Capítulo Vinte e Quatro – A Maldição da Terra das Sombras

Os pés de Harry tocaram o chão sólido, e ele se sentiu ligeiramente tonto. A cabeça ainda o incomodava muito. Na verdade, parecia que estava doendo ainda mais. Mesmo assim, ele se forçou a levantar os olhos e pôde ver que estava de volta à sala redonda, vizinha à sala de Defesa Contra as Artes das Trevas.

Seus olhos logo encontraram Samantha; ela estava agachada ao lado da Penseira, recolhendo com a varinha os fios prateados dos seus pensamentos e colocando-os novamente na cabeça. Harry sentiu uma onda de fúria ao vê-la; no mesmo instante, ele viu novamente todas aquelas cenas da Penseira: Samantha ameaçando Hermione, ela se transformando em Nagini, o beijo entre ela e seu pai, a decepção de Sirius... E mais do que tudo, o momento em que Harry descobriu que ela era filha de Voldemort...

O silêncio na sala era tanto, que dava a impressão de ser palpável. Samantha continuava colocando seus pensamentos na cabeça cuidadosamente, enquanto Harry estava dividido entre despejar tudo o que queria para ela, ou esperar para saber o que ela iria fazer. Depois de tudo que ele viu, talvez fosse melhor ser, ao menos dessa vez, prudente. Mas a sua vontade era mesmo gritar para ela que sabia de tudo.

Samantha finalmente terminou o que estava fazendo e, lentamente, se levantou. Harry notou que ela não guardou a varinha, que ainda estava segura na sua mão direita. Ela deu alguns passos e, dessa vez, parecia estar evitando olhá-lo. O barulho dos saltos ecoou pela sala silenciosa.

Harry acompanhou a caminhada dela com o olhar. Seu coração batia tão rápido que chegava a doer. Não era medo; era adrenalina, raiva, vontade de vomitar na cara dela tudo o que estava entalado na sua garganta. Todas aquelas coisas que ela fez... Ele precisava dizer tudo aquilo para ela! Como ela pôde ter sido tão desleal com Sirius? Como teve a coragem de tentar separar seus pais com aquele plano nojento? Como... como poderia estar em Hogwarts sendo filha de Voldemort?

Ela finalmente parou de andar e se virou. Harry manteve seu olhar firme enquanto ela o encarava daquele jeito que ele tanto detestava. Havia fúria no brilho do azul escuro das suas orbes, mas havia também mais que isso; havia nostalgia. E era como se ela pudesse ver através dele. Harry tinha a desconfortável sensação de que ela poderia até mesmo ler seus pensamentos se quisesse, ou então ver seus sentimentos. Parecia que ela estava vendo-o e ao mesmo tempo não estava; ou então estivesse vendo mais do que Harry nele mesmo.

- Então... – ela começou lentamente, sua voz rouca ecoando pelas paredes e pelo teto. – Você entrou na minha Penseira e viu os meus pensamentos?

- Achei que você já tivesse percebido isso quando me viu lá dentro. – Harry respondeu friamente. – Ou será que agora, além de mentirosa e dissimulada, também está cega?

- Eu só quero saber... – ela sibilou perigosamente, sua voz passando rapidamente do usual tom rouco para um agudo alto. - ...com que direito você ousou invadir a minha privacidade?

- Com o mesmo direito que você ousou trair Sirius! – ele falou mais alto do que ela, seu sangue subindo quente pelo seu corpo. – Com o mesmo direito que você bolou aquele plano sórdido para separar meus pais e, também, como ameaçou covardemente a Hermione!

Ela abriu um largo sorriso cínico, e seus olhos se estreitaram maliciosamente.

- Ah, então você viu tudo isso? Imagino que deva ter sido um belo espetáculo... Viu toda a minha vida, não é? Você se divertiu, Harry? VOCÊ ACHOU ENGRAÇADO?

- EU ACHEI NOJENTO! – ele respirou fundo. – Você é nojenta! Como pôde, como teve coragem? Todas aquelas coisas que você fez... Eu não consigo entender como alguém pode ser tão falsa, tão... desleal! Você fez tantas coisas ruins que até me dá vontade de vomitar ao lembrar... Você enganou tanta gente, você... VOCÊ É FILHA DO VOLDEMORT!

As palavras de Harry ecoaram pelas paredes, como se a frase estivesse sendo repetida várias vezes por um Harry invisível. Samantha segurava com tanta força a varinha que sua mão estava ficando vermelha.

- VOCÊ NÃO TEM MORAL PARA ME DIZER ISSO!

- Por quê? – Harry perguntou em desafio. A vontade dele era essa mesma: desafiá-la, acabar com aquela altivez, provar que ele não tinha medo dela. Porque não tinha mesmo. – Você vai negar? Vai dizer que não é filha dele? Vai mentir novamente, inventar outra história? Eu sinto muito, Samantha, mas eu não acredito mais em você. Aliás, eu nunca deveria ter acreditado...

Ela mordeu o lábio inferior, parecendo estar tentando se controlar. Seus olhos estavam cerrados, pressionados fortemente, e ela respirava muito rápido. Harry sentiu que tinha pisado no calo dela.

– Escuta... – ele recomeçou a falar com cinismo na voz. – Eu gostaria muito de saber, estou com essa curiosidade agora... Como você consegue enganar tão bem as pessoas? Porque a sua vida é mentir, não é? Você mentiu para Sirius, aliás, ele foi quem você mais enganou e, da forma mais covarde, eu acho. Você enganou meu pai, também. Ah, esqueci, você também enganou Snape, porque eu sei que você mentiu para ele dizendo que não era uma Comensal da Morte. Hum, talvez você não tenha mentido nessa parte, não é? Afinal, você não é uma simples Comensal, você é a filha do grande chefe... – Harry caçoou. Samantha parecia estar se segurando para não falar nada, mas sua mão sobre a varinha tremia perigosamente. – Quem mais você enganou, hein? Ah, você enganou Dumbledore, porque ele não teria te deixado lecionar aqui se soubesse quem você é e o que você é. Você tentou me enganar também, não é? Eu quase caí, sabe? Quase pensei que você fosse uma pessoa legal... Um pouco estranha, mas legal. Você aprendeu tudo isso com o papai, foi? Ou já vem do sangue?

- CALA A BOCA! – ela abriu seus olhos subitamente, e eles queimavam de raiva. – VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE DIZER ISSO!

- E por que não? Só porque você não suporta ouvir?

- PORQUE VOCÊ TAMBÉM TEM O SANGUE DELE, O SANGUE DE VOLDEMORT!

As palavras caíram sobre Harry como se pesassem toneladas. Ele ficou estático, apenas olhando para a mulher à sua frente. Era como se tivesse ficado surdo momentaneamente. Ele não tinha ouvido aquilo... não tinha...

"O seu sangue não pode se misturar ao dele. Há perigo de a Profecia Sagrada ser cumprida se você fizer isso."

"Eu estou grávida."

Não... Isso tudo era invenção da sua cabeça! Não havia chance de aquilo ser verdade! Ele era filho de Lílian... Ele tinha olhos verdes como os dela... Ele não tinha nada a ver com Voldemort, ele não tinha o sangue dele!

Ele era somente Harry... só isso.

- O que você disse?

Harry falou lentamente, como se cada palavra lhe sugasse um pouco do seu sangue. Samantha suspirou e girou em seus calcanhares. Harry tentava encontrar o olhar dela, mas ela se desviava. Ele conseguia ouvir seu próprio sangue pulsar dentro das veias, tal era o silêncio.

- O QUE VOCÊ DISSE? O QUE VOCÊ SABE SOBRE MIM?

- É fácil para você me julgar, não é? – ela disse subitamente. Harry mordeu os lábios que tremiam. – É tão simples quando se vê as coisas de fora...

- NÃO MUDA DE ASSUNTO! – Harry gritou tão ferozmente, que gotas de saliva pularam de sua boca. – Eu quero saber...

- Eu não o culpo, Harry. – ela o interrompeu, virando-se para encará-lo nos olhos e novamente fugindo do assunto. – Você não é o primeiro nem o último que vai jogar tudo isso na minha cara. Todos fazem a mesma coisa, mas ninguém olha para si, ninguém tenta entender...

- Não há nada para entender! Eu já vi tudo! Você fez tudo aquilo de caso pensado, você...

- Eu fiz mesmo! Não vou negar. – ela riu levemente. – Eu quis mesmo separar seus pais no passado, Harry. E sabe por quê? Porque eu não suportava vê-los juntos.

- Sirius tinha razão. – Harry disse rapidamente. – Você tinha inveja da minha mãe. Por isso você fez tudo aquilo, por isso você queria o meu pai...

- O que você sabe sobre o amor? – ela o cortou novamente. – Você é muito jovem para entender o que significa essa palavra. Amor... É uma palavra forte demais. As pessoas dizem "eu te amo" muito fácil. Difícil é o momento em que percebemos que essa frase é uma mentira.

"Amor... amor é outra coisa!"

"Eu não te amo."

- Então é isso que você acha? – ele perguntou lentamente, encarando o chão sem vê-lo. – O amor é uma mentira. Você sabe lidar muito bem com a mentira, não?

- Você não entende...

