Capítulo Dezessete – A tristeza da família Weasley
Harry apoiou sua mão no encosto da cadeira de Hermione para se manter firme sobre as pernas. Seus joelhos fraquejavam, e sua cabeça rodopiava. Ele achou que tinha ficado surdo novamente. Não conseguia acreditar... Não, isso não tinha acontecido! Gina... não... ela estava bem, não estava? Dumbledore não devia estar falando sério... Mas uma voz na cabeça de Harry lhe lembrou que Dumbledore jamais brincaria com algo assim.
Hermione estava boquiaberta. Seus olhos não piscavam, e ela encarava Dumbledore como se estivesse hipnotizada pelas suas palavras. Parecendo acordar de um transe, ela moveu lentamente sua cabeça para ver Rony. E Harry viu o mesmo que ela. A carta que Rony segurava flutuava até o chão, depois que ele a soltara. Rony parecia chocado demais para esboçar qualquer outra reação.
Eles ouviram alguém pigarrear do outro lado da sala. Harry levantou os olhos e viu que a Profª. McGonagall se aproximava. Com a voz um pouco tremida, parecendo muito nervosa e penalizada pela situação, ela falou:
- Mas a Srta. Weasley certamente está sendo bem cuidada... Os Curandeiros do St. Mungus são muito bons... – Harry presumiu que "curandeiros" fossem os médicos. – ...e sempre sabem o que fazer com um paciente nesse caso, não é, Alvo?
Ela parecia procurar apoio com Dumbledore, que respondeu, sem tirar os olhos de Rony.
- Sim, Minerva está certa. A Srta. Weasley será bem cuidada e ficará bem. Já provou outras vezes que é forte.
Harry se lembrou de quando Gina fora levada pela memória de Tom Riddle para a Câmara Secreta. Gina tinha sido forte naquela época, seria agora também... Teria que acreditar nisso, mas por que esse nó na sua garganta insistia em sufocá-lo?
- Na carta, sua mãe me pediu para levá-lo até o hospital... – Dumbledore disse, encarando Rony. – Eu o acompanharei até lá.
- Nós também vamos! – Hermione disse subitamente.
Rony levantou os olhos e encarou a garota. Harry também o fez, surpreso com a amiga. Hagrid e a Profª. McGonagall também olhavam-na intrigados. Snape, que estava quieto até o momento, perguntou:
- Como? Diretor, isso não pode ser permitido e...
- Acalme-se, Severo. Eu decidirei. – Dumbledore disse firme, e se virou para olhar Hermione com curiosidade. Harry viu que ela tremeu, mas a garota respirou fundo e falou com determinação:
- Nós vamos também, não é, Harry? – ela olhou para o amigo pedindo ajuda. – Não podemos deixar o Rony sozinho, somos amigos dele!
- Hermione está certa. – Harry falou firme, entendendo o que a amiga queria dizer, e se virou para Dumbledore. – Por favor, Professor...
Dumbledore parecia considerar a idéia. Rony olhou para ele, suplicante, e o velho diretor sorriu e disse:
- Certo, vocês dois podem vir também. Será melhor.
Harry viu pelo canto dos olhos Snape bufar de irritação. Em outro momento ele ficaria contente em produzir essa frustração no mestre de Poções, mas diante da situação nem chegou a pensar nisso. Dumbledore abriu uma outra gaveta da sua mesa e pegou de lá um vidro de tinta vazio; ninguém entendeu direito o que ele queria fazer com aquilo até que o diretor pegasse sua varinha e tocasse o objeto com a ponta dela, sussurrando "Portus". O tinteiro tomou um brilho azul e tremeu por alguns instantes sobre a mesa até parar.
Dumbledore guardou a varinha entre suas vestes, e se virou para a Profª. McGonagall, parecendo irradiar aquela antiga aura de poder.
- Minerva, você cuidará de tudo aqui na minha ausência. Certamente eu já estarei de volta à noite, mas enquanto isso você assumirá meu posto. – ela assentiu, e ele se virou para Hagrid. – Na segunda gaveta da minha mesa há vários envelopes endereçados a membros da Ordem... – Harry se perguntou o que aquilo significava, mas se lembrou de que havia um grupo de bruxos, entre eles Sirius, que ajudava Dumbledore na luta contra Voldemort. - ...e eu peço que você vá até o corujal e os envie, Hagrid.
- Sim, senhor. – Hagrid falou, sua voz mais grossa do que de costume. Dumbledore se virou para Snape.
- Severo, eu manterei você e Minerva informados, e quero que os dois se encarreguem de contar aos alunos as notícias assim que eu as enviar. – Dumbledore se virou para Harry, Rony e Hermione. – Estou certo de que sabem viajar através de uma Chave de Portal.
Dumbledore apanhou o tinteiro que tinha enfeitiçado e estendeu sua mão, de modo que os três garotos pudessem vê-lo. Eles entenderam o que tinham que fazer, e Rony e Hermione se levantaram. Os três, então, tocaram a superfície gelada do vidro com a ponta dos dedos, e Dumbledore falou:
- Quando eu contar três. Um... dois...
Rony respirou mais fundo, parecendo nervoso. Hermione olhou para ele com um sorriso encorajador. Por sua vez, Harry entendia muito bem o amigo; como ele, também estava temeroso do que veria a seguir.
- ...três.
Harry mais uma vez sentiu aquela já conhecida contração no umbigo, a sensação do chão sumindo aos seus pés, enquanto seu dedo permanecia grudado ao tinteiro. Depois do redemoinho de cores que viu, sentiu novamente o chão e seus joelhos se flexionaram levemente. Ele viu que Rony e Hermione tiveram a mesma sensação, e os três puderam tirar finalmente os dedos do vidro de tinta; Dumbledore o guardou entre as vestes.
O som de uma sirene invadiu os ouvidos de Harry, que se virou para ver onde estava. Uma sala enorme, toda branca, decorada com quadros de bruxas e bruxos. Havia uma movimentação intensa no local, pessoas indo e vindo, bruxos e bruxas vestindo trajes verde-limão, que possuíam um emblema no peito em forma de uma varinha e um osso cruzados. Muitos deles faziam flutuar macas com pessoas feridas, – algumas gemendo de dor, outras sangrando – e outros faziam anotações em pranchetas. Todos falavam ao mesmo tempo, e por uma passagem sólida (parecida com a da Plataforma 9 ½) entravam constantemente mais outras pessoas, feridas ou não, apressadamente. Harry sentiu o estômago embrulhar; nunca gostou muito de hospitais. Ambientes como esse lhe davam a horrível sensação de dor, sofrimento e... morte.
Tentando não pensar nisso, Harry desviou o olhar e se virou. Dumbledore tinha se separado deles e agora estava falando com uma bruxa gorda e de aspecto rabugento em um balcão. Harry levantou o pescoço e viu a placa lustrosa e reluzente: "Informações".
