Promessas
Quando uma simples promessa pode virar seu o pior pesadelo.




Capítulo 22 – Passagem



Subitamente, os olhos escancararam-se, e puderam encarar um brilho anormal. Depois de tanto tempo, ela encontrava-se na luz novamente. Algo que a cegava de uma maneira extrema.

Tentou levantar-se, e seu corpo não pesou mais que uma pluma. Sem maiores dificuldades, pôs-se de pé, a examinar atentamente ao seu redor, com grande curiosidade.

Tudo era novo e velho ao mesmo tempo.

Como se ela já conhecesse aquele lugar.

Passo após passo, sentindo-se renovada e confortada depois de tanto sofrer, engatou uma marcha contínua, sem saber aonde ia, mas sabendo perfeitamente que chegaria.

Era engraçado ter certeza de tudo e não saber de nada ao mesmo tempo.

Quando sua vista acostumou-se com brilho tão incomum, ela distinguiu sombras do que parecia ser uma longa estrada.

Vez ou outra seus ouvidos apurados captavam sons de um choro longínquo e funesto, e seus olhos percebiam vultos, escondidos por uma densa bruma, passaram à margem, correndo, caindo, e ficando pelo caminho.

Tentou fazer seus pulmões encherem-se de mais ar, então percebeu que não precisava mais respirar.

Nem seu coração batia.

Olhou para si própria quando uma dor lascinante cortou-lhe os pulsos. Viu-os abertos, em uma incisão profunda e larga. Não havia sangue, mas de qualquer modo ela impressinou-se, e não olhou-o outra vez.

Seguia em sua jornada solitária através do nada.

Quanto tempo passou-se não podia importar.

No lugar em que ela se encontrava, existia apenas a eternidade a ser contada.

Nada além, nada antes.

Só a eternidade.

Foi então que seus olhos cansados repousaram sobre uma casa à beira do caminho. Simples, humilde, mas aconchegante. Rodeada de cerejeiras em flor.

Ficou tentada a averiguar.

Cedeu à vontade quando as dores nos pulsos tornaram-se insuportáveis, e os choros e lamentos em sua mente, insanos.

Quem sabe encontrasse ajuda naquele lugar.

Calmamente, seguiu por um caminho de pedras brancas e bem polidas, ladeada de uma grama verde e fresca, mesclada com flores de diversas espécies e cores.

Parecia estar em um jardim.

Estancou perante a entrada, perguntando-se o que estava acontecendo.

Lembrou-se de seu ato extremo então. Lembrou-se que sua tristeza havia consumido-a por inteiro.

Finalmente havia definhado por completo.

Então aquela devia ser a morte.

Nem de longe parecia terrível como lhe contaram.

Seus pensamentos foram interrompidos por uma figura gentil que apontou pela entrada, sorridente. Com as mãos, fez sinal para que entrasse, e ela também entendeu que era para sentir-se à vontade.

De alguma maneira, aquela pessoa lhe era familiar. Ela bem sabia quem era. Só não conseguia dizer seu nome. Havia alguma lógica maior que impedia.

Aquela mulher baixinha e de longos cabelos cinzentos afastou uma cadeira da mesa da cozinha para que ela pudesse sentar-se. Os vivos olhos verdes a brilharem de felicidade ao mirarem-na.

Ofereceu chá com biscoitos.

Ela passou a comer com vontade, enquanto a outra apenas sorria.

Já eram amigas, nas leis, sem nem terem trocado uma palavra sequer.

A mulher apenas a observá-la, alegre e satisfeita.

- Faz parte da boa educação oferecer comida aos recém-chegados. – sua voz doce e melodiosa disse em meio a um sorriso – Eles ainda estão presos aos dilemas. Ainda precisam sentirem-se humanos.

A garota sorriu em resposta, ainda saboreando o gosto de canela dos biscoitos. Mas ela sabia que em breve não precisaria mais daquilo.

Depois do último gole do chá, ela estava pronta para cotar sua história, como era de praxe.

- O que você faz aqui? – indagou, como se aquela conversação já estivesse programada em sua mente.

