Capítulo Quatro - As Feridas Que Não Cicatrizam
Pousaram atrás de um pequeno bosque. Harry voou baixo, margeando a linha férrea para não serem vistos. Assim que pousou Gina teve uma crise nervosa.
- Estamos perdidos. Estamos perdidos - ela disse aflita, sentada no chão.
- Calma – Harry disse, aproximando-se dela.
Ela se levantou e o abraçou mas ele não retribuiu o abraço. Apenas deixou que ela soluçasse em seu peito, molhando de lágrimas sua camisa. Gina foi se acalmando até ficar apenas com as mãos espalmadas apoiadas nele. Ela encostou a testa no peito de Harry. Por fim, olhou para cima, dentro de seus olhos. Ele a encarou por um minuto. No mais absoluto silêncio. Então a afastou de si.
- Harry? - ele olhou sério para ela, que estranhou sua frieza.
- Vamos - disse secamente.
- Harry, você... - ela foi cortada por ele.
- Gina, eu te fiz uma promessa. E eu costumo cumpri-las - completou, ela sacudiu a cabeça. - Só que eu não sou de ferro... - justificou o fato de tê-la afastado. - Agora vamos – acrescentou, mudando de assunto. Gina o acompanhou.
- Onde estamos?
- Próximos de Bruxelas. Mas se vamos até A Toca... - ela parou.
- Harry, nós não vamos para A Toca - ele parou também.
- E para onde você pensa que vai? - ela deu um sorriso maroto. - NÃO. Não. Não... - ele disse em vários tons. Não convenceu em nenhum deles. - Droga, Gina. Você sabe o que o Rony vai fazer comigo se você ficar lá em casa? - ela riu.
- Ele acaba com você... - ela disse com simplicidade. - Por isso não vamos contar para ninguém - ele riu.
- A Mione tem razão. Como vocês, Weasley, são teimosos - Gina amarrou a cara.
- É, mas você ama a gente mesmo assim - disse sem pensar na repercussão do que tinha dito. Harry sentiu o corpo travar.
- É, eu amo - disse para si mesmo. - Amo muito. Vocês todos - completou. Ela sorriu, sem graça. De repente lembrou de algo.
- HARRY! - ela exclamou, levando a mão à testa, ele se assustou.
- O que foi?
- Salt. Nós esquecemos Salt no trem! - Harry ficou em silêncio por um minuto.
- O Depósito Municipal de Londres. Ele vai ser levado para lá. Estava registrado em nome de Srta. Winnie. É só irmos até lá e buscá-lo - ela sacudiu a cabeça.
- Não podemos fazer isso. Devem estar só esperando que nós façamos isso para nos pegarem - disse, desanimada.
- Então vamos ter que arranjar alguém pra fazer isso por nós - disse de modo prático.
- Mas quem? - perguntou, desanimada.
- Mione.
- A Mione? Hermione? A mulher do meu irmão? - Gina perguntou, espantada; Harry riu.
- Você conhece outra Hermione? - ela sacudiu a cabeça.
- É claro que não. Mas nós não podemos pedir isso a ela. Ela se sentiria muito mal em esconder algo do Rony e... – Gina sentiu novamente aquela pontadinha no fundo do coração. Aquela pontada que preferia chamar de mágoa, ressentimento, até raiva, mas nunca de saudade. Harry sorriu.
- Ela me pediu segredo de Rony quando me contou sobre o seu casamento. Creio que possa me fazer esse favor agora - disse decidido. - Você concorda? - ela deu de ombros.
- É o que me resta, não é mesmo? - respondeu, desanimada. - Eu não quero que Salt seja transformado em sabão. Eu sei muito bem o que alguns desses abrigos fazem com os animais - Harry deu uma gargalhada.
- É, seria o sabão mais caro do mundo - disse, referindo-se aos três mil marcos que o gato tinha custado.
- Harry! - Gina lhe deu um tapa mas não resistiu e acabou sorrindo. Ele foi obrigado a olhar para o lado, os lábios dela pareceram apetitosos e convidativos demais para ele naquela hora.
- Fique calma. Assim que chegarmos na minha casa eu vou mandar uma carta para Mione. Ela busca Salt e o devolve para você - disse calmamente. - Só espero que o seu maridinho não resolva seguir os passos de quem apareça para buscar o seu gato. Ou você acha que ele ainda não sabe que o bicho está apreendido? – acrescentou em tom aborrecido. Ela sacudiu a cabeça, indignada.
- Harry, você não deveria falar do Draco nesse tom – repreendeu e ele suspirou.
- Gina, em que tom eu deveria falar sobre o homem que me roubou parte da minha vida? E que ainda é uma sombra pairando sobre ela – acrescentou, sincero.
- Harry, me perdoe, mas o Draco não lhe roubou nada que você não tenha rejeitado primeiro - disse tristemente. Ele sentiu o coração apertar.
- Eu sei. Eu fui um idiota. Eu sei que o que fiz não tem perdão e... - ela o interrompeu.
