CAPÍTULO 2 - À PROCURA DE EXPLICAÇÕES

Os dois se levantaram, mais do que rápido. Clientes e funcionários passavam direto por eles, olhando de vez em quando para trás, com espanto impresso nas faces.

Eriol e Tomoyo, no contra-fluxo das pessoas, avançaram para dentro do estabelecimento. Ninguém mais se encontrava naquela parte, e apenas uma fumaceira densa restava, encobrindo a cozinha do local.

Andando cautelosamente pela cozinha, Tomoyo fez aparecer seu báculo, não se importando se haveria ali alguém que a estivesse observando, realmente. O perigo do local era imediato; o shopping inteiro poderia pegar fogo, mais tarde, se nenhuma atitude fosse tomada, se o fogo viesse a alcançar o cano do gás.

Ela podia sentir a presença de Eriol, caminhando atrás dela, silencioso como um gato. Parou por um momento, olhando para trás, e reparou que o amigo - seria apenas um amigo? - olhava fixamente para a porta que levava a grande geladeira do local.

A porta estava trancada. Podia-se ver que a fumaça vinha debaixo dela, algo bastante estranho, partindo do ponto de vista que ali era um lugar gelado e pouco provável para ser o local do aparente incêndio.

Os dois caminharam até a porta. Emperrada. Empurraram, com força, e nada aconteceu. Teriam que tentar por magia. Eriol fez o seu discurso e o báculo com o Sol na ponta apareceu. Fazia bastante tempo que aquele báculo tinha sumido da vista de Tomoyo, e a garota fez uma anotação mental para perguntar o porquê disso ao dono do báculo mais tarde.

Eriol olhou para a garota e apontou a porta com os olhos, apenas. Tomoyo entendeu perfeitamente o quê ele queria dizer. Teriam de abrir o local com a magia, juntos e bastante sincronizados.

Ambos apontaram a ponta dos báculos para a porta, concentrados. Eriol contou em voz baixa, mas suficientemente alta para que Tomoyo pudesse escutá-lo:

- Um...Dois...Três...JÁ!

Duas rajadas de energia saíram dos dois báculos. A de Eriol, dourada, e a de Tomoyo prateada. A porta foi atingida em cheio, e abriu para dentro, batendo com estrondo na parede de trás. Os dois não se importaram muito para saber se alguém tinha escutado, aliás, o que teria sido bastante provável, tendo em vista que o local não tinha muito barulho e a porta da geladeira era bastante pesada.

Entraram. Um local congelante, que fez Tomoyo passar os braços em torno do corpo. Talvez dezenas de geladeiras menores, daquelas normais, que exibem os sorvetes normalmente, estavam lá dentro, com mais caixas e caixas cheias de produtos perecíveis.

Andaram um pouco mais para dentro. Era muito estranho, aquilo tudo. Tinham acabado de encontrar problemas devido à fumaça, e o local estava perfeitamente limpo. A fumaça continuava apenas do lado de fora.

Tomoyo saiu do compartimento, notando que a fumaça realmente vinha de dentro da geladeira. Quando entrou de novo, sentiu a já familiar presença que sempre dava as caras quando alguma coisa daquele jeito acontecia em Tomoeda.

- Sentiu agora?

- Senti, a mesma de sempre.

- Alguém realmente gosta de brincar conosco.

- Ou está a nos testar.

Eriol levantou uma sobrancelha ante o comentário da garota, feito entre lábios sorridentes. Era uma leve indicação ao que fizera há longos sete anos.

Adentrando ainda mais a enorme geladeira, perceberam que a porta tinha se trancando sozinha. Os dois suspiraram. Que coisa típica desses eventos. Barreiras e mais barreiras mágicas.

Eriol parou de andar por um instante, levando a mão que não segurava o báculo a cabeça, com os olhos cerrados. Quando abriu, comunicou em voz ágil a Tomoyo a mensagem que recebera:

- Ruby Moon também sentiu. Disse que é possível ver a fumaça de outros andares, e que os clientes estão assustados. Parece incrível uma segunda coisa: ninguém consegue entrar no prédio.

- Ninguém?

- Ninguém. A saída parece ser permitida, mas ninguém entra. E, curiosamente, todos os sistemas de telefones públicos próximos daqui estão fora de operação. Ou seja, vão ter que chamar o corpo de bombeiros de algum outro jeito. A fumaça não é visível do lado de fora do shopping.

- Não acredito. Desta vez, quem quer que seja que anda armando estas coisas, se superou.

Eriol concordou com um aceno de cabeça.

- Precisamos descobrir o quanto antes possível quem é o responsável. Bem, Ruby Moon e Spinnel cuidam das coisas nos pisos de baixo.

- Spinnel?

