Capítulo 3
Tragédia nos McTaggart
Finalmente eles saltaram do ônibus e passaram a andar num bairro de casas muito juntas, praticamente sem árvores, com calçamento muito parecido como Beco Diagonal. Havia também algumas lojas pequenas, um comércio de bairro que fez Snape lembrar um pouco de Hogsmead.
- É ali adiante - disse Brian. - Não tem como errar.
Madame McTaggart disse:
- Vai com Sev na frente que eu vou apanhar o Pequerrucho.
- Falô.
Ela tomou um rumo diferente, deixando os dois caminhando no anoitecer. Snape não gostou do som daquilo e repetiu:
- Pequerrucho?
- A cria. Ele fica na casa de um amiguinho até a gente chegar.
Era uma criança.
Se pudesse, Snape teria dado meia-volta na hora. Mas acima de tudo, ele era um sonserino, e, como tal, prático. Os fatos eram simples: ele estava sozinho, sem dinheiro, sem direção, com fome e frio, e os McTaggart eram sua melhor chance de conseguir se esconder até ele conseguir voltar a Hogwarts.
Ele teria que agüentar a criança.
Se sua sanidade ficasse intacta.
Eles dobraram uma esquina e Snape olhou para o que obviamente só podia ser a casa dos McTaggart.
Não, ela não estava caindo aos pedaços. Pelo menos do lado de fora. Mas ela devia estar grudada por pura mágica. Era uma casa grande, com apêndices que obviamente tinham sido feitos artesanalmente.
Do lado de dentro, porém, tudo mudou.
- Não é muito - disse Brian -, mas é um lar. Desculpe a bagunça.
Embora simples, a casa era muito aconchegante e limpa. Estava apenas bagunçada, o que não era exatamente um excelente cartão de visitas, mas Snape não notou qualquer indício de sujeira. Parecia ser uma casa de pessoas que trabalhavam fora o dia inteiro.
- Papi!!!!!!
O grito fez Snape pular para o lado. E não foi sem tempo, porque uma criaturinha de pouco mais de um metro passou correndo por ele e jogou-se nos braços de Brian.
- Pequetito!!
O garotinho louro de cabelos arrepiados e aparentando uns quatro ou cinco anos de idade foi jogado para cima e riu-se ruidosamente. Snape observou a interação entre pai e filho trouxa. Brian ficou com o pequeno encarapitado no seu braço.
- Você foi um bom garoto hoje?
- Foi - respondeu.
- Comeu tudo direitinho na escola?
- Fiquei com a b'iiga cheia!
Brian riu e disse:
- Billy, esse aqui é o tio Sev. Ele vai ficar com a gente por uns tempos.
- Ele é um daqueles vagabundos que você tirou das ruas, papi? - perguntou o pequeno Billy, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Snape empalideceu e Brian ficou vermelho:
- Não, Billy, Sev se perdeu dos seus amigos e agora precisa de um lugar para ficar. Ele pode ficar no quarto perto do seu?
Billy olhou para Sev, de um jeito que só as crianças sabem fazer e disse:
- Tá! Vem, Sev, vamos brincar!
Snape perdeu a cor de vez. Mas o menino obviamente não se deu conta, porque rapidamente se contorceu para sair dos braços do pai e puxou o mestre de Poções pela mão:
- Vem! Vamos!
Snape tentou resistir, mas algo fez Billy parar.
A mão dele. A mãozinha do menino começou a adquirir uma tonalidade verde que rapidamente se espalhou rumo ao cotovelo.
- Aiiiiii!!!! Ai, pai! - O garoto segurou a mão e foi pro chão, chorando. - Papi!!
Brian ajoelhou-se, indagando:
- O que foi, filhinho? O que foi?
Billy chorava mais alto:
- Tá doendo! Ai, pai, faz parar de doer!
Snape normalmente teria ficado irritado com a gritaria. Mas no momento, ele estava petrificado. Infelizmente, ele sabia o mal que estava acometendo o garoto.
Alergia napelutina, também chamada de aconitinite.
Provavelmente Snape ainda tinha na mão traços do alcalóide venenoso encontrado na planta de acônito que ele usava para a poção mensal de Remo Lupin. Uma simples poção imunizava crianças mágicas contra essa enfermidade desde a mais tenra idade, porque a doença não era fácil de se lidar. Rápida, cruel... e mortal. Primeiro o alcalóide venenoso se espalhava, depois ele cortava a circulação sangüínea da área afetada até a necrose. O veneno podia atingir órgãos majoritários, como pulmão, coração, cérebro ou rins, e aí não havia mais remédio.
Era preciso agir rápido.
- Ai meu Deus! - Brian começava a entrar em pânico - Meu Deus, o que está acontecendo? Edinha! Edinha, socorro!
