Quando uma simples promessa pode virar o seu pior pesadelo.
Capítulo 9 – Conversas debaixo da cerejeira
O sol estava alto naquela manhã ensolarada. Radiante. Seus raios quentes a banharem as coisas com graça e vivacidade. O ar agradável, quente em sua medida. Tudo perfeito.
Suavemente, o vento beijava as folhas das árvores nuas. O ano avançava, seguindo seu curso. Murmurava meia dúzia de palavras reconfortantes ao pé do ouvido dos passantes. Fazia qualquer um sentir-se bem.
Uma pessoa, ao contrário do restante, parecia não contentar-se com todo o cenário. Parecia imersa em um mundo de pensamentos e sensações. Absurdamente imersa.
Nada ao seu redor podia importar mais do que aquilo que passava por sua mente. Aquilo era por demais. Corroia-lhe as entranhas com tal voracidade, que se a situação perdurasse por mais tempo, ele seria capaz de morrer.
Era uma sombra debaixo daquela árvore, recostada em seu tronco, fitando o céu com desapego.
Em meio a uma tragada e outra, pôs-se a relembrar o acontecido.
Queria poder guardar na memória cada mínimo detalhe.
Seus longos cabelos, quase alvos, eram suavemente esvoaçados pela brisa. Seus olhos azuis mirando o firmamento, perdidos entre uma nuvem e outra.
Já fazia tanto tempo que mudara.
Agora ele era um só. Um só corpo, um só rosto. Um só coração. Apenas um ser.
Há muito tempo pôde realizar a grande façanha de unir o falso ao verdadeiro. Para fomrar um rapaz alto e imponente, de traços fortes e marcantes, expressões sérias e firmes.
Ele parecia um anjo.
E realmente ele fora.
Um pouco de fumaça saltou-lhe da boca, em um suspiro distante e sem vida.
Aquilo estava lhe matando.
Passos soaram pela grama, calmos. A distância entre seus pés o levavam a uma velocidade surpreendente. De repente estancaram, firmes, perto demais.
Olhou para cima e, embora o sol lhe atrapalhasse, pôde ver um par de olhos castanhos a lhe observarem. Uma mistura de sentimentos engraçada podia ser vista.
A sombra abaixou-se, de modo a revelar um rosto marcado por uma dor sem limites. Seus lábios estavam contraídos em inúmeras indagações.
- Yuki... – ele parecia entender que a situação era delicada.
- Yukito não existe mais... – sua voz fria respondeu, após uma longa tragada – Há muito tempo eu sou Yue. Apenas Yue.
- Eu não consigo me acostumar com a idéia. – ele sentou-se ao seu lado, também recostado sobre a árvore – Para mim, você é Yukito, e sempre será.
- Certo... – o rapaz não parecia muito interessado nesse assunto.
- Você não me parece muito bem... Aconteceu alguma coisa? – era nítido a preocupação pelo amigo.
- Eu vi, Touya... – parecia que ele estava a quilômetros de distancia.
- Viu o quê? – indagou, preocupando-se ainda mais.
- Solidão... – sua voz parecia morrer à medida que ele abria-se.
- Onde? – o rapaz tremia de incertezas.
- Sua irmã. – foi a resposta, enfim parte do mistério vindo à tona.
- Então ontem vocês conversaram... – essa era sua conclusão.
- Não exatamente. – seu semblante contraiu-se em tristeza.
- Conseguiu arrancar alguma coisa? – agora o rosto severo acendia-se em esperança.
- Por favor, Touya... eu não quero falar sobre isso. – novamente ele tentou desviar o assunto.
- Yuki... Eu preciso saber! – o tom desesperado era visivelmente perceptível – Ela é minha irmã, e eu tenho o direito de saber!
- Você não a trata como uma irmã! – quase não contendo a revolta, ele alterou-se.
- Como não? – indignou-se.
- Ela é um monte de bosta, como você mesmo disse! – tentou levantar-se, mas foi impedido.
- Não. – as palavras saíam machucadas de sua boca – Ela não é uma coisa dessas. Nunca foi.
- Então por que você continua a falar coisas desse tipo quando a única coisa de que ela precisa nesse momento é sentir-se amada? – ele estava mais que indignado.
