Capítulo Vinte e Cinco – De que são feitos os inimigos?

Foi o segundo mais longo da vida de Harry. Parecia que, no mundo, só havia aquela pequena sala. Harry não escutava, não respirava. Dava a impressão de que o tempo tinha parado naquele momento.

Os olhos de Snape brilhavam sinistramente; Harry tinha a sensação de que ele poderia matar Samantha apenas com os olhos. Snape não a perdia de vista, enquanto ela apenas o encarava, sem expressão. Ou então, Harry não estava conseguindo entender o que estava escondido no azul escuro dos olhos dela.

- Severo... Como chegou aqui? – ela perguntou com sua voz mais rouca do que nunca.

Harry a encarou. Sua varinha ainda estava abaixada e, por mais que a varinha de Snape estivesse apontada diretamente para seu coração, ela não esboçava nenhuma reação para fugir ou se defender. Era como se estivesse paralisada.

- Não importa. – ele respondeu com um tom gélido, e seus olhos giraram para observar ao redor. – Então era por isso que estava aqui? Eu estava certo.

Ela riu ligeiramente, e Harry não entendeu o porquê disso. Aparentemente, Snape compartilhava da sua confusão.

- Não. Duvido que o que esteja pensando seja o certo. Talvez se aproxime da verdade, mas só isso...

Seu tom era de zombaria. Snape estreitou os olhos, que ferviam de fúria reprimida. Harry não sabia o que dizer; era como se ele não estivesse presente naquela cena. Seu corpo ainda doía por completo, e ele tinha medo de vomitar se abrisse a boca. Preferiu não dizer nada.

- Foi um grande plano dessa vez, não foi? – ele deu alguns passos, a varinha ainda apontada, e um olhar assassino no rosto. Samantha não moveu um único músculo, exceto os dos lábios, que abriram um sorriso zombeteiro. Seus olhos azuis pareciam estar lendo os pensamentos de Snape. – Voldemort deve tê-lo preparado com muito cuidado...

- Você acha? – o sorriso não sumia do rosto dela. Parecia estar se divertindo com Snape. – Pense o que quiser, Severo. Derreta seus miolos. Você nunca vai saber a verdade até que seja o momento certo...

- ORA, SUA VACA!

Harry nunca tinha imaginado que poderia ver Snape assim. Para alguém que sempre parecia esconder suas emoções, ele transparecia todo seu ódio, e isso, Harry percebeu por um instante, o enfraquecia perante Samantha. Se ele não mostrasse suas emoções, o que se sucedeu poderia nunca ter ocorrido.

Snape jogou um feitiço que Harry desconhecia em Samantha. Ela estreitou seus olhos, e eles brilharam intensamente. Foi aí que Harry percebeu: os olhos dela... saía magia deles. Por um instante, Harry pôde ver uma barreira se formando ao redor da mulher, fazendo com que o feitiço ricocheteasse em Snape, que voou para trás. Quando ela levantou a cabeça para o teto, ele começou a rachar, e Harry sentiu o chão sob seus pés tremerem.

Harry encostou-se à parede quando pedaços de cimento começaram a cair. Uma fumaça branca se formou na sala, e Harry cobriu o rosto para não respirar aquela poeira. Ele olhou para onde estava Samantha, e viu que ela o observava atentamente. A barreira a protegia do teto que desmoronava. Por um segundo, seus olhares se encontraram. Samantha sorriu, mas não era o mesmo sorriso que ela lançou a Snape. Um grande pedaço do teto caiu sobre ela, e Harry não pôde mais vê-la.

Ela ia fugir. Harry sabia disso, e deu um passo à frente. Precisava impedi-la, ela não podia ir embora assim... Não depois de tudo que ela fez. Harry queria puni-la e, por isso, não poderia deixá-la escapar.

- Fique parado, Potter! – ele ouviu Snape gritar do outro lado da sala. – Você é idiota por acaso?

- Eu preciso impedi-la! – Harry gritou de volta. – Ela vai fugir!