- Veio escondido na bolsa de Nakuru, é lógico. Acho que nem ela sabia, o tom de voz dela era de surpresa sincera, mas acabou gostando. Vamos.

Andaram rapidamente para o centro da geladeira, encarando suas paredes. Nada. Quando olharam para o teto...

- Olha aquilo, Eriol!

O teto estava recoberto por chamas azuis, diferentes de tudo que eles já tinham visto antes. A fumaça vinha delas, e saía para o resto do shopping. Mas era curioso o modo como faziam isso: a fumaça apenas flutuava rente ao teto, saindo quase que imperceptível pela porta, trancada, mesmo depois de ser estourada pelos dois jovens.

- O que será isso, E...

Tomoyo não chegou a terminar a sua frase, a tempo de escapar de uma fagulha grande que tinha despencado do teto em sua direção. Os dois se separaram, usando magia para saltar mais rápido ou flutuar com mais agilidade, dependendo da situação.

Fagulhas se desprendiam a todo momento do teto e caíam visando atingir qualquer um dos dois. As chamas pareciam controlados, e nunca caíam distante o suficiente para que Tomoyo e Eriol tivessem tempo para respirar, desviando-se a todo momento.

Várias dessas fagulhas foram rebatidas com os báculos, e reparam que aquelas chamas pareciam um tipo de fogo mágico, só que ao invés das chamas de cores quentes, frias e azuladas, quase se confundindo com as paredes e os restinhos de teto que podiam ser vistos da geladeira.

Uma das fagulhas atingiu a ponta da camisa branca de Eriol, que começou a ser queimada, como fogo normal. Aquilo estava um verdadeiro quebra-cabeça, não fazia sentido que chamas azuis e aparentemente frias fossem capazes de queimar como fogo comum.

Os dois se agruparam, para poder tentar chegar a uma solução para aquele perigoso impasse, que precisava ser resolvido logo.

- Entende isso?

- Não muito bem, não faz sentido.

Tomoyo concordou com a cabeça.

- Temos que fazer alguma coisa. Atacar com água?

- Podemos tentar. Mas tenho um pressentimento que não vai surtir efeito.

- Eu também, mas esse fogo tem características de um fogo comum, olha o que fez na sua blusa. - Tomoyo apontava a ponta chamuscada.

- É verdade, Tomoyo. Mas tem um problema. Do jeito que este local é frio, a água congelaria com muita facilidade, talvez antes de chegar a esse teto.

Tomoyo então se deu conta de quão frio estava lá dentro. Estivera pulando, saltitando, correndo e flutuando durante os últimos minutos, e não havia reparado.

Mais uma fagulha generosa surgiu, e eles se separaram, pensando naquela situação. Alguma coisa tinha de ser feita, e rápido.

Tomoyo começou a analisar o fogo comum. Para que ele exista, são necessários ar, combustível e calor. Qualquer chama desaparece se qualquer um desses fatores se extinguir. Porém, não era o caso daquelas chamas, que estavam em um local muito frio.

Então Tomoyo pensou uma coisa meio maluca, mas que fazia seu sentido, dentro da lógica do momento.

Se aquelas chamas obviamente desrespeitavam a ordem do fogo natural, era porque algo daquela ordem estava incorreto para o fogo mágico da geladeira. Tomoyo deduziu que o ar e combustível continuavam. Mas o calor ali não era necessário, o que não aconteceria em situações comuns.

Portanto, o último componente básico para a composição daquele fogo deveria ser o frio. Nada mais sensato do que retirar um suporte da chama, naquele caso, o frio, tendo em vista que não conheciam o combustível.

- Eriol!

O rapaz olhou para a garota:

- Pode me ajudar a tentar uma coisa com essas chamas?

- Uma coisa?

- Tive uma... - Tomoyo esquivou-se de uma fagulha que ia na sua direção - Tive uma idéia bastante estranha, mas faz sentido.

Ele concordou com a cabeça:

- Tudo bem, apenas diga o que quer que eu faça.

- Parece que esse fogo não precisa de calor para existir! Portanto, nada mais lógico, aqui do que...

- Atacar o fogo mágico com fogo normal.

- Isso mesmo!

- Entendi! Vamos nos agrupar e atacar no mesmo instante, certo?

- Certo! Agora!

Os dois saíram na direção um do outro, parando no meio da câmara gelada. Encostaram-se, cada um se apoiando nas costas do outro. Ambos miraram para lados diferentes do teto.

- Já!

Ao sinal de Eriol, os dois concentraram a maior quantidade possível de magia nos báculos, e duas imensas rajadas de fogo surgiram, encontrando o estranho fogo mágico. As chamas pareciam brigar, mas, de repente, as chamas quentes do fogo normal venceram, liquidando as chamas azuis.