Os olhos castanhos arregalaram-se em surpresa.
- O que realmente aconteceu ontem? – foi a questão proposta.
A resposta veio na forma de um longo e distante suspiro.
Novamente ele levou o cigarro à boca e tragou-o profundamente.
E assim o outro rapaz prontamente entendeu.
- Finalmente você conseguiu o que queria, não é mesmo? Você a beijou? – sem mais rodeios, ele foi direto ao ponto.
- Hun hun... – murmurou, sem tirar o cigarro da boca.
- E como foi? – o rapaz parecia chateado.
- A melhor coisa que me aconteceu desde que ela se tornou minha mestra – o semblante sonhador perdeu-se pelo céu.
- Entendo... – realmente ele parecia chateado.
- Você, como irmão mais velho, não vai matar-me? – o jovem riu-se do próprio comentário, ironicamente.
- Como eu poderia, se foi a primeira vez em quase dez anos que ela saiu à noite e não voltou completamente bêbada ou drogada? – lágrimas borraram-lhe a vista.
- Está sendo difícil, não é mesmo? – indagou, sua emoção também começando a aflorar.
- Você não imagina! – agora ele chorava, mãos apoiando a cabeça pesada – Buscá-la nos lugares mais absurdos que se pode imaginar, e ver que, ou ela não consegue parar de pé por causa da bebida, ou está completamente fora de si por causa da droga... Isso realmente é demais para qualquer um agüentar... Muito...
- Eu posso lhe compreender... - a grama subitamente lhe interessou mais – Já há tanto tempo que eu a amo, e não podendo fazer nada para impedir que ela afundasse naquele submundo nojento.
- Aí tem coisa... – murmurou para si mesmo, em um pensamento alto demais, para logo depois voltar a atenção ao amigo – Eu consigo perceber que ainda existem coisas que você esconde. Já não seria hora de contar?
Yue olhou-o, indiferente. Deu mais uma demorada tragada e soltou um anel de fumaça. Só então foi que ele falou, quando julgava ser tempo.
- Se tem alguém que pode dizer que a viu destruir-se, esse alguém sou eu. Meu papel de guardião foi bem exercido. Porque durante todo esse tempo eu a segui, escondido nas sombras da noite. Muito embora eu tenha quase certeza de que ela sabe disso. – era como se ele estivesse mergulhado nas lembranças de um passado negro e pavoroso.
- E o que você viu? – o rapaz estava curioso, ao mesmo tempo que pensava se suportaria a verdade.
- Vi ela se envolver com maus elementos. Foram eles que a ensinaram a fumar, a beber, e a se drogar... – e em seguido olhou para o próprio cigarro de canela – Em minha ânsia de protegê-la, acabei me envolvendo também com essas pessoas... Agora estou limpo, mas por muito tempo fui um grande dependente.
- O que mais? – mais lágrimas formavam-se.
- Foi quando toda a gang foi presa por porte ilegal de armas e drogas, numa noite fria e nublada... Ela só escapou porque estava muitíssimo bêbada e seu estomago não agüentou segurar tanto álcool. Se não fosse isso, teria sido presa também, com toda a certeza. Ela tinha um revolver por baixo do casaco, e ecstasy num dos bolsos. – uma única lagrima escorreu.
Touya não suportou mais. As mãos no rosto, escondendo a vergonha e a tristeza. Lágrimas vazaram de seus olhos, em um pranto desgostoso. Estava arrasado.
- Desde então ela anda sozinha. Sei que esta limpa das drogas – ele suspiro fundo – Acho que isso já é um começo.
- Como... – as palavras eram quase inaudíveis debaixo dos soluços desesperados – Como... foi... acontecer... isso?
- Eu não sei... Realmente eu não sei... – foi a única coisa que ele soube dizer.
- Ela era tão feliz! – perdendo o controle sobre os próprios sentimentos, ele pôs-se a chorar ainda mais – Tão alegre! Tão viva! Como foi que ela caiu nessa vida? Como?
O outro nada falou. Abaixou a cabeça, penstivo, concentrado em seu fumo.
Um longo período em silencio seguiu-se.
Apenas cortado por soluços e lamentos.