- EU ENTENDO MUITO BEM! – ela se calou. – Quem não entende é você. Assim como o seu "querido pai", você não consegue amar. Não consegue enxergar quando duas pessoas se amam nem se elas estiverem bem na frente do seu nariz. Os meus pais se amavam, e você não tinha o direito de interferir nisso!

- Eu sei que eles se amavam. Mas uma adolescente de dezessete anos não entende isso. – Harry abriu a boca para dizer algo, mas ela não permitiu. – Diga-me, Harry... Você nunca gostou de uma garota que gostava de outro? E nunca passou pela sua cabeça que esse outro deveria sair do caminho, para que você tivesse uma chance?

Harry não respondeu. Ele se lembrou de quando gostava de Cho, e ela só tinha olhos para Cedrico. Às vezes, passava pela sua cabeça o que aconteceria se Cedrico deixasse o caminho livre para Cho notá-lo. Mas nunca faria algo tão baixo como Samantha fez. Nunca!

- Eu duvido que isso nunca tenha acontecido com você... – ela disse simplesmente.

- Eu nunca faria algo como o que você fez.

- Então é porque você não gostava de verdade. Quem gosta vai até as últimas conseqüências...

- Você está enganada! Se você gostasse mesmo do meu pai, você se sentiria bem em vê-lo feliz!

- EVANS NÃO O MERECIA! – ela gritou, e os cabelos caíram sobre seus olhos. – Lílian, a perfeitinha, a preferida... Ela...

- VOCÊ NÃO SUPORTAVA VER QUE ELA TINHA VENCIDO! – ele respirou fundo. – Era exatamente isso que acontecia. Você tinha inveja dela, você queria ser ela!

- E SE EU QUISESSE? – os olhos dela brilhavam sinistramente. – Ela sempre foi amada de um jeito que eu nunca fui...

- VOCÊ TINHA SIRIUS!

- NÃO ERA O BASTANTE! – ela fechou os olhos. – Sirius nunca entendeu o que se passava dentro de mim... Ele nunca foi capaz de tentar entender...

- Só por isso você não tinha o direito de fazer o que fez com ele!

- Você acha que Sirius era um santo, por acaso? – ela abriu os olhos subitamente e riu daquele jeito escandaloso. – Sirius dizia que me amava, mas ele era um egoísta. Você imagina quantas vezes ele me deixou esperando porque ia fazer alguma coisa com os amigos? Você sabe quantas vezes ele me traiu?

Harry pensou por alguns instantes antes de responder.

- Se era assim, por que você não o deixou? Você tinha todo o direito!

Ela abaixou os olhos e não respondeu de imediato. Seus longos cabelos cobriam seus olhos, de modo que Harry não podia tentar interpretar o que o brilho deles significava.

- Você não entenderia. – ela murmurou.

Harry riu.

- Você sempre diz isso. O que eu acho mesmo, é que você quer esconder que nunca amou ninguém. Você é incapaz de amar.

- Talvez eu seja mesmo incapaz... de ser amada.

- Oh, mas que tocante... – Harry caçou, cruzando os braços. – Eu estou emocionado! Realmente me dá muita pena de você...

- EU NÃO QUERO QUE SINTA PENA! – ela gritou bruscamente. – Nem estou pedindo que entenda, mesmo porque eu sei que isso não vai acontecer...

- O que aconteceu entre você e meu pai? – ele perguntou. Ainda precisava apagar aquelas dúvidas de sua cabeça. – O que realmente aconteceu entre vocês?

Samantha umedeceu os lábios antes de responder. Seus olhos brilhavam daquele jeito obscuro.

- Seu pai foi meu primeiro garoto. – ela falou séria, e havia um brilho diferente nos seus olhos. Era mágoa, rancor... – Meu primeiro homem. Em todos os sentidos.

- O que você quer dizer com isso? – Harry perguntou começando a entrar em pânico, sua cabeça se enchendo de pensamentos. – Como assim "em todos os sentidos"?

- Ora, você quer que eu te diga tudo? – Samantha perguntou em tom de sarcasmo, cruzando os braços e rindo ligeiramente. – Você provavelmente já viu na Penseira quando eu e Tiago nos beijamos, e agora quer que eu te conte como foi quando fizemos amor?

Mais uma vez, Harry ficou estático. Ele tinha ouvido direito? Samantha e seu pai... Seu pai e Samantha... Era demais para sua cabeça saber uma coisa dessas... Se isso realmente aconteceu, então, aquele filho poderia ser mesmo... ele? NÃO! Claro que não! A sua mãe era Lílian. E ele não tinha sangue de Voldemort também.

"Não existem coincidências."

Quando Harry levantou os olhos, Samantha tinha se aproximado dele. Instintivamente, Harry recuou e acabou encostando na parede gelada. Ela parou de andar quando eles estavam a apenas dois palmos de distância. Sua mão direita ainda segurava a varinha. Harry desviou seu olhar da varinha para os olhos dela; novamente ela o encarava daquela maneira desagradável. Um olhar profundo, sinistro, obstinado...

- Você realmente é muito parecido com Tiago. – ela sussurrou, sua voz mais rouca do que nunca. – Mas você, ainda assim, tem os olhos da sua mãe. Lílian tinha esses mesmos olhos verdes... os mesmos...

O silêncio era tão profundo, que Harry conseguia ouvir seus batimentos descompassados do coração. Ele não desviava seus olhos do azul escuro dos dela, mesmo que sua cabeça dissesse que o melhor era sair dali. A parede estava gelada atrás de suas costas, enquanto ele se encostava mais nela. Suas mãos estavam suadas, assim como sua têmpora.

- Mas você tem algo diferente, também.

A mão esquerda de Samantha subiu até o rosto de Harry, fazendo com que ele sentisse os dedos longos e gelados dela. Estranho como eles também estavam suados. A cicatriz ardeu levemente, mas ele não se importou. Por que não conseguia dizer nada? Ele estava paralisado, como se cada membro do seu corpo tivesse perdido os movimentos. Harry queria se mover, mas não conseguia; queria desviar o olhar do dela, mas parecia impossível. Era como se saísse uma magia do azul escuro dos olhos dela que ele não conseguia desfazer. Ele não queria permanecer ali, ele queria ir embora, queria olhar para outro lugar, mas era impossível. Uma vez que tivesse mergulhado naquele azul, não conseguiria mais sair.

Ele sentia que estava se afogando...

O ar parecia estar faltando à sua volta. Ele tentava respirar, mas cada vez mais o ar estava sumindo, e era como se ele estivesse dentro d'água. Harry teve a sensação desesperadora de estar submergindo, sempre mais...

Afundando...

Samantha passou lentamente a ponta dos dedos pelos lábios do rapaz, e ele sentiu como se um bloco de gelo subisse por toda sua espinha, até chegar à nuca, fazendo com que os pêlos se arrepiassem.

A água estava fria...

Queria sair dali, precisava sair, mas seus membros não queriam obedecer ao cérebro. Ele estava sufocando, e seu corpo parecia completamente congelado.

Ele não conseguia enxergar a luz... Não conseguiria subir mais...

Ela se aproximou mais dele, e foi aí que ele sentiu ainda mais a necessidade de gritar que não queria aquilo. Ele sentiu a mão gelada dela na sua nuca, pressionando-a e forçando-o a abaixar a cabeça até ela. Ele sentiu a respiração quente dela no seu rosto, e conseguia ouvir o som do ar entrando e saindo pelas suas narinas.

Podia sentir a água entrando pelo seu nariz, penetrando nos pulmões...

Harry conseguia ver os cílios dela, de tão próximos que estavam. Ela subiu a mão direita até a cabeça dele, e o rapaz sentiu a mão dela, suada e fria, cravando-se entre seus cabelos, ao mesmo tempo em que a varinha pinicava sua orelha. Quanto mais ele olhava para aquele azul dos olhos da mulher, mais ele sentia que estava se afogando neles e perdendo o ar. Seu peito doía pela força que fazia para respirar, mas era inútil.

Ele estava afundando cada vez mais... Era impossível subir agora...

Ele conseguiu sentir as batidas do coração dela quando seus corpos se tocaram. A essa altura, seu cérebro não funcionava mais. Parecia que o oxigênio não irrigava mais seus neurônios, fazendo com que ele não distinguisse mais o certo do errado. Vagamente, ele percebeu que estava enlaçando a cintura dela com os braços e puxando-a ainda mais para si quando encostou suas mãos nas costas bem delineadas. Ela respirou mais forte, mas continuava olhando-o firmemente, sem piscar.

A ponta dos seus narizes se tocaram levemente, e ela girou sua cabeça para o outro lado. Harry não pensava mais. Os narizes roçaram, e ele sentiu o cabelo dela no momento em que subiu a mão direita pelas suas costas. Um cacho negro caía-lhe sobre o rosto, e ele se moveu lentamente quando ela expirou o ar; a mecha entrou sorrateiramente na boca entreaberta de Harry, que sentiu os fios dos cabelos negros dela, ligeiramente molhados, tocarem sua língua.

Harry viu, lentamente, tudo ficar escuro. Notou, vagamente, que estava fechando os olhos. Seu cérebro não trabalhava mais. Ele não tinha escolha, não tinha querer. Assim como seu corpo anteriormente, sua cabeça tinha paralisado também. Ele não entendia que era errado, nem mesmo que não queria aquilo. Simplesmente fazia, agia... Ele só sabia que aquilo estava acontecendo, e que não podia parar.

