Rosa de Trapos
Os passos da garota ao andar pela rua quase não faziam barulho, eram
tímidos, pequenos, assim como ela. De vez em quando, ela pisava em um
papel amassado ou chutava algum outro pedaço de lixo, atraindo a atenção
dos mendigos e vagabundos que se enfileiravam na beira da ruela,
aquecendo-se em fogueiras improvisadas dentro de tambores metálicos.
Aqueles que a olhavam detinham seu olhar por algum tempo. Ela usava
trapos, restos de roupas velhas recolhidas pelas ruas, rejeitadas até
mesmo pelos mendigos, às vezes costurados juntos, às vezes não. Por
baixo dos trapos, um vestido de malha barata, quase transparente de tão
velho e gasto. Em seus pés, chinelos de plástico que já haviam visto
muito mais uso do que deveriam.
Seu rosto estava coberto por várias camadas da sujeira e da fuligem
que pareciam onipresentes em Puyallup, onde ficava uma boa parte das
indústrias pesadas em Seattle. Por baixo da sujeira, estava uma face
pálida, magra por causa de incontáveis privações. Seu cabelo estava
sujo, duro e quebradiço, e, longo, se espalhava pelo seu rosto e ombros.
Sua cor era um ruivo vivo, com algumas mechas loiras, desbotado pela
sujeira. Por entre a confusão de seus cabelos arrepiados, as pontas de
suas orelhas se sobressaíam, pontas agudas de orelhas élficas.
A menina levantou a cabeça, removendo a longa franja que estava caída
em seu rosto, e seus olhos brilharam ao serem atingidos pela luz dos
faróis de um carro que passou por uma rua adjacente àquela onde ela
estava. Eram olhos grandes, dourados, que além da exótica tonalidade
mostravam uma tenacidade incrível, uma vontade de viver que beirava a
obsessão. Olhos cujo brilho se recusava a morrer não importando as
dificuldades, mas que também mostravam traços de um sofrimento duramente
reprimido. A menina abaixou a cabeça novamente, e continuou andando. A
franja voltou a cair sobre seu rosto.
Ela andava sem destino, absorta em seus próprios pensamentos. Dentro
da pequena cabecinha de 13 anos de idade passava um verdadeiro vendaval
de pensamentos conflitantes e, às vezes, desesperadores. Por debaixo dos
trapos estava um corpo cujo desenvolvimento natural estava apenas
começando, mas esse mero começo era suficiente para causar uma enorme
confusão conforme sua mente começava a ser assaltada pelos hormônios
típicos dessa fase.
Além disso, havia a solidão. A solidão imensa que a devorava desde
que ela podia se lembrar, e que apertava seu coração a cada instante,
sendo a razão do sofrimento transparecendo em seus olhos. Todas essas
coisas reunidas faziam com que a menina andasse pelas ruas, sem rumo,
confusa. Até que, finalmente, ela sentou-se na beirada da rua,
encostando-se em um prédio (não havia calçada.). Ela havia resolvido
ficar longe dos outros, mesmo que isso implicasse em ficar
longe do fogo e exposta ao frio do asfalto sobre o qual agora ela se
sentava. Provavelmente ela iria ser expulsa, de qualquer maneira, se
tentasse se juntar a eles.
Depois de alguns minutos, quando a menina estava quase dormindo, ela
foi despertada por uma voz. "Ei, garota. Acorde." A voz era de um velho
mendigo, que estava de pé à sua frente. "Como é seu nome?" perguntou
ele.
"Ann." disse a pequena elfa, timidamente.
"E o meu é Maxmiliam Albright III, dá pra acreditar?" disse o mendigo
com um sorriso. "Pode me chamar de Max."
O sorriso sincero de Max havia mexido com algo no interior de Ann.
Aquela havia sido a maior mostra de afeto que ela havia recebido em
muito tempo. Também sorrindo, Ann levantou a cabeça e olhou para Max.
Ele, por sua vez, se espantou ao ver de perto o rosto da menina de
rua. O sorriso mostrava a grande beleza que ele poderia vir a ter, não
fossem as marcas de privação.
"Venha, não fique aí pra morrer no frio. Vamos sentar ao lado da
fogueira." Max estendeu a mão para Ann, que aceitou o convite, agora um
pouco mais confiante e muito mais feliz. De mãos dadas, os dois foram
sentar-se junto ao grupo de outros mendigos que estavam ao redor do
tambor de metal.
Ann olhou para eles, sob a luz da fogueira. Eram duas pessoas, que
estavam entretidas com um pequeno tabuleiro de xadrez.
"Ah-há! Xeque-mate!" disse um dos jogadores, que Ann descobriu ser
uma mulher orc, quando ela se virou para a luz. "Ganhei de novo,
baixinho."
"Ei, não é justo!" reclamou o jovem que estivera jogando com ela.
"Você é que não aprende, depois de perder cinco vezes seguidas. Pode
pagar." disse a mulher, estendendo a mão para receber os cigarros que o
outro estava tirando do bolso. Ele hesitou um pouco, olhou para a mulher
e disse:
"O dobro ou nada!"
"Você é que sabe. Quer perder de novo..." respondeu ela, já arrumando
as peças. Ann se aproximou quando eles começaram a jogar novamente.
Nunca havia visto um jogo de xadrez tão de perto, apenas os tabuleiros
artesanais que eram exibidos por trás de grossos vidros nas lojas
chiques não muito longe dali. Por isso ela ficou um pouco espantada por
aquele ser tão simples. Apenas um minúsculo pedaço de plástico
quadriculado, sobre o qual estavam peças sem nada de especial. Mas logo
ela foi absorvida pelos movimentos do jogo, enquanto se divertia com as
pragas criativas soltadas pelo jovem humano que começava a perder seu
sexto jogo seguido.
"Eu já fui campeã nacional de xadrez." disse a velha para Ann,
enquanto seu oponente pensava no próximo movimento que faria.
Ann podia tinha uma boa idéia de por quê a pobre senhora havia ido parar
ali. Ela provavelmente havia não havia nascido uma orc, e quando se
transformou, foi expulsa da vida que levava antes. Não era difícil notar
isso em seu olhar, pois a própria elfa também estava marcada pela
crueldade do racismo. Ann enterrou a cabeça entre os joelhos, procurando
suprimir as lágrimas que uma vez mais ameaçavam rolar por sua face,
trazendo à tona toda a tristeza e desespero que ela queria manter
enterrados. A mão pesada da orc pousou sobre seu ombro. Ela levantou a
cabeça, seus seus olhos úmidos, pois o desespero estava ficando difícil
de conter. "Mas o que é isso, menina? Por que está chorando?"
"Por nada." disse Ann em uma voz sumida. "Por nada."
A mulher trocou um rápido olhar com Max. "Olha aqui, vamos fazer
seguinte. Meu nome é Gertrudes, mas o pessoal daqui me chama de Trudy.
Eu notei que você tava bem interessada no jogo aqui... Quer que eu te
ensine?"
Ann olhou bem para o tabuleiro. O rapaz que estava jogando com Trudy
olhava para ela também sorrindo, provavelmente por que ninguém havia se
lembrado de cobrar dele os cigarros devidos. A voz da elfa estava bem
menos triste quando ela disse: "Quero sim, tia!"
Ela passou um bom tempo escutando atentamente sua nova professora,
aprendendo sobre os nomes e movimentos das várias peças do jogo. O sono
veio sem ser percebido, e foi talvez o mais longo que Ann já se
permitira a ter em meses.
Mas parece que alguma força superior estava empenhada em vê-la sempre
infeliz. Se o sono foi bom, o despertar foi horrível.
