Quando uma simples promessa pode virar o seu pior pesadelo.
Capítulo 7 – O outro lado da moeda
Já devia ser quase o final do dia. A escuridão começava a tomar conta da pacata paisagem urbana. As pessoas iniciavam o trajeto para casa. Era uma sexta-feira. Dia de sair e curtir a vida.
Uma figura parecia esgueirar-se pelo breu das ruas, tranqüilamente um passo atrás do outro. Uma blusa branca, uma saia pregueada quase vinte centímetros acima do joelho. Em uma das mãos, carregava uma pequena quantidade de livros.
A outra, ela levava diversas vezes à boca, para depois relaxá-la ao longo do corpo.
E quando fazia isso, seu nariz soltava uma fumaça branca e de cheiro forte. Ela fechava os olhos, parecendo estar gostando da sensação. Era o único meio de se acalmar. Relaxar das preocupações do dia.
Finalmente chegou em um belo e singelo sobrado. Tudo estava trancado e fechado. Ela sorriu mais uma vez, soltando um anel de fumaça pela boca. Seria divertido, no final das contas.
E ela precisava mesmo de diversão.
Depois de tudo.
Colocou a chave no buraco da fechadura e girou-a. "Click". A porta destrancou-se, e tudo estava às escuras. Ninguém devia estar em casa.
Acendeu as luzes, e jogou o material em um canto qualquer. Deu uma última tragada antes de apagar o cigarro no cinzeiro vermelho da sala. E então subiu, rumo ao seu quarto. Queria tomar um banho, descansar, antes da badalação propriamente dita.
Aquela seria uma noite e tanto.
Não poderia deixar de sorrir diante do pensamento.
Seu quarto estava escuro, e ela pressupôs que a criaturinha amarela e felpuda, que vivia a voar perto de seus ouvidos, dizendo-lhe o que fazer e o que não fazer, não estava. "Ainda bem...", murmurou, sorrindo ainda mais.
Tudo estava perfeito.
Revirou o armário, e retirou algumas coisas de dentro. Apoiou-as todas no braço esquerdo, enquanto pegava outras com a mão direita. Jogou-as na cama, de modo que ela pudesse ver o que realmente havia pego. "Ótimo!", foi o único comentário.
Ela costumava falar sozinha.
Era o costume.
Ela sempre esteve sozinha.
Depois de mais ou menos meia hora, uma figura esguia e elegante saiu do banheiro, enrolada em uma toalha felpuda e outra em sua cabeça. Voltou ao quarto. Deixou seu corpo aparecer nu, sua pele sendo banhada pela fraca luminosidade da lâmpada de cabeceira. Soltou os cabelos. Mirou-se no espelho.
Já estava acostumada com o reflexo turvo de si mesma.
Um anjo imaculado.
Um anjo saído do inferno.
Tocou o corpo, em uma carícia demorada. Ela gostava de si mesma. Queria sentir-se bela.
E realmente ela era.
Agora, assim, nu, naturalmente, ela parecia muito mais bela. Sem a máscara negra a lhe cobrir a face.
Os longos cabelos castanhos lhe beijavam as costas, em um toque suave e gentil. A maciez de sua pele alva como a neve era contrastada com o amarelado da luz.
Os olhos verdes...
Cheios de dor.
Mesmo não querendo, lágrimas vieram-lhe aos olhos, à simples lembrança do que um dia fora.
Ela se odiava por ter-se transformado naquele monstro.
Ela odiava a todos por terem transformado-a no que agora era.
Agora vestida, fez suas mágoas recuarem para algum canto obscuro de sua existência medíocre. Ela não se importava com mais ninguém. Nem consigo mesma.
Uma figura negra emergiu das sombras, terrível, ameaçadora.
Um short de mais ou menos dois palmos fechados de comprimento, da cintura às pernas. Um top mais que curto. Um coturno que vinha-lhe até dez centímetros joelho abaixo.
Nas orelhas, meia dúzia de brincos prateados. Na língua, uma bela peça de metal. No pescoço, uma coleira pontiaguda.
Os lábios coloridos de um vinho intenso. E os olhos contornados de um preto intenso.
Preto como sua dor.
Pegou sua mochila. Abriu-a e colocou um maço de cigarros ainda fechado e um isqueiro de prata. Verificou o dinheiro, e, como não havia muito, roubou um bocado da gaveta de seu pai. Pegou uma identidade falsa de dentro de uma gaveta. Sorriu mais uma vez, satisfeita.
Desceu as escadas, e foi até a cozinha. Abriu a geladeira, e sua luz fraca iluminou o interior da residência.
Ela acostumara-se viver na escuridão.
De dentro, retirou um pacote de pão de forma, uma dezena de coisas, e uma garrafa de refrigerante. Preparou para si um sanduíche. Colocou-o em um prato, e caminhou até a sala. Ainda no escuro, ligou a tv. Passeou por alguns canais, até encontrar um que lhe agradasse.
Levou o alimento até a boca, e, em pouco tempo, consumiu-o, junto com um líquido negro e de sabor doce. Pôs tudo em cima da mesinha de centro e passou a prestar atenção no que passava.
Umas duas ou três vezes mudou de canal. Decidiu-se por um musical.
Era seu programa preferido.
Abraçou os próprios joelhos, apoiada em um dos braços do sofá. Seus olhos brilhando ao que passava na tela do aparelho.
Imagens de dor, de sofrimento.
Imagens de tortura.
De coisas sádicas.
O sorriso aflorou em seus lábios ainda mais evidentemente.
De certa maneira ela estava feliz.
O som pesado de guitarras e bateria ecoavam pelo silêncio da casa. Uma voz rouca berrava mil e um palavrões.
Era seu êxtase.
Quando acabou, ela viu que era hora de tentar algo mais calmo, até que a hora de sair chegasse. Faltava pouco mais de meia hora. Precisava poupar as energias para a noitada.
Acendeu outro cigarro, e o cheiro do tabaco impregnou nas coisas. A fumaça saía de sua boca e de suas narinas, branca, leitosa. Mortal.
Ela sabia que estava se matando.
Era exatamente isso que queria.
De repente, um barulho ecoou, mais baixo que o volume da tv. Mas seus ouvidos atentos captaram de imediato. Ela realmente tornava-se uma criatura das sombras, sempre à espreita, escondendo-se nos becos, vivendo um submundo.
Era a fechadura da porta sendo aberta. Pelo jeito, parecia ser alguém que ela conhecia. E isso a fez sorrir, maquiavélica. Satânica.
Passos foram ouvidos, à medida que o batente da porta rangia. Mais um outro, depois do primeiro. O sorriso cresceu. Ela realmente sabia quem era.
Apagou o cigarro no cinzeiro. Não estava com vontade de discutir.
Uma luz acendeu-se. Ela cerrou os olhos, desacostumados à luminosidade, até que sua pupila contraísse e ela pudesse enxergar alguma coisa. Muito embora não fosse tudo. Porque há tanto tempo vivia no escuro que ela não mais sabia como era a luz.
Os passos foram aproximando-se. Cada vez mais perto.
E o sorriso foi aumentando.
Maléfico.
Cheio de intenções.
Sua diversão iria começar.