Tanto Rony quanto Hermione pareciam compartilhar da mesma sensação de mal estar de Harry, como se houvesse algo grande no início da traquéia que os impedisse de falar, ameaçando sair. Harry tentou engolir isso, mas não funcionou. Rony pigarreou alto e tentou não alcançar os olhos de ninguém. Hermione parecia achar seus sapatos muito interessantes.
- Eles estão no quarto andar. – uma voz disse ao lado deles, e Harry sabia que era Dumbledore sem ao menos olhar. O diretor fez menção que o seguissem e ninguém contestou.
Eles seguiram Dumbledore através de uma porta dupla, entrando em um corredor largo, repleto de outros quadros. Vários bruxos em vestes verde-limão iam e vinham, levando pacientes; Harry supôs que esses bruxos fossem os tais "curandeiros" aos quais a Profª. McGonagall fizera menção. Um cheiro forte invadiu as narinas de Harry, que o reconheceu no mesmo instante: poderia ser bruxo ou trouxa, mas hospitais conseguiam sempre ter aquele mesmo cheiro horrível.
No fim do corredor havia dois elevadores parecidos com o do Ministério da Magia. Por um deles, o maior, entravam os curandeiros com os pacientes; pelo outro, os visitantes. Dumbledore entrou nesse e segurou a porta para que os três garotos entrassem. Eles esperaram até que uma outra bruxa, de cabelos muito brancos, quase tão desarrumados quanto os de Harry, entrasse. Ela tinha um certo ar amalucado e olhou assustada para Dumbledore, que acenou com a cabeça educadamente.
- Qual o andar?
- Primeiro. – ela respondeu numa voz fina, não mais olhando Dumbledore, e sim o teto.
O diretor apertou os botões "um" e "quatro". Rony fez um barulho esquisito no momento em que o elevador deu um tranco e começou a subir. A bruxa olhou rapidamente para ele, que engoliu em seco; ela correu o olhar para Hermione, que parecia absorta demais para reparar. Porém, seus olhos pararam em Harry, que estava ao lado de Hermione; ela primeiramente estreitou os olhos, como se tentasse se lembrar das feições dele, mas depois arregalou as orbes, e Harry notou que ela tinha pousado o olhar na sua cicatriz. O rapaz rapidamente achou a franja na testa, mas já era tarde demais; com a boca escancarada, a bruxa começou:
- Você é...
- "Primeiro andar. Ferimentos Induzidos por Criaturas." – uma voz feminina falou do alto do teto. A porta do elevador se abriu, e Dumbledore a segurou, mas a bruxa parecia não ter notado que já tinham chegado ao seu andar.
- Hem, hem. – Dumbledore pigarreou. – É o seu andar, senhora.
- Hã? – ela se virou abobada. – O quê?
- Seu andar. – ele repetiu, parecendo impaciente.
- Ah, claro. – mas ela não saiu, e se virou novamente para Harry. – Mas você é mesmo...
- Ele é. – Dumbledore confirmou, parecendo quase irritado.
- Oh! – ela pousou a mão na boca.
- Seu andar, senhora.
- Claro... – ela repetiu, saindo lentamente do elevador, parecendo mais abobada do que nunca.
Dumbledore quase socou o botão que fechava a porta depois disso. Harry bufou. Compartilhava do mesmo sentimento do diretor: odiava aquilo, e realmente não era naquele momento que precisava de pessoas encarando sua cicatriz. Achatou novamente a franja na testa. Rony e Hermione pareciam aéreos demais para esboçar qualquer reação.
- "Quarto andar. Danos por Magia." – aquela voz disse novamente quando o elevador deu mais um tranco e parou.
- Somos nós. – Dumbledore disse, e todos saíram.
Entraram em um corredor estreito, que possuía muitas janelas enormes. O chão de mármore lustroso refletia a pálida luz do sol que incidia pelos vidros. Os passos deles ecoavam nas paredes, quebrando o silêncio daquele lugar. Quando estavam quase no fim do corredor, Dumbledore parou em frente a uma porta com o número 205.
- Eu vou entrar primeiro. Por enquanto vocês ficam aqui fora. Logo eu virei chamá-los.
Depois dessas palavras, ele girou a maçaneta da porta e entrou, encostando-a em seguida. Por alguns minutos, nenhum dos três falou ou fez algo. Harry sentia como se aquele silêncio gritasse nos seus ouvidos, sua cabeça latejando, cheia de pensamentos ruins que ele não conseguia reprimir, por mais que tentasse. Os passos de Rony interromperam seu fio de pensamento, e ele viu quando o amigo caminhou até uma das janelas, apoiou os cotovelos no peitoral e enfiou as mãos nos cabelos ruivos.
Harry e Hermione se entreolharam; ambos sabiam o quanto Rony deveria estar sofrendo, mais do que qualquer um deles ali. E por mais que tentassem tirar esse pensamento da cabeça do amigo, Harry entendia como ele estava se sentindo; Rony não estava presente quando tudo aconteceu, era o único membro da família ausente, e provavelmente estava se culpando por não ter podido fazer algo. Harry achou que se sentiria da mesma maneira se estivesse em uma situação como essa e, além disso, ele se sentia um pouco assim também: uma parte sua queria ter estado presente quando tudo aconteceu, para que talvez pudesse ajudar, fazer alguma coisa...
Hermione caminhou até Rony e o abraçou por trás. Com uma voz embargada, disse, em um tom de consolo:
- Vai dar tudo certo, Rony... Você vai ver. Eu estou aqui com você e sempre estarei.
Harry viu quando o amigo se virou, seus olhos marejados, e encarou Hermione. Por alguns instantes, os dois apenas se olharam, seus rostos muito próximos. Harry abaixou a cabeça e se virou; aquele era um momento dos dois, e não era legal de sua parte se intrometer. Tentou desviar seus pensamentos da conversa dos amigos, mas era bastante complicado, já que as vozes deles ecoavam nas paredes do corredor vazio e silencioso:
- Eu preciso de você, Hermione.
- Eu também, Rony. Na verdade, nem sei como consegui ficar longe de você todos esses dias.
- Achei que fosse enlouquecer. Mione... eu sinto muito... me desculpe por ter sido estúpido com você...
- Shhh... – ela disse, e Harry viu o reflexo dos dois no chão lustroso; Hermione tinha colocado um dedo na boca de Rony, que parecia prestes a chorar novamente. – Isso não importa mais... Eu fui idiota... teimosa... também preciso te pedir desculpas... Pensando bem, eu também errei...
Rony tirou o dedo de Hermione de sua boca e segurou sua mão, beijando-a carinhosamente. Por sua vez, a garota acariciou o rosto dele com a outra mão livre.