O tabuleiro de xadrez foi a primeira coisa que ela viu quando abriu
os olhos abruptamente (o rei preto estava desaparecido). A próxima coisa
que ela notou foi a sensação de uma mão fria arrastando-se por sua perna
esquerda, tentando entrar por debaixo dos trapos. O medo tomou conta
dela, meio que paralisando-a. Seus olhos se mexeram, tentando achar Max
e Trudy. Não estavam lá. A mão continuava a se mexer por suas pernas,
estando agora na altura da coxa. Ann tentou fugir, sair correndo dali o
mais rápido possível.
Não deu certo. Braços se enlaçaram em sua cintura, derrubando-a. Ela
se virou instintivamente na direção do atacante. Era o cara que perdera
para Trudy no xadrez. Ele apertou mais o abraço.
"Te peguei agora, coisinha." disse ele. "A gente vai se divertir
muito, hehehe... " Seus olhos estavam vidrados, seus braços impediam
que Ann escapasse, prendendo-a de encontro ao seu corpo. Ele estava
tentando arrancar os frágeis trapos que se interpunham entre ele e Ann
com os dentes.
"Não!!" gritou ela, se debatendo. "Me solta!"
"Calaboca!" soltando o abraço, ele desferiu um tapa no rosto da
menina. Com toda a força. Ela ficou atordoada, no chão. Grunhindo como
um animal, ele começa a rasgar os trapos, tirando-os do caminho. O
vestido que está por baixo abre-se com a mesma facilidade, seu tecido
gasto oferecendo pouca resistência. Ann sente uma gota de suor frio cair
em seu tórax exposto, e o vento da manhã de Seattle castiga as costelas
saltadas. Ann já havia ouvido muito sobre estupros nos noticiários que
assistia nas vitrines das lojas e nos bares que a deixavam entrar. Já
havia presenciado um à distância, o medo a havia impedido de fugir. Mas
agora ela estava sendo a vítima. Esse pensamento tomava forma junto ao
medo e à dor que crescia cada vez mais.
Até que tudo aquilo não podia mais ser contido. Ann gritou.
---
Ela acordou com as frias agulhas da chuva caindo sobre a pele
exposta, a água levemente ácida de poluentes industriais. Abriu os olhos
com medo, para as mesmas paredes pichadas do beco onde havia encontrado
um momento de conforto... E outro de grande sofrimento. Ann ficou parada
por algum tempo, apesar da chuva. Ainda estava com medo. Levantou
lentamente, virando o pescoço dolorido e olhando ao redor. O estuprador
ainda estava ali. Morto.
Assim que o viu, ela gritou mais uma vez para a chuva, mas logo
percebeu que o corpo estirado no asfalto nunca mais se levantaria.
Chegou mais perto, os extintos de sobrevivência acumulados em três anos
de rua tomando conta. O cadáver não possuía nada de valor, como era de
se esperar. Apenas os cigarros do outro dia, um envelope de plástico
vazio que na certa continha a droga que dominara a mente do morto.
Também havia uma faca enferrujada.
Ann pegou a faca e os cigarros, e procurou uma brasa dentro do tambor
da fogueira, agora apagada. Acendeu um dos cigarros nela, e,
protegendo-o com a mão começou a andar para longe, tomando longas
tragadas. O cabelo vermelho havia voltado a cair sobre os olhos cor de
âmbar, que choravam copiosamente. A elfa deixava um rastro de sangue e
lágrimas, que era rapidamente lavado pela chuva e esquecido na
indiferença das favelas de Puyallup.
Ela esbarrou em alguém na saída do beco, e tremeu ao sentir uma mão
em seu ombro. "Ei, garota." disse uma voz feminina, vinda de alguém
pouco mais velha do que ela. Ann continuava tremendo, e chorando. A dona
da voz entrou em seu campo de visão, uma garota humana de uns 15 anos,
cabelos pintados de verde e muito arrepiados. Tinha uma cicatriz apagada
na face, e usava roupas de couro justas, enfeitadas com correntes e
espinhos de metal.
"Ei, garota." repetiu ela. "Não chore. Eu vi o que aconteceu ali."
"E por que não veio me ajudar?" perguntou a elfa, com uma ponta de
raiva na voz.
A garota de cabelos verdes assumiu uma expressão intrigada. "Eu
escutei quando você gritou, e vim correndo. Cheguei bem na hora de ver
você matando aquele cara. Foi uma coisa louca, sabe? Você só olhô pra
ele com uma cara assustadora, gritando, e ele caiu... Diz aí, você manja
de magia?"
Até agora, Ann não tinha parado para se perguntar como o estuprador
havia morrido. Havia assumido que foi a droga que o matou. O que a outra
havia dito apenas fazia com que ela ficasse mais assustada. O choro, que
havia parado um pouco, aumentou novamente, e ela começou a tremer.
"Eu...".
"Fica calma, agora já passou." disse a outra, percebendo o que
fizera. "Olha, eu quero te ajudar. Sei que cê deve tar se sentindo uma
merda, esse tipo de coisa não é fácil pra ninguém. Vô te levar prum
lugar bom, OK? Meu nome é Coral."
"A-ann." murmurou a elfa. "Ann."
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Coral conduziu-a por calçadas rachadas cercando prédios industriais
decrépitos, sob uma ferrovia elevada de quatro pistas, usada pra trazer
matérias primas do porto de Tacoma e levar produtos comerciais para o
Distrito da Penumbra. Ann havia parado de chorar depois de alguns
minutos, e agora escutava o expansivo monólogo oferecido por Coral sobre
como os homens eram criaturas nojentas, murmurando alguns monossílabos
de vez em quando para mostrar que estava prestando atenção.
Debaixo dos trilhos, encostadas em motos, estavam várias outras
garotas, em trajes semelhantes aos de Coral, mas com as cores dos
cabelos variando em padrões criativos. A maioria parecia ser mais velha
que ambas. Ann notou que as jaquetas de couro sintético usadas por elas
eram pintadas com padrões coloridos em alguns lugares, lembrando um
pouco escamas de cobra. Coral disse algo sobre elas já estarem chegando,
e Ann voltou sua atenção novamente para ela.
A elfa pode reparar melhor na outra garota agora, mesmo no escuro,
pois sua visão absorvia mais luz do que a de um humano normal. As roupas
de Coral tinham um aspecto mais usado do que parecia à primeira vista.
Ela vestia uma jaqueta de couro sintético barato, as mangas compridas
arregaçadas na altura dos cotovelos, exibindo os braços alvos da palidez
do Sprawl. O zíper estava semi-aberto, e Ann, perto como estava, podia
ver que ela não usava nada por baixo, e um de seus
seios pequenos e redondos estava tatuado com a cobra que lhe emprestava
o nome. A calça, de mesmo material, era extremamente justa, estando
rasgada em alguns pontos. Ambas as peças de roupa haviam sido adornadas
com os já mencionados espinhos e correntes de metal costurados na
superfície do couro.
Coral levou a pequena elfa até o meio do grupo de garotas, que ela
apresentou como sendo a gangue das Serpentes, da qual era líder. Depois,
a menina de cabelos verdes colocou uma mão no ombro de Ann. "Pode deixar
que a gente vai cuidar de você. O pior já passou."
Depois de rápidas apresentações, Ann subiu na garupa de uma das
motos. Antes que o veículo saísse, ela viu uma mão pesada de orc, saindo
de baixo de um monte de lixo próximo. Ela segurava algo nos dedos sem
vida. Era uma peça de xadrez, o rei preto.
---
Ann só foi perceber que havia se tornado parte das Serpentes quando
tentou sair de fininho, depois da primeira refeição junto a elas.