E pelo vento, a fustigar-lhes a face.
- Eu... – só depois de muito tempo é que ele teve coragem e forças para falar alguma coisa – Eu andei reparando...
- Em quê? – ele ainda estava longe, revivendo um pouco do passado.
- Alguma coisa esta errada com ela... – aos poucos, ele continuava o raciocínio.
- Só agora você percebeu? – ironizou, sarcástico.
- Alguma coisa fora do que já virou comum. – suas sobrancelhas estavam contraídas em uma expressão de pensamento.
- De que tipo? – agora ele parecia interessado.
- Algo relacionado com magia... – o objetivo estava quase sendo alcançado.
- Magia? – repetiu, sendo pego de surpresa – Como assim, magia? Já faz algum tempo que ela não se interessa nem liga para esse tipo de coisa!
- Então acho que ela ou voltou à ativa, ou andou escondendo isso de nos... – foi a conclusão oferecida.
- Seria quase impossível! – ele continuava incrédulo – Ela é muito poderosa para esconder tal coisa!
- Talvez seja por isso que ela tenha conseguido. – mais uma vez, o jovem fazia as suposições.
- O que você percebeu? – estava muito aflito.
- Já faz algum tempo que eu ando percebendo que ela esta cada vez mais... forte... E, de uns tempos para cá, você também... Você ganhou um... brilho... diferente... – disse.
- Deve ser algo realmente impressionante... Para você, que já não possui toda a sua força, perceber... – comentou, pensativo – Mas como eu não notei nada?
- Não seria por que ela, de alguma maneira, está nos impedindo? – sugeriu, confuso; ele não entendia muito bem disso.
- Pode ser... Pode ser... – foi sua resposta.
Mais tempo em silencio decorreu-se. Algo capaz de enlouquecer.
Muitas coisas passavam-lhe em mente. Lembranças de muitos anos atrás. Duma época muito antiga mesmo.
Parecia que as coisas estavam se repetindo.
Outra vez.
Ele conseguiria suportar?
- Você sabe o que está acontecendo? – indagou, percebendo o semblante carregado.
- Não... – mas aquela mentira não convenceu nem a si mesmo.
- Tem certeza? – insistiu, já ficando nervoso – Não acho que seja algo à toa.
- Eu... não... sei... – conseguiu balbuciar, tremendo de um medo incontrolável; não podia ser.
- Então há algo... – ele cruzou as mãos, percebendo que era algo grave.
- Pode ser... Mas eu não tenho certeza... – e então murmurou, uma lagrima escorrendo de seus olhos azuis – Eu não quero acreditar...
- Já que é assim... – e levantou-se, sacudindo a poeira - ... devemos consultar alguém que saiba de algo.
- Clow, por exemplo? – sugeriu, olhando-o bem fundo nos olhos.
- É... pode ser ele... – sua voz tremeu; ele já tinha afeições por aquele garoto.
- Eu posso conversar com ele... – ofereceu-se.
- Acho que todos gostariam de saber das ultimas... – da alguma maneira, ele continuava sem jeito.
- Uma reunião coletiva? – perguntou.
- Pode ser... – respondeu, olhando a arvore.
- Você tem razão... É o certo... – concordou, fitando o céu.
Ambos mergulharam em pensamentos. Só muito tempo depois voltaram a falar.
- Então eu verei o que posso fazer. – e o rapaz levantou-se e virou0-se, pronto para ir.
- Tudo bem. – o outro respondeu, ainda observando os longos cabelos sendo esvoaçados.
Os passos apressados levaram-no depressa para longe, jogando o final de seu cigarro por cima do ombro.
Uma voz soou, amigável.
- Por favor... – foi o que ele disse, quase berrando para fazer-se entender - ... faça minha irmã feliz...
Ele virou-se e sorriu sinceramente para aquela figura, sua mão tentando fazer sombra a seus olhos para que pudesse enxergá-la.
- Se assim for, eu farei. – e então ele distanciou-se, até sumir da vista do jovem de cabelos e olhos castanhos.
- É... De qualquer maneira, eu vou perdê-la... – e, dito isso, também deixou a sombra daquela arvore, no caminho de volta para casa.