Samantha roçou seus lábios na bochecha dele até chegar, finalmente, nos lábios. Inicialmente, eles apenas se tocaram delicadamente, mas logo se abriram, permitindo que as línguas entrassem e se acariciassem entre si, separando-se depois para explorar a boca de cada um, desconhecida até o momento. Era um beijo forte, firme, ardente, profundo, diferente... Era estranho, mas ao mesmo tempo prazeroso. Era até mesmo suculento... Era inexplicável.

Ele tinha se afogado.

Doeu quando as unhas dela cravaram na pele sob os cabelos rebeldes e empapados de suor. Em resposta, Harry apertou ainda mais seus dedos na cintura dela, como que tentando prensá-la contra si. Ele sentiu que seu corpo estava descongelando, e passando rapidamente para uma temperatura fervente, quase febril.

O ar faltava mais do que nunca, mas dessa vez era pela intensidade do beijo. Harry nunca provou um beijo como aquele. Era um beijo experiente. Ele tinha a plena noção de que estava beijando, não uma garota, mas sim uma mulher.

À medida que seu corpo ia ficando mais quente, os pensamentos de Harry começavam a entrar em ordem. Ele começou a perceber o que estava acontecendo, lentamente. Ele estava beijando Samantha, sua professora, uma mulher que tinha idade para ser sua mãe... A mulher que já fora namorada de Sirius, a mulher que já tinha se relacionado com seu pai na juventude... Aquela que tinha feito tudo aquilo... A filha de Voldemort...

Samantha parecia insaciável. Nenhum deles tinha mais ar para prosseguir com o beijo, mas ela não parava. Queria mais e mais, e Harry sentia como se estivesse absorvendo a energia dela... Seu peito se enchia dessa energia, e ele começava a doer estranhamente. Era como se estivessem torcendo seu coração, espremendo-o, arranhando-o... Esmagando-o.

Harry começou a ter consciência do que estava fazendo. E ele não podia continuar! Queria parar, precisava... Ele odiava aquela mulher por tudo que ela fez com seus pais, com Sirius... Aquele beijo não podia continuar. Não havia amor ou paixão ali, havia raiva e mágoa. Era perigoso...

Ele precisava emergir...

Porém, ao mesmo tempo, uma parte dele queria saborear aquele beijo. Ele queria sugar aquela energia, senti-la... Queria provar aquela fruta, queria sentir o seu gosto amargo na boca. Era prazeroso sentir sua mão nas costas dela, era bom tocar seu cabelo. Seu coração não respondia ao que estava acontecendo, mas seu corpo sim. E sua cabeça não parava de pensar...

Se olhasse para cima, poderia ver a luz... Talvez, se nadasse até lá, pudesse encontrar o ar... Ele não agüentaria mais, tinha que respirar...

Harry subiu suas mãos, lentamente, até os ombros dela. Ele tocou seus cabelos longos, sentindo os cachos entre os dedos. O beijo não parava. Ele tentou descolar seu corpo do dela, mas ela o puxou ainda mais e apertou com mais força sua nuca. As línguas não paravam de se esbarrar por nem um segundo sequer. Havia suor nos rostos dos dois. Harry sentia todo o seu corpo suar.

Estava conseguindo nadar. A água não estava mais tão fria e pesada como antes. O topo estava próximo... Ele já quase conseguia sentir o ar...

- AH!

O grito de Samantha ecoou na sala silenciosa, no instante em que Harry a empurrou com toda a força que conseguiu juntar. Ela cambaleou para trás, parecendo ligeiramente entorpecida pelo beijo. Sua boca ainda estava entreaberta e avermelhada. Ela olhava para Harry profundamente, mas ao mesmo tempo dava a impressão de que milhares de pensamentos passavam velozes pela sua mente. O aperto ao redor da varinha estava frouxo, e ela estava quase caindo, lentamente.

PLOFT.

Harry caiu de joelhos no chão. O ar entrou rapidamente pelo seu nariz, invadindo seus pulmões de uma maneira voraz e destrutiva. Imediatamente, ele sentiu seu coração ser perfurado, como se milhões de agulhas estivessem sendo enfiadas sem piedade nele. Harry levou rapidamente a mão direita ao peito, mas era inútil. Seu coração estava sendo esmagado, e ele não podia fazer nada.

Ele levantou lentamente os olhos até Samantha. Queria gritar, queria saber o que estava acontecendo, mas sua voz morreu na garganta. O aperto se intensificava cada vez mais. Seu corpo inteiro tremia. Ele estava se desesperando... aquilo era morrer?

O olhar de Samantha estava confuso. Ela não parecia realmente decidida como sempre. A varinha escorregava dos seus dedos. Harry tentou se aproximar dela, mas quase caiu de vez no chão ao fazer isso, e acabou desistindo. Ele cambaleou, mas continuou a olhar a mulher. Ela abriu seus lábios, mas os fechou depressa. Ou Harry estava enlouquecendo, ou ele realmente conseguiu ler nos lábios dela:

"Não desista!"

Samantha levantou seu braço lentamente. Ela tinha fechado seus dedos em torno da varinha com força agora. Harry acompanhou o movimento dela com o olhar, seu coração doendo mais do que nunca. Seus olhos focaram a ponta da varinha apontada para seu coração, que ele tentava proteger com a mão. Os olhos de Samantha estavam opacos.

- Faça uma boa viagem, Harry...

Ele fechou os olhos. Em seus piores pesadelos, tinha se imaginado sendo morto por Voldemort, mas agora entendia que estava errado. Morreria, não pelas mãos do bruxo, mas sim pela filha dele. Que ironia... Voldemort não conseguiu matá-lo, no final das contas. Teve que deixar o trabalho para a filha. Tantas vezes tentou, e sem sucesso. Samantha conseguiria de primeira...

- Soturnus Sognus!

Foi como se Harry levasse um choque elétrico. Seu corpo paralisou por completo, seus ouvidos ficaram surdos, seu sangue parou de correr e seu coração não batia mais. Ele não sentia mais dor... Tinha morrido?

Ele abriu os olhos assustado. Estava de pé, sozinho. "O que era aquele lugar?", ele se perguntou. Não havia nada ali, absolutamente nada. Não havia som, luz, ar... não havia nem céu, nem terra. Nem ao menos parede, chão ou teto. Não havia pessoas. Somente ele, Harry, e o nada.

Aquilo era o nada? Harry nunca conseguiu imaginar o que seria o nada. O "nada" é uma palavra muito vaga para se entender seu significado. Mas aquilo... aquele lugar, definitivamente, era o nada. Não fazia diferença olhar para cima ou para baixo. Harry não sabia se o lugar onde seus pés estavam era o chão ou o céu. Era impossível entender aquilo.

Mas ele estava vivo. Ou será que aquilo era morrer? Mas Samantha não tinha gritado o Avada Kedravra...

"Avada Kedravra não é a única forma de matar."

O que ela tinha gritado?

"Soturnos Sognus."

E o que isso significava?

A maldição Soturnus Sognus. A maldição da Terra das Sombras...

Mas então, essa era a tão temida "Terra das Sombras"? Um lugar onde não existia nada, nem ninguém? Mas, pelo que Harry sabia, a maldição levava a pessoa de encontro às suas piores lembranças. Por que isso não estava acontecendo?

No instante em que Harry pensou nisso, o cenário se transformou. Foi como se tintas estivessem pintando formas e cores ao seu redor. Borrões de todos os tons se misturavam, até formarem imagens, pessoas, objetos. No início, tudo estava desfocado, como se a tinta ainda estivesse molhada, mas aos poucos tudo ia ficando mais claro e definido, até que parou.

Um cheiro desagradável invadiu as narinas de Harry. Um odor que ele conhecia e odiava. Cheiro de hospital. Aquele mesmo odor forte, enjoativo... que embrulhava o estômago e dava vontade de vomitar. Um cheiro que o remetia à idéia de sofrimento... dor... morte.

Havia um chão branco sob seus pés. Ele podia ouvir vozes. Levantou a cabeça e notou que estava em uma grande sala branca. Havia quatro leitos em cada canto, ocupado por pacientes que gemiam e gritavam. As pessoas que estavam ao redor das camas choravam. Harry respirou fundo. Não estava gostando daquilo.

Seus olhos voaram até um grupo de pessoas de cabelos vermelhos, todos ao redor de uma cama no fundo da sala. Os ouvidos de Harry foram invadidos por gritos e choros. Seu coração doeu ao ver aquilo.

Ele viu a Sra. Weasley chorando descontrolada junto ao Sr. Weasley. Os dois pareciam acabados e derrotados. Os pés de Harry o impulsionaram até a cama, e ele não sabia se era por sua vontade ou se estava sendo controlado. Ele viu todos os Weasleys. Eles não pareciam os mesmos. Os gêmeos não sorriam, Percy gritava, e lágrimas escorriam por seu rosto. Gui e Carlinhos choravam juntos, encarando o leito. Rony parecia revoltado, gritava com Hermione ao seu lado, e seus olhos estavam roxos de tanto chorar.