Preparado nutricional de soja, puro, sem sabor, a melhor coisa que ela
havia comido em meses.
Coral havia posto a mão em seu ombro, quando ela tentava esgueirar-se
para fora do barraco que estava abrigando a gangue. "Ann. Não sai não."
disse. Ann tentou balbuciar uma desculpa qualquer, mas foi interrompida.
"Por que cê tá tentando sair?" perguntou Coral, abaixando-se um pouco
para olhar Ann nos olhos.
Depois de uma breve hesitação, a elfa disse baixinho: "Eu só ia
atrapalhar vocês."
Coral balançou a cabeça negativamente. "Deixa disso. Cê tá com a
gente agora, Ann." era a primeira vez que a líder das Serpentes a
chamava pelo nome.
Ann não sorriu, o choque do estupro ainda pairava negro em sua mente.
Mas havia um sorriso em seus olhos, olhando para a garota de cabelos
verdes.
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Os primeiros dias no barraco foram calmos, uma benção que aliviou seu
corpo e alma cansados. Havia comida quente todo dia e uma cama que, se
não era macia, era infinitamente mais confortável do que as frias
calçadas do Sprawl.
A gangue saía toda noite, para arranjar dinheiro e manter a despensa
cheia e as motos funcionando, e voltava pouco antes do sol nascer,
quando Ann ainda dormia. Durante a tarde, uma delas se encarregava de
ensinar à elfa alguns básicos na sobrevivência nas ruas: as complicadas
relações entre as várias gangues de Seattle, as normas das Serpentes, e
o manejo de pistolas e de uma enorme faca que havia sido entregue a ela
como um presente.
Ann teve tempo de esquecer o choque em sua maior parte, e começou a
gostar das reuniões esporádicas que as Serpentes organizavam ao redor de
um aquecedor elétrico que fazia às vezes de "fogueira tribal". Elas
formavam uma gangue pequena para o Sprawl, tendo muito poucos membros.
Não existiam muitas normas, e nenhum dos elaborados rituais de iniciação
das outras gangues maiores (elas precisavam sempre de novos membros.).
Além de Coral e Ann, havia outras quatro Serpentes, Sabrina (uma loira
oxigenada, usando roupas um pouco mais claras que as das demais), um par
de gêmeas que eram chamadas de Cindy, não sendo feita nenhuma distinção
entre as duas, e Mamba, uma negrinha pouco mais velha do que
Ann, com jeito de africana, cabeça raspada e roupas com tatuagens
tribais. A única coisa que identificava aquelas garotas como uma gangue
era o decalque de uma cobra mordendo o próprio rabo, nas costas das
jaquetas de couro sintético usadas por todas elas. Com exceção de Ann,
todas eram humanas.
As conversas iam ficando cada vez mais descontraídas, parecia que as
Serpentes passavam por uma temporada de bonança. Seus poucos números as
haviam ensinado a trabalhar como um todo bem integrado, e a desenvolver
melhor suas habilidades e uma pequena rede de contatos que Coral se
esforçava para construir. Um dia, a conversa se tornara uma verdadeira
comemoração, pois Sabrina havia arranjado algumas garrafas de bebida
sintética.
Depois de algum tempo, quase todas as Serpentes já dormiam no chão do
barraco. Ann, meio bêbada depois de apenas três goles, olhava fixamente
para o aquecedor, sem realmente focar os olhos, enquanto pensamentos
diversos corriam por sua mente, alguns felizes, outros não. Ela sentiu
uma mão em seu ombro, Coral tentando atrair sua atenção.
"Ann?" Seu nome de novo. A elfa estava deixando de ser tratada como
"garota", ou "menina". "Quiquifoi?" respondeu ela, com a voz meio
enrolada.
Coral chegou mais perto, seu rosto quase encostando no de Ann.
"Sabe... A gente podia... quer dizer...." disse ela, sem jeito.
A elfa já havia visto Coral "brincando" com uma mulher que fazia
parte de uma outra gangue, em uma conferência para a qual elas
compareceram, uma vez, portanto a única surpresa que sentiu foi pela
falta de jeito na voz da outra. Ela era tão extrovertida normalmente...
Os olhos se encontraram. "Olha, tu é muito legal, te devo a minha
vida, mas... Tipo, acho que não vai dar..." disse Ann. Coral apenas
abaixou a cabeça, com um sorriso algo entre triste e conformado. "Tudo
legal..." disse ela, e foi deitar-se em seu quarto. Meses depois, Ann
aceitaria uma oferta de Coral, apenas para decidir depois que ela
própria não era assim.
No dia seguinte à comemoração, ela foi levada para ver Randolph.
Apenas Randolph, sem sobrenome, como ela própria era apenas Ann. A
elfa havia ouvido aquele nome várias vezes, durante as conversas ao
redor do aquecedor elétrico, mas ele sempre ficava perdido entres as
fofocas da rua e as piadas grosseiras das quais ela havia aprendido a
gostar.
Agora, Ann estava arrependida por não ter prestado tanta atenção
naquele nome como deveria. O pentagrama desenhado na porta da casa a
assustava.
Todas as seis Serpentes entraram. Havia uma espécie de ante-sala, com
alguns sofás rasgados ao redor de uma mesinha de centro de plástico
transparente e embaçado. Pequenos montes de cisco e entulho se
acumulavam nos cantos. Havia uma escultura estranha sobre a mesa,
encimada por um olho de vidro.
Elas sentaram-se nos sofás, esperando silenciosamente. Ann olhava
para os rostos de suas "irmãs", que devolviam o olhar. Ela não mais
vestia os trapos de antes, agora usando um colete fechado de couro
sintético (nada por baixo), uma calça jeans velha e tênis. Ela perdera
muito de sua antiga timidez, convivendo com a gangue, mas agora estava
achando difícil puxar conversa.
A escultura em cima da mesa voltou-se para encará-las. Ann olhava
espantada, enquanto o olho de vidro girava sobre o resto da escultura,
que era coberta com sinais estranhos que ela só havia notado agora.
"Mas o quê...?"
"Ah, sossega." disse Sabrina, rindo uma risada afetada. "Ele faz isso
só pra se exibir."
Depois de alguns segundos de nervosismo, e da desagradável sensação
de estar sendo observada, a porta que levava para dentro da casa
propriamente dita se abriu com um lamento.
"Deixem a elfa entrar sozinha." disse uma voz, vinda da outra sala,
que estava mergulhada em breu.
Depois de hesitar e ser encorajada pelas Serpentes, Ann entrou na
sala. O cômodo não estava tão escuro quanto parecia, de fora, havia uma
vela queimando em cima de uma mesa grande, a um canto. Aquela pouca luz
já era suficiente para que ela enxergasse perfeitamente o interior da
sala, mesmo sendo esta bem maior do que a anterior. Às vezes, ser uma
elfa apresentava vantagens. Na opinião de Ann, as vantagens não eram
nada em frente ao lado mau da coisa, mas mesmo assim ainda ajudavam, de
vez em quando.
Olhando ao redor, ela viu que as paredes estavam cobertas de estantes
abarrotadas. Devia haver mais de duzentos livros por ali. Sentado em uma
cadeira estofada já idosa, perto da vela, estava um sujeito magro,
cabelos castanhos, óculos. Usava um terno velho e puído, e forçava os
olhos para ler um livro de capa rasgada. Quando Ann se aproximou um
pouco mais, ele levantou a cabeça. Olhos da mesma cor dos cabelos,
sorriso com o canto da boca.
"Boa noite. Eu sou Randolph. Sem sobrenome."