Os dois magos sorriram interna e externamente, não demorando para acabar com todas as chamas do fogo estranho e mágico. Assim que a última fagulha se "apagou", se é que podiam usar este termo naquela ocasião, a porta pesada da geladeira se destrancou, com um baque surdo.

Ambos saíram correndo para o lado de fora, de volta a cozinha da sorveteria o mais rápido que puderam. Os dois pararam, ofegantes, do lado da porta. Encostaram-na, devido a corrente fria que vinha da geladeira.

- Acho que devemos nos encontrar com Ruby Moon e Spinnel para termos idéia do que fazer para acabar com essa fumaça toda.

- Está bem, espero que consigamos achá-los logo.

- Claro, vamos conseguir e...Atchim!

- Acho que se resfriou, Eriol. - Tomoyo começou a ajeitar o casaco do jovem, que escorregara durante toda a movimentação dentro da geladeira, para conseguir escapar das chamas. Quando tocou a parte caída, sentiu a mão de Eriol.

Os olhares se encontraram. Aparentemente, ambos tiveram a mesma idéia. Encararam-se por alguns segundos, parecendo perdidos no olhar alheio.

Tomoyo lembrou da conversa. Ainda não haviam acertado os detalhes. Tirou a sua mão debaixo da de Eriol, e se virou para sair da cozinha:

- Vamos. Ruby e Suppi devem estar em algum lugar aqui no prédio. - ela falou e deixou a cozinha, indo para o piso da praça de alimentação.

Eriol ficou observando Tomoyo enquanto esta se afastava. Uma explicação não tardaria a ser dada. Arrumou o casaco e saiu.

O prédio parecia deserto. Ninguém nas lojas, nos elevadores, nas escadas. Tudo tinha sido largado, vários aparelhos ligados ainda, luzes acessas, televisores funcionando. A fumaça estava bem menos densa, quase imperceptível. A partir do momento em que as chamas foram apagadas, a fumaça dissolveu-se quase que por inteiro, depressa. Decerto teria parecido mágica se aquele fogo já não fosse encantado.

Depois de descerem dois andares, duas figuras aladas, uma de forma humana e outra de forma felina, puderam ser vistas. Os dois seres pousaram bem na frente de Tomoyo e Eriol, com expressões meio de alívio, meio de preocupação.

- Mestre Eriol, Tomoyo. Que bom vê-los. - Ruby e Suppi fizeram um coro.

- É também gratificante reencontrá-los, Ruby Moon e Spinnel - agradeceu Tomoyo.

Eriol acenou com a cabeça, agradecendo:

- Muito obrigado pelos avisos. Me digam, acharam um ponto mais forte da barreira, de onde vem a energia?

- Sim, achamos. Exatamente no saguão principal.

- No saguão principal? Que lugar mais inoportuno!

- Mas é onde estaria melhor escondido, não acha? Os lugares mais óbvios são os que menos cogitamos procurar.

- Vamos lá, então. Temos que acabar logo com isso, antes que qualquer suspeita seja levantada.

Os quatro se moveram rapidamente para o saguão de entrada, onde a porta indicada por Spinnel se encontrava. Parecia normal. Tomoyo usou seu báculo para criar uma cópia do mesmo, sem poderes mágicos, e o atravessou pela porta. Passou normalmente, mas Tomoyo tentou puxar o báculo falso para dentro. Nada. Ele ficara aparentemente preso no ar.

- Intrigante, não é? Cada hora damos de cara com uma barreira mágica diferente.

- Não era a mesma coisa que você fazia quando criava os incidentes para forçar Sakura a mudar as cartas?

- Não, eu só afastava as pessoas. Impedi-las de entrar ia ser muito mais trabalhoso, suspeito e... - acrescentou, olhando para um ponto no teto - exigiria mais poder. Além disso...

- Além disso... - incitou Ruby Moon.

- Além disso, eu teria que ficar do lado de dentro dessa barreira, para poder controlar melhor seus efeitos...

Os três se entreolharam. De repente, sem aviso prévio, uma forte rajada de fogo saiu da ponta do báculo do jovem mago, quebrando um pedaço da janela para qual o báculo se encontrava apontado.

No exato momento em que a janela se quebrou, a cópia do báculo de Tomoyo caiu no chão, e a presença mágica se esvaiu, deixando tudo em seu estado normal. Rapidamente, os quatro saíram correndo por fora na direção da janela atingida.

- É, desta vez, pegamos quem quer que esteja provocando essas coisas! - falou Ruby Moon.

- Talvez não, vamos ver em breve - respondeu Eriol, com o vento bagunçando sua franja e deixando seu rosto determinado ainda mais belo.

Tomoyo notou isso, mas não parou de correr. Os quatro chegaram no local indicado, e observaram o jardim. Estilhaços de vidro eram visíveis, e ainda estavam quentes. Uma ou duas plantinhas tinham sido chamuscadas pelos pedaços de vidro fumegantes. Porém, nada disso chamou a atenção dos quatro.

