Capítulo 4

Encrencas na botica

Uma hora mais tarde, Snape estava com os cabelos lavados, enfiado numa camiseta que pertencia a Brian, e que deixava seus ombros caídos de tão grande que era. Ele se recusara a trocar a calça por um conjunto de ginástica. Madame McTaggart parecia muito satisfeita.

- Ah, pode crer. Outra cara, Sevvie.

Incrível. Eles tinham conseguido modificar o apelido.

Billy estava no quarto, adormecido, enquanto eles jantavam. O menu foi agradavelmente simples e bem preparado, para surpresa de Snape.

- Você pode ficar nesse quarto - disse Madame McTaggart. - Só tem um sofá, mas é confortável.

- Não se incomode, Madame. Eu vou passar a noite com Billy.

- Eu fico com você, Sev.

- Não há necessidade de ficarmos os dois acordados. Posso garantir que sou perfeitamente capaz de administrar uma noite mal-dormida.

- Mesmo na véspera de seu primeiro dia num emprego novo?

- E já estive em situações bem piores, acredite.

- Nem esquenta. Você é mesmo irmão de fé, Sevvie. O que você fez pelo Billy...

Ele sentiu uma pontada de culpa:

- ... foi o mínimo, considerando que eu o coloquei em perigo.

- Mas você foi um amigão, Sevvie. Essa casa vai ter sempre um lugar para você, enquanto você quiser.

- Falando nisso, agora que eu estou empregado, eu insisto em pagar pela minha estadia.

- O quê?! - Snape deu um passo para trás, surpreso. - Pagar?! Mas de jeito nenhum! Tá querendo sair no braço, é? E não fale isso perto de Brian, senão ele te enche de porrada! Você agora faz parte da família, entende?

- Desculpe, eu não quis ofender.

Madame McTaggart olhou para ele e disse:

- Olhe, Sev. Não sei quem são seus amigos, mas não me parecem ser amigos muito bons, se você não sabe que amigos ficam juntos, especialmente nas horas difíceis.

Snape pensou um pouco, e viu que a mulher estava mais próxima da verdade do que ela podia imaginar. Ele suspirou:

- Acho que tem razão.

- Claro que eu tenho! - Ela riu-se e bateu sua mão gorda nas costas do mestre de Poções. - Agora se você quiser dar uma olhada na tevê, vou guardar um lugar no sofá para você. - Ela piscou um olho.

Snape não entendeu direito o que as letras TV juntas significavam, mas respondeu:

- Eu acho que vou olhar Billy. Se ele tiver febre, eu posso fazer um chá de folhas de salgueiro.

- Dá uma aspirina infantil que é mais prático. - Ela mostrou onde estavam os remédios trouxas, e Snape fez o possível para não demonstrar seu horror. - Se precisar, pode chamar.

- Sim, Madame.

- Não tem jeito de você me chamar de Edna?

- Err... Não, Madame.

- Tá limpeza. Faz como quiser, Sev. Aqui você pode fazer o que quiser.

Ela saiu do quarto (provavelmente atrás das letras T e V), e ele ficou imaginando que nunca se sentiu tão aceito como pelos McTaggart. Desde a mais tenra idade, ele tinha sido ensinado a ser um Snape da mais alta estirpe - e deveria se comportar de uma maneira estabelecida. Em Hogwarts, Alvo Dumbledore tinha a tendência a manipulá-lo. Entre os Comensais da Morte, o Lord das Trevas exigia um comportamento bem específico dele. Mas naquela casa trouxa, com aquela família trouxa, ele podia ser simplesmente Sev. E ele era plenamente aceito como simplesmente Sev - de uma certa maneira, podia-se dizer até que ele era amado.

Era muita coisa nova para um só dia.

O estranho relógio com números digitais marcava 3h18min quando Brian gemeu, mexendo-se na cama. Snape adiantou-se e ofereceu um pouco de água ao garoto. Ainda adormecido, ele disse:

- Mamãe...

- Ela pediu que eu cuidasse de você. Agora deite e durma.

- Tá bom, Sevvie. Sevvie - Ele fechou os olhos e Snape o cobriu, enquanto o garoto balbuciava, meio adormecido. - Wevvy... Sevvie-wevvy...