Agora a Sra. McTaggart veio correndo, e a gritaria só aumentou. Algo precisava ser feito.
Snape foi até o quarto mais próximo, pegou um cobertor e disse:
- Escute-me, Brian. É uma reação alérgica. Eu preciso de ervas.
Brian estava meio atônito:
- Pode ajudar o Pequetito? Como assim, ervas?
Billy continuava a gritar, mas Snape o enrolou num cobertor e o colocou nos braços:
- Licopódio, azevinho, beladona, helesboro. Onde posso arranjar isso? É urgente!
Edna disse:
- Tem uma lojinha de produtos naturais na esquina. Talvez eles tenham.
- Mostre o caminho - Ele carregou o menino, correndo, para fora de casa. Brian nem se deu ao trabalho de trancar a porta, transtornado.
Fora, a chuvinha recomeçara. Estava escuro, e eles caminhavam apressadamente pelas ruas de paralelepípedos escorregadios, Snape tomando cuidado da preciosa carga nos seus braços.
Billy ainda chorava, e Snape sabia que isso era um bom sinal. Mas ele viu que o antebraço do garoto já estava tomado. Edna liderava a fila, e para uma mulher do tamanho da dela, ela podia se mover ligeiro quando queria.
Brian cochichou:
- Você pode ajudar o meu Pequerrucho, não pode, Sev?
Nunca um otimista, Snape simplesmente foi sincero:
- Vou fazer tudo que eu puder, Brian.
A tal lojinha ficava efetivamente na esquina, e era mesmo pequena. Ao entrar e sentir o cheiro das ervas (mesmo que fossem somente ervas trouxas), Snape sentiu uma estranha familiaridade.
Ele estava em seu ambiente.
Um senhor meio carequinha, com uns poucos fios de cabelo brancos na testa estava de costas e disse, ao ouvir a porta se abrindo:
- Já estou indo!
Snape se adiantou, ficando à frente de Edna pela primeira vez, dizendo:
- É uma emergência. O senhor tem base neutra para uma pomada dermatológica que eu possa misturar com licopódio e beladona?
- O que houve? - perguntou o velhinho, vendo todos meio sem fôlego. Então ele viu o braço de Billy, que estava com um tom esverdeado decididamente asqueroso. - Oh, santa mãe de Deus!
- Um caso grave de alergia - respondeu Snape, ainda sem fôlego. Billy tinha se cansado de chorar, e choramingava, chamando pelo pai, que acariciava seus cabelos louros parecidos com palha de milho. - Precisarei fazer um remédio aqui mesmo. Uma emulsão.
- O senhor é farmacêutico?
Snape disse:
- Pode me chamar de boticário.
- Então venha aqui, por favor. - Ele levantou o balcão para Snape passar, e apontou para uma sala nos fundos. - Use a minha banca. O pilão e o almofariz estão limpos.
- Vou precisar de uma infusão de azevinho, só para garantir.
O velho disse:
- Eu vou colocar água no fogo. Vocês são os pais do menino? Eu conheço vocês. McTaggart, não são?
Uma lágrima caiu pela barba de Brian quando ele respondeu:
- Só.
- Podem ficar com o garoto - Ele levantou o balcão para eles passarem. - Venham por aqui.
Snape devolveu Billy ao colo de Edna e disse:
- Não pressione o braço dele. E basta ficar em silêncio.
O velho farmacêutico observou atentamente as mãos seguras de Snape a manusear o almofariz, e viu que se tratava de alguém que tinha passado muito tempo a preparar receitas médicas. Ele comentou:
- O senhor parece saber o que faz.
Snape fez o máximo para parecer não ofendido:
- Obrigado.
- Dean Winthrop. O senhor não é do bairro.
- Severo Snape. Não, eu vim de longe.
Brian disse:
- Ele gosta de ser chamado de Sev.
Snape o fuzilou com o olhar, ainda pulverizando a beladona.
- Estou... passando uns tempos com os McTaggart - Ele terminou de pulverizar a beladona. - Licopódio?
O Sr. Winthrop se esticou para alcançar um dos jarros nas prateleiras, dizendo:
- Só tenho em pó obtido a partir das folhas.
- Excelente. E o excipiente?
- Tenho uma base orgânica para emulsão.
- Hum, isso pode interferir nos reagentes - Como Snape gostaria de duas gotas de sangue de dragão. - Vamos tentar com pomada.
Olhando para Billy, que tinha voltado a chorar no colo da mãe, o Sr. Winthrop indagou:
- Sabe a que ele está reagindo? Essa alergia é das mais incomuns.
- Aconitina. Eu fui o responsável.
Brian disse:
- Não se culpe, Sev. Você foi rápido.
