Epílogo

Harry Potter e suas personagens pertencem à JK Rolling.



O segundo dia após a morte de Voldemort ainda carregava a tristeza do dia anterior. Logo após acordar, Harry dirigiu-se até a cozinha, sempre movimentada e agitada. Não encontrou Dobby, mas outros elfos foram muito solícitos em arranjar-lhe uma bandeja com frutas, pães e uma jarra com suco. Graças à magia, não havia falta de comida. O que quer que fosse desnecessário era transfigurado em comida. Desde penas até jóias, tudo era aproveitado.

Levitando a bandeja ao seu lado, Harry retornou ao quarto, passando por vários bruxos desconhecidos. Alguns paravam para cumprimentá-lo, outros, com pressa, nem reparavam na sua presença. Até que estava confortável. Era melhor ser pouco conhecido do que ter que parar a cada seis passos e agüentar as expressões de admiração. Coisas que, logicamente, não agradavam- no nem um pouco.

Harry fechou a porta de seu quarto silenciosamente atrás de si, "Bom dia, professor. Faz muito tempo que está acordado?", ele perguntou, acomodando a bandeja de comida na mesinha de cabeceira.

Remus estava, não muito surpreendentemente, lendo um livro, recostado em dois travesseiros. Seus cabelos brancos caiam sobre seus olhos, tirando um pouco o ar de velhice dele. Ele levantou a cabeça quando escutou Harry entrar e sorriu amigavelmente.

"Bom dia, Harry.", sua voz ainda estava fraca e rouca, "Acordei faz o tempo necessário para se ler quatro páginas desse livro.", ele fechou o livro mencionado, recolocando-o no lugar de onde o tirou.

"Espero que esteja se sentindo melhor.", Harry trouxe a bandeja para o colo do ex-professor, "Se algo estiver com cheiro de queijo e não for queijo... é alguma meia transfigurada.", ele acrescentou, dando de ombros.

"Terei cuidado, obrigado."

Depois de alguns minutos observando seu ex-professor apenas beber meio copo de suco e não mexer na comida, sempre em silêncio, Harry suspirou, levantando-se da cadeira que colocara próxima à cama e disse, "Você precisa comer, professor. Não sei o que aconteceu com o senhor para ficar assim...", ele desviou os olhos, quebrando o clima autoritário que tentara construir, "Na verdade... eu talvez imagino o que você tenha passado nesses últimos dias, mas...", ele voltou a olhar para Remus, com autoridade, "Você precisa comer. Vai comer."

Remus pegou uma maçã e rolou-a nas mãos. Ao contrário de Harry, ele não desviou o olhar de seu ex-aluno nem por um instante, "Sinto muito.", ele continuou a rolar a maçã de uma mão para outra, "Eu estou com fome, acredite. Mas não consigo...", ele suspirou, cansado, "A última vez que tentei comer eu saí correndo para o banheiro como uma mulher grávida."

Pego de surpresa, Harry sentou-se novamente, desconcertado pelo olhar franco de Remus, "Faz tanto tempo assim... que o senhor não come?"

"Oh, não.", Remus deu uma pequena mordida na maçã, demorando-se mais do que o normal para engolir o pedaço, "Não é esse, infelizmente, o caso. Se fosse apenas isso, eu estaria muito melhor."

Depois de alguns segundos, em completo silêncio, Remus abaixou a cabeça, trazendo uma mão em concha para perto da boca. Harry olhou espantado o pequeno pedaço de maçã, que ele julgara que tivesse sido mastigado e engolido, na mão do outro bruxo, intacto, apenas molhado de saliva.

Dando de ombros, Remus disse, "Pois é...", ele voltou o olhar para Harry, "Não consigo comer."

Harry e Remus se encararam. Um espantado e o outro conformado. Harry não conseguia imaginar, nem que se esforçasse, o que poderia ter acontecido com seu ex-professor. Ele viu Remus bebericar novamente no suco, mas só agora percebeu o esforço que o outro fazia para deixar que o líquido passasse por sua garganta.

"Eu... eu vou na Enfermaria.", Harry disse depois, "Hermione está lá..."