Era tudo que ele precisava. Mais um apelido.

Finalmente Brian se aquietou e voltou a dormir. Mas logo depois, Snape escutou um barulho na janela. Soou alto porque a casa inteira estava quieta, com exceção dos roncos monstruosos de Brian.

Snape foi até a janela e o que viu o fez empalidecer. Uma coruja estava pousada no parapeito e tinha um envelope no bico. Ela voltou a bater com a ponta do bico na janela, insistindo em ser atendida.

Com cuidado para não fazer barulho, Snape abriu a janela e a coruja entregou-lhe a carta. Em seguida, a ave deu meia volta, piou em triunfo e voou para longe. Snape a acompanhou, intrigado.

A parte da frente do envelope dizia, numa caligrafia elegante que Snape conhecia de longe: "Professor Severo Snape - Mundo Trouxa"

A pobre coruja provavelmente tinha voado o dia inteiro tentando localizá-lo. Ele gostaria de ter oferecido ao menos um pouco de água a ela.

Abrindo o envelope, ele desdobrou a carta e leu:

"Severo,

Infelizmente, a burocracia de Azkaban deverá tornar demorada a revogação das ordens para sua captura. Sugiro que você continue na sua atual localização ou procure outra o mais rápido possível. Não responda a essa carta, por precaução. Mandarei avisar quando for seguro.

Alvo Dumbledore"

Fechando a carta, ele suspirou. Ele realmente não esperara nada diferente do que lera. A imbecilidade do Ministério, somada à burocracia de Azkaban, provavelmente o deixaria mais tempo do que ele podia imaginar isolado no mundo trouxa. Por outro lado, essa perspectiva de ficar um bom tempo com os McTaggart não parecia de todo desagradável.

Snape amassou o pergaminho e guardou-o no bolso de sua calça (sua capa tinha ido para a lavanderia por insistência de Edna). O melhor a fazer no momento era esquecer Hogwarts e viver a experiência trouxa ao extremo.

Londres iria conhecer o verdadeiro Sev.

Depois de uma noite inteira mal-dormida, tomando conta do pequeno Billy, Snape tentou se concentrar no café da manhã de Edna McTaggart para recuperar o bom humor. Embora o café fosse tacanho em comparação aos de Hogwarts, ele tinha a mesma característica do jantar da noite passado: estava muito bom.

Edna reclamou que ele não comera quase nada, mas ela estava acostumada à quantidade de comida que ela e Brian consumiam. Snape garantiu que estava bem alimentado para seu primeiro dia de trabalho.

Isso era outra coisa que o espantava. Ele estava no mundo trouxa há menos de 24 horas e tinha conseguido amigos (Brian ainda dava alguns abraços impressionantes toda vez que ele se lembrava de como Sev salvara a vida de Billy), um teto e um emprego - tudo sem usar mágica. Se ele contasse isso em Hogwarts, ninguém acreditaria.

Aliás, Hogwarts parecia um outro mundo, quando ele saiu da casa dos McTaggart rumo à botica da esquina. Era um pouco antes das nove horas, e ele fazia questão de chegar no horário. A primeira impressão era muito importante.

Na confusão da noite passada, Snape não tinha reparado que a lojinha tinha o nome de "Na Medida Certa" - nome que, na opinião do mestre de Poções era mais apropriado para uma modista ou alfaiate. A construção era do início do século, com uma escadinha de três degraus levanto à porta de vidro bisotado, tudo com um ar positivamente vitoriano. A porta tinha uma plaquinha onde se lia "ABERTO" e os horários. Segundo a placa, o Sr. Winthrop estava para fechar quando eles chegaram na noite passada. Tinham tido mesmo muita sorte.

Snape subiu os degraus a um passo confiante, abriu a porta e entrou, ouvindo o barulhinho de uma campainha indicando sua presença. Mal fechou a porta e ouviu uma voz feminina vinda de cima:

- Já desço num minuto!

Ele olhou para o alto: um pouco à frente dele, perto do teto, uma moça estava encarapitada numa escada agarrada à prateleira, colocando um grande pote de ervas no lugar. Ela estava de costas para ele, com os cabelos presos num coque e um vestidão oriental que deveria ir até os calcanhares. Ele disse:

- Por favor não se incomode.

