru iluminou-se com a perspectiva.Toutousai fez uma careta.
- "Hum!Se for, não sou eu o ferreiro...então, deve ser outra coisa..."
- "E o que mais poderia ser?"
- "Eu já disse que descobrir é trabalho seu!Feh...quem sabe é uma noiva para você?" – zombou o velho, fazendo Sesshoumaru revirar os olhos.
- "Desde quando isso é um tesouro?"
- "Sei...me engana que eu gosto, Sesshoumaru..." – Toutousai levantou as sobrancelhas, e encarou o youkai marotamente.
- "Mulheres são problemas dispensáveis, se quer saber o que eu penso!" – justificou-se, em tom de encerramento do assunto.
- "Eu sei o que você pensa.É por isso que faz mais de dez anos que anda com a garota humana órfã por aí..."
- "Rin é completamente diferente.E eu já vou-me embora." – dito isso, deu as costas para Toutousai, mas ao chegar a porta, um comentário intencional do velho o fez parar.
- "Vamos ter um casamento em breve..."
- "Como é que é, velho?" – a brincadeira surtiu o efeito esperado, trazendo um brilho assassino ao olhar de Sesshoumaru.Toutousai, porém, tinha uma expressão de pura inocência e calma diante daquilo.
- "Eu só pensei alto, mas a menina já está na idade de procurar um marido, não?O que você pensou que eu quis dizer, hein?"
Sesshoumaru voltou à frieza habitual, entendendo o teor da brincadeira.E intimamente, sentiu-se "pego".Não devia ter dado mostras de sentimento.
- "Rin é completamente diferente, eu já disse."
- "Rin é humana.Não importa o que você diga, isso não vai mudar...e eu sei que você concorda comigo quanto ao que tem de acontecer...não é?"
Um silêncio pesado seguiu-se em resposta.Encarando o ferreiro pela última vez, Sesshoumaru deixou o lugar sem dizer nada.Mesmo fora da cabana, ouviu o último comentário, que parecia mais um aviso.
- "Adiar isso só vai aborrecê-lo! Ela é humana! Feh..."
Já fazia um mês desde essa conversa.Mesmo antes, ele já havia pensando nessa hipótese.Rin crescia, feliz e despreocupada, sob a sua proteção.Mas e se qualquer coisa acontecesse algum dia?A vida de um youkai, por mais forte que seja, é por natureza instável e selvagem.E a responsabilidade dele era mantê-la longe disso o máximo possível.
Agora, uma nova missão surgia.Última herança, Miko imortal, cerne sagrado...Tudo cheirando a mais lutas, perigo e sangue.Independente disso, ela crescia.Logo seria uma adulta, e adultos seguem seus próprios caminhos.
- Eu já havia decidido, sim.Não pode continuar como está, ela...Precisa ter uma vida como deve ser.Casar, formar família, filhos, isso é o que humanos fazem.Minha decisão já estava tomada, as circunstâncias apenas me forçaram a consumá-la.Bah!Como se isso fosse algum consolo!
Ao acordar, Rin pensou ter tido um pesadelo e nada mais.Entretanto, permanecia no cenário da terrível conversa, e soube que aquela tristeza não poderia ser fantasia.
Arranjou forças para correr até o acampamento, que jazia abandonado.Suspirou alto, desolada, ainda esperando ouvir o chamado a qualquer momento.Mas apenas o som do rio estava presente.Após alguns momentos, as folhagens mexeram-se.Rin virou a cabeça, cheia de esperança, sem nem pensar na possibilidade de algum animal faminto surgir.
- Oh!Já essstá aqui!Melhor asssim. – a figura ansiosa de Jaken apareceu, desfazendo a expectativa da menina.
- Ja-jaken-sama...?
- A aldeia humana é por aqui.Vamosss. – indicando uma trilha com a cabeça, Jaken preparou-se para ir.Mas Rin não o seguiu.
- Jaken-sama...o que está havendo?
Jaken encarou-a com um ar de superioridade muito mal encenado.
- Quer ssaber messmo?É ssimpless.Ssesshoumaru-ssama canssou-sse de carregar voscê pra lá e pra cá!
Ela quase gargalhou na cara do péssimo ator, e respondeu com convicção.
- É mentira sua, seu bobo.
Jaken franziu a testa por um instante, e quis replicar com grosseria.Mas a expressão abatida de Rin, marca da noite anterior, o venceu, e ele foi sincero.
- Ele não queria, moleca.Não messmo.Mass é para o sseu bem...
Rin pareceu entender parte da história, de repente.
- Meu bem?????Quer dizer, casar, formar família, filhos, coisas de humano???
- Bem – Jaken media as palavras – Acho que era maiss ou menoss issso...
- Coisas de humanos...Por culpa de humanos, perdi minha família!Nas mãos de humanos, perdi minha dignidade!Sabe quando consegui me sentir bem em toda minha vida?Quando estive com Sesshoumaru-sama!!!E agora me diga Jaken-sama, que bem eu encontraria voltando para esses humanos?
Jaken não conseguiu responder, surpreso com aquela atitude segura da frágil Rin.Ela sabia o que queria, era possível perceber agora.Uma leal seguidora sim, mas do caminho que escolhera.Talvez Sesshoumaru a tivesse subestimado, afinal.
- Por que não dissse tudo issso a ele?
- Eu quis... – ela suspirou – mas é difícil falar depois de levar um soco no estômago, né...
- Vai gosstar de saber, moleca...ele também ssente-sse asssim.
- Jaken-sama...o que está acontecendo de verdade?
- Eu não devia falar issso, mass...ai,ai...Antesss me prometa uma coissa, moleca. Voscê confiará na força de Ssesshoumaru-ssama????
Rin conseguiu sorrir pela primeira vez no dia, como aquela pergunta fosse um presente.
- Eu prometo sim.Eu sempre confiei em Sesshoumaru-sama!E não quero abandona-lo nunca...
- Esstá muito bem, moleca – suspirou ele – Ssó esstou faszendo issso porque voscê me deu motivoss para acreditar em ssua forsça.Trate de não me descepscionar!E nem descepscionar Ssesshoumaru-ssama, que já esstá basstante mal por tudo issso... Rin enrubesceu completamente.Ele, mal por causa dela?Quer dizer, ele gostava dela a esse ponto?Isso era mais do que motivo para aumentar suas forças.
- Po..pode confiar, Jaken-sama!!!
Enquanto contava a verdade, Jaken sabia que aquilo era praticamente uma conspiração contra as decisões do mestre.Mas sabia também que, se cumprisse as ordens, ele voltaria a ser o youkai de alma vazia de antes, e todo o poder que conseguisse não teria significado algum.