- Promete que nunca vai me abandonar, Mione? Que vai ficar do meu lado pra sempre?
Como resposta, ela o abraçou com força. Rony fechou os olhos, encostando a cabeça nos cabelos cheios dela. Harry desviou o olhar do chão e não mais pôde ver o reflexo dos dois, mas ainda ouviu a voz abafada de Hermione:
- Eu prometo.
Os pensamentos de Harry correram até Gina. Seu estômago revirava só de pensar no que tinha acontecido com ela. Harry já tinha sentido na pele a Maldição Cruciatus e, por isso, sabia o quanto era doloroso. Não lhe restara nenhuma seqüela, mas ele sabia que a reação variava de pessoa para pessoa. Lembrou-se de uma conversa que teve certa vez com Dumbledore, a respeito dos pais de Neville; o casal Longbottom, ambos aurores, tinham sido torturados com a mesma maldição por um grupo de Comensais da Morte até enlouquecerem. Nunca se recuperaram. Harry, mais uma vez, tentou não pensar nessas coisas.
Uma porta rangeu, e Harry se virou para olhá-la, sentindo um frio na barriga. Era aquela mesma porta por onde Dumbledore tinha entrado minutos antes. Pelo canto dos olhos, Harry viu os amigos se separando rapidamente do abraço.
- Vocês já podem entrar. – Dumbledore disse, aparecendo na porta.
Rony se adiantou, respirando fundo e parecendo se encher de determinação. Mais uma vez, Harry e Hermione se entreolharam, para depois seguir o amigo. Dumbledore encostou a porta atrás deles.
Estavam numa sala grande e branca, com quatro leitos em cada canto. Havia várias pessoas ali, todas rodeando as camas. Harry viu um grupo de bruxos conversando com um paciente todo enfaixado em um dos leitos. Aquela sensação de contração no estômago se repetiu, e Harry sentia como se fosse vomitar se abrisse a boca.
Rony caminhava mais à frente, procurando com os olhos onde estava sua família. Harry, que andava atrás dele junto com Hermione, não achou muito difícil encontrá-los; um grupo de bruxos de cabelos vermelhos intensos ao redor de uma cama não era o que poderia se chamar de discreto. Harry não conseguiu ver a pessoa no leito, pois os Weasleys estavam todos amontoados ao redor dela, mas ele também não fazia muita questão. Agora que estava ali, não tinha certeza se queria mesmo ver Gina; estava sendo mais complicado do que imaginou. Era difícil até mesmo respirar.
A Sra. Weasley, que estava sentada na beira da cama, se virou para ver o filho que chegava. Harry sentiu uma dor no peito ao ver a matrona dos Weasleys: ela parecia acabada; seus olhos estavam inchados e roxos de tanto chorar, seus cabelos desalinhados e seu rosto extremamente pálido. Como todos os outros, Harry notou, ela tinha arranhões e cortes no rosto e pelo corpo. Ela se levantou, soluçando e olhando o filho. Rony apressou o passo e logo estava junto da mãe, que o abraçava com força, chorando, e dessa vez Rony parecia não se importar com a demonstração de carinho da mãe como das outras vezes. O Sr. Weasley, que estava próximo e tão acabado quanto a mulher, passou as mãos nos cabelos de Rony.
Os outros Weasleys pareciam tão pálidos e abatidos quanto os dois; Harry nunca tinha visto os gêmeos tão desanimados. Percy estava encostado a um canto, seus olhos caídos, observando atentamente o chão. Gui ainda tinha os cabelos compridos presos num rabo de cavalo, e seu rosto tinha cortes horríveis; ele olhava hipnotizado para os pais e o irmão abraçados. Carlinhos, que ainda guardava as antigas queimaduras, vestígios do seu trabalho com dragões na Romênia, olhava para o leito. Harry não conseguia ver o que ele via, mas sabia que Gina estava ali atrás. Rapidamente desviou o olhar.
Hermione o puxou para longe dali até um canto um pouco afastado dos Weasleys. Harry apenas se deixou conduzir, perturbado demais para fazer qualquer coisa. Dumbledore os acompanhava bem atrás. Quando chegaram no lugar, Harry sentiu alguém colocar a mão nos seus ombros e mexer nos seus cabelos. Assim que levantou os olhos, quase deu um pulo de surpresa: Sirius estava olhando para ele, e atrás do padrinho estava Remo, que parecia ter envelhecido uns dez anos.
- Não imaginava que viriam também. – Sirius disse, levantando a cabeça para encarar um ponto atrás de Harry. – Dumbledore?
- Eles quiseram vir. – o diretor respondeu calmamente. – Sabe como são, nem se eu quisesse poderia impedi-los.
Sirius sorriu levemente e encarou Harry.
- Sim, eu sei.
Harry queria falar com o padrinho, mas sua voz não saía. Foi Hermione que perguntou o que ele estava pensando:
- Por que vocês também estão aqui?
- Nós estávamos na estação. – Remo respondeu. – Fomos lá ajudar.
Harry desviou o olhar deles para ver os Weasleys novamente. Rony tinha se separado dos pais agora e estava junto com os outros, vendo Gina. Harry novamente sentiu aquela contração no estômago e respirou um pouco mais fundo. O aperto da mão de Sirius nos seus ombros foi mais forte.
- Como ela está? – a voz de Harry saiu esquisita, como se não a usasse há muito tempo.
- Não muito bem. – Sirius respondeu.
- É complicado enfrentar uma maldição como essa, e as reações são muito diversas. – Remo explicou. – Espero que não, mas o provável é que ela vá ter que passar muito tempo aqui ainda.
Fred saiu do meio dos Weasleys e se aproximou deles. O antigo ar brincalhão obviamente tinha sumido do seu rosto. Ele parou em frente a Harry e deu um tapinha nas suas costas.
- Venha, Harry. Você deve querer vê-la também.
Harry engoliu em seco. Não sabia se queria ou não ver Gina. Sua cabeça estava uma confusão completa, e ele sentia a garganta seca. Vê-la? Por um segundo sentiu medo. Medo de não suportar, de não agüentar vê-la do jeito que estava.
- Fred, eu não quero atrapalhar vocês... depois...
- Esquece isso, cara. – ele retrucou. – Você era o namorado dela há duas semanas, é claro que quer vê-la. E não vai atrapalhar... Como a mamãe diz, você já é da família. – ele se virou para Hermione. – Assim como você, Hermione.
Harry e Hermione não tiveram outra escolha senão segui-lo. Sirius apertou um pouco mais forte o ombro de Harry antes que ele saísse. Fred contornou a cama, abrindo espaço entre Jorge e Carlinhos para que Harry se aproximasse. Hermione estava bem atrás dele. Respirando rápido, suas mãos tremendo de nervoso, Harry se aproximou da beirada da cama.