A moça começou a descer a escada:

- Não é incômoooooooohhhhhh!

Em câmera lenta, Snape acompanhou quando ela falseou o pé num dos degraus da escada de madeira e desequilibrou-se, perdendo o apoio e tentando inutilmente agarrar-se à lateral da escada. O esforço resultou na sua queda de uma altura de pelo menos dois metros e meio.

Severo só precisou dar um passo e estender os braços.

Como fruta madura, a moça caiu em seus braços, num impulso agarrando-se ao pescoço dele, e de repente, ele estava bem próximo do rosto dela: os olhos castanhos estavam arregalados de susto, o longo cabelo dourado caindo-lhe sobre os ombros, a pele suave e apessegada com um toque de rubor devido ao esforço, a boca ligeiramente entreaberta, o peito arfando e o coração acelerado, o vestido desarrumado pela queda. Snape descobriu que também estava um pouco sem fôlego, incapaz de tirar seus olhos dos da moça.

Os dois ficaram alguns segundos a se encararem, tanto pelo choque como por algo que não sabiam definir. Snape gostaria de ter sido o primeiro a quebrar o silêncio, mas alguém na porta tirou-lhe a primazia:

- Piranha!

Snape se virou para ver quem tinha dito tal imprecação e viu-se frente a frente com um rapaz magrinho, de bigodes pretos e cabelos negros curtos muito mais ensebados que os seus, a olhar ameaçadoramente para os dois. A moça perdeu toda a cor nas suas faces e balbuciou:

- E-Eddie...!

Num impulso, Snape colocou a moça no chão, e o rapaz andou até ela, esbofeteando-a sem a menor cerimônia:

- Vagabunda! Piranhuda!

Num outro impulso, Snape se colocou na frente da moça e impediu que ele continuasse a espancar a mulher, que se encolhia, protegendo a cabeça com as mãos:

- Quem é o senhor?!

- Sou o homem dela, essa biscateira imprestável! - Ele olhava para a moça com uma expressão de nojo. - Com essa cara de santinha, é uma grande puta, isso sim! Se quer um conselho, amigo, fique longe dela.

Snape corrigiu - com uma voz gélida:

- Eu não sou seu amigo. E eu é que vou lhe dar um conselho: saia. Agora mesmo. Ou serei forçado a lhe mostrar minha fúria.

O homem olhou para a cara de Snape, com um sorriso malicioso, disposto a soltar uma gracinha, mas um único olhar patenteado do mestre de Poções de Hogwarts fez o sorrisinho cair e ele se deteve, intimidado. Apontou um dedo contra a moça e ameaçou:

- Sua puta, isso não fica assim! Esse urubu não vai ficar aqui para sempre! Aí eu vou querer ver, piranha.

A moça choramingou:

- Eddie - por favor, vá embora... Só vá... por favor...

O homem deu um olhar feio para Snape e saiu batendo a porta, a plaquinha quase voando do preguinho. Por uns segundos a loja ficou em silêncio, exceto pelo choramingar da moça.

- A senhora está bem?

- S-senhorita - ela balbuciou.

- Como?

- Senhorita. Eu sou senhorita. Ele não é meu marido - Ela enxugou as lágrimas com os dedos. - Me desculpe por tudo isso. Eu estou tão envergonhada...

Um outro impulso irresistível fez Snape dizer:

- Não é a senhorita quem deve pedir desculpas.

Ela ainda parecia trêmula ao dizer:

- Eddie... sempre foi muito esquentado... Desculpe...

Snape pediu:

- Asfódelo.

Agora foi a vez da moça não entender:

- Como?

- Asfódelo. Para acalmá-la. Por que não toma um pouco?

- Eu não tenho habilitação para mexer nas ervas. Isso é para um farmacêutico ou para o dono, o Sr. Winthrop.

A campainha da porta soou quando alguém entrou:

- Alguém falou o meu nome? - Brian Winthrop fechou a porta atrás de si, sorrindo para os dois. - Aconteceu alguma coisa?

A moça tentou esconder o rosto quente pela bofetada e engoliu as lágrimas, dizendo:

- Não, tudo bem. Eu acho que estou ficando gripada, só. Esse moço estava me ajudando.