Ele ouviu um sibilo no meio daquela confusão. Era como se seus ouvidos estivessem ignorando todo aquele barulho da sala desmoronando e ouvissem apenas a voz da cobra. Ela tinha se transformado para fugir, ele tinha certeza. Harry seguiu o sibilo. Um grande pedaço do teto veio bem na direção de Harry. Ele não tinha tempo de escapar ou tentar pegar sua varinha para se proteger...

- Protego!

Uma pequena barreira em torno de Harry repeliu o pedaço do teto que o atingiria. Ele viu Snape do outro lado da sala, com a varinha apontada para ele. Por que ele o tinha protegido? Isso não importava agora.

Harry tirou sua varinha das vestes e, enquanto corria por entre os destroços, repelia os pedaços de cimento com feitiços. Ele apenas seguia o sibilo... não poderia deixá-la escapar.

Ele sentiu uma pancada forte na altura do seu cotovelo; tinha batido-o na quina da pia. Foi quando ele olhou para baixo e viu o rabo da cobra se esgueirando pela porta entreaberta do armário que ficava sob a pia. Harry se abaixou e abriu a porta violentamente, a tempo de ver, boquiaberto, o corpo da cobra sumindo. Ele tentou agarrá-la, mas foi como se ela se transformasse em pó entre seus dedos. Algo agarrou seu braço direito com força, forçando-o a se levantar.

- Vamos, Potter! Não podemos continuar aqui! – Snape disse com urgência, puxando Harry pelo braço.

- Mas ela...

- Esqueça-a! Não podemos fazer mais nada! – ele gritou num tom duro.

Os pedaços de reboco ainda caíam, e a poeira fez Harry tossir. Snape repelia os blocos com feitiços, até que os dois chegaram à porta da sala e a atravessaram. Snape fechou a porta atrás de si e fez um feitiço estranho, que fez a porta desaparecer. O barulho de desmoronamento cessou.

Eles estavam de volta à sala de Defesa Contra as Artes das Trevas. Ela estava silenciosa e quieta, quase como se absolutamente nada tivesse acontecido. No entanto, algo havia acontecido sim, e Harry não poderia esquecer jamais.

O rapaz ficou parado onde estava. Sua respiração estava descompassada; ele sentia a garganta arranhar pela quantidade de poeira que engoliu, e seus olhos ardiam por causa de toda aquela fumaça da outra sala. Snape estava de costas para ele, ainda com a varinha apontada para a porta que tinha acabado de fazer desaparecer. Ele tossiu, abaixou a varinha e se virou.

Ele e Harry se encararam. Os olhos de Snape estavam opacos e frios como sempre e, agora, ele parecia o mesmo. Aquele mesmo Snape que sempre escondia suas emoções: frio.

Harry tinha muitas coisas para dizer a ele, mas não sabia como começar. Apenas o olhou, e vários pensamentos corriam velozes pela sua mente. Tanta coisa tinha acontecido, que ele não sabia como ainda conseguia pensar. As cenas que tinha visto na Penseira... Snape tinha participado daquele plano com Samantha para separar seus pais. Ele amava sua mãe.

Porém, ao mesmo tempo em que queria dizer tudo isso a ele, Harry se sentia incrivelmente exausto. Suas pernas tremiam ligeiramente, e sua cabeça explodia de dor. Parecia que seu corpo tinha sido esmagado. Ele não agüentou e, mesmo não querendo, sentou-se com um baque na primeira cadeira que achou.

Mesmo sentado, com as pernas esticadas e a cabeça abaixada, Harry sentia o olhar de Snape sobre si. Alguma coisa dentro dele, que provavelmente se chamava orgulho, não queria que Snape o visse assim, mas era inevitável.

- Venha comigo, Potter. – ele ouviu a voz de Snape, e levantou a cabeça para encará-lo. O professor já estava de costas para ele, se dirigindo à porta.

- Por quê? – ele perguntou para as costas do homem.

- Porque eu sei como ajudá-lo.

- E por que vai me ajudar?

Harry captou o olhar de esguelha que Snape lhe lançou, mesmo que este tivesse durado um milésimo de segundo.

- Porque eu tenho que fazer isso.

Harry permaneceu sentado onde estava, tentando absorver as palavras. Aquilo era impossível. Snape tinha chegado, ajudado-o, e agora queria ajudá-lo ainda mais? Não fazia sentido.