Snape estava irritado. Ele sabia que o menino estava longe de sair da zona de perigo, e gostaria de ter seus próprios espécimes para trabalhar, que incluíam ingredientes mágicos que esses trouxas jamais sonharam em obter. E ele não podia usar mágica! Não com aquele bando de gente olhando enquanto ele manipulava a pomada.
- Billy - ele se aproximou do menino -, estique o braço.
O garoto indagou:
- Vai doer?
Snape não mentiu:
- Não. Mas ele pode ficar quente.
O menino hesitou, incerto, e Madame McTaggart tentou acalmá-lo:
- Não se preocupe, Pequerrucho. Mamãe está aqui.
Lentamente, Billy esticou o bracinho, que estava num tom de verde decididamente doente, e Snape espalhou a pasta de ervas por toda a área afetada e arredores. Quando ele terminou, o Sr. Winthrop indagou:
- Só isso vai ser suficiente?
Snape respondeu:
- A pasta vai criar uma crosta no braço de Billy. Quando começar a esquentar, a crosta estará prestes a se romper. Devemos então tirá-la e enxaguar o braço na infusão de azevinho. A partir daí, a própria aconitina pode ajudar o tratamento. Preciso separar um pouco da água para fazer uma infusão de capuz-de-frade.
O dono da botica assentiu e foi separar os ingredientes. Brian quis saber:
- Sev, você já fez isso antes, não fez?
Snape tranqüilizou:
- Com certeza. Conseguimos deter a infecção rápido. Seu filho ficará como novo. Mas essa noite eu ficarei velando seu sono. Ele pode querer... colocar algo para fora.
Madame McTaggart disse, observando o braço do filho:
- A pomada está endurecendo!
- Ótimo. Isso significa que está funcionando - Snape se virou de volta para a bancada de mármore e começou a manipular o azevinho. - A água está chegando ao ponto de fervura. Billy, vou precisar de sua ajuda.
- Tá bom.
- Você precisa avisar quando começar a ficar quente demais. Eu já falei que a pomada vai esquentar o braço, mas ela vai esquentar muito. Quando começar a ficar bem quente, tão quente que você não conseguir mais agüentar, você me avisa?
O garoto olhou para ele com os olhos brilhando, cheios de confiança, e assentiu:
- Tá bom, tio Sev.
Snape não pôde evitar sentir algo ao ser chamado de "tio Sev". Intrigante era o fato de que ele não se sentia mal, mas... curiosamente espantado.
Quando Billy avisou que estava começando a esquentar, o azevinho já estava fervendo na panela. Um outro recipiente já estava separado para a cocção da outra erva, também conhecida como capuz-de-frade. Snape sabia que os mesmos alcalóides venenosos que tinham causado a reação alérgica poderiam ser úteis para ajudar a cura de Billy. Poções eram realmente um objeto de estudo fascinante.
- Billy, agora você pode ajudar quebrando a crosta que se formou. Ela deve se esfarelar facilmente.
O pequeno se divertiu quebrando a casquinha cor de pérola que tinha se formado a partir da estranha emulsão. Os pais também ajudaram na atividade divertida. O Sr. Winthrop observava tudo, fascinado, e de vez em quando fazia alguma pergunta sobre os procedimentos.
Quando o braço só estava com o pó resultante da casca, Billy foi levado à pia e o seu braço mergulhado na panela com azevinho. O arbusto, tradicional de Natal, sempre foi associado à ressurreição e curas profundas, bem como preventivo para encantamentos e feitiçaria negra. O bracinho do menino ressurgiu da água com uma cor azulada, e Snape ordenou que ele fosse novamente mergulhado na panela.
- Billy, agora vamos secar o braço, e a infusão deve começar a fazer efeito rapidamente.
Dito e feito. O braço foi seco, e dessa vez tinha a cor azul ainda mais pronunciada. Em questão de minutos, o azul foi se tornando púrpura, que foi se tornando vinho, depois escarlate e por último bem vermelho. Snape dirigiu-se então ao recipiente com a cocção do acônito.
- Agora beba, Billy.
- É bom?
- Não é muito bom, não. Mas você quer ficar bom, não quer?
Relutante, o menino terminou aceitando:
- Tá bom. - Ele tomou um gole, e foi incentivado a tomar outro. - Ui! Tem gosto de mato!
- Tem sorte de não ser sangue de dragão ou olhos de salamandra.
Billy arregalou os olhos, assustado, e os adultos riram-se um pouco, divertidos. Snape achou melhor não dizer aos adultos que ele não estava brincando.
Snape pediu:
- Billy, agora me diz como está o seu braço.
O garoto mexeu-o um pouco e disse:
- Tá bom. Parou de doer.
Brian perguntou:
- Tá bom mesmo, filhão? Pode falar se estiver doendo um pouco.
- Não tá doendo não, papi - O menino esfregou os olhos. - Papi, tô com sono. Quero ir para casa.