A aparência dele a surpreendeu. ela estivera esperando algo mais...
imponente, talvez. Algo como um velho sisudo, ou um sábio barbado.
Aquele eram definitivamente, o mago menos mágico que ela já havia visto
(mas também era o primeiro, como poderia ela saber?). O tal Randolph não
parecia grande coisa. Com uma nota de desdém, ela disse:
"Eu sô a Ann. Cê é que é o mago que elas falaram?" satisfeita com o
tom mais confiante de sua voz.
"Eu não pareço muito, não é?" ele passou a mão pelos cabelos,
pondo-os em desalinho. "Talvez você esperasse algo assim..."
Bang. A porta se fechou com força. Rrrsstt. Uma cadeira que estivera
do outro lado da sala arrastou-se rapidamente para perto da mesa.
Rrrush. A chama da vela aumentou bruscamente de tamanho.
"Sente-se." disse ele, com um sorriso maior do que antes, mostrando
os dentes muito brancos.
Ann sentou-se, sua face momentaneamente transfigurada pelo espanto.
Controle-se, menina. Aquela história de mago agora parecia fazer mais
sentido. Aquela era a primeira demonstração de magia que ela realmente
presenciara. Bom, havia aquela produzida por ela própria durante o
estupro, mas ela não se lembrava de nada daquilo, tendo que confiar nos
relatos de Coral.
"Você não deve ter uma boa idéia de por que está aqui, certo?"
Randolph quebrou o fluxo de consciência.
"Não." disse Ann. Na verdade ela tinha uma boa idéia (o incidente do
estupro) mas não se sentia confortável falando sobre isso. O desdém
havia sumido de sua voz, sido substituído por ansiedade. Será que aquele
sujeitinho de terno sujo poderia ler sua mente? Descobrir tudo o que ela
não queria revelar? Ann não sabia.
O que acabou traindo-a foi a ansiedade. A expressão de Randolph
deixava claro que ele havia percebido algo escondido, mas ao invés de
perguntar, ele disse:
"Foi Coral que me falou de você, mas disso você já sabe. O motivo
dela ter conversado comigo é que você é bem especial. E não é por ser
uma elfa."
Como ele enrola, pensou Ann. Ela já estava bem consciente do último
fato mencionado pelo mago. Os elfos eram considerados uma raça de
esnobes ou o mais novo "Grande Inimigo Estrangeiro" (reminiscências da
cultura americana do século 20). Se sua raça a tornava especial de algum
modo, era fazendo-a ser especialmente perseguida pela maioria das
pessoas.
"Coral diz que você tem grande potencial para a magia, para fazer
alguns truques parecidos com esses que eu te mostrei agora pouco." O que
ele achava que ela era, burra?
"Para ver se isso é verdade, eu preciso dar uma examinada em você.
Tudo bem com isso?"
"Que mané exame! Cê não vai encostar em mim!" a mão de menina
apertando o cabo da faca.
"Não, calma!" disse Randolph, levantando as mãos. Depois, em um tom
meio divertido: "Eu não vou encostar um dedo em você! Só fique paradinha
aí, OK?"
Dizendo isso, os olhos do mago ficaram vidrados, desfocados, como se
ele estivesse olhando através dela. Um calafrio percorreu as vértebras
da elfa.
Quando seus olhos voltaram ao normal, depois de alguns minutos de
silencioso exame, Randolph disse, com satisfação: "Meus parabéns, Ann.
Você tem um excelente potencial para se tornar uma maga completa."
Ele disse mais algumas coisas, que ela era uma em um milhão, e mais
outras nas quais ela não prestou atenção, tão ocupada estava em absorver
a primeira peça de informação. Quando Ann saiu, Coral entrou,
provavelmente para ouvir os relatório do mago. Enquanto a elfa contava
às Serpentes o que havia acontecido na sala, o peso dos fatos fazia-se
sentir.
Uma maga completa. Ela não sabia o que o completa significava, devia
ser uma das coisas que não ouvira. Soava bem. O que ela entendeu foi a
palavra "maga", e por causa dela, seu futuro tornava-se como uma nuvem
de incerteza, e da mais tênue esperança.
Ann não dormiu aquela noite, sua mente estava agitada, e não era só
por causa do encontro com Randolph. O tumulto da puberdade, esquecido
durante tanto tempo, voltava a ser sentido, o que não acontecia desde o
estupro. Antes, tudo parecia ser simples, sua vida com as Serpentes era
muito mais segura do que o abandono das ruas. As coisas começaram a se
complicar depois da proposta de Coral, e, principalmente do encontro com
Randolph. A elfa estava em dúvida quanto ao que deveria fazer em relação
à líder da gangue, e Randolph, o chato, parecia ter mexido em algo no
seu íntimo, algo tão sutil que ela tinha dificuldade em precisar o que
era. Todos esses pensamentos a atormentaram até a hora em que Ann,
cansada, dormiu.
---
Depois, entraram os pesadelos.
Dizem que os sonhos são uma coletânea dos acontecimentos de um dia,
tingidos com uma cor especial pelo cérebro. Isso não é sempre verdade. O
pesadelo de Ann, por exemplo, era uma lembrança de sua vida inteira, com
muito poucas alterações por parte de sua mente. A realidade já era feia
o suficiente.
E Ann lembrou-se, contra a vontade, de sua vida, desde o nascimento.
A terrível experiência do parto, dolorosa e assustadora tanto para mãe
quanto para a filha, ainda tão intimamente ligados pelo cordão
umbilical. O grito horrorizado dos pais humanos e tradicionalistas ao
perceberem as orelhas pontudas do bebê que acabara de vir ao mundo.
Seus pais a mantiveram a contragosto, pensando que talvez houvesse
uma cura para sua estranha "doença genética". Como bons representantes
da classe média, nunca pensaram que aquilo poderia acontecer com eles.
Ann foi tolerada enquanto crescia, tratada com frieza constante e
violência ocasional por seus pais. Tinha poucos amigos, ficava a maioria
do tempo em casa, por ordem dos pais. Nunca se animara a desobedecer as
ameaçadoras figuras.
Quando ela completou dez anos, seu pai, um empregado corporativo de
sucesso moderado, foi despedido, pois fora declarado culpado em esquemas
de corrupção interna da empresa onde trabalhava. Ele havia recebido a
promessa de que não acharia trabalho tão cedo naquela cidade.
A partir daí, a vida da jovem elfa tornou-se um verdadeiro inferno.
Começou a ser surrada quase todos os dias, pelas menores faltas, ou
simplesmente por estar ali. Seu pai saía procurar emprego e voltava
bêbado, a mãe não se saía muito melhor do que isso, ambos profundamente
chocados pela destruição de suas vidas confortáveis. De novo, nunca
pensaram que aquilo podia acontecer com eles. Começaram a brigar logo, e
descontavam sua raiva verbal e física em Ann.
Isso eventualmente tornou-se insuportável, drástico o suficiente para
quebrar o medo da desobediência incutido nela por anos de severidade e
ódio mal disfarçado. Ann fugiu de casa, sem olhar para trás, e usando
apenas a roupa do corpo.
Três anos se passaram, três anos de uma vida dura, preenchida apenas
pelas agruras das frias ruas do Sprawl. Ela roubava para se alimentar,
praticamente nunca conseguindo o suficiente para se manter nutrida, e
sua gordura infantil foi rapidamente se esvaindo. Na casa de sua
família, ela havia sido bem alimentada, apesar dos maus tratos. Aqui,
seu rosto e corpo assumiram uma magreza e palidez que era ainda mais
acentuada pelo físico de elfa. Com muito esforço, Ann se adaptou à
rotina de privações. Ela procurava sempre ficar longe de algo como a
prostituição, mas conhecera meninas de sua idade que pensavam diferente.