- Você vai ficar parado aí a noite inteira, Potter? – Snape perguntou friamente, segurando a porta aberta.

Harry levantou e fez o possível e o impossível para caminhar com toda a dignidade e firmeza que conseguiu reunir no seu corpo cansado. Por mais que suas pernas cambaleassem sob o peso do seu corpo, ele permaneceu ereto, fingindo que nada estava acontecendo. Seu olhar se encontrou com o de Snape quando passou por ele na porta, mas Snape, por incrível que parecesse, desviou o olhar. Harry deu as costas a ele e saiu.

O corredor estava escuro e silencioso. Snape encostou a porta da sala e começou a caminhar lentamente na direção oposta. Harry o seguiu, encarando as costas dele. Os passos dos dois ecoavam pelas paredes e o teto. Harry desejou que chegassem logo aonde Snape queria.

Ele não estava com medo do que Snape faria ou diria. Depois de tudo que acontecera aquela noite, Harry duvidava que fosse sentir medo ou qualquer outra emoção por muito tempo. Ele começou a entender Snape um pouco; talvez ele se sentisse assim também, como Harry se sentia naquele momento. Frio.

Tudo o que ele tinha visto na Terra das Sombras parecia ter sugado seus sentimentos. Foi tanta emoção junta, sobreposta, que Harry agora se sentia vazio. Era como se sua mente e seu coração tivessem se livrado das sensações que sempre sentiram. Harry teve o desagradável pressentimento de que, pelo menos naquele momento, ele era apenas uma casca oca. E ele não sabia se isso duraria.

Snape o conduziu até as masmorras geladas, e nenhum dos dois pronunciou uma única palavra por todo o caminho. Harry observou por um momento as paredes de pedra; elas lhe lembraram Sirius escorregando por elas quando descobriu que Samantha o traíra.

Harry voltou a encarar as costas de Snape. Por que ele estava fazendo aquilo? Por que estava tentando ajudá-lo? Não tinha motivo algum para isso. Ele o odiava, e Harry o mesmo. E como tinha descoberto onde ele e Samantha estavam? Como chegara lá? Harry não deixaria isso barato; pressionaria Snape até ele contar. Não importava se Snape fosse gritar com ele, brigar ou lhe lançar aqueles olhares de desprezo. Harry não se importava com nada disso a essa altura.

Eles finalmente chegaram até a porta da masmorra onde Snape dava suas aulas de Poções. Harry conhecia aquela sala muito bem; era o local que ele mais odiava em Hogwarts. Snape abriu a porta e eles entraram.

A sala estava como Harry a conhecia. Mas eles não permaneceram ali. Snape o conduziu até uma sala ao lado da primeira, menor que ela, mas muito diferente; tinha um sofá vermelho de veludo, uma lareira e uma estante repleta de livros. Harry notou também uma enorme prateleira, cheia de poções de todos os tipos. Snape apontou sua varinha para a lareira e exclamou:

- Incendio!

Imediatamente, chamas azuladas se formaram, e cheiro característico de madeira queimada invadiu o lugar. Harry podia ouvir o som do fogo crepitando quando Snape apontou para o sofá, dizendo com sua voz sussurrante:

- Sente-se ali.

Mesmo não lhe agradando a perspectiva de obedecer a qualquer ordem de Snape, Harry sabia que suas pernas e seu corpo precisavam desesperadamente de um descanso. Se permanecesse de pé, ele tinha certeza de que suas pernas cederiam cedo ou tarde, e seria pior.

Seu corpo afundou no sofá macio, e ele sentiu uma agradável sensação de alívio. Era algo bem contraditório e incomum estar aliviado exatamente na sala de Snape, junto com ele, se parasse para pensar. Mas era assim que Harry se sentia, e ele não conseguiu controlar seu impulso de encostar-se ao sofá e fechar os olhos.

Ele ouviu o som de vidros batendo uns nos outros, mas não teve a mínima vontade de abrir seus olhos para ver o que estava acontecendo. Os passos de Snape ecoaram pela sala, mas Harry não se importava. Ele só queria estar ali sentado, largado, sentindo seu corpo afundar no sofá. Era maravilhoso.