Snape explicou aos pais:
- É o efeito do capuz-de-frade. Ele deve dormir a noite toda.
O Sr. Winthrop estava de olhos fixos no braço do menino:
- Incrível! Não tem sinal do que aconteceu com ele.
A Sra. McTaggart indagou:
- Sev, porque falou que você foi o culpado?
Snape parecia embaraçado ao admitir:
- Eu tive contato com a substância à qual seu filho é alérgico. Acho que ainda havia resíduos no meu braço.
De repente, Snape quase foi ao chão. Ele foi envolvido por dois grossos braços e a voz emocionada de Brian falou:
- Você salvou meu filho! - Ele estava vertendo lágrimas. - Meu Pequerrucho batatinha está bom graças a você, Sev. Cara, eu não sei como agradecer.
O Sr. Winthrop concordou:
- Sim, foi mesmo inacreditável. Eu estava a ponto de chamar um táxi para levá-los a um hospital.
Snape estremeceu diante da perspectiva de entrar num hospital trouxa. Ele tinha ouvido falar que os tais médicos furavam, espetavam e até cortavam seus pacientes. Bárbaros.
Mas então uma outra preocupação atingiu-o.
- Sr. Winthrop, eu... espero que entenda. Quando chegamos aqui, minha única preocupação era com a vida de Billy. Eu não pensei nas... conseqüências... Quero dizer, o seu pagamento...
O velhinho nem deixou ele terminar o que dizia:
- Sev, eu não posso cobrar a tarifa normal. Você fez tudo, manipulação e processamento. Só o que posso cobrar é pelos ingredientes que foram usados.
- Mas... é o que estou tentando lhe dizer. Eu não tenho meios de pagar nem os ingredientes utilizados.
Madame McTaggart disse:
- Mas eu tenho. Eu ainda tenho alguma grana, Sev. Não se preocupe.
- Mas não é justo. Eu deixei Billy doente, eu deveria pagar pelo que fiz.
Winthrop disse:
- Se realmente está interessado em pagar seus amigos de volta, eu posso ajudar. - Snape se voltou para ele. - Você tem emprego fixo, Sev?
- Não. Está me oferecendo um?
- Certamente. Você obviamente tem experiência e sabe o que faz. Conhece as ervas e é capaz de manipular receitas. É do que eu preciso para conseguir entregar receitas no mesmo dia e aumentar a clientela.
- Está falando sério? Mas nem sabe quem eu sou.
- A Polícia de Sua Majestade está atrás de você?
- Não.
- Alguma ex-mulher ou filho ilegítimo?
- Nem chance.
- Algum namorado violento?
- Não faz o meu gênero.
- Vai me causar problemas, Sev?
- Não se eu puder evitar.
Winthrop riu-se:
- É, você é mesmo afiado.Se estiver interessado, pode voltar aqui amanhã às 9h em ponto. Pago mais do que o salário mínimo, mas não são muitas horas. Das 9h às 4h, com uma hora de almoço. - Ele estendeu a mão. - Aceita?
Snape olhou a mão estendida e tomou a decisão sonserina: apertou-a.
- Negócio fechado.
Winthrop apertou a mão:
- Bem-vindo a bordo, Sev.
Brian mais uma vez esmagou Sev:
- Cara, você arrumou um emprego! Sev, velhão, você é mesmo uma figura! Alguém na família com um trampo de verdade!
- O primeiro dia de trabalho servirá para pagar os ingredientes usados hoje - disse Winthrop. - Está bem assim para você?
- Excelente. Obrigado, Sr. Winthrop.
- Amanhã estarei aqui para lhe mostrar onde fica tudo, e a rotina de trabalho. Agora é melhor vocês cuidarem do pequeno - Apontou para Billy, adormecido no colo da mãe. - Ele ainda precisa de cuidados.
- Obrigado, Sr. Winthrop. Boa noite.
Os três saíram da lojinha do Sr. Winthrop, Billy totalmente apagado no colo da Sra. McTaggart. Ela disse:
- Bom, taí uma coisa que não se vê todo dia. Você entra na farmácia e sai com um trampo. Mandou ver!
Snape admitiu:
- Estou também muito surpreso.
- Isso resolve uma coisa - decidiu ela, ajeitando Billy. - Assim que chegarmos em casa, Sev, você vai direto para o banho. E pode lavar esse cabelo também!
Snape ficou meio confuso, mas Brian sorriu, dizendo:
- Esse é o jeito de Edinha dizer Bem-vindo à família, Sev. Ela vai passar a cuidar de você feito Mamãe Gansa!
- Oh. Nesse caso... Obrigado, eu acho.
Madame McTaggart disse:
- Não, não me agradeça. Agora você vai ser um McTaggart honorário, Sevvie. Com tudo o que isso implica.
Snape não sabia se engolia em seco ou se ficava agradecido.
