sombras cor-de-rosa

by Joanna Seta

Onee-san?

Onee-san…?

Onee-san, onde estás?

pés pequeninos, muito pequeninos. macios, macios-- e suaves, tão suaves, contra um chão de sombras. o som é abafado pelo material dos tabi que os protegem do frio. (só que é tudo frio aqui, não é?). o shifuku restolha silenciosamente no vazio. hesitante, a respiração dele.

hesitas?

criança, criança, perdida no escuro…… só que não tens medo do escuro, pois não? lidas com ele, passarinho, lidas com o escuro, e o negro, e o mal, e as sombras terríveis que eles alimentam. devolves as almas vingativas, os espíritos violentos – acalma-los, conduze-los a um plano maior… tornas as energias pérfidas em luz. foi isso que te ensinaram, não foi? a tua família, o teu sangue, a tua herança, a tua responsabilidade, o teu dever… não é isso? tu caminhas por eles, passarinho, em vez de voares os teus sonhos, o caminho por eles caminhado desde tempos imemoriais (proteger o Japão, ha! o mundo vai acabar em 1999). enfrentar o escuro – é isso o que fazes, bebé, criança – limitá-lo, iluminá-lo, enviá-lo de volta aonde pertence (ao inferno? ao coração humano?).

inocente, tão inocente! quatro anos: terrivelmente infantil e terrivelmente inconsciente. olhos grandes e expressivos (não escondem nada os teus olhos, pois não?) de um verde esmeralda sem par. não foi a tua inocência, a tua naïveté que o fez reparar em ti?

as crianças são para se tornar velhas, no final de contas.

'Nee-san!

uma mudança de corrente. ele cai de joelhos nas sombras. enrola o corpo sobre si mesmo. um casulo de carne e seda ritual.

elas devoram-no, as sombras. devoram-no, devoram-no.

ele pertence à luz. elas devoram-no, devoram-no.

ele pertence às trevas.

não.

ele pertence-Lhe.

Subaru…

ela não é muito alta. é normal. as mulheres nipónicas raramente o são.

o cabelo dela é curto e preto, preto, preto. mas não é trevas. não. não lhe recordam as trevas, o mal e as sombras.

as sombras, as trevas e o mal são cor-de-rosa.

eram brancas, mas ficaram cor-de-rosa, manchadas pelo sangue de que se alimentam – o sangue dos corpos que estão enterrados debaixo das raízes.

Ele disse que era assim.

o passarinho sabe que as palavras dele são mentira, mas ele acredita nestas.

ele vi-O a alimentá-la. à árvore de sakura. (e mesmo que não tivesse visto, ele acreditaria na mesma. são coisas que se sentem. coisas que são).

Subaru!

mas ele viu, e ele esqueceu.

ele esqueceu o sangue de alguém sem nome manchando-lhe as mãos-- as mãos Dele.

ele esqueceu que devia sentir medo e terror.

ele esqueceu que devia fugir.

mas nunca houve fuga possível, pois não?

(afinal, amar é destino…)

ele viu e ouviu, mas esqueceu.

esqueceu o sorriso frio Dele.

Subaru! Eras uma criancinha! A culpa não é tua! Não podias saber!

e se ele tivesse sabido, teria feito de outro modo?

nem por ti, que és irmã dele.

Não podias saber!

……………eu devia ter sabido!

ele esqueceu que na expressão Dele não havia outras emoções que não a indiferença e um frio –gélido! – contentamento. ele esqueceu que isso não o assustou. que o passarinho se aproximou do predador e perguntou-lhe como funcionavam as garras, os dentes, os maxilares poderosos.

esqueceu que se preocupou com os corpos debaixo da terra.

e por se preocupar, espicaçou-lhe o interesse.

Ele não sabia sentir.

(…queria sentir…)

Subaru, pensa… que poderias ter feito?

ele esqueceu as marcas nas suas pequenas mãos – as marcas da presa Dele (beijadas pelo caçador, benzidas em sangue pelo possessor) que traduziam uma mensagem muito simples:

O Seishirou era já um onmyouji poderosíssimo. Só tinhas quatro anos! Como poderias--!

Hokuto-chan, não interessa. Naquela tarde eu tornei-me--

"hoje, não te mato"

--em algo--

"mas a tua vida"

"é minha para ceifar."

--em algo--

"amanhã"

"depois"

"não interessa"

--tornei-me em algo--

"és meu".

Dele. dito com reverência. e um tremor.

