A Minha Garota
Por : Sissi
Capítulo III
"Nel Mezzo del Camin"
Olavo Bilac
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha.
E paramos de súbito na estrada
Da vida : longos anos, presa à minha
A tua mão, a vida deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo...Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
*~*~*~*~*
O sol está quase nascendo, trazendo consigo o dia e seus raios luminosos, acordando uma parte do planeta. Meus olhos abrem-se imediatamente, e olhando através da cortina branca, já vejo o céu num tom avermelhado e amarelado.
Não dormi a noite inteira; levei-a para meu apartamento e deitei-a na minha cama. Fiquei com o sofá, duro demais para as minhas costas. Depois, estava com a cabeça muita cheia para simplesmente me deitar e deixar o sono tomar conta de minha consciência. Às vezes, dormir é apenas uma perda de tempo, por mais que médicos me digam o contrário.
Sabe quando você não dormiu a noite inteira e, no entanto, você se sente cheio de energia e 'alegria'? Pois é isso o que está acontecendo comigo neste momento, se bem que a palavra 'alegre' não caracterize muito o meu humor, ou estado de espírito, como queira chamar.
A sala está terrivelmente silenciosa. O barulho ritmado do relógio é a minha única companhia. Não consigo suportar esta calmaria, algo estranho para alguém que mora neste lugar há tanto tempo e sozinho.
Meu quarto está me tentando, o perfume dela já fraco, porém ainda possível de se sentir. Eu havia fechado a porta por precaução, mas sinto uma certa inquietude em meus movimentos. Minhas mãos não conseguem parar de abrir e fechar os dedos, e sinto meu corpo inteiro tenso, não apenas pela falta de descanso.
Levanto-me do sofá e caminho em direção do meu quarto, desta porta, esta barreira inútil que me separa desta outra pessoa em meu apartamento.
Por que as pessoas inventaram portas? Ah, a privacidade, mas é claro. No entanto, as paredes já fazem este ótimo trabalho, ou estou enganado? Talvez elas representem a permissão para invadir o espaço dos outros. Sim, este deve ser a sua utilidade.
Ah, que me importa isso? Este é o meu apartamento e eu entrarei no recinto que eu escolher. Sou eu que pago o aluguel e o imposto deste lugar, nada mais justo que eu usufruir o meu bem, certo?
No entanto...Ainda reluto com esta minha decisão. Minhas mãos tremem ao encostar a maçaneta da porta, e eu sinto meu corpo frio, sem calor.
A porta se abre calmamente e um pequeno vento bate em meu rosto. Fecho meus olhos e me acalmo. O delicioso som dos canários do apartamento do lado também me ajuda a me controlar. Quando finalmente eu abro os olhos, vejo um corpo encolhido sob as minhas cobertas, apenas seu peito levantando-se e descendo ritmadamente. Sua boca está parcialmente aberta, seus lábios um pouco rachados e secos.
Caminho até a cama e sento na beirada. Observo suas feições, clássicas e belas. Não consigo controlar meu corpo; minha mão se levanta para acariciar seu rosto, tirar um pouco do seu cabelo que está obscurecendo-o. Ao tocar numa mecha de seu cabelo, tenho que reprimir um suspiro de prazer. É tão suave e gostoso!
Mal terminei de mexer nos seus cabelos, meus dedos insaciáveis já se movem em direção de seus lábios. Eu quero tanto...
Não. Levanto-me abruptamente e saio do quarto. Isso já foi longe demais, parece até que a estou assediando. E eu, que pensava que era melhor que outros, estou agindo dessa forma. Que repugnante!
Antes de sair, viro a minha cabeça e a olho pela última vez, guardando esta imagem na minha memória. Poderei algum dia esquecer que um anjo dormiu em meu quarto, tocou nos meus lençóis, respirou do mesmo ar que eu?
Só o tempo dirá.
* * * * * * * * * * * *
Retiro a chaleira do fogão e coloco-o em cima da mesa. Acrescento dois pacotinhos de chá em duas xícaras, um em cada um, e lentamente jogo a água quente, e o líquido, ao encostar os saquinhos de folhas ressecadas, ganha um novo sabor e cheiro, além de suas propriedades calmantes.