- Não é isso que eu estou querendo dizer. Eu só não acho que seja você a parte mais prejudicada nisso tudo - disse com simplicidade.
- Gina, como era estar casada com ele? - perguntou quase sem coragem de ouvir a resposta.
- Harry... - ela parou de andar. Ele dissimulou a sensação de ansiedade que sentia.
- Tudo bem, se você não quiser falar sobre isso... - disse, olhando de esguelha para ela.
- Não. Não é isso. É que... - ele parou desta vez.
- É o quê? - perguntou, curioso.
- Talvez eu não diga o que você espera ouvir - ela respirou fundo. Harry gesticulou para que ela prosseguisse.
- Teste-me - ela se sentou em uma pedra e ele a olhou, até que tomasse coragem para falar.
- Eu sei que você quer que eu te diga que o Draco me fazia infeliz. E que eu fechava os meus olhos e me imaginava com você quando ele estava comigo na cama, no chão, ou mesmo sobre aquele piano de cauda - Harry fez uma expressão desgostosa. - Mas eu estaria mentindo se te dissesse uma coisa dessas - completou. Ele se ajoelhou à frente sua.
- Então por que você me pediu para buscá-la? - perguntou, os olhos marejados, levou a mão ao rosto dela impulsivamente mas parou o movimento no meio do caminho. Gina o encarou.
- Eu precisava sair dali. Eu me perdi. Muito antes de me casar com o Draco. Eu perdi a minha alma naquele dia. Você sabe muito bem de que dia eu estou falando – acrescentou tristemente. As lágrimas rolavam pela face de Harry. Ele fechou os olhos e lembrou exatamente do dia em que rompera com ela.
Gina o estava esperando em frente ao lago. Ele tinha passado o ano anterior a namorando escondido e nunca havia sido tão feliz. Mas agora as coisas eram diferentes. Ele sabia o que Voldemort poderia fazer com ela se descobrisse que era sua namorada. E não estaria ali para protegê-la. Dumbledore planejava enviá-lo para a Irlanda, para ter aulas particulares com Lupin e se tornar o mais novo auror de toda a história do mundo mágico. Passaria no mínimo seis meses longe dela e, apesar de Rony e Hermione terem tentando demovê-lo daquela idéia absurda, precisava romper, mesmo que isso fosse a coisa mais difícil de se fazer, para ele era o certo naquele momento.
Chegou por trás dela e involuntariamente a abraçou, sentindo o seu cheiro e a textura macia dos cabelos ruivos, guardando aquelas sensações na memória. Gina virou para ele e o beijou com entusiasmo. Harry retribuiu ao beijo. Sabia que aquele seria o último então, como quem submergiria em um poço fundo e escuro, beijou-a com vontade. Aquele seria o derradeiro fôlego que se toma antes de se perder em águas profundas.
Ela o abraçava forte, o calor dela junto ao seu corpo, a língua e lábios entreabertos nos dele não estavam ajudando em nada a começar o que tinha que fazer. Por fim, afastou-a. Ela ergueu os olhos cheios de esperança e amor para ele. Harry queria muito poder dizer que a amava, porque realmente era verdade. Desde sempre, agora ele tinha certeza disso, amava aquela menina. Contudo, não tinha conseguido dizer aquelas palavras, embora estivesse na ponta de sua língua. Pensava que se dissesse as coisas fugiriam ao seu controle e todos saberiam que era ela sua namorada, e isso a poria em risco. Então ele a encarou, sério. Ela, como sempre, adivinhou que algo estava errado.
"O que foi?", perguntou, preocupada; ele suspirou.
"Eu vou partir", disse calmamente; ela sacudiu a cabeça.
"Eu sei disso. Você tinha me dito que talvez Dumbledore o mandasse para longe, para que ninguém soubesse que tipo de treinamento você está sendo submetido", respondeu tranqüilamente. "Eu vou esperar por você, se é isso que o preocupa", ele fechou os olhos. Ela estava tornando aquilo bem mais difícil, se é que era possível.
"Não é isso", disse com a voz incerta. Gina passou a mão em seu rosto.
"O que é então, Harry?", estava tão compreensiva e acolhedora aquela noite que ele imaginava se aquilo era parte de alguma provação que deveria passar. Harry suspirou.
"Eu não quero que você me espere, Gina", disse de uma só vez. Parecia que tinha acabado de cuspir o próprio coração. Ela o olhou fixamente.
"O que você disse?", perguntou, incrédula, procurando avaliar a sinceridade dele em seu olhar.
"Eu vou embora e depois vou para a guerra e não sei se vou voltar", disse de olhos fechados. "Eu quero que você me esqueça", completou. Gina sentiu o coração partir em mil pedaços.
"Harry, o que você está fazendo? Você está fora de si?", disse, os olhos enchendo-se de lágrimas.