Na grama, além de ligeiramente marcada pelo peso de alguma coisa, havia sangue. Em pouca quantidade, manchando um ou outro pedaço de vidro. Ruby Moon se abaixou e tocou a mancha do gramado.

- Sangue humano.

- Então quer dizer que o responsável por isso...

- Tem corpo de carne e osso, e foi pego de surpresa desta vez.

- Isto está começando a ficar mais confuso...

- Spinnel, eu tenho a ligeira impressão de que explicações vão ser as últimas coisas que encontraremos. - sentenciou Tomoyo.

Eriol concordou com a cabeça lentamente, ainda observando o gramado.

- Isso se não tivermos que sair à procura delas...

Aquela frase encerrou a conversa, e as duas criaturas mágicas retornaram a sua forma falsa, todos saindo rapidamente do local, sem que fossem vistos. Ou pelo menos, sem terem a intenção de serem vistos ou observados.

Naquela noite, Tomoyo teve um estranho sonho. Ela sonhou com uma voz conhecida e amigável, que dizia que ela tinha as soluções para todos os problemas, bastava querer.

A mesma voz disse também que, embora não parecesse, a verdade estava bem na frente dela. Não tardaria a sua descoberta, e para que ela pensasse com cuidado depois de tudo esclarecido.

Por fim, a falou também de sua mãe. Não adianta esperar pela ajuda de ninguém, porque ninguém, a não ser ela própria com alguma ajuda, poderia desvendar aquele estranho quebra-cabeça.

- É, minha mãe anda do mesmo jeito.

Tomoyo e Sakin conversavam, dois dias depois do incidente no shopping, em um parque, depois da aula. As duas comentavam sobre o violento stress que ambas as mães enfrentavam, e tudo injustamente.

- Sabem quem denunciou isso?

- Não, a pessoa preferiu o anonimato.

- Que coisa estranha! Minha mãe nunca fez nada fora do país, poucas ações da empresa estão no estrangeiro! Nem sua mãe, posso garantir.

- Ai, Tomoyo. Elas estão muito nervosas, se pudéssemos fazer algo pelas duas...E pelo resto da empresa... - Sakin suspirou, encostando a cabeça no banco onde estava sentada.

Os olhos de Tomoyo brilharam. Será que elas podiam ajudar de alguma forma? Claro! O sonho! Era isso! Por que não tinha lembrado antes? Só ela e talvez Sakin pudessem enxergar as coisas e arrumar tudo de vez. Ver as duas mulheres trabalhadoras ali, sofrendo, era muito cruel.

- Sakin... E se nós investigássemos?

- Nós? - Sakin se desencostou para olhar Tomoyo melhor.

- Claro! Parece que tudo isso foi armado, certo?

- Hum-hum... - A garota tentava acompanhar o raciocínio de Tomoyo.

- Portanto, é previsível que as nossas mães vão tentar contratar os melhores para livrar a empresa da calúnia injusta, não é?

- Sim, e onde entramos nisso?

- Ora, Sakin! As pessoas que eles ou quem quer que sejam os responsáveis por detrás disto tudo, nunca imaginariam que nós, simples adolescentes, iríamos assumir tal coisa!

Sakin meditou por um tempo:

- Tomoyo, isso é arriscado. Esta certa disso?

- Estou.

Sakin olhou a amiga. Tomoyo parecia muito determinada, algo que não combinava com a aparência dela. Tão calma e paciente, parecia que seus olhos irromperiam em chamas a qualquer segundo. Era impressionante. Uma mudança grande tinha se infringido ali.

Tomoyo não pensava duas vezes. Tinha certeza que precisava agir, e a hora era aquela. Ficar esperando um socorro divino não adiantava. A melhor coisa era confiar na própria capacidade, não na de outras pessoas...

A menina colocou a mão sobre a de Tomoyo, com delicadeza, fazendo com que ela "despertasse":

- Certo. Estamos juntas.

As duas se abraçaram, sorrindo. Iriam fazer o possível.

- Vamos começar, então.

- Como?

- Escuta, o que vai fazer amanhã, depois da aula?

- Amanhã é terça...Hummm... Eu não tenho nada.

- Ótimo. Me encontre aqui, assim que terminar a aula. Eu vou recolher o máximo de informação que conseguir hoje, do escritório da minha mãe.

- Tá bom. Confio em você.

As duas se levantaram, sorrindo.

- Até amanhã!

- Até!

As duas se despediram, e Tomoyo rapidamente foi para casa. Sua mãe não se encontrava, precisava que ela não a visse para não estragar o plano. No fim das contas, investigar uma denúncia que parecia tão bem armada como aquela, não era coisa para duas universitárias.