"Ela está bem?"

A resposta foi automática, "Não muito.", ele se levantou, ajeitando os óculos no nariz, "Mas ela vai melhorar..."

Remus o olhou seriamente, "E Ron?"

Sentindo que ia ficar nervoso, não de raiva, mas simplesmente por não saber o que fazer ou dizer, Harry aproximou-se da porta, "Ron...?", ele ficou mudo, apenas por alguns instantes, "Ron... ele-ele..."

Remus desviou o olhar, deixando Harry mais aliviado, "Eu entendo. Não precisa falar."

Sem dizer mais nada, Harry saiu do quarto, andando com passos rápidos em direção à Enfermaria. Se Remus fosse mais... mais fraco. Se fosse como Hermione, que se deixou conduzir e ficara comportada em sua cama... Mas Remus Lupin não era assim. Ele era um bruxo inteligente, com uma calma e força singulares, que Harry nunca vira em outra pessoa.

O modo como ele falara com Harry, sem desviar o olhar, sem receios, o deixara desconcertado. Remus não se lamentava do fato de não poder comer, não se indignava, simplesmente se conformara. E não tinha problema nenhum em dizer isso. Harry lembrou-se das palavras de Hermione: "Ele deve ter sofrido uma experiência muito terrível para gritar desse jeito...". Remus Lupin deve ter sofrido algo realmente terrível para falar desse jeito. Para não conseguir mais comer, mesmo sentindo fome. Mesmo magro e fraco como estava. Mesmo morrendo aos poucos.

A dor-de-cabeça do dia anterior já estava de volta, pulsando dentro da cabeça de Harry, quando ele entrou na Enfermaria. O cenário caótico não mudara. E foi com um alívio enorme, que Harry avistou a cama de Hermione, cercada por dois voluntários.

"Não lhe dei o direito de falar assim comigo, Severus Snape!!!"

O grito de revolta preencheu a ala hospitalar inteira, sobrepondo-se até mesmo aos comandos confusos dos outros bruxos voluntários. Harry voltou-se na direção da gritaria, encontrando Pomfrey e Snape frente a frente, próximos à cama de Malfoy.

"Poupe-me o trabalho, Pomfrey, e saia da minha frente!", Snape não chegou a gritar, mas disse em uma voz alta e ameaçadora, "Você não sabe o que está fazendo, na verdade, você não está fazendo nada!", Harry imaginou que esta briga era porque Malfoy estava de volta na Enfermaria, deduzindo apenas pelo olhar bravo e indignado de Snape, "Você não ajuda em nada."

"Como ousa!", Poppy estava com o rosto vermelho de raiva, quase bufando, "Estou trabalhando muito duro aqui, cuidando de todas essas pobres pessoas..."

Snape a interrompeu, "E não tem tempo para cuidar propriamente de Draco!"

Harry sentiu-se estranho ao escutar seu ex-professor de Poções chamar um aluno pelo primeiro nome, mesmo sendo quem fosse. Ele mesmo não estava acostumado a escutar o primeiro nome de Malfoy. Parecia que falavam de outra pessoa, uma pessoa inocente, e não do garoto impertinente e arrogante que tentara de tudo para fazer dos anos de Harry em Hogwarts um sofrimento.

"Ele não é mais importante que os meus outros pacientes! Estou fazendo o que posso no momento, o que já é o bastante, Severus.", ela aproximou-se do professor de Poções, com a varinha estendida, mas Snape nem piscou, "Mas, mesmo que eu não tenha tempo para ficar 24 horas ao lado dele, de jeito nenhum, Severus, mesmo que você arraste Albus até aqui, ele não saí de perto de mim!"

"Pomfrey... eu sou a única pessoa que ele tem no mundo agora...", Snape tentou dizer baixinho, mas sua raiva era tanta e tão evidente, que até Harry pôde ouvir de onde estava.

