Promessas
Quando uma simples promessa pode virar o seu pior pesadelo




Capítulo 1 – Lá e de volta outra vez


Quase dez anos haviam se passado. Anos tortuosos e longos. Amargos e sem vida. Os piores anos de sua curta vida.

A manhã ensolarada. O ar quente e fresco do outono. As folhas caindo ao chão, colorindo as vias em tons amarelados e amarronzados, como se formasse um imponente tapete de boas-vindas. Os raios de sol a lhe tocarem a face rosada. Era como se depois de muito tempo pudesse dizer que estava realmente vivo.

As ruas, ainda desertas. Era muito cedo. Ao contrário do que costumava ser com ele. Tarde. Extremamente tarde. Tarde para dizer as coisas. Tarde para tomar uma decisão. Mas naquele dia era cedo. E ele teve a certeza de que tudo melhoraria a partir daquele momento. Uma certeza que há muito tempo já não tinha. Muito tempo mesmo.

Fazendo seu caminho em direção ao seu destino, não demorou nem 15 minutos. Suas pernas compridas o levavam a uma rapidez fora do normal. Era seu espírito gritando por mudanças. Era seu ser exigindo atitudes. Quando se deu por si, já estava onde devia estar. Sorriu, como há muito tempo, muito tempo mesmo, não sorria. Teve de admitir que nem mais sabia a última vez em que contraíra seus lábios em uma expressão de felicidade. Devia fazer muito tempo mesmo.

As coisas haviam mudado durante esses quase 10 anos longe. E ele pôde perceber isso em seu caminho. As casas, as ruas, as pessoas. Tudo havia mudado, de uma maneira drástica. Ele não estava acostumado com mudanças. Desde cedo. Aí estava uma coisa que ele costumava fazer cedo. Não se acostumar. Ser intransigente. Ser fechado. Ser introvertido. Ser frio como o mármore.

E ele lembrou-se de quando, pela primeira vez, transpôs sua barreira de ferro e tocou o mundo com outros dedos. Era inevitável que não se lembrasse. Aquele lugar trazia recordações de um tempo que ele fora feliz. Talvez o único. Não contando com aquele. Ele estava feliz, ali, olhando através das grades prateadas o silencioso pátio. Estava feliz, e isso era notável, e perceptível. Motivos não lhe faltavam. E isso não poderia ser condenável.

As lembranças então lhe vieram, como se fossem um filme de ação. As aventuras. Os perigos. Tudo tão divertido. Tudo tão emocionante. Ao contrário de sua medíocre vida. De sua ínfima existência. Os apuros que passou. Os apuros que livrou. Os amigos que fez. Quem conquistou a confiança. Quem conquistou a amizade. Quem conquistou seu coração.

Então tudo de repente foi focado para uma única coisa. Justamente por aquilo que ele mais desejou em tantos anos, tantas vezes que ele não mais podia contar. E mesmo que tentasse, seria impossível, pois no final foram tantas, e de tantas maneiras, que ele já não mais ligava nem lembrava. Porque ele dependia disso. Para ter forças e assim continuar tocando a vida da melhor maneira possível. Mesmo isso sendo praticamente impossível.

Seu olhar, sempre tão sério e penetrante, foi desviado subitamente para um lugar em especial. Para além da cerca de arame trançado. Para outro pátio ainda vazio. Para anos remotos em sua memória. Quase invenção de sua mente. Achava que de tanto relembrar, acabara gastando-os. Era um pensamento bobo. Ele tinha de admitir. Já estava grande demais para pensar desse jeito. Ele não era mais um menino.

Percebeu que, embora muitas coisas houvessem mudado, aquele lugar em nada fora alterado. Ali estava ele, do mesmo jeito como o conhecera há quase dez anos atrás. Sem tirar nem pôr. As mesmas árvores – obviamente mais frondosas que antes, mas elas continuavam lá. Os mesmo objetos – mais envelhecidos, mas também continuavam lá. Até mesmo as mesmas lajotas – algumas trocadas, outras quebradas, mas elas também estavam lá. A única diferença agora era que ele não estava lá. Ele havia crescido. Havia se tornado um homem.

E que homem!

Os anos foram generosos ao seu ser. Deram-lhe altura, um belo corpo. Um jeito misterioso e sedutor. Muito embora os olhos e os cabelos continuassem os mesmo. E provavelmente sempre continuariam os mesmo.