Harry se lembrou o que era aquilo, e não queria ver. Era o dia em que ele tinha visitado Gina inconsciente no hospital, depois do ataque à Estação Kings Cross. Ele não queria ver Gina daquele jeito novamente, mas seus pés caminharam sozinhos até o leito.

Surpreso, ele viu a si mesmo saindo correndo da sala. Foi estranho se ver, mas Harry não percebeu isso no momento. Pôde ver a expressão de desespero e dor no seu rosto. Lembrava perfeitamente de tudo que tinha sentido naquele dia. Impotência... tristeza.... culpa. Culpa por não ter podido ajudar, por não ter estado lá, no momento em que era mais necessário.

Ele se aproximou mais da cama. Não queria ver, mas não conseguia evitar, tampouco. Harry se postou entre Percy e Gui, e pôde ver Gina. Ela estava deitada, quase inteiramente coberta, mas ainda era possível ver seu rosto. Ela não estava apenas pálida, mas sim, quase roxa... Uma aparência de...

Harry deu um pulo para trás e fechou os olhos. Ele não queria ver isso, não conseguia! Gina tinha uma aparência de morta. Mas ela não estava morta, ele sabia que não estava! Ela estava bem agora, não estava assim... Ela não tinha morrido, estava viva!

Mais choros e gritos. Harry tapou os ouvidos. Não ouviria mais aquilo, não veria mais aquilo! Quando abrisse novamente seus olhos, estaria em outro lugar, qualquer lugar! Não queria ver aquele rosto... pálido, quase roxo, novamente... Não o veria mais.

Ele viu o céu escuro sobre si. Ouviu o barulho de chuva, e sentiu o cheiro de terra molhada. Seus pés tocavam uma poça d'água, misturada à lama. Ele tinha conseguido, tinha saído daquela lembrança... Mas onde estaria agora?

"Eu quero dizer exatamente isso que você ouviu. Acabou. O nosso namoro acabou."

Harry se virou. Vozes ecoavam na sua cabeça. Estariam dentro ou fora dela? Não dava para distinguir. Frases se repetiam... "Acabou. Acabou..." Ele se virou e viu duas pessoas. Eles estavam próximos ao lago. Uma garota gritava com... com ele, Harry!

"Oh, não...", Harry pensou desesperado. "Somos eu e Gina! Não... não essa lembrança... Eu não quero ver isso de novo..."

Ele fechou os olhos. Precisava sair dali, não queria ver o que tinha acontecido naquela noite. Ainda doía... A ferida ainda estava aberta, e ele não sabia se cicatrizaria algum dia. Ele ainda se sentia machucado... ainda tinha raiva e mágoa. Não queria atiçar ainda mais esses sentimentos...

- PARE DE FINGIR!

A voz estava mais clara. Parecia vir de fora da sua cabeça, mas ele sabia que era de dentro. Não queria abrir os olhos... mas não conseguia permanecer de olhos cerrados.

- Cínico... – Gina dizia, soluçando. - Pare com isso, Harry, fica cada vez pior...

Ele viu a si mesmo, tentando explicar, desespero e confusão estampados no rosto molhado pela chuva insistente. Gina gritava, negava, dizia que ele era um mentiroso. Que tinha se enganado com ele...

- EU TE ODEIO!

- Você tem que me ouvir, Gina!

Ela permaneceu olhando para o rapaz à sua frente, com mágoa e raiva... Ele estava desesperado. Raios riscavam o céu, e o barulho de trovões invadia os ouvidos de Harry.

"Me desculpe, mas eu... Eu não te amo..."

Lágrimas finas e quentes escorreram pelo rosto de Harry. Ele passou lentamente as costas das mãos sobre seu rosto, enquanto seus olhos estavam grudados em si próprio, que também chorava.

"Eu não te amo..."

- EU TE ODEIO!

Harry viu a si mesmo, praticamente se arrastando até a árvore, aquela árvore, que agora mais parecia apenas um tronco morto e sem vida. Ele se apoiou na árvore, os olhos fechados. A chuva caía impiedosamente.

"Você vai entender que também não me ama, e que o certo é acabarmos logo com isso antes que nos machuquemos..."

- EU JÁ ESTOU MACHUCADO! EU NUNCA VOU TE PERDOAR!

Harry deu dois passos para trás. Não suportava mais ver aquilo. As vozes ecoavam nos seus ouvidos e na sua cabeça. Foi como se a ferida tivesse sido ainda mais aberta, escancarada... Por que Gina tinha feito isso? Por que ela não o amava? Ela o odiava?

Ela lhe chutou, pisou nele... Por quê? Ainda a amava? Ela não merecia. Ele não a amava. Amava? O que era o amor? Ele tinha mágoa, muita mágoa... Nunca poderia perdoar ou esquecer. Seria mais fácil se ela nunca tivesse lhe enganado.

"Você não está pronto para entender..."

Ele nunca entenderia.

As tintas pintaram novamente o cenário. Harry não se importou. Ainda escutava aquelas frases na sua cabeça. Ele limpou os olhos. Jurou que nunca mais choraria por Gina, e era o que ia fazer. Nunca mais...

Quando Harry se deu conta, percebeu que estava em outro lugar. Era um lugar grande, uma caverna. Harry viu um corpo no chão, e havia uma poça de sangue ao seu redor. Uma senhora de cabelos brancos estava nos braços de um garoto, que olhava assustado para ela.

"Eu só lamento... não poder te contar a verdade por mim mesma, olhando nos seus olhos, Harry... Tudo porque fui covarde... Porque tive medo..."

A respiração de Harry estava descompassada. Sua avó, Arabella, olhava profundamente para o Harry de quinze anos, que a segurava nos braços. Harry sentiu um vazio ao ver aquilo. Lembrou-se de tudo que sentiu... ele nunca poderia imaginar... Nunca lhe passou pela sua cabeça que aquela senhora, que segurava nos braços, fosse sua avó, mãe de sua mãe. Pior... ele não tinha se dado conta de que ela morreria pouco tempo depois.

- Eu preciso te pedir, Harry... Eu preciso te pedir... perdão...

- Por quê?

- Pelo jeito que eu te tratei... Por eu ter exigido tanto de você nas minhas aulas... Por eu ter te enganado toda a sua vida, e você nunca ter sabido que eu era uma bruxa... Por... – ela sorriu levemente. - ...por eu nunca ter feito um bolo para você que não estivesse encruado...

Harry conseguiu sorrir. – Isso é besteira, não importa...

- Importa sim... Importa mais do que possa imaginar... E você vai entender mais tarde... Só... diga que... me perdoa... eu preciso ouvir...

- Eu... perdôo a senhora...

Harry não limpou as lágrimas dessa vez. Ele deixou que elas escorressem, quentes e grossas, pela sua face. Por que isso tinha que acontecer? Por que ele tinha que perder todas as pessoas de que gostava? Ele sentia, sentia que estava sozinho... Não importava que sua cabeça lhe dissesse que ainda existiam pessoas ao seu redor que o amavam, que ele amava. Ele sabia, bem no fundo, que ficaria sozinho. Que todas lhe deixariam até que só ele restasse, só e amargurado, longe de todos que queria bem.

Seria melhor se ele morresse, afinal. Pelo menos não teria que passar por tudo isso. Voldemort era mesmo um idiota. Por que não o matava de uma vez? Por que ele tinha que escapar sempre? Ele queria morrer. Queria acabar com tudo isso, queria ver seus pais... queria poder estar com eles como jamais esteve. Queria nunca mais sentir dor, saudade... Por que ele simplesmente não morria?

Estava em um lugar escuro. Olhou ao redor. Era noite. Havia túmulos. Um... cemitério? Sentiu uma dor aguda na cicatriz. Estranhamente, seu corpo estava totalmente dolorido.

"Ele ouviu uma voz fria e aguda dizer: 'Mate o outro'.

Um zunido, e uma segunda voz que arranhou o ar da noite:

- Avada Kedrava!"

A dor na cicatriz de Harry aumentou tanto, que ele teve ânsias de vômito. Tinha medo de abrir a boca por causa disso. Ele viu um relâmpago verde iluminar a escuridão da noite. Um homem baixinho e careca tinha acabado de lançar o feitiço. Sua cabeça, tonta pela dor, girou até ver quem o feitiço tinha atingido.

"Cedrico Diggory estava estatelado no chão, os braços e pernas abertos. Morto."

Era culpa dele. Cedrico morreu por sua, somente sua, culpa. Se ele não tivesse pego a taça junto com ele... Se tivesse aceitado a proposta de Cedrico e pego a taça sozinho... Ele não teria morrido. Seus pais não teriam perdido o único filho. Muita gente não teria chorado... Era tudo culpa sua.

Harry aspirou e expirou o ar várias vezes. Sua cabeça rodava. Seus narizes estavam entupidos. Levou as mãos ao rosto. Por quê? Por que ele, justamente ele? Não poderia ser qualquer outro? Não... era ele que tinha que passar por tudo isso. Seria bom esquecer essas coisas. Não queria mais lembrar de nada.

Um uivo penetrou nos ouvidos de Harry. Ele viu a lua cheia no céu e a sombra de um lobo no chão. Ao olhar para o lado, viu um lobisomem se empinando, batendo as enormes mandíbulas. Harry viu Sirius, perto um Harry de treze anos, se transformando em um enorme cão semelhante a um urso.