Talvez ela tivesse sucumbido às drogas, se alguma vez tivesse dinheiro
suficiente para comprá-las. Às vezes, um ou outro cigarro sujo e
amassado fazia com que tudo parecesse mais fácil, por cerca de 10
minutos. Ela passava a rações cruas, que grudavam na boca e tinham um
gosto horrível. Lixo era um prato ocasional.
Mesmo assim, as ruas eram um paraíso de liberdade se comparadas com a
casa onde ela morara (aquilo não era um lar). Ela achava fascinante
viver sem proibições, e teoricamente poderia fazer tudo o que quisesse,
mas não era bom para a sobrevivência se descuidar muito. Além disso,
mesmo nessa "terra de liberdade" o preconceito ainda pairava como uma
névoa cinzenta. Nenhuma das pessoas encontradas por ela era tão racista
quanto seus próprios pais, mas mesmo assim muitas delas se comportavam
de maneira levemente hostil ou desdenhosa. Por incrível que pareça, os
policiais não mostravam preconceito algum. Tratavam todas as crianças de
rua com igual desprezo. Ela não teve nenhum amigo real naqueles três
anos, mas também não havia tido um nos dez anteriores. Apesar de muito
atenuado, o vazio continuou lá, e pesava como uma pedra cruelmente
enterrada em seu peito.
Em um dia particularmente depressivo, ela havia encontrado Max e
Trudy, para logo depois perdê-los de vista para sempre. A memória dos
breves momentos de felicidade que a compaixão deles lhe trouxera ainda
estava vívida, embora aquilo parecesse ter acontecido a milhões de anos.
Sonhando, ela reviveu o estupro novamente, em todos os detalhes
excruciantes. E agora, para seu próprio horror, Ann descobria que no
meio de tudo aquilo ela havia sentido uma sensação estranha, tênuamente
agradável, escondida por baixo da dor. Isso apenas tornava tudo pior.
Depois dessa angústia, o rosto de Coral aparecia como o de um anjo
salvador, recolhendo-a quando ela parecia haver chegado ao fundo do
poço. A vida com as Serpentes fora algo muito mais agradável do que a
rua ou sua família, pois o preconceito finalmente havia ido embora.
Nenhuma das outras se importava com o fato dela ser uma elfa. Ela viu
uma vez que Sabrina chegou ferida de uma das saídas da gangue, mas
graças a Deus não era nada grave. A cicatriz permanecia
até hoje.
O sonho chegou ao ponto onde ela se encontrava com Randolph. Por
algum motivo esses momentos ficaram mais nítidos que muitos dos
anteriores. Ela até conseguiu pegar uma parte maior da explicação. A
expressão "maga completa" significava que ela poderia realizar todos os
aspectos da magia conhecidos até agora, se os aprendesse. Feitiços,
invocação de espíritos, viagens astrais e criação de objetos mágicos,
foram as coisas enumeradas por Randolph naquela hora. Isso a deixou
cheia de uma alegria inexplicável. Pela primeira vez, o sentimento de
que a pequena e franzina elfa era especial.
Para sua própria surpresa, Ann se viu deitando para dormir, há
algumas horas atrás. Talvez eu acorde agora, pensou ela.
Mas o sonho continuou. Agora, as imagens eram bem pouco nítidas, e
vinham em uma sucessão caótica, sobrepondo-se borradas. O
vermelho-sangue foi a cor mais predominante depois de um curto tempo. O
fato de que ela não conseguia entender nada foi deixando-a cada vez mais
angustiada. A sensação de sangue piorava.
Até que de repente, tudo parou. Ela parecia estar deitada, com muita
dor. Seus olhos estavam abertos, mas ela não conseguia enxergar nada.
Frio, muito frio...
A elfa acordou gritando.
---
O ano agora era 2053, e já fazia três anos que Ann estava com as
Serpentes. O corpo da elfa, que estava com 16 anos, perdera os contornos
infantis, e suas formas ganharam curvas agradáveis ao olhar. A garotinha
franzina não mais estava ali, apesar dela ainda parecer mais nova do que
realmente era.
Ela não sabia se algum grande evento histórico acontecera, mas também
não se importava. Seu mundo se resumira às favelas de Puyallup, e lá
tudo corria bem para Ann. As Serpentes não haviam ganho novos membros,
por alguma razão Coral havia adquirido algumas reservas quanto a isso,
mas haviam crescido em importância no microcosmo das gangues de
Puyallup. Coral havia conseguido a rede de contatos que tanto desejara,
e várias pessoas lhe deviam favores. Havia inclusive uma ou duas gangues
subordinadas.
Era nesse cenário que Ann começava a ser gradualmente introduzida, à
medida que seu treinamento com Randolph progredia. Ela havia sido
mantida segura, dentro do barraco que servia de base central para as
Serpentes, até que foi ver Randolph. Depois, ela passava muito tempo na
casa dele, tomando constantes lições sobre coisas que às vezes ela
achava assustadoras. Ele havia ficado bem aliviado com o fato de que ela
já sabia ler um pouco (havia estudado até a quarta série enquanto morara
com seus pais, e aprendido vorazmente apesar do preconceito). Randolph
apenas teve que complementar algumas coisinhas para ensiná-la a ler
direito.
Ela havia ficado com uma opinião misturada sobre as aulas de magia em
si. Às vezes, o mago discorreria longamente sobre fórmulas complicadas,
envolvendo conceitos que ela tinha dificuldade em entender. Ela estudava
os complicados diagramas com ardor, queria entender tudo o que lhe era
apresentado. Em outras ocasiões, Randolph falava sobre planos de
existência, espíritos, e outras coisas assim. Ann se assustava com essas
explicações tanto quanto ela se esforçava para absorvê-las em cada
detalhe. Ao voltar para casa, para dormir, ela tinha pesadelos infantis
sobre essas criaturas.
Randolph riu quando ela perguntara sobre anjos, em uma de suas aulas
sobre espíritos. Ele disse que essas coisas não existiam. Ann não achou
aquilo certo, mas preferiu não discutir. Mesmo que ela odiasse o
fanatismo religioso de seus pais, a elfa simplesmente não conseguia
imaginar um mundo sem Deus. Isso não entrava em sua cabeça.
Levou um ano inteiro até que ela começasse a efetivamente aprender
magia. Randolph seguia todos os protocolos formais do ensino de magia
hermética, e acreditava ser necessária uma forte base teórica.
Aprender teorias sobre feitiços era uma coisa, efetivamente aprender
um feitiço era outra totalmente diferente. Ela nunca esqueceria a
primeira vez que seu corpo foi percorrido pela magia, pelo Sangue da
própria Terra, segundo os ensinamentos de Randolph. Ele falava muito em
sangue.
Foi muito fácil aprender seu primeiro feitiço, algo que Randolph
chamava de raio de mana. O tutor disse que ela havia usado-o
instintivamente, para matar o estuprador. Ela nem teve tempo de
sentir-se mal com a lembrança, pois o entusiasmo era maior do que tudo
naquele momento.
Ela aprendeu outras coisas, eventualmente. Quando criança, ela sempre
sonhava voar para longe, escapar de tudo... Bom, agora ela poderia voar,
se quisesse. Ou quase isso. E também mexer nas coisas sem tocar nelas.
Mamba sempre dizia que Ann estava virando um morcego. As aulas
duravam toda a noite, e de dia ela voltava para dormir com as Serpentes.