Mas, em troca, exigiram-lhe a alma. O coração. Em uma espécie de pacto. Diabólico e satânico. Mesmo que ele não quisesse. Mesmo que se opusesse.

Imerso em tantos pensamentos, em sua maioria depressivos e melancólicos, teve de passar pelos Anos Amargos de sua vida. O retorno ao seu lar. A separação. A dor que sentiu. Que apunhalava seu coração a golpes secos e impiedosos. E fazia sangrar sua alma. Sangrar de tristeza.

Mesmo tendo demonstrações de sobra de que era amado por seus familiares, nada poderia substituir o amor que deixara naquele país distante. E a falta que ela fazia o corroia. De uma maneira incrivelmente absurda. Como se fosse um ácido a corroer suas entranhas. Devagar. Matando-o dia por dia. De um modo lento e torturante.

E ele sentia que seu espírito perdia a vida a cada segundo longe. Enegrecia, de um sentimento maldito. Saudade. Inimaginável. Algo que nem em seu maior pesadelo supusera existir. Mas que ali estava. Pronto para destruir sua vida. Destruir seu ser. Fazê-lo sofrer pelo resto de seus amargos dias, até que tudo tivesse fim.

Lembrou-se de como caiu em depressão. De como a vida perdeu o significado. Aos poucos. Matando-o. Sufocando-o. Afogando-o. Fazendo de sua vida medíocre um verdadeiro inferno. Um eterno pesadelo. Do qual ele não conseguia acordar.

Aos poucos, e naturalmente, os lugares foram enchendo-se de gritos e conversas, animadas. E ele continuava a olhar pelos lugares, imerso demais em seu mundo de lembranças. O tempo havia passado muito rapidamente desde que ali chegara. Rápido demais para o seu gosto. Ali, parado, apenas observando cada um dos cantos daquela escola, perdera a noção do tempo. Os minutos. As horas. Os segundos. Como se tudo fosse uma única coisa. E não fosse nada, ao mesmo tempo.

As crianças brincando pelo pátio, correndo, rindo, o fizeram lembrar de suas brincadeiras de infância. Do quanto ele gostava de estar ali, também correndo, também brincando. E por que não também rindo?

E, mais uma vez, ele pegou-se relembrando daquela garota mágica e inigualável. Que desde cedo, e sem querer, roubara seu coração. De como ela o fizera feliz. De como iluminara sua vida. De como fizera-o enxergar a beleza do mundo. De como o fizera mais humano, quando ele não bastava de uma pedra dura e fria.

Foi quando sentiu uma mão amiga repousar por sobre seu ombro. Leve. Delicada. Retirando-lhe gentilmente das lembranças do passado. Ouviu uma voz, mas nada entendeu. Ainda não retornara por completo.

Sentindo. Foi assim que descobrira. Quem era. Quem ali estava. Só podia ser. Ele não precisava vê-la. Apenas o toque bastava. Para que soubesse de quem se tratava.

Teve de admitir que em alguma coisa os Anos Amargos foram úteis. Deram-lhe a incrível capacidade de sentir com a alma, antes do físico. Apuraram-lhe o senso. De tal maneira que ele sabia quem estava por perto muito tempo antes de ver ou ouvir. Sua alma podia entender coisas que nenhuma outra pessoa poderia entender. Era uma vantagem. Tinha de admitir.

Virou-se, sorrindo de uma maneira imperceptível. Mais para si do que para outra pessoa.

- Olá, Tomoyo... – sua voz soou distante e triste, como se tivesse sofrido muita dor nos últimos anos.

A garota olhou-o surpresa. Vira o estranho parado, olhando para o outro lado da grade. Completamente imerso em um mundo à parte. Algo nele lhe despertara ternura. Uma sensação de total apoio e compreensão.

Muito embora ele fosse um estranho.

Ou ela supunha ser um estranho.

Os olhos arregalados encontraram subitamente os atentos. E percorreram a face desconhecida com pressa. Era como se ele não lhe fosse de todo sem conhecimento. Mas de nada valeu. Porque sua memória, infelizmente não estava lhe ajudando.

- Como... como... – a voz doce e suave parecia não querer sair, surpresa demais.

- Como sei seu nome? – ele completou-a, observando-a com curiosidade.