- Eu não preciso perguntar o que aconteceu com você, Potter. – a voz de Snape se fez ouvir um pouco acima de Harry. – Sei muito bem que você foi atingido pela Maldição da Terra das Sombras.

Harry abriu seus olhos lentamente, e viu à sua frente um copo com uma poção borbulhante que Snape lhe oferecia. Seus olhos correram do copo para o rosto de Snape, que o encarava atentamente.

- Como sabe? – Harry perguntou, tentando ignorar que, se Snape estivesse mentindo, ele teria acabado de confirmar a história para ele.

Snape não disse nada por alguns segundos.

- Eu sou um especialista em Artes das Trevas. Sei reconhecer uma maldição quando vejo uma.

- Ah...

Harry abaixou seus olhos para o copo. A mão de Snape estava estendida bem na frente de seu rosto.

- O que é isso?

- Uma poção especial para vítimas dessa maldição. Você precisa tomá-la depois de ser atingido por ela.

A poção era verde musgo e borbulhava intensamente, soltando um bafo fedorento no seu rosto. Harry não estava certo se aquilo o ajudaria de verdade.

- Eu vou ter mesmo que beber isso?

- Seus ouvidos estão limpos, Potter? – Snape perguntou em um tom sarcástico. – Eu já disse que precisa tomá-la.

Depois de lançar um olhar extremamente indulgente a Snape, Harry aceitou o copo e sentiu suas mãos arderem. Ou muito se enganava, ou Snape tinha lhe entregado uma poção ainda fervente. Definitivamente, ele não estava disposto a beber aquilo.

- Isso vai corroer as paredes do meu estômago.

Snape já tinha se afastado. Ele se virou, olhou para Harry com uma curiosidade irônica e sorriu de uma maneira que deu a Harry uma vontade imensa de socá-lo.

- Está com medo, Potter? – ele perguntou com zombaria na voz. – Eu não coloquei veneno nessa poção, por mais que tenha tido vontade...

Ainda bem que Harry conseguiu se controlar e não respeitou ao seu impulso de jogar aquela poção fervente no meio do rosto engordurado de Snape.

Harry bufou e encarou a maldita poção. Suas mãos ainda ardiam em volta do copo. Ele ficava imaginando o que aconteceria quando aquilo caísse na sua barriga. Bolhas verdes se formavam sobre a superfície do líquido e estouravam em seguida, soltando aquele odor que fedia. Harry ergueu as sobrancelhas. Que mal poderia lhe fazer? Se tivesse mesmo veneno ali dentro, ele não saberia dizer se seria bom ou ruim; pelo menos ia esquecer muitas coisas que não queria lembrar. Mas ele sabia que Snape não colocaria veneno ali.

A poção queimou a garganta de Harry quando ele entornou o copo e engoliu-a. Seu gosto era amargo e extremamente desagradável, pior até do que Esquelecresce, que era um dos remédios que ele achava mais ruins. Porém, Harry engoliu tudo, só para mostrar a Snape que não tinha medo. Quando terminou e abriu sua boca, exalou uma fumaça esverdeada e sentiu que tinha adquirido um bafo de carne podre.

- Isso foi prazeroso... – ele não conseguiu controlar sua língua, que soltou a frase no seu melhor tom irônico.

Snape o observou com um olhar divertido e se aproximou novamente. Praticamente arrancou o copo da mão de Harry, para depois jogá-lo em um cesto de lixo. Harry ouviu o som do copo se despedaçando.

- Por que fez isso?

- Ninguém poderia beber naquele copo novamente. – Snape respondeu em um tom simplório, como se estivesse na sala de aula. – Se alguém engolisse ao menos uma gota daquela poção, morreria instantaneamente.

O queixo de Harry caiu alguns centímetros.

- E ainda tem coragem de dizer que não tinha veneno ali?

Harry não conseguia controlar sua língua de maneira alguma. Daquele dia em diante, ele nunca mais se sentiu intimidado perante Snape. E de mais ninguém. As conseqüências dos seus atos não importavam mais.