Levo-as para o meu quarto, onde espero que ela já tenha acordado. Já são quase dez horas, e tenho certeza de que ela precisa ir trabalhar, a não ser que queira perder seu emprego.
Bato a porta com a ponte de meu pé, abrindo-o. Ela ainda está dormindo.
Deixo a bebida no criado-mudo e sento mais uma vez na beira da cama. Sua respiração não consegue me enganar – ela está na realidade acordada!
- Levante-se, eu digo friamente. Não estou acostumado com as pessoas me enganando, e esta não será nenhuma exceção.
Seus olhos abrem-se e posso finalmente fitar aquela cor de que tanto gostei.
- Como você descobriu?
Mas que ingenuidade! Como pode existir alguém desse jeito? É simplesmente impossível!
- Sua respiração estava rápida demais para estar dormindo.
- Ah...
Seus olhos abaixam-se e sua franja os tampa, impedindo-me de ver como ela está se sentindo, pois os olhos são as janelas da alma. Pelo menos, foi o que eu ouvi falar. Será que é por isso que eu reluto em olhar fixamente para as pessoas com quem falo?
- Eu...
Mal ela começa a falar e ouvimos um estranho ruído. Suas bochechas ganham uma nova cor, um rosa claro que me faz querer tocar ainda mais a sua pele.
- Acho que estou com fome.
Tenho que usar toda a minha força para evitar que meus músculos faciais se movam e me façam sorrir. Consigo, porém a muito custo.
- Trouxe chá.
Estico o braço e pego uma xícara. O líquido já ganhou um pouco de cor, um dourado-escuro. Espero pacientemente até que ela se sente na cama e tome a xícara da minha mão.
Minha mão já está quase tão quente quanto o chá.
Por mais paciente que eu seja, parece que ela já está abusando da minha paciência. Será que eu terei que levantá-la com as minhas próprias mãos? Era só o que faltava!
Ah, parece que não vou precisar, mas já era hora? Ela não poderia estar tão fatigada após ter dormido por umas dez horas, ou poderia? Creio que não. De qualquer forma, minha mão já livre e posso tomar o meu chá, minha bebida favorita. Café é forte demais para o meu gosto refinado.
Seus lábios ressecados, ao tocar o líquido, umedecem e perdem esta textura de seca. Ganham até uma nova cor : estão cada vez mais avermelhados, provavelmente devido ao calor emanado pelo chá. Interessante.
- Está muito bom – ela disse, enquanto punha a xícara meio vazia no criado-mudo.
- Quer comer alguma coisa?
- Não sei...
Seus olhos estão novamente com aquela expressão vaga, aquela de ontem à noite, quando ela chorou em meus braços. Ela deve estar pensando no meu irmão, aquele idiota. Às vezes, não acredito como ele pode ser tão burro, pois ele trocou esta garota por outra. Talvez seja uma pessoa tão rude quanto ele. Só pode ser.
Será que devo perguntá-la sobre sua suposta 'rival'? Não, devo apenas torná-la triste novamente. Não sei se agüentarei mais uma noite no sofá. Por falar nisso, minhas costas estão doendo, de novo. Devia ter comprado um sofá-cama. Agora, já é tarde demais, mas pelo menos, aprendi a minha lição.
- Você parece cansado. Não dormiu bem?
- Mais ou menos.
- Pode dormir aqui, afinal, esta é a sua cama. Eu vou para a cozinha comer alguma coisa. Eu posso?
Seus olhos novamente olham para baixo, desviando-se do meu olhar. Reluto por um instante; ela ainda parece meio mal por causa de ontem, mas está decididamente saudável e apta para esta pequena missão. Por que não? Meu corpo já está mandando que eu durma o mais rápido possível e eu sei que não agüentarei por muito tempo. Minhas pálpebras ameaçam fechar a qualquer momento.
- Está bem, só não vá sujar a cozinha.
Odeio quando as coisas ficam desarrumadas ou sujas, especialmente quando foi outra pessoa quem as provocou. Talvez seja por isso que eu não gosto de convidar pessoas para o meu apartamento.