- Oh! – Hermione exclamou, levando as mãos à boca.
Harry sentiu os olhos molhados, e seus lábios tremeram tanto que ele teve que mordê-los para pararem. Os Weasleys estavam olhando para ele, mas isso não importava. Harry correu os olhos por Gina; ela estava toda coberta, com exceção do rosto e dos braços, que estavam sobre o lençol. Seu rosto estava branco como papel, e seus lábios, tantas vezes beijados por Harry, eram finos e pálidos; os cabelos vermelhos, espalhados sobre o travesseiro, sobressaíam imensamente e pareciam ser a única parte dela realmente viva. Os olhos castanhos estavam cerrados, e Harry não poderia dizer, pela expressão do seu rosto, se ela estava tendo sonhos bons ou ruins; sua face era vaga, porém tranqüila, e sua excessiva palidez fazia Harry se sentir horrível por dentro.
Alguns ferimentos contrastavam com a sua pele alva, e havia um ferimento muito feio na sua mão esquerda, a mais próxima de Harry; ela estava enfaixada, mas o pano que a enrolava estava manchado de sangue. Harry levou sua mão trêmula até a dela, fechando-a com delicadeza dentro da sua. Nunca tinha sentido a pele de Gina tão fria; sua mão, antes de um toque suave e quente, parecia mais uma pedra de gelo que estava se derretendo. Algum tempo atrás, Gina apertaria sua mão com força, procurando sentir Harry, mas ela não correspondia ao toque do rapaz agora.
Os lábios de Harry tremeram freneticamente, e ele fechou os olhos, sentindo uma lágrima que se formou no canto do seu olho escorrer silenciosamente pelo seu rosto. Quando os reabriu, encontrou novamente o rosto pálido de Gina, e não conseguiu deixar de pensar em tudo que passou com ela; foi como se um filme passasse muito rápido em sua cabeça, e ao mesmo tempo em câmera lenta. Harry viu desde aqueles dias distantes, quando ela era apenas a garotinha que apontava para ele excitada na Plataforma 9 ½ e enterrava o cotovelo na manteigueira quando o via, até as vezes em que eles se beijaram, e o dia em que ela disse adeus com lágrimas nos olhos.
Uma sensação de aperto se formou no peito de Harry, dificultando sua respiração, como se ele estivesse engasgado... Sua visão estava começando a ficar turva, e ele achou que fosse sufocar; a cabeça latejava e ele tinha ficado surdo. Sua mão tremia mais do que nunca, e ele apertou a de Gina com mais força; suas pernas bambeavam, e por um momento ele pensou que elas fossem ceder.
Harry sentia os olhares dos Weasleys sobre ele, e parecia que a Sra. Weasley iria começar a dizer algo, que o rapaz nunca escutou. Ele se virou bruscamente, esbarrando em Hermione, que estava bem atrás dele, e passou por ela rapidamente, contornando a cama e saindo quase correndo da sala.
Quando se viu novamente no corredor, ouviu seus passos ecoarem no chão de mármore enquanto ele andava muito rápido, aos tropeços, sem ver direito aonde ia, pois seus olhos estavam molhados, e sua visão mais turva do que antes. Ele não conseguia apagar a imagem de Gina em sua cabeça, deitada, imóvel... uma figura que destoava da menina alegre e tímida que ele conhecia. Doera muito vê-la daquela maneira; seu coração estava pesado como se houvesse uma pedra de chumbo instalada ali; ele puxava o ar com muito esforço para conseguir respirar e piscava inúmeras vezes para limpar os olhos das lágrimas que se formavam.
Harry dobrou um corredor e encontrou uma escada. Desceu alguns degraus até não agüentar mais e se sentar em um deles, afundando a cabeça entre os joelhos, as mãos enfiadas nos cabelos rebeldes. Respirou mais fundo, ainda tentando reprimir o choro, mas foi inevitável; as lágrimas começaram a escorrer livremente pelo seu rosto, molhando sua camisa e os jeans. Ele soluçava descontrolado, seu peito doendo a cada novo soluço, seus lábios tremendo enquanto puxava o ar com força pela boca, já que seu nariz começava a entupir; sentia o gosto salgado das lágrimas penetrando por seus lábios trêmulos e já molhados, e sua cabeça parecia que explodiria.
Chorava como lembrava de ter chorado poucas vezes; não era como quando chorou por ter terminado com Gina, era diferente. Perdê-la aquela vez era uma outra situação; tinham terminado, mas ela ainda estava bem, com saúde até mesmo para ignorá-lo nos corredores e dizer-lhe aquelas frases imprecisas com seu tom de voz ligeiramente frio. Ah, o que ele não daria para ouvi-la dizendo mesmo essas palavras que faziam seu coração doer! Doeria muito menos do que agora...
Harry sentia como se estivesse perdendo Gina definitivamente, como se realmente não tivesse volta. Seu coração parecia estar se rasgando, e ele soluçava cada mais forte e mais descontrolado. Por mais que Gina tivesse dito que não, Harry ainda sentia que a amava... ou o que quer que esse sentimento pudesse ser chamado. Ela era importante para ele, e ao vê-la daquela maneira, ele sentiu como se alguém estivesse arrancando um pedaço seu, impiedosamente. Harry lembrou do toque gelado da mão dela, e um pensamento insano lhe ocorreu: e se ela morresse? NÃO!, uma voz desesperada gritou, ecoando dentro de seu cérebro. Isso não podia acontecer, isso não iria acontecer! Ele não podia sequer imaginar o que faria se Gina deixasse de existir... Soluçou ainda mais forte, fazendo seu peito doer tanto como se estivesse sendo aberto com uma faca, as lágrimas ainda caindo dos seus olhos ardidos, algumas pingando no chão, outras entrando salgadas na sua boca, e as restantes terminando de encharcar sua roupa.
- Harry...
A cabeça do rapaz estava tão confusa e desorientada, que ele não conseguiu identificar o dono da voz. Vagamente percebeu mãos segurando seus ombros e o puxando para si em um abraço. Harry enfiou o rosto no peito dessa pessoa, molhando com suas lágrimas a roupa dela. Soluçava tão descontroladamente que fazia o corpo daquela pessoa tremer junto com o seu e com a subida e a descida descompassada do seu peito. Uma mão esfregava suas costas enquanto outra afagava seus cabelos, de um jeito que ele conhecia.
Não foi preciso que a pessoa dissesse absolutamente nada para que Harry o reconhecesse, mesmo estando tão imensamente perturbado no seu sofrimento. Aquela maneira de mexer nos seus cabelos, acariciando-os ao mesmo tempo em que os bagunçava; ainda que estivesse caindo no abismo de sua dor, Harry reconheceu Sirius ao seu lado mais uma vez.