- Você podia tomar porque foi atingido pela Maldição da Terra das Sombras. – Snape explicou, encostando-se à parede oposta e encarando Harry como se ele fosse burro. – Mas sim, se bebesse novamente, morreria. Aliás, se você bebesse uma gota a mais do que bebeu, morreria.

- Oh... que bom que você não errou na medida. Fico feliz.

Snape encarava Harry como se estivesse esperando ele falar alguma coisa. Harry se encostou mais no sofá, que rangeu. Seu corpo ainda estava dolorido, mas sua cabeça pesava menos, de forma que ele já podia pensar com mais clareza. Aquela era a situação mais esquisita pela qual Harry já passou, incluindo na lista ter beijado uma fantasma. Ele e Snape, numa mesma sala, conversando civilizadamente, em vista de seus critérios normais.

- Você não me trouxe aqui apenas para me fazer beber essa poção, não é? – Harry perguntou lentamente.

- Não. Eu o trouxe aqui para conversarmos.

Harry o encarou com as sobrancelhas erguidas.

- Conversarmos? Quer dizer que essa poção que você me ofereceu era o que você chama de "chá"? Fico imaginando o que são os bolinhos...

Era incrível como Snape não se importava com a língua ferina de Harry. Ele até parecia estar se divertindo.

- Não haverá bolinhos. Eu não sou tão hospitaleiro assim.

- Que bom. Eu ficaria embaraçado de ser obrigado a recusá-los.

Snape conjurou uma cadeira e se sentou ao contrário nela. Ele apoiou os braços sobre o encosto dela, e seu queixo se posicionou em cima deles. Observava Harry como se o estudasse.

- Você quer me perguntar algo, Potter?

Harry queria se beliscar para saber se aquilo era mesmo real. Aliás, nada naquela noite parecia ser real. Talvez ele estivesse no meio de um sonho maluco. Muito maluco.

- Primeiro: por que estamos aqui, conversando como "velhos" colegas?

Snape sorriu ligeiramente.

- Não estamos conversando como velhos colegas. Se estivéssemos, certamente estaríamos sentados lado a lado, rindo de nossas lembranças em comum. Nós estamos fazendo isso?

- Não.

- Então acho que respondi sua pergunta.

- Por que estamos aqui?

- Para conversarmos, já disse. Quantos quilos de cera há em seu ouvido, Potter? Ou seu cérebro é tão primitivo que não consegue absorver essa mensagem simples?

Harry fingiu que tinha mesmo cera nos ouvidos e que não tinha escutado as últimas frases.

- Você não está aqui porque quer. – Harry arriscou. – Por que está aqui então?

- É claro que eu não estou aqui por vontade própria. – Snape respondeu como se aquilo fosse óbvio. E era mesmo. – Estou aqui porque tenho que estar.

- O que eu quero saber é o porquê! – Harry retrucou com raiva. – Agora é você que está surdo?

Os olhos de Snape se moveram, observando Harry.

- Isso não lhe diz respeito.

- Se você me trouxe aqui para conversarmos, é isso que faremos. E você não vai se esquivar das minhas perguntas.

- Eu odeio a sua prepotência, Potter.

- E eu odeio tudo em você.

Snape bufou e inclinou mais na cadeira. Seus olhos fuzilavam Harry.

- Você entrou na Penseira de Stevens, estou certo?

- Entrei. Mas como sabe?

- Uma pergunta de cada vez. Se bem que isso não importa, e eu não vou responder. – Harry respirou muito fundo para se acalmar, mas era bastante complicado. – Se você entrou lá, deve ter visto evidências de que...

- De que você "amava" minha mãe? – Harry disse venenosamente, também se inclinando para frente no sofá. – Sim, e eu queria mesmo falar com você sobre isso.

- Se você me deixar falar por um minuto sem ser interrompido, Potter, com sorte, talvez alguma coisa penetre no seu cérebro.

Harry queria atirar alguma coisa na cabeça dele, mas infelizmente não havia nada por perto que pudesse usar.

- Prossiga. Estou ouvindo. – ele disse com raiva.