Tomoyo correu para seu quarto, assim que chegou em casa, quase jogando a mala em cima da cama. Voou para o escritório da mãe. Trancado. Bom, nessas horas, magia é útil. Se utilizando da sua magia regida pela Lua, que, para sua sorte, ninguém a viu utilizar, Tomoyo conseguiu entrar pela sacada, que estava com a porta aberta, através do balcão de seu quarto.

O escritório estava parcialmente desarrumado. Algumas coisas tinham sido bagunçadas pelo vento, tendo em vista a janela aberta, mas outras coisas estavam reviradas.

Folheando alguns papéis, Tomoyo anotava a data que os e-mails começaram a chegar, e o que diziam. Anotou também números de telefones que estavam indicados na conta da empresa com caneta verde; segundo a letra corrida de sua mãe, aqueles números eram desconhecidos de qualquer funcionário que trabalhasse na Corporações Daidouji. As únicas pessoas que ainda não tinham sido questionadas a respeito eram os sócios da empresa, que eram difíceis de serem localizados.

Tomoyo anotou o nome do banco onde aparentemente estava depositada a grande soma em dólares ilegais. Quando estava começando a guardar o número da conta, Tomoyo ouviu passos.

Uma aflição tomou conta da garota. Olhou ao redor, para se esconder, a medida que o barulho aumentava no corredor. Acabou por correr e se colocar atrás de uma poltrona, que estava encostada a parede ao lado de uma vasta estante.

Prendeu a respiração e ficou ouvindo o que vinha a seguir.

Tomoyo ouviu a porta sendo destrancada. Depois disso, o ruído da mesma abrindo, e três pessoas adentrando o cômodo.

- Minha filha já chegou? - Tomoyo identificou sem maiores problemas a voz de sua mãe.

- Sim, senhora. Quer que eu vá chamá-la? - Tomoyo gelou perante a pergunta. A voz era de Arisu, uma das empregadas.

- Não, não precisa, obrigada. Pode se retirar.

Tomoyo quase suspirou aliviada, mas lembrou a tempo que um suspiro poderia ser "fatal" naquelas circunstâncias. Escutou a porta sendo fechada e o barulho de duas pessoas se sentando, em tempo diferentes.

- Bom, vamos ao que nos interessa de fato.

- Claro.

Tomoyo processou o som daquela voz. Era familiar, mas não ouvia há um certo tempo. De quem era mesmo?

- Bom, com esse terrível engano sobre os bens da empresa, minha filha pode sofrer mais do que nunca a perda de várias coisas, se nós não conseguirmos provar a nossa inocência nesse caso.

- Decerto.

- Por isso, eu gostaria de assegurar uma futura união entre ela e seu filho, evitando qualquer sofrimento assim.

Tomoyo congelou no seu lugar. Sua mãe...Estava querendo... Não, sua mãe não estaria tentando fazer o que Tomoyo estava pensando que sua mãe estava pretendendo fazer...

Barulho de duas pessoas se ajeitando nos respectivos lugares, silêncio. Tomoyo não agüentou aquilo. Não era possível...

Exatamente no momento em que os dois retomaram a conversa, veio à mente de Tomoyo quem era o dono da voz. Kazuaki Atsuhiro. Era com Hiroyuki toda a coisa.

Ainda bem que falavam em um tom suficientemente alto e que o vão entre a poltrona e a parede era bastante grande, senão teriam reparado o som surdo e baixo de um corpo desfalecido tombando ao chão.

Tomoyo abriu os olhos devagar. Piscou algumas vezes, se acostumando ao ambiente, escuro. Silêncio. Tomoyo tentou se recordar do que estava fazendo ali ou até mesmo onde estava. Olhou para o lado de seu corpo, mal acomodado em um vão entre uma poltrona e uma parede: papéis e uma caneta.

Lembrando de onde estava, Tomoyo se sentou rapidamente, com o menor ruído possível. Por que teria desmaiado? Não queria saber porque naquela hora, talvez causasse um espasmo de ódio ou outro desmaio. Era melhor não.

Olhou para seu relógio, quase hora do jantar. Se deu conta que não tardaria ouvir alguém lhe chamando para comer, se é que já não estavam a procurando.

Levantou, saindo de seu esconderijo, e caminhou até a porta. Aberta, para o alívio de Tomoyo, que poderia sair normalmente pelo corredor.

Guardou os papéis na roupa, e quando ia fechando a porta pelo lado de fora, ouviu o barulho de passos agitados:

- Tomoyo! Onde estava?

- Mãe? Ah, eu... estava aqui, vim pegar algumas coisas...

Sonomi olhou para a filha:

- Não estava trancando?

- Não, não estava. Senão, como teria entrado?