Ao mesmo tempo em que o cão se atracava com o lobisomem, Rabicho mergulhava para apanhar a varinha esquecida de Remo. Harry viu Hermione gritar, Rony cair no chão, ele mesmo apontar sua varinha para Rabicho, gritando:

"- Expelliarmus! Fique onde está!"

Mas já era tarde demais. Harry não foi rápido o bastante, e Pettigrew se transformara. O rato correu pelo gramado, seu rabo arrastando no chão. Se tivesse sido mais rápido... se tivesse impedido Rabicho de se transformar, se o tivesse agarrado e impedido que escapasse...

Se tivesse feito isso, Sirius poderia ter sido posto em liberdade desde aquela época...

Sirius e Remo tinham parado de brigar. O lobo tinha corrido pela escuridão, sendo seguido de perto pelo cachorro. Harry correu no encalço deles, enquanto via, perto de si, ele mesmo junto com Hermione correndo também. Quando chegou no lago, sentiu aquele frio esquisito penetrando no seu corpo.

Dementadores, centenas deles, os rodeavam. Harry escutou gritos... Dentro ou fora da sua cabeça, ele não sabia mais. Não tinha mais nenhuma noção do que era real ou não. Ele viu suas tentativas frustradas de produzir um patrono. Sirius estremeceu, rolou de barriga para cima e ficou imóvel no chão, pálido como a morte. Os gritos ecoavam nos ouvidos de Harry.

Ele tapou os ouvidos, mas não conseguiu deter os gritos na sua cabeça. Viu quando o dementador ergueu suas mãos podres e abaixou o capuz... Viu o rosto dele, uma pele sardenta e cinza, sem olhos... apenas uma boca, escancarada, como um grande buraco que queria sugar tudo à sua volta.

Um par de mãos pegajosas se fechou em torno do pescoço de Harry, enquanto o Harry de dezesseis anos podia até mesmo sentir o hálito fétido do dementador... Suas mãos nojentas em torno do seu próprio pescoço... Ele levou suas próprias mãos ao seu pescoço, e foi como se sufocasse, assim como estava acontecendo com o outro Harry...

Harry fechou os olhos. Não conseguia respirar direito. Sua cabeça rodava ao ver todas aquelas lembranças. Aquilo tinha que parar... O que mais ele teria que ver, afinal? Será que quando abrisse seus olhos estaria em outro lugar, qualquer lugar, ou novamente em mais uma daquelas lembranças? Tinha que escapar, tinha que sair dali...

O céu estava avermelhado quando Harry abriu os olhos. Ele assumia tons pastéis, distribuídas em cores alaranjadas e amareladas. O sol se punha lentamente no horizonte, e os ouvidos de Harry se encheram pelas risadas que ecoavam naquele fim de tarde.

Sentiu o cheiro de grama, e ouviu o ranger de um velho balanço, num constante vai e vem. Assim que se virou, viu um menino solitário, sentado no balaço e movendo lentamente o corpo de um lado para outro. Harry suspirou; sabia muito bem quem era aquele menino.

Aproximou-se do garotinho, que tinha uns seis anos de idade. Ele sabia muito bem a idade dele. Sentou-se no balanço vazio ao lado do menino e se pôs a observá-lo. Os cabelos rebeldes e negros caíam-lhe sobre o rosto, atrapalhando sua visão, mas ele parecia não se importar. Era extremamente magro e baixinho, e seus olhos verdes profundos tinham um certo brilho tristonho.

Harry acompanhou o olhar do garotinho e conseguiu enxergar quem ele estava mirando tão absorto. Havia duas pessoas a alguns metros dali: um pai e um filho, da mesma idade que o garotinho, jogando bola. O menininho ria com gosto, e corria atrás da bola com animação todas as vezes que o pai a chutava.

O garotinho se mexeu um pouco mais forte no balanço, e ele rangeu mais alto. O olhar dele estava caído, melancólico, mas ainda assim ele não tirava os olhos do pai e do filho, ao longe. O pai chutou a bola com mais força. Harry abaixou seus olhos e viu a bola colorida aos pés do garotinho ao seu lado que, lentamente, se abaixou e pegou a bola entre as mãos. O outro menininho veio correndo na sua direção, com um grande sorriso no rosto.

- Oi!

O garotinho levantou os olhos verdes e encarou o outro menino.

- Essa bola é sua. Toma.

- 'Brigado. – o menino risonho falou, aceitando a bola. – Você tá sozinho aqui?

- Tô.

- Qual o seu nome?

- Meus tios me chamam de "moleque". Mas o meu nome mesmo é Harry... E o seu?

- Brian. – ele riu. – Quer jogar?

O pai se aproximou.

- Fez um novo amiguinho, filho?

- Esse é o Harry, papai. Ele pode jogar com a gente?

O pai desfez o sorriso rapidamente ao ver Harry.

- Não, não pode.

Ele puxou o filho bruscamente, colocando-o atrás de si. O pequeno Harry olhou assustado para ele. O menininho colocou a cabeça do lado das pernas do pai.

- Por que não, papai?

- Porque ele é aquele menino esquisito do número quatro. Não quero você perto de gente assim. Vamos embora.

Depois de dizer isso, o pai se afastou, levando o menininho, que olhava confuso para o homem. O pequeno Harry suspirou desanimado e abaixou a cabeça. Ele respirou mais fundo, e escondeu o rosto entre os joelhos. O sol se pôs.

Harry apenas ficou olhando para o seu eu de seis anos. Podia se lembrar muito bem desse dia, apesar de fazer muito tempo. Foi uma das lembranças da infância que mais lhe marcaram. Naquele dia, ele ficou sem jantar quando chegou em casa, porque ousou perguntar a tio Válter como era o seu pai. Só Harry sabia o quanto foi duro perceber que ele não tinha direito a ter um pai, a fazer coisas simples como jogar bola com ele no parque. Naquele dia, Harry não dormiu de noite, imaginando como seria brincar com seu pai em um fim de tarde.

Ele olhou para o céu, e viu novamente as cores se misturando. O que importava o que viria depois? Poderia ser pior do que já vira até o momento? Harry achava que não. Não lembrava de mais nada que fosse tão doloroso quanto as cenas que presenciara.

As tintas formaram uma sala de aula. Harry podia ver as carteiras enfileiradas, a lousa, a mesa da professora. Havia figuras de desenhos animados nas paredes. Brinquedos jogados em um canto, e desenhos de alunos colados na parede oposta. A janela mostrava que lá fora era uma bela manhã de primavera.

- Hoje, crianças, faremos algo especial. – a professora disse. Harry olhou bem para ela; uma senhora gordinha, de aparência doce, rugas no rosto e um sorriso bondoso. Ele lembrava vagamente dela.

- Ai! – um garotinho magro e franzina sussurrou. Todos na sala estavam prestando muita atenção às palavras da professora para ouvir seus lamentos.

Harry olhou para ele. Havia um menino gordinho ao seu lado, o qual se assemelhava muito a um porquinho, que estava lhe atirando bolinhas de papel. Harry sentiu uma raiva reprimida subir pelo seu estômago. Por que o passatempo preferido de Duda teve que sempre ser esse? Encher sua paciência? Desde quando tinham três anos de idade era assim! Ok, talvez até menos que isso.

Ele se aproximou dos meninos. O pequeno Harry ainda estava sendo atingido pelas bolas, enquanto Duda ria discretamente. Harry se postou ao lado dele e tentou dar um tapa na sua cabeça. Sua mão passou pela cabeça do primo, como se Harry fosse um fantasma.

- AI! – o pequeno Harry disse mais alto. A professora parou de falar e olhou para os dois. Duda fez uma fingida cara de inocente.

- O que está acontecendo aí? Sr. Dursley?

- Eu... eu... eu só estava pegando um lápis do meu primo que caiu no chão, professora. – Duda respondeu, batendo com força nas costas de Harry, que quase se engasgou.

- Pois então tratem de prestar atenção em mim agora, meninos. – ela disse com um tom ligeiramente severo.

Duda se postou ereto na cadeira, enquanto Harry fazia uma careta. Duda olhou de esguelha para o primo e disse entredentes:

- Seu idiota! Você vai ver depois!

O pequeno Harry se virou para olhar o primo e piscou para o vidro de tinta. Imediatamente, o vidro se partiu, espalhando tinta para todos os lados, e alguns pequenos cacos de vidro entraram no dedo de Duda. Um sorriso apareceu no canto dos lábios dos Harry de três anos e do de dezesseis.

- O que está acontecendo, Sr, Dursley? – a professora perguntou aflita, aproximando-se de Duda, que chorava e esperneava.

- O vidro! – Duda gritou chorando.

A professora chegou perto dele e segurou sua mão gorda. Havia um caco imprensado nela, e um fiozinho de sangue corria. Harry se lembrou daquele dia; depois ficou imaginando como o vidro tinha se partido sozinho, mas estava muito orgulhoso de si mesmo para se importar com isso na época.

- Foi ele! – um menino apontou para o pequeno Harry. – Ele olhou para o vidro e depois disso ele quebrou sozinho!