- Eu amava sim sua mãe. – Snape começou. – Mesmo ela sendo uma grifinória. Eu sentia que ela possuía algo diferente, algo que me atraía.

Harry achava aquilo nojento.

- Isso não explica por que você me ajudou há poucos minutos.

Os olhos escuros e opacos de Snape não desviavam nem um milímetro dos de Harry.

- Por mais que você seja filho do Potter, ainda assim, você é filho dela. Mesmo que eu não goste de você, e que nunca vá gostar, ainda assim você tem o sangue dela, os olhos dela... Ajudando você, eu estou ajudando-a também e... pagando uma dívida para com ela.

Harry quase podia sentir que não era só esse o motivo.

- Dívida?

- Sim. De vários anos atrás.

- Acho que sei qual é essa dívida. – Harry falou devagar. – Seria por você ter planejado separá-la do meu pai?

Snape não respondeu diretamente.

- Lílian nunca me perdoou por isso. O frágil laço de amizade que nos ligava se rompeu, e ela nunca mais me tratou da mesma maneira.

- E me ajudando hoje foi como se você tirasse um peso da sua consciência? – Harry deduziu. – Igualzinho a quando você deteve aquela vassoura, no meu primeiro ano, quando disse que tinha uma dívida por meu pai ter salvo sua vida?

- Entenda como quiser. Eu já disse tudo o que tinha para dizer.

Snape se levantou e colocou a cadeira de lado. Ele abriu a porta e deixou-a aberta. Harry sentiu que estava sendo expulso, mas não se levantou.

- É isso? Você me traz aqui para me dizer isso? – Snape apenas o encarou. – Você participa de um plano covarde para separar meus pais anos atrás, e só tem isso para me dizer?

- O meu problema não era com você, Potter. Era com seus pais.

- Isso não lhe impede de me tratar mal desde a primeira vez que nos vimos por eu ser filho do meu pai. – Harry falou com mágoa na voz, levantando-se em um ímpeto.

- Eu não o odeio por você ser filho de Tiago Potter. É por você ser igual a ele, ou talvez pior.

- Meus pais não estão mais aqui. Eu estou.

- Não importa. Pra mim, o que eu tinha a resolver com eles já está resolvido. E com você também.

Harry suspirou e olhou para os lados. Snape ainda permanecia com a porta aberta. Não adiantaria permanecer ali. Ele sabia que Snape não diria mais nada. Caminhou até a porta e, quando passou ao lado de Snape, olhou-o profundamente e disse:

- Não foi só pela minha mãe. Há mais algum motivo para você ter ido me ajudar essa noite. E um dia eu vou descobrir.

Snape deu de ombros.

- Siga em frente. A nossa conversa está encerrada.

Harry bufou, e ainda podia sentir o bafo ruim que saía da sua boca. Ele deu as costas a Snape, e se dirigiu até a outra porta da masmorra, que dava para o corredor. Assim que colocou a mão na maçaneta, ouviu a voz de Snape atrás de si. Porém, não se virou para olhá-lo.

- Potter, só mais uma coisa.

- Pensei que a conversa estivesse encerrada.

Snape ignorou a última frase.

- Sobre o que você sabe. O que aconteceu entre mim e sua mãe. Ninguém mais, além de nós, precisa saber disso.

Harry não respondeu, apenas girou a maçaneta.

- E também não precisam saber que eu o ajudei hoje.

Ele parou um segundo antes de sair. A maçaneta ainda estava nas suas mãos.

- É mesmo? E se eu quiser contar?

- Você não tem motivos para contar. A minha relação com Lílian é algo tão pessoal para você quanto é para mim. E o seu orgulho não permitirá que alguém saiba que teve que ser ajudado por Severo Snape.

- Eu não precisava de você naquela hora. – Harry disse muito rápido. – Poderia muito bem me virar sozinho.

- Podendo ou não, eu lhe ajudei.

- Isso quer dizer que eu estou em dívida com você agora?

- Não. Ajudar você já foi o pagamento de uma dívida minha, e eu não quero que se sinta em obrigação comigo, Potter. Eu me sentiria mal se isso acontecesse.

Harry respirou fundo. Snape continuou.