A mulher riu-se.

- Eu, assim como você, morri, minha querida. – mesmo falando de tal assunto, o sorriso não saía de seus lábios – Mas se você se refere ao motivo, eu posso contar minha história. Tem tempo, ou já encontrou seu caminho?

- Eu sei que este é o caminho. Apenas preciso chegar no final. – respondeu.

Então ela ficou séria de repente.

- Isso significa que você vai para os Confins, não é mesmo? – questionou, visivelmente triste.

- Se esse é o fim, eu acho que vou. – de alguma maneira, aquilo também a entristeceu, mesmo não entendendo o porquê.

- É uma pena, para uma jovem tão bela... – lamentou-se, fitando mesa – Acho então que sua estada aqui deve ser muito boa. Serão os últimos momentos.

Sakura nada respondeu. Aquietou-se ainda mais em um canto.

O silêncio eterno seguiu-se.

- Coma mais biscoitos, querida. – por fim ofereceu-lhe, empurrando à sua direção um prato repleto deles.

Não fazendo-se de rogada, ela aceitou, e novamente pôs-se a comer com vontade.

- Sabe... – então ela apoiou a cabeça nas mãos, ajeitando as longas madeixas cinzas para trás do ombro - ...às vezes eu volto... Eu vejo como está o mundo. Depois eu retorno para cá.

- Vai ver seus familiares? – perguntou, curiosa.

- Eu não me lembro deles. – respondeu, o olhar melancólico – Quando chegamos aqui, faz parte do processo esquecer-se de quem ficou. Já faz tanto tempo que eu não lembro nem meu nome.

- Mas eu não vou importar-me em esquecer. – disse a garota – Eu deixei muita dor para trás.

- E vai encontrar mais dor à frente. – murmurou, não sendo ouvida.

- Você quer voltar ao mundo algum dia? – indagou novamente.

- Meu destino não é esse. Eu estou no meio do caminho. Minha missão é voltar, ajudar a quem precisa. – ela parecia gostar de tamanha curiosidade.

- E quem você ajuda? – seguiu-se o interrogatório.

- Uma garotinha... – seu semblante tão alegre fechou-se em tristeza – Ela vai ter problemas no futuro.

- O que vai acontecer? – de repente, ela sentiu urgência em saber.

- Ela vai se matar... – e encheu mais uma xícara de chá – Eu a entendo... A família a abandonou, assim como a minha fez. Abandonou-me quando ia me casar. Justo no momento mais feliz da minha vida.

- Às vezes, as coisas não são corretas. – ela identificou-se com o caso, embora não conseguisse se lembrar de nada.

- Incorreto é deixar o mundo quando existe um amor maior que todos... – queixou-se, pensativa.

Amor...

Essa palavra não soava-lhe estranha de todo.

Como se em algum dia já houvesse habitado seu ser.

Um dia longe, mas um dia.

Quando ela era feliz e não sabia.

Ao contrário do que deveria acontecer, ela não esqueceu-se de si mesma. Cada vez mais lembrava-se, diante de uma mulher estupefata.

Tudo pareceu confuso.

Ela não devia estar ali.

Devia estar com seu amado Shaoran, gozando dos prazeres da vida.

Uma tontura a fez apoiar a cabeça nas mãos. Vozes faziam-se soar em sua mente.

Diziam para desligar os aparelhos que ela não sabia quais eram.

Vozes frias e derrotadas mandavam matá-la de uma vez só.

Não podiam prorrogar vida inútil.

Ela era um caso perdido.

Movida por palavras tão aterrorizadoras, ela levantou-se, e saiu em disparada, correndo contra os fatos.

Tomou o caminho de volta pela Longa Estrada.

Correndo o mas que podia.

Sua cabeça pesando, confusa e atormentada.

Lágrimas escorrendo por sua face.

Os pulsos doendo mais do que nunca.

Doendo tanto, mas tanto, que ela acabou por cair no meio do caminho, incapaz de dar um passo sequer.

A última coisa que ela soube antes de não saber de mais nada e que as vozes gritavam, aturdidas:

- Ela está voltando...