A professora olhou para Harry intrigada, e depois se virou para o menino que o tinha acusado.

- Não diga besteiras, Sr. Polkiss! Somente um bruxo faria o vidro quebrar sozinho, e todos nós sabemos que bruxos só existem em contos de fadas!

- Mas eu vi! – Pedro Polkiss choramingou.

- O senhor vai parar de dizer essas bobagens e levar o Sr. Dursley à enfermaria! – ela ajudou Duda a se levantar. – Vamos, Sr. Dursley... Não vai doer nada...

Duda saiu gritando e chorando da sala acompanhado de Pedro, que ainda olhava desconfiado para o pequeno Harry, que ousou lhe mostrar a língua discretamente. A professora voltou para a frente da sala.

- Vamos voltar ao que interessa, crianças. Como eu dizia, hoje faremos algo especial. O próximo domingo será Dia das Mães, e eu quero que vocês façam um cartão desenhado por vocês para elas!

O pequeno Harry abaixou a cabeça sobre a carteira, desanimado. Quando a professora passou do seu lado para lhe entregar a folha em branco, ele não a aceitou. A velha senhora se abaixou ao seu lado e o cutucou.

- Por que não quer fazer o desenho, Sr. Potter? Sua mãe ficará muito feliz quando o vir.

- Eu não tenho mãe... – ele disse baixinho, com sua voz fina de criança. Os olhos da professora se arregalaram. Ela obviamente notou que tinha dito a coisa errada.

- Mas, mesmo assim, por que você não faz o desenho e... dá para a sua tia?

O menino levantou a cabeça e olhou para a professora como ela se fosse boba.

- Acho que não, Sra. Ross...

Ela pensou por alguns instantes, antes de dizer:

- E se você fizesse o desenho e guardasse? Um dia, talvez, você encontre sua mãe... Ou então, alguém como ela, que você vai querer homenagear com o cartão. O que acha?

As pequenas sobrancelhas do menino se ergueram, e ele sorriu levemente.

- Tudo bem, Sra. Ross.

Ela sorriu, deixou uma folha com ele e se afastou. Harry se posicionou ao lado do garotinho e ficou observando o que ele estava desenhando com os seus tocos de lápis de cor. Era como qualquer outro desenho mal feito de criança, mas Harry conseguiu se lembrar com carinho daquele desenho. Estava guardado em algum lugar que ele não lembrava qual...

O sinal tocou, anunciando o final da aula. O pequeno Harry arrumou suas poucas coisas e saiu atrás da turma, quando a professora lhe chamou com um gesto dos dedos. Ele se aproximou dela, enquanto as outras crianças saíam fazendo barulho.

- E então? Você fez o desenho, Sr. Potter? – ela perguntou, se abaixando até ficar do tamanho dele.

- Fiz, Sra. Ross. Quer ver?

- Se você deixar, quero sim. – ela sorriu.

O menininho procurou nas suas coisas, e tirou um cartão caprichado de dentro delas. A professora o pegou, abriu-o, e sorriu levemente, entregando-o de volta ao garotinho.

- Tenho certeza de que quem receber esse desenho ficará muito feliz.

- A senhora quer?

Ela riu levemente.

- É melhor não, Harry. Guarde-o com você. Um dia você encontrará alguém que será como uma mãe para você e vai dá-lo a ela.

O garotinho sorriu e saiu correndo da sala. Harry o seguiu, e não foi difícil alcançá-lo. Era esquisito andar por aquela escola que ele conheceu quando era mais novo. Era como voltar no passado... No seu passado esquecido.

Na porta da escola, Harry viu duas pessoas que conhecia muito bem; Duda, que estava com a mão enfaixada, ainda choramingando, e sua tia Petúnia, que ainda tinha a mesma cara de cavalo.

- Onde estava, moleque? – ela perguntou histérica. – Já estava quase desistindo de te esperar!

- A professora quis conversar comigo... – Harry respondeu tímido.

- Foi, é? O que você aprontou dessa vez?

- Na-nada, tia Petúnia...

- É bom mesmo. Não quero me aborrecer!

Os três voltaram caminhando para casa. Harry se lembrava de que a escola não ficava muito longe do n.º 4 da Rua dos Alfeneiros. Tia Petúnia ia de mãos dadas com Duda, enquanto Harry andava mais atrás deles.

- Mas o que aconteceu com o seu dedinho, Dudinha querido?

- Me machuquei com o vidro, mamãe! Ele quebrou sozinho!

- Sozinho, é? – ela perguntou desconfiada, olhando de esguelha para Harry mais atrás.

- Foi... Mas o Pedro disse que foi ele! – Duda acusou, apontando o dedo para Harry, que engoliu em seco.

Tia Petúnia estreitou os olhos. Harry acompanhou os três até o n.º 4. Depois que Duda subiu para seu quarto, Harry assistiu a uma das suas maiores broncas. Tia Petúnia falava coisas que, para uma criança de três anos, eram completamente sem sentido. Mas certamente, o pequeno Harry entendeu que tinha feito algo muito ruim quando tia Petúnia falou que iria trancá-lo no armário sem almoçar.

Ela praticamente arrastou o menino até o armário e, no momento em que ia fechar a porta, ele falou com voz fraca:

- Tia Petúnia...

- Que foi?

- Posso perguntar uma coisa para a senhora?

- Não! Já disse que não é pra perguntar nada!

Ela o trancou no exato instante em que ele agarrou a saia do vestido dela, de modo que ela ficou presa pela roupa no armário. Quando ela o abriu novamente, o menino perguntou de uma vez só:

- Por que eu não tenho mãe?

Tia Petúnia ficou paralisada. Ela abriu e fechou a boca e, por um instante, Harry pôde reparar um vestígio de dó nos seus olhos, algo que ele não tinha notado quando tinha três anos.

- Seus pais morreram em um acidente de carro. – ela respondeu depressa. – Sem mais perguntas!

A porta do armário bateu com estrondo.

Harry ficou parado no mesmo lugar por muito tempo. Nem se lembrava direito disso, mas sabia que tinha acontecido. Naquele dia, ele chorou o resto da tarde em silêncio. Ficou sem almoço e sem janta, no final das contas. De noite, só dormiu porque estava exausto. Mas sonhou com o acidente de carro e com uma luz verde na sua direção.

Ele se encostou na parede da casa dos Dursleys. Ainda podia ouvir claramente os resmungos de tia Petúnia na cozinha, e o barulho de brinquedos sendo quebrados no quarto de Duda, sobre as escadas. Ninguém ouvia o choro silencioso do pequeno Harry dentro do armário. Como se sentiu sozinho naquele dia... Foi o momento em que realmente percebeu que não tinha absolutamente ninguém na vida; e perceber isso com três anos de idade é bem complicado. Ele se sentiu tão sozinho quanto se sentia agora.

O cenário começou a mudar à sua volta. As cores que formavam a casa dos Dursleys se misturaram, e um novo lugar começou a surgir, como se estivesse sendo moldado por inúmeras pinceladas de tinta. Só que as tintas estavam escurecendo, mais e mais...

Harry fechou os olhos. O barulho de chuva e o odor característico de doce de abóbora lhe deram uma estranha sensação de tranqüilidade. Ele quase podia sentir que estava em um lugar bom, agradável e familiar...

Quando abriu os olhos, viu uma grande sala de estar. Ela era muito bem decorada, e tinha vários objetos ricos, bem como quadros enormes na parede. As pinturas dentro deles dormiam tranqüilamente encostados nas molduras. Havia uma escada grande e arredondada que levava para os outros cômodos da casa. A chuva açoitava os vidros da janela.

O ambiente estava mal iluminado, mas Harry pôde divisar um pequeno ponto de luz vindo do centro da sala. Ele se aproximou cautelosamente do local, e pôde perceber que era uma vela, que estava acesa sobre uma mesa de centro. Um sofá estava posicionado próximo a ela, e Harry quase deu um pulo para trás de susto ao perceber que duas pessoas estavam sentadas ali.

Ele deu a volta no sofá, e sentou na ponta dele. Era difícil enxergar naquela escuridão, mas ao estreitar os olhos, Harry pôde ver que se tratavam de um homem e uma mulher. Eles estavam sentados abraçados no sofá, e a mulher parecia estar segurando alguma coisa nos braços, que se mexia. O cheiro de doce de abóbora estava mais forte.

Harry se aproximou mais do casal e conseguiu enxergar um bebê seguro no colo da mulher. Ele mexia os minúsculos braços para cima, tentando agarrar alguma coisa que o homem movia sobre sua cabeça, rindo baixinho.

- Pára com essa colher, Tiago! – a mulher falou bruscamente, mas também ria ligeiramente. – Vai deixar o menino aguado pelo doce!

- Ele está gostando, Lílian! Olha como ele ri! – o homem respondeu animado, ainda agitando a colher sobre a cabeça do bebê.

Harry sorriu ligeiramente, e parecia que seu coração estava umas vinte toneladas mais leve. Então aqueles dois eram seus pais e, provavelmente, o bebê nos braços de Lílian era ele mesmo. Depois de tantas lembranças ruins, Harry pôde, finalmente, se sentir amado. Dava para sentir isso na voz e nas risadas daquela família.

- Tiago, não é melhor acendermos as luzes?