Por muito tempo eles ficariam ali, apenas abraçados. Sirius continuava afagando os cabelos do afilhado, sem dizer uma única palavra, apenas mostrando com seus gestos que estava ali para ajudar. Harry não conseguiria falar nem que quisesse, ainda soluçava e tremia muito, chorando como uma criança no colo do pai. Foi exatamente isso que Harry sentiu naquele momento, como se fosse seu próprio pai que estivesse ali, confortando-lhe apenas com sua presença e seus gestos afetuosos.
Aos poucos, Harry começou a se acalmar. As lágrimas pareciam se tornar cada vez mais escassas, como se a fonte delas estivesse secando finalmente. Seu corpo ainda tremia, mas os soluços eram menos intensos e mais esparsos, a respiração do rapaz começando a acompanhar a de Sirius, tornando-se mais tranqüila e compassada. A mente de Harry começou a clarear, fazendo-o voltar à realidade. À medida que os soluços diminuíam, ficava mais fácil respirar, ainda que o nariz estivesse entupido pelo choro.
Quando Harry conseguiu abrir os olhos, a primeira visão que teve foi a do braço do padrinho, que ainda o envolvia. Virou lentamente a cabeça, acomodando-se no abraço, inconscientemente fazendo Sirius perceber que estava de volta.
- Está mais calmo?
- Um pouco. – a voz de Harry saiu mais rouca e anasalada, e ele sentiu a garganta arranhar com a tentativa de formar palavras.
Sirius respirou um pouco mais fundo, e a cabeça de Harry acompanhou o movimento de subida e descida do peito dele.
- Talvez você quisesse ter ficado sozinho, mas eu não consegui evitar. Tive que vir atrás de você...
- Tudo bem. – a voz de Harry estava tão baixa que se assemelhava muito mais a um mero sussurro. – Foi bom você ter vindo.
Mais uma vez os dois fizeram silêncio até que Sirius recomeçasse a falar:
- Harry, eu quero que você saiba que não está sozinho...
- Mas é como eu me sinto...
- Mas não é verdade! – Sirius foi categórico. – Harry, você sabe que...
- Eu estou cansado, Sirius! – Harry aumentou o tom de voz, para depois continuar, sussurrando: - Eu estou cansado... eu acho que não vou mais agüentar...
Sirius estalou os lábios, mas não disse nada. Harry sentiu que precisava continuar:
- Eu não suporto mais tudo isso... Até quando vou precisar ver as pessoas ao meu redor sofrendo? Pessoas que não tem nada a ver com essa guerra! Por que ele tem que machucar tudo que eu mais prezo nesse mundo? Não basta tudo que ele já fez? – Harry respirou mais fundo, sentindo a garganta arranhar novamente. – Eu vejo as pessoas ao meu redor sofrendo, morrendo... Elas se vão enquanto eu fico aqui, sem poder fazer nada! É tão frustrante, Sirius... Eu queria tanto que isso acabasse...
- Vai acabar sim, Harry... um dia...
- Mas quando? – o rapaz fechou os olhos com força. – Parece que esse dia nunca vai chegar... E mesmo que um dia chegue, até lá, quantas pessoas eu ainda vou ter que perder? Fico pensando em qual será o próximo... e isso me corrói por dentro! Às vezes eu queria ser outra pessoa... ou simplesmente não existir...
- Nunca diga isso de novo! – Sirius falou em um tom duro, saindo do abraço e segurando Harry fortemente pelos ombros. Ele encarava o afilhado com determinação no rosto. – Nunca, nunca mesmo repita isso, ou sequer pense assim! Você tem que continuar existindo, entendeu?
- Pra quê? – Harry gritou. – Pra continuar vendo essas coisas? Pra perder mais pessoas que eu amo? Eu não agüento mais ver isso, Sirius, eu já vi demais! Eu não quero mais...
- Há pessoas que não conseguiriam mais viver sem sua presença! – ele o interrompeu, suspirando profundamente. – Eu sou uma delas...
Harry abaixou a cabeça, preferindo não encontrar os olhos do padrinho. Passaram-se alguns minutos de silêncio, até que ouviu quando ele suspirou novamente, e pediu:
- Olha pra mim, Harry.
O rapaz não se moveu. Sirius o sacudiu pelos ombros.
- OLHA PRA MIM!
Lentamente, Harry levantou a cabeça e encarou o padrinho dentro de seus olhos castanhos, que brilhavam ainda com determinação, mas agora ligeiramente tristes. Sirius respirou fundo e umedeceu os lábios antes de dizer:
- Você não sabe o quanto me dói vê-lo dessa maneira, Harry... Eu sei muito bem o que você deve estar sentindo, porque eu já me senti assim também, milhares de vezes. Se você pensa que eu não entendo essa sua revolta, está completamente enganado. Eu passei por isso também. – ele parecia estar reunindo coragem para dizer algo doloroso. – Como você acha que eu me senti quando seus pais morreram? – Harry engoliu em seco. – Os meus melhores amigos tinham morrido, e pra falar a verdade, eu nunca me perdoei por ter convencido-os a mudar o fiel de segredo; eu sempre vou me culpar pela morte deles...
- Mas você não teve culpa! – Harry interferiu.
- O que importa? O que interessa se eu tive ou não culpa? No final, eu nunca vou me perdoar de qualquer maneira, eu sempre vou achar que poderia ter sido diferente se eu tomasse outra decisão... – Harry ia tentar argumentar, mas Sirius não permitiu. – Os meus melhores amigos morreram, eu perdi minha família, minha liberdade, meus amigos que restavam... O meu mundo ruiu, e o que foi que eu pensei? Você acha mesmo que eu encarei isso com naturalidade? Eu fiquei desesperado, achei que não fosse suportar! Harry, você nunca imaginou que... – ele riu brevemente. - ... é claro que eu nunca contei isso pra ninguém, hoje me envergonho, mas... Harry, eu... uma vez... – ele suspirou longamente. – Uma vez, eu... tentei me matar.
Harry deixou o queixo cair.
- O quê?
Sirius soltou o ar longamente pela boca, soltando os ombros de Harry.
- Fazia pouco mais de um ano que eu tinha sido mandado para Azkaban. Não fosse bastante todo o peso que eu já carregava nas minhas costas, aqueles malditos dementadores, com aquele poder horrível deles de sugar a felicidade, lembravam-me a todo momento de tudo que eu tinha feito, de todas as coisas pelas quais eu tinha passado... Eu estava começando a enlouquecer, eu sentia isso... Naquele lugar, qualquer um se sente sujo, triste, acabado... Eu me sentia mais que isso... me sentia culpado, eu tinha remorso... das coisas que fiz e das que não fiz também.