Desde que havia aceito aquela oferta de Coral, a elfa consentia que a
outra dormisse abraçada a ela, mas nada além disso. Era bom sentir um
pouco de calor humano à noite, ambas concordaram. Em um desses dias,
elas estavam já deitadas, se preparando para dormir, quando Coral
perguntou:
"Cê tá gostando da aula?" seu rosto estava a alguns centímetros do de
Ann.
"Tô, sim. Eu já sei fazer algumas coisas. Tá bem legal." disse Ann,
baixinho.
"Qui foi? Parece que tem alguma coisa te perturbando." Coral,
preocupada.
"Não tem nada não..." disse Ann, e foi nesse momento que ela notou
que havia algo, sim. Coral também percebeu.
"Pode dizer. Cê já sabe que eu sô tua amiga."
"Olha, é que... ah, sei lá!" disse Ann, obviamente tendo dificuldades
para expor seus sentimentos. "Eu tô com medo.", disse ela por fim.
"Medo de quê?"
"Essas coisas que eu tô aprendendo... Eu tô com medo que vocês se
afastem de mim, sabe? Que fiquem pensando que eu sou alguma bruxa..."
"Que coisa besta! Por que você acha isso? Pra mim, você vai sempre
continuar do mesmo jeito!"
"E pras outras?" O olhar da elfa deixava transparecer reflexos de
ansiedade nas íris douradas.
Coral suspirou, e o suspiro atingiu os lábios da elfa, provocando uma
leve sensação se cócegas. Ela sentiu vontade de sorrir, mas permaneceu
séria.
"Ann... eu prometi que ninguém aqui vai te estranhar, OK? Cê tá com a
gente faz tempo, é já é da família. Então sossega, tá? Sô eu que fico
grilada de te ver assim." Num rompante, Coral deu um beijo estalado nos
lábios finos de Ann. Desta vez, ela deixou o sorriso escapar, seu
coração aliviado do peso que antes o preenchia. Coral também sorriu.
Apertando um pouco o abraço, ambas dormiram a sono solto.
---
Ann acordou antes de Coral, e fez malabarismos para sair do abraço
sem acordá-la. Conseguiu. Calçando seus tênis de brim furado (dormira de
roupa), ela esgueirou-se até as motos que estavam estacionadas em uma
sala adjacente.
Demorou-se um pouco olhando as máquinas, que já pertenceram a vários
modelos esportivos e de corrida, mas agora eram amontoados de peças e
motores expostos, constantemente alterados e consertados por suas donas.
Ann havia recebido sua moto havia pouco, e esta era apenas uma conversão
elétrica de uma Rapier usada, ainda praticamente intacta. Mesmo a
cobertura de plástico externa ainda não havia sido removida para dar
lugar a novas peças ou a um motor maior. Ela ligou a moto depois de
examiná-la brevemente, e partiu rápida e silenciosamente.
O Sol estava brilhando, o que era raro para Seattle, onde chuvas eram
um constante incômodo. Os suaves raios atingiam a pele pálida, e a
envolviam num quente e aconchegante abraço. Ann sentia aquele calor com
um pouco de estranheza, uma sensação de novidade. Não se lembrava da
última vez que havia experimentado algo assim, pois sempre dormia de
dia. A voz de Mamba lhe ecoou na cabeça, chamando-a de morcego. Ann
sorriu e deixou que o sol a banhasse, enquanto deslizava pelas ruas e
becos de Puyallup.
Ela acordara mais cedo naquele dia (eram duas da tarde) impelida por
uma curiosidade devoradora que surgira sem aviso e sem explicação. Iria
para a casa de Randolph, aprender mais, olhar os livros que ele nunca
abria, e permaneciam sempre fechados na parede daquela sala. Ela se
perguntava se ele já sabia tudo o que estava neles.
A porta da casa estava trancada, e as vidraças eram cobertas de piche
pelo lado de dentro. Depois de experime ntar a porta, Ann levantou o
assento da moto e tirou de lá um estojo preto, e um caderninho de
espiral com capa florida.
Dentro do estojo, junto a lápis e borrachas, haviam duas gazuas, que
ela carregava havia algum tempo. Arrombar fechaduras era um hobby
interessante, e a de Randolph era antiga. Ela passou rápido pela
antessala, evitando o olhar da escultura (que poderia alertar o mago), e
ganhando a biblioteca.
Estava escuro, então ela abriu a janela. E começou a devorar os
livros. Havia muitos com capas modernas, logotipos de editoras nas
lombadas, documentando as mais recentes descobertas no campo da pesquisa
mágica, compilações de revistas de renome. Ann passou os olhos
rapidamente por esses. Os textos usavam uma linguagem científica, o que
tirava todo o encanto da magia como ela a imaginara.
Ainda por cima, todos os textos eram teóricos, uma reunião de idéias
excessivamente abstratas, feitas ainda mais confusas pela forma como
eram escritas. Chateada, ela deixou os livros "modernos" e foi olhar os
outros.
Esses outros, reunidos em uma estante diferente,exalavam um leve
cheiro de mofo, o que causou uma sensação agradável na elfa, que gostava
da atmosfera por ele conferida. Puxando um dos volumes encadernados em
couro (exalavam um cheiro mais forte), e abriu-o, rezando para que fosse
diferente dos anteriores.
Ela descobriu que o volume era uma compilação de manuscritos antigos,
traduzidos em uma elegante letra cursiva. Talvez o volume que ela tinha
em mãos fosse da mesma idade das revistas, mas por ser pouco usado suas
páginas estavam amareladas.
Depois de pousar os olhos sobre a primeira palavra, Ann não parou de
ler por horas, sempre copiando os diagramas e passagens mais
significativas para o caderninho.
O livro era tudo o que ela sempre esperara das tradições mágicas. Era
como se todas as esperanças e sonhos de Ann tivessem sido transcritos
para as páginas amareladas. Os floreios arcaicos que permeavam o
conteúdo atrapalhavam um pouco, mas ela se esforçava por entender.
Os manuscritos compilados eram o extremo oposto dos textos
"modernos". Além da linguagem antiga, eram permeados de sentimento e
misticismo, pisando nas lógicas científicas ao falar do sobrenatural.
Ela já havia visto algumas daquelas coisas com Randolph, mas não com
tanta profundidade. As partes que ela copiava levariam dias para serem
estudadas, e ela sentia que havia algo mais ali
do que simples teoria.
O sol se pôs, e Ann agora passara para outro volume. Ela não notou a
mudança do dia para a noite por algum tempo, devido a sua visão noturna
élfica. Quando o vento começou a dar-lhe frio, Ann fechou a janela e
acendeu a vela que estava em cima da mesa.
Sentia-se mais completa na compenetração do estudo. A sensação de que
algo estava faltando, que fizera-se sentir desde o começo das aulas,
havia finalmente desaparecido.
A sala tornara-se abafada, e ela abrira o colete de tecido grosso,
deixando expostos os seios novos e as costelas salientes. A ponta do
lápis havia se tornado rombuda, e continuava trabalhando.
Até que...
"Ann?!" Surpresa, ela deu um pulo na cadeira, e soltou um gritinho
agudo.
"R-Randolph?"
Ele estava na porta da biblioteca, de cuecas. Tinha o jeito de quem
acabara de acordar.
"Foi você que arrombou a fechadura?" Olhos no vão do colete.
"...foi." fechando o zíper apressada.
Ann estava usando, além do folgado colete, uma calça jeans, e os
tênis de brim furados na sola. Seu cabelo, antes liso e ajeitado, agora
estava molhado de suor, totalmente arrepiado, rosto e braços cobertos
por uma brilhante camada de suor e poeira de livros.
Randolph deduziu o que acontecera, e com um sorriso imperceptível,
disse: "Acho que você já estudou o bastante para um dia. Guarde os
livros, e pode ir para casa."