- Bom, venha, venha jantar. Achou o que procurava?

- Sim, achei. Era papel para rascunhar algumas coisas da escola, o meu tinha acabado.

- Que ótimo! Bom, coloque suas coisas no quarto e desça, está tudo pronto.

Tomoyo fez o que sua mãe tinha falado, guardando muito bem guardado todos aqueles papéis. Parou em frente do espelho, deu uma ajeitada na roupa, nos cabelos e tratou de colocar um sorriso no rosto. Colocou a mão por dentro da blusa para puxar o pingente.

Mas não achou-o. Um pânico tomou conta da menina. Onde estava seu báculo? Não, não podia tê-lo perdido, tinha entrado com ele no escritório, só podia tê-lo perdido lá dentro.

Isso era uma grande encrenca. Precisava de sua magia, e para isso do pingente. Que desculpa daria para entrar no escritório e procurar o pingente, sendo que não era nem certeza que ele se encontrava lá? Pior seria se alguma das serviçais achasse o pingente, uma coisa tão querida de Tomoyo num lugar como aquela, haveria confusão...

Pensando que era melhor comer para poder pensar, Tomoyo desceu e começou a jantar com sua mãe, como sempre, fingindo que nada de importante tinha acontecido naquele meio-tempo.

Depois que subiu para seu quarto, Tomoyo pensou que seria meio difícil recuperar seu pingente. Que falta de sorte... Ou ela tentava aquela noite, por dentro da casa, sem que ninguém visse, antes que alguém arrumasse o cômodo na manhã seguinte, ou... Espere um pouco, ela podia pedir para alguém entrar por fora, por que não?

A primeira coisa que veio a sua mente foi Suppi. Ele era pequeno e não tinha cores claras, o que facilitaria a entrada pelo céu noturno. Valia a pena tentar.

Discou o número da casa de Eriol. Hilário, pensou enquanto esperava ser atendida. Toda vez que tinha de discar aquele número era para pedir ajuda... Sentia-se fraca diante de Eriol, Nakuru e Suppi. Mas era o curso normal das coisas, nada podia fazer.

- Pronto.

- Alô, Suppi?

- Sim, sou eu. Quem é?

- Tomoyo!

- Ah, senhorita Tomoyo! Há muito tempo não nos faz uma visita, não é mesmo?

- É verdade, Suppi. Eu prometo que farei, mas queria lhe pedir um favor.

- Pode dizer.

- O meu pingente ficou dentro do escritório da minha mãe, atrás de uma poltrona, do lado de uma estante. É a única nessa posição, dentro do cômodo. Eu tenho que resgatá-lo até amanhã de manhã, mas não posso entrar lá dentro. Faria esse favor para mim?

- Mas é claro!

- Ah, muito obrigado, Suppi! Lembra de onde fica meu quarto?

- Com certeza.

- Me encontre na varanda, falo com você!

- Tudo bem. Estou indo.

- Muito obrigada, Suppi!!

- Disponha, senhorita Tomoyo.

Tomoyo desligou o fone, e correu para a varanda, de onde logo avistou Suppi, embora fosse difícil encontrá-lo naquele breu.

- Ah, Suppi! Muito obrigado!

- Não é nada. Onde é a janela?

- Ali, a terceira, vê? Esta é a primeira, passe mais uma e é a próxima!

- Certo. Eu já volto.

- Lembra de onde está?

O pequeno animalzinho balançou a cabeça afirmativamente, enquanto alçava vôo. Tomoyo sentou em uma cadeira, de onde acompanhou a trajetória do bichinho de pelúcia, como Nakuru o chamava.

Antes que meio minuto se completasse, Suppi voltou.

- Problemas. A luz de lá está acesa, preciso que você distraia quem quer que esteja lá.

- Certo. Eu vou sair agora, e você fica a postos, assim que escutar batidas na porta, tá bom?

Suppi afirmou com a cabeça e ambos foram para o mesmo cômodo.

Tomoyo parou diante da porta, pensando no que falaria. Tinha que ser rápida, provavelmente sua mãe estaria pesquisando sobre as contas falsas... Hummm...

A mente de Tomoyo deu um estalo: ia perguntar sobre Mirai, e convidar a mãe para tomar um chá e dormir, porque aquela hora estaria cansada demais. Soaria real, sem segundas intenções. É, era isso. Bateu.

Passos, murmúrios. A mãe de Tomoyo não estava sozinha. A porta mal se abriu, deixando apenas uma pequena parte para a visão do cômodo, felizmente, o canto da poltrona. Sonomi apareceu:

- Pois nã...Tomoyo? O que faz aqui, pensei que tinha ido dormir!

- Eu ia, só parei para dizer boa noite, mãe.