Sirius fechou os olhos e encostou a cabeça na parede oposta; Harry percebeu o quanto era difícil para ele falar. O padrinho abriu novamente os olhos, mas ficou encarando vagamente o teto. Uma luz fraca iluminava o lugar, onde predominava a escuridão. O rosto de Sirius ficava parcialmente encoberto pelas sombras, mas Harry ainda conseguia ver a sua expressão pesada.
- Como você, Harry, o que eu não daria para ser outra pessoa também? Eu estava desesperado, não havia mais volta, entende? Estava tudo acabado para mim... Eu não sabia o que estava acontecendo fora daquelas paredes fétidas, mas eu imaginava, e eram as piores coisas... Isso era quando eu estava acordado, e quando nenhum dementador estava por perto; quando eles chegavam, eu via novamente aquela noite de dia das bruxas, quando tudo aconteceu... Eu via Tiago e Lílian, eu via você... Eu me via perseguindo Rabicho, e quando ele fugiu... Então eu dormia, e essas imagens invadiam meus sonhos, me trazendo pesadelos horríveis! Ninguém consegue suportar isso... Eu também sentia que não conseguiria...
Harry não se atreveu a dizer nada quando Sirius parou de falar por um segundo, parecendo procurar fôlego ou apenas reunir forças para prosseguir com aquelas recordações. Era claro que Harry imaginava como deveria ter sido difícil para Sirius todos aqueles anos em Azkaban, mas nunca tinha imaginado o que ele estava lhe contando.
- Eu também me sentia como você, Harry. Não queria mais existir, não queria nunca ter existido. Pra quê? Pra continuar ali, naquele lugar? Pra continuar relembrando aquelas coisas? Além do mais, de que adiantaria permanecer vivo? Ninguém se importava mais comigo... as pessoas que poderiam se importar estavam mortas, e as que se importaram um dia achavam que eu era um assassino... O que eu ainda tinha para fazer? Nada, a não ser sofrer... E por quê, por que continuar a viver se eu não era nada mais do que os restos do que um dia tinha sido? Não havia explicação para permanecer vivendo...
"Era um dia tão escuro quanto qualquer outro em Azkaban. Eu não sabia se era dia ou noite, porque chega uma hora em que você não consegue mais distingui-los; eu só sabia que o tempo se arrastava, parecia que nunca ia passar... Como todos os dias, eu ouvia os gritos daquelas pessoas desesperadas, loucas... Eu não gritava; não achava forças para isso. Podia sentir o cheiro de carne podre daquele lugar, e aquele frio congelante... parecia que o meu sangue estava virando gelo nas minhas veias, e eu até torcia pra que isso acontecesse, mas não acontecia..."
"A certa altura, um dementador veio trazer a comida. Eu sequer toquei naqueles restos podres, pois me importei mais com o copo d'água. Nunca tinha pensado nessa possibilidade, mas ela me ocorreu naquele momento. Eu peguei o copo, joguei a água fora, e por alguns instantes fiquei encarando-o, pensando no que fazer. Os gritos ainda me ensurdeciam, e ninguém ouviria um copo quebrar no meio daqueles lamentos... Eu o quebrei com minhas próprias mãos, e o vidro penetrou na minha carne, o sangue escorrendo entre meus dedos, e por um momento, eu tive certeza que estava vivo. Porque eu já achava que estava morto, mas depois de ver meu próprio sangue, eu vi que estava vivo. Então eu senti que precisava morrer de verdade, não só morrer por dentro, e sim por fora também..."
"Por muito tempo eu fiquei encarando o maior dos cacos que eu tinha separado; ainda me lembro como ele era, tinha uma ponta enorme, e eu passei os meus dedos sobre ela... Outro corte se abriu, profundo, e mais uma vez eu vi o sangue escorrendo de mim. Um dementador passou por ali naquele mesmo instante, e eu fiquei quieto, prendendo a respiração. Eles não podiam me ver, não enxergavam o que eu estava prestes a fazer, mas eles sentiam... Ele sentiu o cheiro de sangue, e ficou muito tempo ali parado, na frente da minha cela, sugando o ar e soltando aquele bafo fétido... Sugando minha felicidade e meus pensamentos... Eu me concentrei em não pensar no que queria fazer, para que ele não descobrisse, mas não tinha certeza se ele conseguiria ver esse meu pensamento. Não era um pensamento feliz, era uma obsessão... Por estar tão obcecado em fazer aquilo, foi a primeira vez que eu não lembrei de nada ruim por estar perto do dementador."
"Demorou muito tempo até que ele desistisse e fosse embora, flutuando. Eu esperei mais um pouco, e depois voltei ao que estava fazendo. Olhei novamente para o caco de vidro na minha mão ensangüentada, e o segurei com força, determinado. Eu iria fazer aquilo, não havia quem ou o que pudesse me impedir. Estiquei o braço esquerdo, deixando o pulso à mostra. Aproximei o vidro da minha pele suja, pronto para enfiá-lo na minha carne. Mas quando eu decidi de uma vez fazer isso, lembrei de uma coisa."
- Lembrei de um dia distante, quando Tiago tinha me convidado para ir à casa dele. Lílian não estava naquele dia, e ele e você estavam sozinhos. Você ainda era muito pequeno, e Tiago ficava bastante inseguro de cuidar de você sozinho. Então ele me chamou, mesmo que eu não servisse de muita coisa. – Sirius, depois de muito tempo, sorriu, mesmo que tristemente. – Naquele dia a gente não fez nada direito... Tentamos fazer você comer um negócio lá com batatas amassadas que o Tiago fez, mas a gente só se tocou que você ainda só podia tomar leite quando você, depois de ter recusado um monte de vezes, fez o prato flutuar e a comida voar bem na nossa cara...
Sirius mordeu os lábios, tentando segurar o riso, mas não conseguiu. Harry se contagiou também, imaginando a cena, seu pai e seu padrinho todos sujos de comida...
- Juro que tentamos te dar banho, mas você acabou dando um banho na gente, porque saímos mais molhados do que você do banheiro... – Sirius riu novamente, um riso alegre e descontraído. Harry também sorria, rindo, imaginando tudo isso. – O pior não foi isso; o pior foi quando nós fomos te trocar... Ah, aquilo foi a situação mais bizarra da minha vida... Harry, você fez xixi na gente!
Harry riu, assim como Sirius. Depois de um tempo, o padrinho respirou um pouco mais fundo, e sua expressão se tornou séria novamente. Ele olhava Harry profundamente:
- Quando você finalmente dormiu, eu e Tiago ficamos conversando no seu quarto, apenas te olhando no berço. Tiago contava animado das suas novas façanhas, apesar de eu ter acabado de vê-las por mim mesmo... Mas... teve um momento em que Tiago se virou para mim, sério como eu dificilmente o via, e disse, com essas mesmas palavras: "Sirius, se um dia eu faltar para o Harry... Se algum dia eu não estiver aqui... nem eu, nem Lílian... eu quero que você cuide do meu filho, como eu cuidaria. Você é a única pessoa em que eu posso confiar para isso. Prometa."