"Não. Eu nunca estive tão lúcido. Você não precisa de mim. Precisa de alguém que possa lhe oferecer estabilidade e segurança. Eu não sou a pessoa mais indicada e isso não daria certo mesmo", mentiu. Ela segurou as lágrimas naquela hora. Tinha compreendido o que ele estava tentando fazer.
"Eu preferia que você me dissesse que era um grande covarde e que tinha medo de me fazer sofrer, seria melhor do que fazer o que está fazendo agora. E eu compreenderia", disse, a voz trêmula. "Mas se você realmente tivesse medo de me fazer sofrer não teria dito metade dessas palavras", completou. "Eu poderia esperar por você, chorar sua morte e até morrer por você ou ao seu lado. Mas isso não mudaria o fato de que você não passa de um mísero covarde, Harry Potter. Um covarde que acabou de jogar a vida fora. A sua e a minha", ela virou de costas e correu para longe. Harry tinha conseguido estragar tudo.
Depois que ela se afastou ele se deixou cair no chão e chorou como um menino. Sentia ódio de si mesmo, dor, saudade, desespero e culpa. E ele nunca mais se livrou desses sentimentos. Ele abriu os olhos e a encarou.
- Eu sinto tanto, se você soubesse de como me arrependo... - disse, suspirando.
- Eu sei que sim - ela disse, comovida.
- Não. Não sabe. Eu terminei o nosso namoro... - começou mas as palavras lhe faltaram. - Foi a coisa mais difícil que fiz na minha vida. Mas eu fiz, achando que estava protegendo você dele. Se você ficasse longe de mim não seria um alvo, não seria um objeto de barganha. Eu não suportaria perder você. Não para Voldemort. Não deste jeito - ela sentiu lágrimas brotarem dos olhos. - Mas eu acabei perdendo você de outro jeito. De um jeito que doeu muito também - ele passou a mão por entre os cabelos. - Eu achava que importava o jeito com o qual eu poderia te perder mas depois eu descobri que não ter você ao meu lado era como se me faltasse o oxigênio para respirar, como perder o meu coração inteiro. Mas era tarde demais. Eu tinha que ir para a maldita guerra e eu tinha que lutar. E eu lutei. E eu precisava vencer ou não a veria nunca mais. E eu venci - Gina chorava agora e ele também. - E de repente tudo aquilo não fez mais sentido algum. Você ainda estava com ele. E eu me acovardei. Não tinha mais por que lutar, por que vencer. Então eu preferi partir novamente. Fui fazer estudos avançados de Defesa Contra as Artes das Trevas no exterior. Afinal, era a única coisa na qual eu ainda me considerava capaz - acrescentou, respirando fundo. - Então depois de alguns meses eu recebi a carta de Hermione. Eu demorei dois dias inteiros para tomar coragem e voltar. Eu tive que enfrentar os meus maiores medos. E então eu voltei. Mas era tarde demais novamente. Eu tinha perdido você... Então de certa forma eu também me perdi. Também perdi a minha alma e o meu coração. É uma ferida que não cicatriza - completou, ficando de pé. - E eu pensei que tinha me recuperado disso tudo ontem à noite –terminou melancolicamente; Gina suspirou.
- Eu sinto muito, eu...
- Não. Não sinta - ele a interrompeu. - Eu entendo o que você está sentindo. É culpa. Eu senti isso esse tempo inteiro. A vida inteira. Se eu não tivesse sobrevivido muito sofrimento seria evitado. Voldemort não teria ressurgido e a guerra não teria nos levado tantas pessoas queridas... -disse com calma agora.
- Não fale assim. Eu não consigo imaginar o que seria o mundo sem você. Mesmo quando eu estava na Alemanha você estava lá. Você nunca foi embora definitivamente. Você estava lá quando eu desisti do piano, quando eu desisti da pintura, da jardinagem, de mim mesma. E você nunca se fez tão presente quando eu desisti de desistir - disse, contendo as lágrimas. - Foi por isso que eu pedi que viesse me buscar. Eu não tinha mais nada, mais ninguém, nada além de você. Você era a única coisa que tinha me restado e só você poderia me ajudar a recuperar todo o resto - ela soluçou. - Eu não era infeliz porque Draco me fazia infeliz. Eu era infeliz porque eu me fiz infeliz. Eu preciso me encontrar de novo. Colocar as coisas nos seus devidos lugares. É por isso que eu te pedi um tempo. Porque eu te amo demais para me entregar incompleta a você - ele sorriu.
- Eu também te amo. E é por isso que eu vou respeitar a sua decisão. E fazer o que você precisar para te ajudar nessa reconstrução - completou.
- Agora, pelo amor de Deus, vamos embora, ou vamos desidratar aqui antes de chegarmos à cidade - ela riu, secando as lágrimas com as costas das mãos.
- Se nos apressarmos chegaremos no meu apartamento ao anoitecer - ela sorriu. Nunca tinha se sentido tão confusa, apavorada, ansiosa, mas, ao mesmo, tempo tão feliz em toda a sua vida.