- Obrigada, filha! - Sonomi largou a porta e abraçou a filha, que pode ver Suppi entrando atrás da poltrona, e logo depois saindo, com uma coisa que emitia um claro brilho prateado. O pingente.

- De nada, mãe. Me diga uma coisa, está sozinha?

- Eu? Eu... Bem, sim, estava falando no telefone com Mirai...

- E como ela está?

- Bem, Mirai está bem... - Tomoyo notou insegurança na voz de Sonomi, como se estivesse meio que mentindo.

- O que está havendo, mãe?

Abrindo a porta com força, Tomoyo enxergou todo o quarto. Quando olhou para o canto oposto da poltrona, quase caiu, tamanho o susto:

- Professor Sayuri!

Estava sentado ali o professor de canto coral da universidade, Kyoshi Sayuri. Ele era um dos professores mais novos, com mais de vinte e poucos. Era bastante popular entre as garotas; sempre educado, dedicado e muito bem-arrumado, o professor Sayuri atraía atenção de todas as meninas. Usava o cabelo curto, com uma franja que caía sobre os olhos, mas não que nem a do professor Kawauchi, que atrapalhava a visão. Ele via as coisas perfeitamente, e ainda tinha um olhar sedutor. Usava sempre roupas elegantes e que davam uma pista sobre o seu corpo, definido.

O professor abriu um sorriso cativante para Tomoyo, que ainda piscava, abobada, antes de cumprimentá-lo. Ele dispensou a formalidade e disse que estava ali apenas para conversar sobre Tomoyo e as aulas dele. Ele convidou a garota para sentar-se, e Sonomi fechou a porta, retomando seu lugar.

- Bom Tomoyo, vim aqui para fazer uma pergunta à sua mãe, mas acho que você pode responder melhor: o que acha de minhas aulas?

- Bom... - Tomoyo começou a pensar - A aula de canto coral é uma das melhores, sobretudo para mim, porque sempre gostei de cantar, desde o primário. Eu acho que todas as técnicas que o senhor passa durante as aulas melhora a minha capacidade para atingir notas agudas ou graves demais, ou até mesmo na pronúncia ou afinação.

- Que também são ensinadas com mais profundidade na aula de técnica vocal.

- Sim, mas lá o conjunto não existe. Essa é a principal diferença; a aula de canto torna a sala unida.

O professor sorriu para Tomoyo e Sonomi:

- Era o que tinha dito, senhora Daidouji. Tomoyo é uma das únicas alunas que consegue reter tudo que é ensinado na aula. Principalmente as garotas, não evoluíram nada desde o primeiro dia de aula nosso. E isso me preocupa.

- Não assimilaram nada de novo?

- Não Tomoyo, nada. - o professor balançou a cabeça devagar - e isso está me tirando o sono. Não entendo isso, tem alguma idéia do que pode estar acontecendo?

- Eu? - Tomoyo recuou, parando no encosto da cadeira - Eu... Bom...

- Se tem uma idéia, diga, minha querida. O professor tentará ajudar suas colegas a ficarem tão boas quanto você!

- Ah, isso não, senhora Daidouji! Tomoyo tem uma voz especial. Ninguém se iguala a ela na minha aula, nem se igualou até hoje.

Os dois riram, mas Tomoyo estava aflita, por Suppi e pela resposta. Melhor responder logo e sair do escritório. Era óbvio que as meninas não prestavam atenção na aula porque o professor em si era mais interessante, mas falar isso na cara dura era demais! Pensou nas suas amigas da escola.

Nathalia era tão reservada que mal olharia para o professor sem corar. Sakin... Essa era um caso perdido, talvez esquecesse completamente que era seu professor e faltasse com a educação necessária. Nem cogitou Yuki, ela estaria hipnotizada e só responderia depois de alguns estímulos elétricos ou muitos gritos.

- Teve alguma idéia? - o jovem professor tinha se inclinado para a frente, e Tomoyo quase podia ver parte de seu corpo, através do casaco, que estava aberto e deixava aparecer uma parte da camisa, não abotoada em cima.

Ela suspirou.

- Professor, quer que eu seja sincera?

- Claro, por favor.

- Bom, o problema das minhas colegas é o seguinte: o senhor tem uma namorada?

A mãe de Tomoyo e Kyoshi estranharam a pergunta:

- Não. E o que isso tem a ver?

- Então, assim que surgir uma oportunidade, diga que tem uma, mesmo que não tenha. Vai ver como o desempenho das meninas vai melhorar. Se me dão licença, eu tenho que me deitar. A primeira e a última aula amanhã de manhã são canto coral. Boa noite, mãe, professor Sayuri.

Tomoyo se levantou com toda a pose que tinha e saiu, retornando ao seu quarto. Pena que ela não pôde ouvir os comentários que sua mãe e seu professor tinham feito, ao ficarem olhando para a porta, mesmo depois de Tomoyo ter deixado o cômodo.