- Eu prefiro assim, Lily. – o bebê ainda ria gostosamente. – Além disso, hoje é dia das bruxas, e não tem graça acender as luzes em uma noite como essa.

- Eu não sei... Ainda acho que teria sido melhor se tivéssemos passado essa noite na casa dos meus pais, como minha mãe sugeriu hoje de tarde. Não sei por quê, Tiago, mas eu estou com uma sensação muito esquisita...

- Lílian, seus pais são legais, mas eu não tenho jeito para passar a noite na casa dos meus sogros.

- Harry iria adorar sair um pouco dessa casa.

- Mas essa é a nossa casa.

- Não é a casa que escolhemos para morar. – Lílian insistiu. – É a casa que fomos obrigados a vir morar.

Tiago desistiu de brincar com o bebê e finalmente lhe entregou a colher. Dava para ouvir o menininho lambendo a colher com vontade. Um silêncio caiu sobre o ambiente, e o único barulho era o da chuva lá fora.

- Você não vai voltar nesse assunto, não é, Lílian?

- Não tem como não pensar nisso, Tiago. Já fazem seis meses... Seis meses que nos mudamos para cá e vivemos nessa agonia.

- Porque queremos! Lílian, você sabe muito bem que estamos protegidos! Dumbledore fez o feitiço do Fiel de Segredo! Voldemort nunca vai nos achar aqui!

- Eu não confio em Pedro.

Tiago bufou.

- Você sempre implicou com Pedro. Sempre... Francamente, Lílian, quando vai parar com essa bobagem? Ele é meu amigo, está do nosso lado!

- Eu ainda preferia que o fiel fosse Sirius, como queríamos no começo. – ela respondeu seca. – Maldita hora em que ele foi ter aquela idéia idiota de trocar os fiéis.

- Foi uma ótima idéia! – Tiago retrucou emburrado. – Sirius era muito óbvio, qualquer um sabe que eu e ele somos melhores amigos desde sempre.

- Mas Sirius é confiável.

- Pedro também é!

O bebê chorou alto. Lílian começou a balançá-lo delicadamente, sussurrando palavras carinhosas, até que ele parou.

- Você sabe, Tiago... – ela murmurou, depois que o bebê tinha se acalmado nos seus braços. – Voldemort não vai desistir. Ele sabe que o nosso filho é especial.

- Mas ele nunca vai conseguir o que quer... Lílian, você tem que acreditar nisso!

Ela soluçou alto.

- Eu tenho medo... – sua voz estava entrecortada pelo choro que ela tentava reprimir. – Tenho medo que ele consiga e... mate o nosso Harry... Eu não conseguiria mais viver sem ele, Tiago...

Tiago abraçou Lílian por trás com mais força do que antes e encostou seu queixo no ombro dela, tentando acalmá-la.

- Eu morrerei para proteger vocês dois se for preciso.

Até mesmo o pequeno Harry parecia entender que era um momento delicado, tanto que ele não fez nenhum barulho.

- Nós dois morreremos pelo nosso filho se for necessário.

A voz de Lílian se perdeu na escuridão da noite. A chuva batia cada vez mais forte nas janelas. Harry não saberia dizer por quanto tempo ficou apenas olhando para seus pais, imaginando se eles já tinham idéia de que iriam morrer. Uma lágrima solitária desceu pelo seu rosto. Como sentia a falta deles... Teria sido melhor se tivesse ido junto quando os dois morreram.

A vela se apagou sozinha, e a sala ficou escura por completo. Lílian se sentou ereta no sofá com um sobressalto tão forte, que Harry começou a chorar nos seus braços.

- O que foi isso?

- É essa chuva. – Tiago respondeu, levantando-se. – Deve estar ventando também.

- Mas as janelas estão fechadas! – Lílian disse rapidamente, e seu tom era aflito. – Não dá para entrar vento aqui!

Ele se virou para ela, olhando-a profundamente. Mordeu o lábio inferior antes de se abaixar até ficar do tamanho dela sentada. Lílian acompanhou o movimento dele com a cabeça. Tiago sorriu ligeiramente.

- Não se preocupe, não deve ser nada... – ele colocou a mão no rosto dela, delicadamente. – Olha, eu vou sair e ver se tem alguma coisa lá fora, tudo bem?

- NÃO! – ela gritou em pânico. – Fica aqui comigo, Tiago...

- Calma, Lílian... Eu vou lá e volto em um minuto, tá bom?

Ela pareceu ponderar por alguns instantes antes de assentir. Tiago aproximou seu rosto do dela e a beijou docemente, para depois se abaixar e beijar a testa do bebê. Harry respirou mais fundo ao ver aquilo. Era aquela noite...

Tiago se afastou, recolheu uma capa de chuva pendurada na parede, e depois saiu pela porta. Os barulhos dos trovões fizeram Lílian tremer suavemente. Ela segurou Harry mais perto de si e sussurrou para si mesma:

- Você está ficando paranóica, Lílian... Isso é só a chuva! Você conhece a chuva, não é, sua tonta? É aquele monte de água que cai do céu fazendo barulho. Então pára de ficar nervosa, sua idiota!

Ela abaixou o rosto e encarou o bebê profundamente.

- Mas mesmo assim... Eu sei que você não vai me responder, mas eu vou perguntar. – o bebê a olhava com atenção, como se soubesse que ela estava falando com ele. – Você promete que vai ser feliz?

Harry suspirou com tanta força, que parecia que seu coração estava sendo espremido. Ele sentiu que começava a soluçar. Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, mas ele não se importou em secá-las.

- Promete, Harry?

- Eu vou tentar...

- Você não vai apenas tentar. – Lílian aproximou mais o rosto do bebê. – Você vai ser feliz, não vai? Promete isso para sua mãe... por favor.

- Eu prometo.

Ela sorriu e, assim como Tiago tinha feito, beijou a testa do filho com amor. O nariz de Harry estava entupido. Ele passou com força as mãos pelos olhos molhados, e piscou várias vezes para conseguir ver direito sua mãe. Era como se ela soubesse... Como se previsse...

A porta se abriu com tal estrondo, que Harry se assustou. Lílian olhou sobressaltada para a porta e viu Tiago parado com as costas encostadas nela, uma expressão de pânico estampada no rosto. Seus cabelos estavam encharcados pela chuva.

- O que aconteceu, Tiago? – ela perguntou, levantando.

- Lílian, leve Harry e vá! É ele! Vá! Corra! Eu o atraso...

Os olhos de Lílian e de Tiago se miraram por milésimos de segundos, que pareciam uma eternidade. Eles pareciam estar absorvendo suas imagens, para sempre se lembrarem. O tempo acabou, e Lílian saiu correndo da sala, aos tropeços, enquanto carregava com mais desespero Harry nos braços.

A porta se escancarou, e Tiago deu alguns passos para frente, tropeçando. Ele se virou lentamente para ver quem tinha entrado. A chuva caía mais forte, e um raio iluminou a figura de Lord Voldemort, que soltou uma gargalhada aguda e fria.

Harry só teve tempo de ver seu pai sacar a varinha. Foi como se seus pés corressem sozinhos na mesma direção que sua mãe tinha corrido. Ele subiu as escadas de dois em dois degraus, ainda ouvindo sons de feitiços, objetos quebrando, gritos... Seu pai estava duelando com Voldemort, mas Harry sabia que ele não conseguiria vencê-lo...

Ele correu por corredores feitos de madeira envernizada, mas não conseguia distinguir os vários quadros na parede. Seus pés sabiam aonde ir. Era como se conhecesse toda aquela casa, aquelas portas, aquelas paredes.... o cheiro daquele lugar, o barulho que ele fazia, os caminhos que tinha que percorrer.

Foi na última porta que Harry entrou. Viu-se em um quarto, ricamente decorado, que dava para uma grande sacada. Mas ele não tinha tempo para prestar atenção nos detalhes, mesmo que mais tarde fosse lembrar deles com exatidão, como se os tivesse gravado na memória.

Lílian estava próxima da lareira. Ela pegou um pequeno potinho que estava sobre o console da lareira, olhou-o e depois jogou-o com força no chão. O pote se despedaçou em cacos que se espalharam pelo chão, ao mesmo tempo que Lílian xingava alto.

- Maldita hora para esse pó de flu acabar!

Ela atravessou o quarto e encostou a porta, escorregando por ela depois. O bebê estava pressionado com força contra seu peito, e ela soluçava forte, enquanto lágrimas caíam sobre o rosto do menino no seu colo.

- O que eu faço agora? – ela olhou para o bebê, que apenas a encarava, como se entendesse que o momento era sério. – Nós vamos morrer, Harry...

Um barulho alto de algo caindo surdamente no andar de baixo fez os pêlos da nuca de Harry se arrepiarem. Lílian encostou a cabeça na porta, fechando os olhos e fazendo com que as lágrimas escorressem mais livres do que nunca pelo seu rosto.

- Tiago...

Ela abriu os olhos bruscamente e voltou a encarar o bebê, obstinada. Respirou fundo e parou de chorar. Levantou-se em dois segundos e caminhou até a cama, onde se sentou. Olhando muito séria para o menino em seus braços, ela disse:

- Você não vai morrer. Eu não vou permitir.