E o que Snape disse surpreendeu Harry. Ele não sabia quem tinha morrido ou quem tinha sobrevivido à guerra. Estava sabendo disso agora, aos poucos. A morte da família Malfoy era uma coisa tão esperada para Harry como a exclusão deles em Azkaban ou até mesmo a absolvição pelo novo ministro da magia. Ou seja: não importava. Mas também não imaginava que Malfoy ficasse tão abalado assim com a morte dos pais.

Harry não poderia falar nada, na realidade. Ele mesmo sofre até hoje com a morte dos pais que mal conhecera. Se é que conheceu, não saberia dizer, mesmo com tudo o que lhe acontecera. Mas Malfoy, pelo pouco que sabia dele, na descrição mais simples do rapaz, foi um filho mimado. Do que estaria sentindo falta? O que poderia ter acontecido, segundo Hermione, para que a morte dos pais o deixasse desse jeito?

"E você acha que isso não me preocupa?!", Pomfrey respondeu, cortando os pensamentos de Harry.

Apesar das risadas, nem Pomfrey nem Snape pareceram se dar conta da ironia na resposta da enfermeira chefe. Mas, Harry bloqueou à tudo e à todos quando percebeu que os dois voluntários que cuidavam de Hermione a deixaram, sentada na cama, tomando seu café-da-manhã.

"Hermione!", Harry quase gritou de alívio ao ver a amiga, "Finalmente alguém veio te atender... está melhor agora, eu espero."

Hermione sorriu por trás do copo de leite que tinha nas mãos, "Sim, estou bem melhor. Mas ainda terei que ficar aqui por mais um dia.", ela apoiou o copo na bandeja e inclinou-se para dar um beijo em Harry, "E você? Como está?"

"Bem, bem...", ele respondeu rapidamente, desviando-se da pergunta com outro assunto, olhando-a seriamente, "Encontrei uma pessoa hoje... Remus Lupin...", ao olhar de espanto da amiga, ele continuou, "Ele está terrível, Hermione... machucado, magro... não consegue comer."

Interessada, Hermione mesma parou de comer sua refeição para poder ouvir, "Não consegue comer?"

"Não. É loucura... Eu mesmo vi. Ele simplesmente não conseguia deixar a comida passar pela garganta. Parecia.. parecia um sofrimento... não sei explicar.", ele tentou explicar, fazendo gestos amplos com as mãos perto da própria garganta, mas acabou suspirando, desolado, "É tão estranho."

"Mas, Harry, se ele não comer pode acabar morrendo!"

"Eu sei! Eu sei!", inconscientemente, Harry buscou a mão da amiga, "Mas isso não é o pior...", ele desviou o olhar, para a cama no final do corredor, onde agora só estava Snape. Harry não sabia como pôr em palavras o que tinha visto em seu antigo professor. Depois de toda a luta para sobreviver, de todas as vidas que se perderam para que ele pudesse continuar vivendo, Harry achava aquilo quase um pecado, uma blasfêmia.

Hermione percebeu a hesitação de Harry e apertou a mão dele na sua, atraindo de novo a sua atenção, "Harry... o que é tão pior assim? O que aconteceu com Remus?"

Ele não respondeu de imediato. Ao invés disso, pegou uma maçã da bandeja de Hermione, muito parecida com a que Remus tentara comer, e levou-a à boca, mastigando com gosto o pedaço, saboreando e engolindo com prazer. O que aconteceu com Remus? O que aconteceu para ele ficar assim? O que aconteceu com Malfoy?

Aconteceu uma guerra... foi isso o que aconteceu... feridos dos dois lados, como em todas as guerras.

"Eu não sei, 'Mione, sinceramente, eu não sei.", ele mordeu a fruta novamente, com raiva, "Ele...", Harry continuou falando, mesmo com a boca cheia, "Ele... simplesmente... ele vai morrer...", sentiu os olhos se encherem de lágrimas, mesmo com a repentina raiva, "Isso é o pior de tudo: ele está conformado. Ele não luta..."

"Oh, Harry...", Hermione puxou o amigo com a mão e o envolveu em um abraço.

Harry permitiu o abraço, encostando o rosto no ombro da amiga, "Ele quer morrer... lentamente... ele quer morrer, Hermione!"



Continua...