Com as mãos ainda tremendo, ela se apressou em organizar tudo. Pegou
o caderno que (só agora ela se deu conta) estava completamente
preenchido.
"Desculpa por invadir assim, é que eu..."disse ela.
"Não precisa se explicar, eu entendo." respondeu o mago.
Quando Ann ia se levantando ele disse:
"Eu vou te dar uma chave, OK? assim você não precisa arrombar a porta
se quiser estudar mais cedo." dizendo isso, ele tirou uma pequena chave
metálica de uma das gavetas da mesa, e entregou-a à elfa.
A essa altura Ann já não cabia mais em si de contentamento e
despedindo-se rapidamente de seu tutor, pegou a moto e voltou às
Serpentes.
---
Elas agora se preparavam para sair e tratar dos seus negócios daquela
noite. Todas estavam com uma aparência descansada e tão saudável quanto
possível para alguém que vive nas favelas de Puyallup. As gêmeas
inclusive já haviam subido em suas motos, e o ronco do motor chegou aos
ouvidos de Ann antes da saudação de Coral:
"E aí, Ann? O que houve, passou o dia inteiro fuçando no lixo? Cê tá
um horror!"
Só aí ela tomou consciência da sujeira em que se encontrava, olhando
para os braços sebosos de suor e poeira. "Tava no Randolph." disse ela
depois de dar um abraço amigável em Coral, que o aceitou apesar da
poeira.
"Ah-há!" riram as gêmeas, falando ao mesmo tempo. "Deve ter rolado
com ele por aquele chão inteiro!" completou Sabrina.
"Não! Quer dizer, eu --" Ann começou a tentar se defender, muito
vermelha, e foi interrompida por Coral.
"Deixa essas tontas de lado, Ann. Vai tomar um banho e dormir lá
dentro, tu tá com cara de quem tá cansada."
"Também, com o que deve ter acontecido lá no Randolph... " comentou
Mamba, terminando a frase com sua risada sibilante.
O rosto de Ann voltou a ficar vermelho. Com gestos de protesto, mas
já aceitando a brincadeira, ela entrou na casa. Ouviu o barulho dos
motores acordando e rugindo rua abaixo, as Serpentes indo cuidar de seus
negócios que cresciam cada vez mais. Logo, Coral prometera, ela sairia
com elas. Já havia saído outras vezes, antes, mas na maioria do tempo
ficava apenas assistindo a ação, a uma distância segura, ou então ficava
sempre ao lado de Coral, quieta, fazendo o possível para parecer cruel,
mas falhando miseravelmente. Uma vez perguntaram se ela estava passando
bem.
Lembrando-se disso, ela deu uma risadinha, enquanto tirava as roupas
e entrava embaixo do velho chuveiro de plástico do banheiro da casa.
Aquele era o cômodo mais limpo da casa, os outros eram sempre cheios de
embalagens de comida instantânea, roupas sujas e revistas para
adolescentes. As vezes Coral mandava lavar as roupas, mas o resto do
lixo ficava mais ou menos intacto, até ser empurrado de lado por uma
Serpente precisando de espaço.
A água fria atingiu seu corpo magro, e um calafrio percorreu a
espinha da elfa. Logo, porém, ela se acostumou à temperatura, e começou
a se ensaboar depressa, tirando a poeira. Lavou os cabelos como pôde, e
conseguiu arrumá-los um pouco. Droga, pensou ela. Havia gasto um bom
dinheiro para ajeitar o cabelo daquele jeito, lisinho. Desligou o
chuveiro e rapidamente se enxugou com uma toalha rala e dura, entrando
nas mesmas roupas a seguir.
Ann só conseguiu pensar claramente depois de deixar-se cair no
colchão estirado no chão do cômodo ao lado, e embrulhar-se em um
cobertor amarelo que estava ali perto. Uma das primeiras coisas que lhe
vieram à cabeça foi Randolph, que veio logo depois da sensação de estar
quente e confortável. Ela havia ficado tão envergonhada quando elas
insinuaram que ela poderia estar dormindo com ele... Será que...? Não...
ou sim? De alguma forma, era-lhe impossível negar que a idéia lhe
agradava. Ann dormiu pensando nele.
---
Conforme a habilidade de Ann crescia, ela ia participando cada vez
mais das atividades das Serpentes, às vezes tomando parte ativa em
negociações da gangue, mostrando um pouquinho de sua magia para "amaciar
os fregueses", outras lutando ao lado de suas "irmãs" para se
defenderem, ou atacarem alguma gangue rival. A freqüência com que alguma
Serpente era ferida diminuiu muito depois que ela começou a ajudar. A
conta do médico também, pois Ann agora podia cuidar dos ferimentos menos
graves.
O treinamento prosseguia, lógico. Uma noite Randolph a levou a um
ferro-velho abandonado, próximo ao lugar no qual ela havia encontrado as
Serpentes pela primeira vez. Não havia muita coisa para diferenciar o
interior do ferro velho com o exterior, a não ser por uma cerca de
madeira velha. Havia carcaças de veículos tanto dentro como fora de seus
limites. Ann pensou ter visto um rei preto de xadrez, rachado, amassado
e jogado a um canto, enquanto andava até lá.
Aquela noite ela invocou seu primeiro elemental, em uma elaborada
cerimônia de cantos abstratos que fluíram por duas horas. O espírito do
ar apareceu ao final com um estouro, uma criaturinha pequena e
enfumaçada no centro do círculo que ela havia pintado com tinta de
parede em uma clareira no meio do ferro-velho. A elfa olhou com
curiosidade para o elemental, que devolveu o olhar com dois olhos feitos
de sereno. Randolph sorriu satisfeito.
Naquela mesma noite, as afirmações de que ela dormia com Randolph
deixaram de ser apenas brincadeiras, mas as Serpentes ficaram sem saber
disso. Coral deve ter adivinhado, mas não disse nada. Não havia mais
nada de perturbador nos sonhos de Ann, e ela dormia em paz, abraçada a
Coral.
---
Ela nem se lembrava mais do longo sonho sobre sua vida, quando
retornava um dia para a casa das Serpentes. Estranhou não ver ninguém. A
porta estava aberta, mas isso era usual, pois não havia nada de valor
dentro da casa. Ela até gostou quando alguém entrou lá e levou uma boa
parte do lixo.
Também não havia ninguém do lado de dentro. Ann procurou em todos os
cômodos, tomou um banho, vestiu-se e sentou no chão da sala, esperando.
Era natural que elas tivessem saído para resolver algum assunto
importante, mas a essa altura ela já estava sempre junto a elas. E era
muito cedo. Ann pegou um saquinho de batatas fritas e começou a comê-las
lentamente, mastigando mais por reflexo do que por vontade. Sua mente
ainda se concentrava em suas companheiras. Sua família, na verdade, é,
sua família. Esse pensamento lhe trouxe um sorriso. Distraidamente rolou
a palavra pelos lábios, uma, duas, três vezes. Família.
Não, não é hora pra isso, de que serve uma família se você não sabe
onde ela está? Mão na massa, garota. E Ann saiu apressada a procurar as
Serpentes.
---
Busca infrutífera, e ao final do dia ela já havia esgotado todas
as possibilidades, além de provavelmente ter causado um rebuliço na rede
de contatos da gangue, perguntando a todos se eles haviam visto Coral ou
as outras, procurando em todos os pontos usuais onde elas costumavam ir.