Para sempre.

gentilmente encolhido – como quem se esconde e sabe que não se pode esconder. dobrado sobre si mesmo. abraçado aos joelhos. balouçando suavemente. deitado sobre sombras cor-de-rosa.

uma criança. que já não o é. um passarinho. de asas cortadas.

Ele-- ele disse?

um silêncio expectante.

Ele disse que me amava.

Sim, ele disse isso. Eu também. Amo-te muito, Subaru.

um silêncio. ele agarra-se com mais força ao próprio corpo. as sombras rodeiam-no ainda (rodeá-lo-ão. para sempre.).

Eu também. Eu também te amo muito. Hokuto. 'Nee-san.

Eu… ele não me ama.

relutância.

Não. Não te ama.

um soluço.

Porquê?

ela desliza no ar.

é normal. ela é incorpórea. e-- suave suave, ela aproxima-se. aproxima-se.

Que foi que ele te prometeu…… Subaru?

Um ano. Um ano após o nosso reencontro.

Um ano…?

Sim, um ano. Um ano comigo. Um ano a ser atencioso. Um ano a ser alegre. Um ano a ser simpático. Um ano a sorrir galantemente. Um ano a ser afectuoso. Um ano a olhar por mim. Um ano a me proteger. Um ano a dizer que me amava.

Foi isso o que doeu mais? O ele dizer que te amava? O mentir?

os pequenos punhos relaxam, libertando o tecido que lhe cobria a pernas num sussurro.

lentamente, como uma pequena flor, o passarinho desperta e desdobra-se, estica e cresce, expande-se e abarca.

Não.

uma criança. que já não o é. um passarinho. de asas cortadas.

dezasseis anos. doce doce. um açúcar amargo. uma inocência pecadora.

O que dói…

…o que dói é eu amar alguém que ele não é.

ele levanta-se. e ergue-se. as sombras devoraram-no. ele faz parte das sombras. ele é luz.

acima de tudo ele é Dele.

Ele matou-te.

Sim. Eu pedi-lhe.

ele olha-a nos olhos. olhos de pomba. vazios vazios vazios e negros negros. e escuros. e verdes. e inocentes. e intensos. e enamorados. oh, subaru!

Eu tenho saudades tuas.

Eu sei.

pele quente sobre o ar místico da alma dela. comforto. familiaridade. segurança. braços que envolvem e abraçam e agarram e seguram e não largam-- desesperadamente.

ela é espírito, mas ele abraça os espíritos.

e ela é quente. muito mais quente. mais quente que o fogo. e a lava. e o centro da terra.

mas não é mais quente que Ele.

Eu amo-te, Hokuto.

Eu amo-te, Subaru.

um abraço que se arrasta no tempo. um tempo que não é tempo nenhum, porque não existe.

uma alma em corpos separados mas idênticos. gémeos.

Dói amar alguém que ele não é. Dói muito.

lágrimas.

Ama quem ele é.

uma carícia. comforto. conselho.

Eu amo. ferventemente. Seja ele quem for. Eu amo-o. A ele.

Ah…

lágrimas.

Porquê? Porque é que ele não me ama?

Ele matou-me. Ele magoou-te.

Ele abusou da tua confiança. Ele traiu-te. Ele mentiu-te. Ele matou. Ele magoou. Ele magoou.

Sim, eu sei. E eu nunca o perdoarei.

raiva.

Eu odeio-o.

medo.

Eu amo-o. Seja ele quem for.

desespero.

Subaru…

Eu sou dele.

as horas nunca são horas quando se ama. um ano raramente o é. os minutos são indistintos. mas os segundos – esses – são uma eternidade. a irmã do passarinho quebrado sabe-o.

ela deseja – tem esperança – espera que te agarres a eles…

ela espera em vão.

um ano é toda a tua vida.

o tempo dela que nunca existiu acabou. ela deixa-o.

porque é que Ele não te ama, perguntas, pomba?

Eu sou dele.

não respires.

Sou. Dele.

não hesites.

Dele.

ama.

Seishirou-san.

porque Ele…

Ele …te…

Para Sempre.

PEQUENO DICIONÁRIO DE JAPONÊS:

-chan – honorífico; reflecte uma amizade íntima, carinho, afecto.

-san – honorífico; traduz distância, respeito.

onee-san – irmã mais velha.

onmyouji – médium espiritual japonês.

sakura – flor de cerejeira.

shifuku – traje casual. Recorri ao termo em associação ao uso feito em alguns fics que já li, referindo-me, assim, à vestimenta ritual muitas vezes trajada por Subaru aquando da utilização de magias que dele exigem um nível de concentração e protecção mais elevado.

tabi – meias de dois dedos, características da indumentária tradicional nipónica.