- Senhora Daidouji, sua filha é espetacular.

Tomoyo encontrou Suppi na varanda. Ela pediu desculpas, agradeceu, conversaram rapidamente e Suppi foi embora. Ela tinha falado sobre o professor, e o guardião não tinha acreditado na burrice do mesmo. Ela disse que iria levar alguma coisa em agradecimento na casa de Eriol assim que pudesse.

No dia seguinte, logo na primeira aula, o professor estava muito bem animado, e a aula foi divertida. Eles voltariam a ter aula no último horário, e foi quando, no final, o professor sentenciou:

- Bom, quem acha que está com dificuldade nesta matéria?

Dois meninos levantaram a mão, mais três garotas. Ele olhou bem e continuou:

- Bom, eu quero avisar que para vocês, eu darei aula de reforço, depois das nossas aulas, as...

- Mas, professor Sayuri, será você mesmo?

- Sim, eu mesmo.

Houve um rebuliço geral na sala, várias meninas levantaram a mão, falando que precisavam de um auxílio extra e todo aquele papo furado. Tomoyo começou a rir. Ela encontrou o olhar do professor, e viu que ele tinha piscado para ela. Tudo bem, era verdade que as meninas que estavam a sua frente quase desmaiaram achando que o professor tinha olhado para elas, mas ela não se importou.

- Atenção, silêncio, pessoal! Eu só darei reforço todas as terças e quintas, depois do término das aulas, certo?

- E nos outros dias? - perguntou alguém

- Professor também é ser humano. Precisa descansar, preparar aula, ler, sair com a namorada também! Bom, pessoal, por hoje é só! Até amanhã!

Todos se levantaram e saíram ruidosamente da sala, quando só sobraram Tomoyo e o próprio Kyoshi. Ele veio até ela:

- Obrigada por ontem, Tomoyo. Sua dica me ajudou bastante.

- Hum? Ah, fico feliz! - Tomoyo tinha acabado de segurar todo o seu material, mas o professor foi mais rápido e segurou o mesmo para ela. - Professor! Não precisa, pode me devolver!

- Não, você merece. Para onde vai?

- Me encontrar com Sakin. Vamos conversar um pouco.

- Certo, eu acompanho você até lá. Preciso conversar com você também.

Os dois deixaram a escola, quando ninguém mais era visto pelas dependências da faculdade. O professor continuava carregando o material de Tomoyo, e ambos conversavam como se fossem colegas. Aquilo era tão estranho! Porém, soava como se nada estivesse errado na cabeça dela.

- Bom, eu lhe deixo aqui, Tomoyo. - ele devolveu as coisas de Tomoyo.

- Obrigada, profes...

- Não, pode parar com isso. De hoje em diante, me chame de Kyoshi, assim como eu a chamo de Tomoyo, quando ninguém estiver por perto. Devo-lhe uma grande ajuda.

Tomoyo confirmou com a cabeça, olhando para o professor, um pouco mais alto que ela, forçando-a a inclinar o pescoço para trás.

- Eu entendi tudo ontem, e entendo a dificuldade que encontrou para dizer isso tudo, mas mesmo assim, muito obrigado. Se puder vir aos treinos, será muito divertido. Preciso de alguém experiente como você para dar um apoio ao resto do grupo.

- Claro! Eu venho sim, profe...Kyoshi.

- Obrigado, Tomoyo. Até quinta-feira, então. Não temos aula amanhã, não é?

- Não, não temos. Até quinta-feira, então.

O professor deu um beijo no rosto de Tomoyo e foi embora. A garota ficou paralisada no meio da calçada, lembrando que deveria encontrar com Sakin logo, senão ela estranharia a demora.

Tomoyo começou a caminhar na direção do lugar combinado com Sakin, o mais rápido possível. Já começava a cair a noite, e o frio começava a aumentar.

Tomoyo passou os braços em torno do próprio corpo, segurando os livros e cadernos. Iria pedir para que Sakin fosse para sua casa, onde não estaria tanto frio. Porém, ao chegar, foi surpreendida por alguém conhecido, mas que não era sua amiga Sakin. Era Eriol, com um olhar sombrio...

FIM DA SEGUNDA PARTE

Oiê de novo! Espero que estejam gostando dessa fase, bastante diferente se comparada à antiga. Por favor, escrevam sempre para dizer o que acharam, por favor! Se alguém quiser mandar um e-mail, é mari-chan.mlg@bol.com.br. Muito obrigada pelo apoio!

Quero aproveitar para me desculpar. Gomen nasai!!! =[ Eu tive uma crise de inspiração horrível, mas acho que está melhorando! ^^ Até o próximo capítulo!

Super kisses para todos,

Mari-chan.