Sua calma inicial ia se esvaindo com o passar das horas, e ao por do sol
ela sentou-se desolada em uma calçada rachada de Puyallup, braços
apoiados nos joelhos e a cabeça apoiada nos braços, lágrimas correndo
livres como as de uma criança que se perdeu dos pais. Seus olhos
vermelhos e inchados enxergaram uma coisa curiosa no chão, o rei preto
que ela vira há alguns meses, antes de invocar seu primeiro elemental.
Depois de um tempo brincando com a peça entre seus dedos, ela
olhou ao redor, tomada por uma súbita percepção. Fora ali que ela
encontrara as Serpentes pela primeira vez. E quase sem querer as boas
lembranças dos anos passados junto a elas retornaram, uma a uma,
desfilando lentamente, abrandando um pouco a dor... Todas aquelas horas
passadas ao redor do aquecedor elétrico, e os momentos de perigo, onde
elas haviam arriscado a vida, lado a lado. Eram todas irmãs, agora, ou
talvez mais do que isso.
E tão de repente quando as memórias, outro pensamento entrou em
sua mente, vindo não se sabe de onde. Era uma espécie de intuição, meio
indefinida a princípio, que a fez levantar da calçada e olhar preocupada
para todos os lados. O ferro-velho à distância, com uma luz fraca
brilhando. O ferro-velho.
Mais que depressa ela subiu na moto e acelerou com tudo o que
podia, chegando rapidamente ao lugar, e passando por uma brecha na cerca
de madeira podre. As carcaças e o lixo eram quase familiares, tantas
vezes havia ela voltado ali com Randolph. Pensar nele lhe trouxe uma
sensação desagradável, por quê ela não sabia.
Havia uma fogueira no centro da clareira entre os carros, mas de
um fogo frio e estranho, brotado do chão sem nada que o gerasse. Magia,
o Sangue da Própria Terra. Randolph saiu de trás de uma pilha de metal
enferrujado assim que ela pisou na areia, com um sorriso distorcido e
aparentemente banhado em sangue. Ele sempre falava muito em sangue.
"Você veio rápido.", disse ele, em um tom divertido. O que era aquilo na
boca do cara, presas? A elfa teve um pressentimento ruim, apenas
aumentado por todo aquele sangue.
"Cadê elas?" a pergunta feita em um tom de urgência surpreendeu
a ambos, mas Randolph se recuperou mais rápido.
"Inteligente você, hein? Não se preocupe, elas estão aqui e numa
situação bem melhor do que você pode imaginar." Com um gesto, sombras
saíram do mesmo lugar onde ele estivera escondido. Conforme elas se
aproximavam do círculo de luz emitido pela chama sem fumaça, Ann foi
divisando seus contornos e rostos, familiares mas ao mesmo tempo
aterradores. Sabrina e Mamba, roupas rasgadas e sorrisos tão distorcidos
quando os de Randolph. Mortalmente pálidas também. Mamba estava
cinzenta. E logo atrás delas, Coral, e isso era o pior de tudo. Um
sorriso cruel, um andar muito diferente daquele que ela se acostumara a
ver. Mas fora isso, sua aparência não havia mudado em nada, ao contrário
das outras.
"A Coral deu mais trabalho que as outras,", continuou Randolph,
"mas eu consegui, apesar de me sujar todo. Devia se sentir tocada, ela
ficou gritando o seu nome durante todo o processo."
"Processo? Que história é essa? Anda, fala!!!" Ann já começava a
chorar novamente. Em seu íntimo sabia a resposta, mas ainda se recusava
a acreditar.
"Ora, você sabe muito bem. Elas agora são iguais a mim. E creio
que você é inteligente o suficiente para perceber o que eu sou, não é
mesmo?"
E na hora ela soube. Randolph, traidor maldito, vampiro
desgraçado, euvoutefritartodoseufilhodaputa!
Pensamentos desordenados, ela levantou (pois sem perceber havia
caído de joelhos) e começou a correr em direção ao vampiro. De repente
ele assumira o rosto de todos aqueles que já a haviam feito sofrer, seus
pais biológicos, inúmeros habitantes da rua, o estuprador, mas a maior
de todas as faces era a dele próprio, o traidor, aquele que cometera a
ofensa final ao dar a sua verdadeira família um destino pior que a
morte.
Pela primeira vez ela poderia retrucar, lavar a alma com a
torrente se sua fúria e matar a sede de vingança. A luta para acabar com
todas as lutas. Pouco importava se ela viveria ou morreria, Randolph
seria reduzido a cinzas hoje, pelas almas das Serpentes!
E um puxão pelo braço parou sua corrida, e ela estava sendo
presa por Mamba, calada como sempre, lhe segurando ambos os braços e
ameaçando quebrá-los se ela se mexesse demais.
E Sabrina lhe apareceu na frente, dizendo "Se tu não quer ser
imortal, vai morrê aqui!". E mais do que rápido enfiando quinze
centímetros de lâmina no abdômen da elfa. Dor, e tudo começou a se mexer
em câmera lenta.
E ela sentiu o vento gelado no rosto, e ela sentiu as lágrimas
salgadas na língua, e ela viu a lua cheia imensa no céu.
E ela viu Coral, cujo sorriso desaparecera, olhar para ela com a
ternura antiga da amizade que havia entre as duas, e depois fechar os
olhos e assentir triste e silenciosamente, consentindo. E quando Sabrina
começava a enfiar os outros quinze centímetros de faca, Ann implorou ao
mundo que explodisse a seu redor. Com o silêncio do mar sem fim e com o
brilho de mil sóis, o mundo atendeu o pedido, em um círculo de quase
vinte metros de diâmetro.
Pareceu durar para sempre, Ann parada lá no meio, de olhos
fechados, sentindo a pressão em seus braços sumir e o cheiro de carne
assada. Era ela que estava assando, e sabia disso, mas não havia dor.
Durou menos de um segundo. Coral e Ann caíram no chão, e dos
demais sobraram apenas manchas brancas na areia vitrificada que esfriava
rapidamente. A elfa havia erguido barreiras ao redor das duas, e isso
havia aumentado o desgaste que ela sofrera. Melhor que estar morta, e o
ferimento da faca havia sido cauterizado, parando de sangrar. Ela mal
conseguia se manter consciente, e tinha quase certeza de que quando
fechasse os olhos seria a última vez. Por isso, fazia um esforço
hercúleo para se arrastar dolorosamente pela distância que a separava de
Coral.
Ann sentou com dificuldade, colocando no colo a cabeça e os
ombros da outra,segurando seu rosto com as mãos e acariciando-lhe os
cabelos, o rosto bem perto, olho no olho. Nada foi falado, mas isso não
era necessário; volumes inteiros foram ditos apenas por aquele olhar,
os olhos de Coral intocados em seu rosto queimado, que recebia as
lágrimas de Ann.
A elfa, mais do que em toda a sua vida, lutava. Lutava para
permanecer viva e consciente, neste que ela sentia ser o momento mais
importante de sua vida. Tinha em seus braços aquela que havia sido mãe e
irmã, amiga e confidente, e devia permanecer viva por tempo suficiente
para confortá-la em seus instantes finais de agonia.
Quando Coral finalmente se foi, Ann sentiu tudo, a alma partindo
para regiões desconhecidas além do plano físico (o céu? o inferno? ou
algum outro lugar?), emanando uma imensa sensação de alívio. Isso fez
com que a elfa deitasse, ainda com o corpo de Coral sobre suas pernas, e
olhasse para a lua. Tão bonita, imensa e impassível no céu estranhamente
límpido. Envolta em uma última contemplação, ela só ouviu os passos
quando já estavam quase ao lado de sua cabeça. Um vulto encobrindo
parcialmente a lua, mas o macio cobertor da escuridão a envolveu antes
que ela pudesse se perguntar quem era.