Uma lágrima se formou no canto dos olhos de Sirius. Harry estava boquiaberto, sem conseguir emitir som algum. Quando Sirius recomeçou, sua voz estava tremida:
- E então, eu estava lá, de volta a Azkaban. A ponta mais afiada do vidro ainda estava encostada na minha pele. E eu fiquei ali, lembrando da promessa que fiz ao meu melhor amigo... Lembrando de quando eu te carreguei nos braços, Harry... Eu não podia quebrar minha promessa... Não podia desistir, não podia fugir do meu destino... Eu ainda era um grifinório, não era? Covardia deveria ser a última das minhas atitudes... Eu tinha que enfrentar...
"Eu atirei o vidro com a maior força que os meus braços cansados conseguiam, e ele passou pelas grades, caindo no chão e se espatifando por inteiro. O barulho atraiu um dementador, e para não sentir todas aquelas sensações que ele me causava, eu me transformei num cachorro e me encolhi num canto da cela, onde ninguém pudesse me ver ou me sentir. Quando eu voltei à forma humana, eu tinha uma obsessão, que me fez permanecer lúcido nos próximos dez anos: eu queria sair, me vingar de quem tinha me posto naquele lugar e, principalmente, eu tinha que cumprir minha promessa e cuidar de você, como Tiago cuidaria."
Harry não conseguiu dizer nada. Apenas permaneceu por muito tempo ali, encarando o padrinho. Por sua vez, Sirius também o olhava, parecendo pensar no que ainda tinha que dizer. Com a voz sussurrante, ele terminou:
- Eu não sou seu pai, e nunca vou poder substituí-lo, nem pretendo. Tiago é insubstituível, e eu sei disso. Mas eu posso tentar fazer do meu jeito, pra cumprir essa promessa. Posso não ser perfeito, mas eu dou meu melhor. E eu sinto que é o meu dever impedi-lo de desistir; é difícil, eu sei, mas tenho certeza também de que você é forte, talvez mais forte do que eu e muitos. Por isso não pode desistir. Eu já te disse uma vez que se nós estamos aqui, é porque ainda tem algo que devemos fazer, algo que temos que cumprir e que só nós podemos fazer... Você não pode desistir... Além disso, há quem precise de você também. Jogar tudo isso para o alto é um erro, do qual você se arrependeria para sempre se o cometesse. E não há nada pior do que arrependimento... Eu sei disso, Harry, porque me arrependo até hoje de certas coisas. Não dê chance para que isso aconteça com você também.
Estranho como Sirius sempre conseguia convencer Harry de tudo.
Os corredores do castelo de Hogwarts estavam mais escuros e silenciosos do que nunca naquela noite, na qual Harry e Hermione caminhavam silenciosamente, lado a lado, seus passos ecoando nas paredes ao redor, enquanto o vento sussurrava pelas frestas das janelas entreabertas.
Eles tinham voltado há pouco tempo de St. Mungus, através da mesma Chave de Portal que usaram para ir. Dumbledore ainda os tinha retido algum tempo a mais na sua sala, explicando-lhes que não comentassem com ninguém a saída deles de Hogwarts. A essa altura da noite, o Salão Comunal estaria vazio, e não precisariam explicar nada para ninguém. Porém, quando acordassem no dia seguinte e fossem feitas perguntas, para todos os efeitos, Harry e Hermione teriam passado todo o tempo ajudando Rony a se aprontar para ir embora.
Isso era uma mentira, mas não completamente. De fato, Rony realmente tinha ido embora, ou melhor, ele tinha ficado no hospital, junto com os pais e irmãos. Dumbledore o dispensou das obrigações escolares pelo tempo que os Weasleys achassem necessário. Rony iria ficar na Toca, fazendo visitas regulares ao St. Mungus para ver Gina, e caberia a Harry e Hermione pegar todas as matérias para o amigo, coisa que nenhum deles fez questão de se preocupar – nem Hermione – diante da situação.
Além de Rony, provavelmente alguns outros alunos se ausentariam do castelo. Não foi apenas Gina que se feriu no ataque à Estação de King's Cross; pelo que Harry sabia, houve outros alunos ou parentes de alunos que se machucaram, e os estudantes de Hogwarts envolvidos certamente iriam para casa para terem notícias ou verem seus familiares.
Harry não poderia dizer que estava totalmente recuperado do que viu no hospital. Obviamente, ele ainda estava bastante abalado, mas não tão desesperado como antes de conversar com Sirius. O padrinho lhe confiara mais um segredo seu, acreditando em Harry, o que o fez ter a certeza de que não poderia decepcioná-lo. Novamente, teria que enfrentar mais essa.
Ao mesmo tempo, uma revolta e uma enorme raiva cresceram dentro dele. Novamente, Voldemort tinha ferido alguém que lhe era querido. Mais uma vez, ele tinha lhe atingido. Harry sentia como se quisesse acabar com ele com suas próprias mãos, machucá-lo tanto quanto ele estava lhe machucando...
"- O que você faria se tivesse a chance de acabar com Voldemort? Nesse instante?
- Eu o mataria."
Será que era isso que queria mesmo? Às vezes, como em momentos como esse, tinha certeza que sim. Era o que ele merecia. Além disso, nunca haveria paz se ele não morresse, haveria? Mas também... Harry teria mesmo que fazer isso? Era o que desejava? Fazer justiça por suas próprias mãos... Vingar-se por tudo que Voldemort já tinha feito a ele? Revidar pela morte de seus pais, sua avó... pelo que acontecera a Gina? Harry não tinha certeza, mas em certos momentos, poderia quase responder que sim. Ele merecia, era o que ele tinha que receber em troca por tanta maldade... Mas será que... isso o fazia parecido com Voldemort?
Certa vez, o próprio Voldemort tinha lhe dito que eram parecidos... Fisicamente... Psicologicamente...
Não, isso era só coincidência... Quantas pessoas estranhas, que nunca se viram, eram parecidas no mundo?
"- Anh... Uma vez, minha mãe disse que... não existem coincidências."
Claro que existiam! Se não fosse coincidência, seria o quê, afinal?
- Harry, eu estou falando com você!
- O quê?
Hermione estava postada com as mãos na cintura em frente ao retrato aberto da Mulher Gorda, revelando a passagem para a Grifinória. Ela tinha as sobrancelhas franzidas, mas que não escondiam os olhos roxos; Harry sabia que ela tinha chorado também.
- Você não ouviu o que eu disse?
- O que você disse?