Ela levanta-se da cama e espera calmamente que eu tome o seu lugar. Ao sentar no mesmo local em que seu corpo há pouco tempo ocupara, posso notar que o lençol ainda está quente. Ela se inclina sobre mim e ajeita as cobertas, para que eu fique mais confortável.
Eu sinceramente gostaria de ter dito um obrigado pelo singelo gesto, mas meus olhos já estão se fechando e os meus músculos não me respondem mais.
- Bons sonhos.
* * * * * * * * * * *
Que delícia! Sinto meu corpo descansado, preparado para um novo dia. Já não sinto aquele estresse, aquele cansaço que eu andava sentindo ontem. Não, se pudesse dizê-lo, diria que sou um novo homem.
Acho que minha noção de sono estava terrivelmente errada. Salvem os médicos e sua teimosia em me dizer que o sono é importante. Aleluia!
Abro meus olhos e olho ao meu redor. Nada está desarrumado, fora de lugar. A janela está aberta, o ar fresco entrando por ela e ventilando meu quarto. Meu cobertor está fora de lugar, quase completamente jogado no chão.
As duas xícaras que estavam no criado-mudo já não estão mais lá. Ela deve tê-las recolhido. Ainda bem, parece que ela sabe do que eu gosto. Limpeza e organização.
Bom, já estou me sentindo melhor, não há razão para permanecer aqui deitado. Minha cama pode ser bastante convidativa, mas já está na hora de me levantar e fazer alguma coisa, a não ser que eu queira atrofiar meus músculos. Acho que não.
O piso está frio, mas nem percebo isso. O apartamento está muito silencioso. Será que ela já foi embora? Não, ela não teria feito isso sem me pedir. Ou poderia? Sim, eu não a conheço muito bem, o que eu posso afirmar sobre ela? Nada. Simplesmente nada.
Deve ter sido presunção minha creditar que eu a conhecia totalmente. As aparências enganam.
Não há ninguém na sala, nem na cozinha. Tudo está limpo, não há nada fora do lugar, nem parece que alguém esteve aqui. Mas seu perfume ainda persiste, e eu sou obrigado a senti-lo, trazendo-me estas lembranças, como a cor de seus olhos, um azul da intensidade de um céu após uma tempestade; cinza e nebuloso.
Vou assistir um pouco de televisão. Estou sem vontade de mexer no meu livro, e além do mais, teria que mudar todo o enredo. É, acho que vou trocar este namorado da minha personagem principal por outro. Um mais realista, mais frio, que não caia nas ciladas da vida. Sim, um namorado melhor.
Ao passar diante da mesinha que fica no centro da sala de estar, noto um papel dobrado com o meu nome escrito em cima. Para mim?
Abro o bilhete, não sem antes notar a letra forte e decidida. Simples, nada requintada, mas elegante devido a essa simplicidade, assim como as coisas mais ordinárias são normalmente as mais queridas pelas pessoas.
Uma ironia do destino.
De qualquer forma, ao ler rapidamente as poucas frases que compõe esta mensagem, meus dedos relaxam e deixo cair o papel no chão.
Sesshoumaru,
Obrigada por ontem à noite, eu estava precisando de um ombro amigo e você me ofereceu o seu. Serei eternamente grata a você. Como vê, eu deixei tudo arrumado, e até limpei a cozinha. Você precisa comprar mais comida, quase morri de fome! ^_^ Acho que já vou indo, tenho que ir trabalhar. Obrigada por tudo.
Kagome
Não, ela não foi embora sem se despedir. Eu apenas não acordei a tempo para dizer adeus a ela.
Adeus? Você está se perguntando por que eu usei esta palavra que tem um sentido tão forte de separação? Simples; eu sinto que eu não tornarei a vê-la.
Ela saiu da minha vida para continuar a percorrer a estrada da sua vida, e eu estou aqui, na minha própria estrada, tentando seguir em frente. Nossas vidas se encontraram por um mero acaso. Quem disse que coincidências acontecem duas vezes? Ninguém. Por isso, sei que não tornarei a vê-la.
Minha estrada ainda é longa e árdua. Às vezes, eu me sinto muito sozinho e gostaria de companhia, mas não colocarei este fardo nos ombros de ninguém, muito menos dos dela.
Acho que meu destino é ficar só.