Lílian posicionou o bebê sobre o lençol da cama, ajeitou-o e se ajoelhou à sua frente. O barulho de passos na escada não parecia ser importante para ela. Lílian murmurava palavras sem sentido, segurando as pequenas mãos de Harry nas suas. Falava sobre sangue, herança, poder, magia e... amor. Os passos estavam cada vez mais próximos. Ela se inclinou sobre Harry e beijou sua testa, exatamente no lugar onde apareceria a cicatriz em forma de raio...

A porta se escancarou. Lílian se afastou milímetros de Harry e sorriu ligeiramente para ele. Voldemort tinha um sorriso sinistro no rosto, e apontou sua varinha para as costas de Lílian.

- Eu te amo... – ela sussurrou para Harry.

- Eu também. – o Harry de dezesseis anos respondeu, mesmo sabendo que ela não iria escutar. Mas sua mãe sorriu como se tivesse escutado.

- Saia daí, menina. – Voldemort ordenou com sua voz gelada.

Lílian se virou, encarando Voldemort diretamente nos olhos vermelhos dele. Ela cobria o pequeno corpo de Harry com o seu próprio, numa clara tentativa de protegê-lo até o fim.

- Por que tem quer ser assim? – ela disse com a voz fraca, parecia extremamente cansada. – Por que você tem que fazer isso?

- Uma menina como você não entenderia algo tão complexo...

- Não entendo mesmo. – ela retrucou sombria. – Nunca conseguirei entender como você trocou tudo que poderia ter por... – ela o mirou de cima a baixo. - ...o que você é agora.

Ele riu daquele seu jeito sem alegria.

- Há coisas muito mais importantes.

- Como o quê? Poder? Isso é insignificante perto de coisas como... – ela olhou de esguelha para o bebê na cama. - ...como ele. Não o tire de mim. – ela pediu, voltando a encarar Voldemort.

- Não há alternativa. É preciso que ele morra para que eu possa viver. Você entende isso, não?

- CLARO QUE NÃO! Eu nunca vou entender os seus motivos... Isso não é necessário. – ela respirou fundo. – O que você quer, afinal? Você pode fazer o que quiser comigo... Eu vou com você, mas não tire a vida dele....

Voldemort riu novamente.

- Você não é mais necessária, menina. O seu nascimento foi um erro.

Ela suspirou longamente, e lágrimas grossas rolaram pela sua face.

- O Harry não! O Harry não! Por favor... farei qualquer coisa...

- Afaste-se. – Voldemort ordenou friamente, dando um passo na direção de Lílian, que recuou. – Afaste-se, menina...

- NÃO! Eu não vou abandonar o meu filho nunca!

- Você não precisa morrer. – ele deu mais um passo. – Afaste-se!

- Você só vai chegar até Harry se passar por cima do meu cadáver!

Antes que Lílian pudesse alcançar sua própria varinha, Voldemort já tinha levantado a sua. Ele fora mais rápido. Sua boca em forma de fenda se abriu, e ele pronunciou as palavras mágicas:

- Avada Kedravra!

A luz verde atingiu Lílian em cheio. Foi como se o coração de Harry tivesse sido esmagado novamente. Aquele momento durou uma eternidade. Ele viu o corpo de sua mãe fazer uma bela curva, lentamente; na cama, o bebê Harry mexia seus braços freneticamente, como se percebesse que sua mãe estava morrendo. Harry pôde ver claramente o momento em que sua mãe deu seu último suspiro e caiu com estrondo no chão de madeira.

Morta.

Voldemort encarou o corpo dela por alguns instantes. Não dava para compreender o que se passava pelos olhos dele. Ele levantou a cabeça e disse simplesmente:

- Isso não era necessário.

Harry teve vontade de matar Voldemort, naquele exato momento. Ele sacou sua varinha e tentou dizer o feitiço da morte, mas tudo que conseguiu foi que uma fraca luz esverdeada passasse direto pelo corpo do bruxo. Ele não conseguia... Era impossível, aquilo era apenas uma lembrança de sua cabeça. Mas Voldemort precisava morrer... ele queria matá-lo. Ele precisava se vingar...

Como ele pôde acabar com tudo daquele jeito cruel? Ele acabou com a sua família... Tudo poderia ter sido tão diferente se seus pais não tivessem sido mortos... Ele teria uma família, teria crescido com carinho... Ele poderia ter cumprido a promessa de ser feliz...

Voldemort parou de andar bem de frente ao pequeno Harry, que parou de agitar seus bracinhos assim que viu o bruxo. Eles se miraram por alguns instantes, e dava a impressão de que um entendia o outro apenas pelo olhar. Nenhum barulho quebrava aquele silêncio quase palpável.

- Incrível como um garotinho como você tem o poder para me causar tantos problemas... – Voldemort murmurou com sua voz sibilante, encarando os olhos verdes do menino. – Uma criatura tão pequena... Uma pedra no meu sapato. Você não pode viver, Harry Potter.

A ponta da varinha de Voldemort estava a milímetros da testa de Harry, bem no lugar onde Lílian a tinha beijado anteriormente. Segundos eternos se sobrepuseram antes do momento exato em que tudo aconteceu. Foi como se acontecesse em câmera lenta. Voldemort abriu sua fenda no lugar de lábios e pronunciou, novamente, aquelas palavras:

"Avada Kedravra."

O pequeno Harry olhava quase obstinado para Voldemort. A luz verde bateu diretamente na testa do menino, e o quarto inteiro tomou tons esverdeados. Toda a varinha, assim como o braço de Voldemort, tremeram. A luz ricocheteou e o atingiu por inteiro, em todas as partes do corpo. Harry pôde ver a expressão de pânico e surpresa nos seus olhos vermelhos.

Foi como se a luz o envolvesse por inteiro. Cada parte do corpo de Voldemort estava iluminada por aquele verde profundo. Ele tremeu por inteiro, e gritou, gritou como Harry nunca imaginaria que ele pudesse gritar. Dava a impressão de que o grito poderia ser ouvido em qualquer lugar do planeta. O grito invadia os ouvidos, penetrava na cabeça, e vibrava até na alma.

A luz verde se tornou uma fumaça preta, que subiu lentamente e pairou no ar. O corpo de Voldemort tinha desaparecido. A fumaça girou, e envolveu o corpo do pequeno Harry. Era uma fumaça fétida e venenosa. O menino chorava, porém, estranhamente, a fumaça não conseguiu atingi-lo. Ela girou mais algumas vezes, até que desistiu e sumiu, pairando pelo ar e se desfazendo.

O choro do menino invadia os ouvidos de Harry, como se estivesse gritando dentro dele. Ainda paralisado, ele se virou lentamente para ver o bebê, que chorava sem parar sobre o leito. Ele tinha acabado de perder os pais... Tinha acabado de derrotar Lord Voldemort.

Quando Harry se aproximou, pôde ver o corte feio que havia na testa do menino. Um corte enorme, por onde vazava sangue, que escorria pelo seu pequeno rosto e manchava o lençol da cama. Harry passou lentamente o dedo sobre o corte do menino, e sentiu os contornos do raio. Levou os dedos até a própria testa e sentiu os mesmo contornos. Fechou os olhos.

Era naquele exato momento que tudo começou...

Foi como se o corpo de Harry fosse sugado violentamente, e uma onda de ar enchesse seus pulmões. Ele sentiu seu coração bater no peito, sua cabeça trabalhar, seu sangue correr... Ele novamente sentia dor.

Quando abriu, finalmente, os olhos, viu que estava de volta àquela mesma sala redonda vizinha à sala de Defesa Contra as Artes das Trevas. Ainda estava ajoelhado no chão, mas não havia mais vestígios das lágrimas no seu rosto. E a primeira pessoa que viu à sua frente foi ela...

Samantha Stevens.

- Você voltou. – ela disse pasma. – Como conseguiu sair de lá sozinho?

A boca de Harry estava seca. Ele encarou a mulher por alguns instantes, tão pasmo como ela. Parecia tão real... Aquele mundo... era tão real. E agora ele estava de volta. Foi como acordar depressa demais de um longo pesadelo. Ele ainda não tinha noção da realidade.

Teve a sensação do chão arranhando seus joelhos, do suor que escorria pelo seu rosto e encharcava seu cabelo, dos seus braços pesados ao lado do corpo e seu peito dolorido. Sua respiração era difícil, entrecortada, e seu corpo se movia por inteiro devido à força que era obrigado a fazer para respirar.

Ele realmente tinha voltado...

Harry se levantou, cambaleando, e nunca tirando os olhos de Samantha. Ela parecia tão pasma, que sua varinha estava abaixada e sua boca aberta. Nem ao menos piscava.

- Acabou, Stevens. – uma outra voz disse lentamente.

Samantha, assustada, mexeu sua cabeça rapidamente na direção da porta. Lentamente, Harry fez o mesmo. Viu um homem parado à porta, com a varinha apontada diretamente para Samantha. Ele tinha uma expressão decidida no rosto, apesar de ligeiramente surpreso. Harry, mesmo atordoado, reconheceria aquela expressão em qualquer lugar. Ele a conhecia muito bem, porque já recebera aquele mesmo olhar várias vezes.

Parado à porta estava ninguém menos que o seu mestre de Poções.

Severo Snape.