- Ei, até quando vocês dois vão ficar discutindo? E até quando eu vou ter que ficar aqui escancarada? – a Mulher Gorda perguntou irritada. – Se não se importam, eu quero dormir, e era o que deveriam estar fazendo!
Hermione suspirou e puxou Harry pelo braço para que entrassem no salão comunal. O quadro girou rapidamente atrás deles, fechando a passagem. Harry se viu, então, no vazio, silencioso e gelado salão. A lareira estava apagada, e ainda podia se ver os restos de carvão e cinzas nela. A janela aberta deixava o vento gelado da noite penetrar, tornando o ambiente ainda mais frio. Hermione se adiantou até ela e a fechou, fazendo com que o lugar ficasse um pouco mais agradável.
Harry se deixou cair em um sofá, deitando de qualquer jeito. Uma de suas mãos estava largada na direção do chão, enquanto as costas da outra foram parar sobre sua têmpora; ele sentiu a cicatriz saliente, mas não se preocupou com ela no momento. Fazia já algum tempo que tinha parado de doer.
Dessa maneira, podia encarar o teto parcialmente iluminado pela fraca luz da lua que ultrapassava o vidro da janela. Como sempre, elas dançavam, formando imagens no teto. Houve vezes em que Harry e Gina ficavam sozinhos no salão comunal, encarando essas imagens e tentando dar formas imaginárias a elas. Não... lembrar de Gina doía. Duplamente.
Depois de fechar todas as janelas, Hermione se juntou ao amigo, sentando no chão, próxima a ele. Harry viu a amiga abraçar-se aos joelhos e permanecer encarando vagamente um ponto na parede oposta. Harry se sentiu egoísta pela segunda vez no dia; a primeira tinha sido quando Sirius lhe contou sua dolorosa história. Hermione também estava sofrendo; por Rony, por Gina... talvez por ele também.
- Como você está?
- Hã? – ela se virou, distraída, parecendo surpresa que lhe tivessem feito essa pergunta. – Desculpe, Harry, mas eu não entendi...
- Eu perguntei como você tá, Mione...
- Ah... Bem, eu acho... Mas eu estou mais preocupada com você. Depois que saiu daquele jeito da sala, você sumiu e... não parecia bem.
Harry quase sorriu. Sim, aquela era sua amiga Hermione, sempre se preocupando com as pessoas... ou com os estudos.
- Sirius foi falar comigo. – Harry falou, voltando a encarar o teto. – Ele me ajudou bastante, não se preocupe.
- Que bom. – ela suspirou, e eles ficaram em silêncio por algum tempo. – Fico pensando no Rony, em como ele vai ficar agora...
- Ele está com a família dele, Mione. Eu não sei direito, mas acho que numa hora dessas é melhor estar com a família. Nós fizemos o possível, ou melhor... você fez o possível.
Ela soltou uma risada baixa e triste. Harry se virou para vê-la; seu corpo tremia, e ela soluçava.
- Eu me senti tão ruim, Harry... Fui tão idiota! – ela fechou os olhos com força, as lágrimas começando a rolar pelo seu rosto. Harry sabia que ela tinha chorado, mas não tinha visto; Hermione deveria ter chorado sozinha, longe de Rony.
- Ei... – ele se sentou do lado dela no chão, colocando desajeitado uma mão nas suas costas. – Mione, isso não é verdade...
- Claro que é! – ela insistiu, mais lágrimas rolando enquanto ela olhava para Harry, ainda soluçando. – Eu briguei com o Rony com uma coisa tão boba, e só enxerguei que estava sendo burra nesse momento! Numa hora dessas...
- O importante é que você estava ao lado dele quando ele mais precisava! Mione, você não tem que se culpar... estava com ele, não é? Você o ajudou, o apoiou! Isso é o que importa!
- Lembra que você me disse que poderia ser tarde demais, Harry? Pois então, foi tarde demais...
- Não foi! Mione, eu já disse... você estava ao lado dele, e isso era o melhor que poderia fazer. Agora ele está lá, resolvendo os problemas dele, mas logo ele volta, quando estiver tudo bem... – Harry respirou mais fundo; tentava fazer com que suas palavras soassem verdadeiras, mas em seu íntimo não acreditava nelas. - ...e aí vocês dois vão continuar juntos como sempre!
Hermione abaixou a cabeça, suspirando.
- Obrigada, Harry. Por estar tentando me animar, mesmo sendo você que esteja precisando disso... – Harry ia dizer algo, mas a amiga o interrompeu, levantando o rosto e perguntando: - Você acha mesmo que as coisas vão dar certo?
Harry se encostou no sofá.
- Eu não sei. – ele respondeu sinceramente. – Ando tão... desacreditado... Eu realmente queria que fosse assim, mas as coisas não são sempre como queremos, não é?
- É verdade...
- Quanto tempo você acha que vai demorar?
- O quê?
- Pra Gina se recuperar... – "se é que ela vai...", uma vozinha disse em sua cabeça.
- Não faço idéia. Perguntei isso para o Prof. Lupin, mas ele não tinha certeza... Três, quatro meses... talvez mais... depende de como ela vai reagir. Tem pessoas que não são afetadas por essa maldição, outras já são... é tudo muito... impreciso.
- Foi o que eu imaginei. – Harry respirou um pouco mais fundo. – Eu queria dizer para ela que ainda gosto muito dela...
Hermione o olhou tristemente.
- Você vai ter sua oportunidade. – ela o encorajou.
- Assim espero. Tomara... que não seja tarde demais...
- Agora vou ser eu que vou ter que insistir que não será, Harry? – Hermione brincou.
- Parece que sim. – ele sorriu.
Ela soltou o ar longamente pela boca.
- Acho que vou dormir, estou tão cansada... Nunca pensei que um dia pudesse ser tão longo.
Harry a observou se levantando. Ela o olhou intrigada.
- Você não vai dormir também?
- Vou ficar aqui mais um pouco.
- Não vá passar a noite inteira acordado, hein? Vá pra cama.
- Pode deixar...
- Ok, vou acreditar em você. Boa noite.
- Boa noite, Mione.
Ele ainda pôde ouvir os passos dela se perderem enquanto ela subia as escadas. Sua cabeça doía, e ele sentia o corpo todo dolorido. Como Hermione tinha dito, o dia realmente fora longo. Fechou os olhos e lembrou das faces de todos os Weasleys. Aquela era a última família que merecia sofrer desse jeito no mundo, ele pensou. Por que tudo isso tinha que acontecer?
Por mais que repetisse a pergunta, sabia que a resposta nunca viria.
Depois de muito tempo, ele resolveu seguir para seu quarto. Foi desanimador encontrar a cama de Rony, ao lado da sua, vazia. Tentando atender ao pedido de Hermione, ele se forçou a dormir, mas aquela noite foi tão longa quanto o dia, e dormir foi o que Harry menos fez.