- E... exatamente... – ela parecia assustada.

Então os olhos marrom-casca-de-árvore percorreram as formas daquela garota com volúpia. Mas não com cobiça. Nada ali lhe interessava. A não ser a fisionomia amiga. A primeira, desde que retornara.

Os anos também haviam sido generosos para com ela.

Cabelos acinzentados. Encaracolados. Cerca de uma mão fechada abaixo do ombro. Olhos azuis. Sempre ternos e maternais. Traços delicados. Altura na medida exata. Nem mais, nem menos. Formas belas, e delineadas.

Se não fosse tão apaixonado, com toda a certeza faria reconsiderações.

Pegou-se imaginado como estaria. Se sua amiga estava assim, imagine ela... Como deveria estar...

Quando finalmente caiu na realidade, o olhar surpreso ainda lhe encarava. Teve a certeza de que havia mesmo mudado.

- Eu... perguntei... como você sabe... meu nome... – ela tremia de um medo que não sabia explicar.

Aquilo estava sendo demais para ele. Tantas emoções de uma vez só. Era por isso que demorava tanto. Precisava acostumar-se. Novamente.

- Desculpe-me se a assustei... – ele tentou parecer gentil e não ameaçador.

- Certo... – mesmo assim, ela não parecia mais calma.

- Espero que não tenha sido grosso demais. – o jovem deu um passo em sua direção, mas ela recuou um pouco, e ele não ousou mais se precipitar.

- Não... Eu que fui grossa demais... Eu que preciso dar um jeito nos meus modos... – agora ela viu-se conversando com um estranho como se fosse um velho amigo.

- Não se preocupe... Sei que não foi sua real intenção. – agora seus lábios contraíram-se em uma expressão de satisfação.

- Então... Vamos começar da maneira certa? – depois dessas palavras, ela achou-se uma tola.

- Com certeza. – concordou, agora com um discreto sorriso.

- Meu nome é mesmo Tomoyo... Mas como você sabia? – a curiosidade retornou ainda mais forte.

Ele ia abrir a boca para dizer algo. Alguma coisa amigável. Mas não chegou a fazer. O som de passos apressados foram ouvidos. Muito embora ele já soubesse. Muito antes dos "taps-flaps" chegarem aos seus ouvidos.

Soltou o ar em seus pulmões. Lentamente. Desanimado. Agora iria ter muito trabalho. Seria difícil conter um namorado ciumento.

- Tomoyo!! O que está acontecendo? – a voz calma e paternal soou, quebrando o clima entre os dois jovens.

- Nada de mais... – mas aquilo não conseguiu convencer nem a si mesma.

- Quem é ele? – o outro tentou parecer controlado, mas não estava.

- Eu não sei... – e foi como se aquilo fosse mentira.

- Por acaso ele não está lhe incomodando, está? – insistiu, abraçando-a por trás.

- Se minha presença lhes incomoda tanto, eu posso me retirar... – sua voz grave fez-lhe ainda mais imponente.

- Não! – agora o outro sentia algo estranho com relação a ele; algo que não sabia dizer.

- Você ainda não nos disse seu nome... Seria um bom começo – Tomoyo intercedeu, mais controlada.

Ele não respondeu com palavras no primeiro momento. Estava ocupado demais analisando o outro rapaz, com entusiasmo.

Um palmo a menos que ele. Feições amigáveis e gentis. Cabelos de um negro intenso. Porte elegante. Postura pessoal. O modo delicado de seu olhar.

Sentira saudades.

Muita saudades.

Quando por fim, e finalmente, falou, sua voz parecia satisfeita. Estavam quase todos juntos.

- Pensei que me reconheceriam. Mas não os culpo. São quase dez anos... – e com aquilo pôs-se novamente a apenas observar.

As expressões outrora confusas e desconfiadas, relaxaram em tristeza.

E ele preocupou-se. Aquilo não era possível. Tomoyo e Eriol tristes. Não podia ser boa coisa. Não era bom.

Seus lábios, por reflexo, também relaxaram em um grito que não saiu de sua garganta. E eles contraíram-se em uma dor imensa. Não precisavam de palavras para entender que algo estava errado.

Assim aqueles três jovens adentraram na sala, quietos. Logo depois o sinal tocou.

Definitivamente, as coisas não estavam certas. De alguma maneira.