Snape não a contradisse. Ele preferiu aguardar os acontecimentos, como um típico sonserino. Alheio a tudo isso, o dono da botica ainda sorria:

- Ora, vejo que já se conheceram. Desculpem o atraso, o trânsito na A1 estava horrível.

A moça disse:

- Sr. Winthrop, o que está fazendo aqui a essa hora?

- Pensei que Sev tivesse dito. Ele é o nosso novo farmacêutico.

O nome fez Snape, um renomado mestre em Poções, sentir um embrulho no estômago, como se tivesse sido rebaixado de posto. Ser chamado de Sev subitamente tinha perdido toda a importância ao sentir que ele tinha perdido o título de mestre de Poções para ser reduzido a um "farmacêutico".

A moça tinha enrubescido:

- Ele vai trabalhar aqui?

- A partir de hoje. E vejo que é pontual, Sev, muito bom - O senhor Winthrop pendurou seu casaco e foi conversar com seus empregados. - Nossa atendente, Martha Scott, fica aqui durante o dia. Ela atende os clientes, pega os pedidos, organiza receitas por ordem de prioridade, entrega os remédios prontos e me ajuda com o livro-caixa. Como somos poucos, tem trabalho para todos.

A moça, Martha Scott, olhou para Sev e perguntou:

- O senhor é daqui de Londres?

Winthrop disse:

- Ele gosta de ser chamado de Sev.

Ele fez uma mesura e disse:

- Severo Snape, senhorita. Não, não sou de Londres. E sim, todos gostam muito de me chamar de Sev.

Martha Scott sorriu para ele, encabulando-se. Snape descobriu que era uma visão agradável.

- Sev ficará no laboratório praticamente o tempo todo - disse Winthrop. - Ah, e eu vou mandar fazer um uniforme para você com os nossos logotipos. Martha, indique a ele a costureira mais tarde. A despesa será da loja, Sev, não precisa se preocupar.

- Sim, sr. Winthrop.

- Por favor, me chame de Dean. Aqui somos todos amigos.

- Vou tentar, sr... Dean.

- Agora venha, eu quero deixar você familiarizado com o laboratório e a rotina do trabalho. Martha, os pedidos para essa tarde já foram separados?

- Sim, senhor - disse a moça, indo até o balcão e pegando uma pilha de papéis. - Hoje tem bastante coisa.

- Que bom que Sev está aqui para me ajudar. Bom, podemos começar?

Os dois se dirigiram ao laboratório, onde havia pedidos de remédios de todos os tipos: desde xampu contra calvície a pílulas anticonvulsivas. Snape estava muito curioso para ver como os trouxas faziam sua medicina de ervas. Então ele descobriu que os trouxas tinham descoberto formas de fazer as mesmas substâncias encontradas nas ervas e plantas sem precisar delas.

O Sr. Winthrop foi bastante esclarecedor:

- Nossos clientes são pessoas que procuram um tratamento mais natural, sem tanta química. Seus amigos McTaggart de vez em quando aparecem - geralmente pedem florais de Bach. Edna é grande fã.

Snape teve que confessar:

- Nunca trabalhei com flores.

Winthrop riu-se:

- E com o que você trabalhava? Asas de morcego?

Snape empalideceu e olhou para o seu novo patrão, pensando que tinha sido descoberto. Mas como...?

Depois percebeu que Dean Winthrop fizera uma piada. Teve presença de espírito suficiente para responder - com sinceridade:

- Sangue de dragão é muito mais eficaz do que azevinho, posso garantir.

Winthrop riu-se gostosamente durante alguns minutos:

- Sev, você parece fechado e caladão, mas tem um ótimo senso de humor, sabia? Agora me diga, onde você estudou?

- Estudei?

- Sim, o curso de Farmácia.

- Foi... no norte. Mas eu também fiz outras coisas.

- Ah, uma mente renascentista. Escócia?

- Sim. Como soube?

- Como você não disse o nome, calculo que seja uma daquelas pequenas escolas acima de Perth. Ali se formam excelentes herbalistas.

- Foi por aquela área - desconversou Snape.

E logo mudou de assunto.