- Vamos fazer um trato. Você não sabe de nada ao meu respeito, e eu não sei nada a seu respeito. Eu não sei que você e seus amiguinhos entraram no meu escritório há quatro anos para pegarem ingredientes da Poção Polissuco.

Harry se virou para olhá-lo com curiosidade.

- Por que está fazendo isso?

- Porque eu não quero que esteja em dívida comigo por nada. Quanto menos coisas nos ligarem, melhor será para nós dois.

Passaram-se alguns segundos antes que Harry respondesse.

- Trato feito. – ele murmurou, abrindo a porta. Porém, antes de sair, ele se apoiou na maçaneta e encarou Snape profundamente. – Mas tenho que admitir que estava certo dessa vez. Eu não ia contar a ninguém o que aconteceu hoje.

Snape sorriu ligeiramente, mas Harry não se arrependeu de ter dito aquilo. Ele saiu, fechando a porta atrás de si e ouvindo apenas o som do silêncio e dos seus passos enquanto caminhava pela masmorra gelada e vazia. Era esquisito, mas a conversa com Snape o fez bem. Naquele momento, ele sentiu que nem ele, nem Snape, possuíam rótulos. Ele era apenas Harry, e o Prof. Snape, apenas Snape.

PLOC.

Algo bateu na sua cabeça, repetidas vezes.

PLOC. PLOC. PLOC.

- Pára com isso, Rony! É irritante! Não precisa acordá-lo assim.

- Aprenda uma coisa, Hermione: homens não são delicados uns com os outros. Isso é coisa de...

- Tá, eu sei o que você vai falar. – a voz feminina soava entediada. – Vamos deixar ele dormir. Deve estar cansado.

- Não pode estar mais cansado do que eu. Hermione, eu cuidei dos "adoráveis" animais do Hagrid na Floresta Proibida, e ainda tive que suportar Draco Malfoy como minha dupla. Ninguém pode estar mais cansado do que eu.

PLOC.

- Pára... – Harry disse sonolento, abrindo os olhos, e enxergando os vultos de Rony e Hermione sentados no chão ao lado de sua cama. – Eu já acordei.

Rony parou seu movimento de bater na cabeça de Harry com os punhos um segundo antes de repeti-lo. Hermione estava ao lado dele, olhando-o como se ele fosse uma criança.

O quarto estava bastante iluminado. Harry se sentou, e sentiu o mundo girar. Parecia que estava de ressaca. Ele bem que gostaria que só tivesse bebido na noite anterior, mas não foi isso que aconteceu. Ele sabia disso, mas não queria se lembrar.

- Cara, você sabe que horas são? – Rony perguntou.

- Só se eu fosse adivinho. – Harry respondeu sarcástico. – Acabei de acordar, não percebeu?

Hermione reprimiu um risinho. Rony bufou.

- Três horas da tarde! Você praticamente hibernou!

Harry se virou para olhar os dois amigos.

- Nossa...

Rony mexeu o nariz, como se estivesse cheirando algo. Hermione tapou o rosto, fazendo uma careta.

- Harry, o que você comeu ontem? – Hermione perguntou com a voz anasalada pelo nariz tapado.

- Por quê?

- Seu bafo tá fedendo muito! – Rony exclamou.

Harry colocou a mão no rosto e soltou o ar. Realmente fedia.

- Maldita poção do Snape... – ele praguejou com a voz abafada pela mão na boca.

- O que você disse? – Hermione perguntou, mas Harry já tinha se levantado e caminhado até o banheiro.

- Nada! – ele gritou de dentro do banheiro após fechar a porta.

Harry se encarou no espelho da pia, e teve que chegar muito próximo a ele, pois estava sem óculos. Estava péssimo. Parecia que não tinha dormido por décadas. Seus olhos estavam inchados e roxos, seus cabelos mais despenteados do que nunca, seu rosto extremamente pálido e seus lábios brancos e inchados. Ele tinha uma desagradável aparência de doente.

Quando Harry voltou para o quarto, depois de lavar seu rosto umas cinco vezes e escovar seus dentes umas dez, viu Rony sentado no parapeito da janela e Hermione com as costas apoiadas na cabeceira da cama do namorado.

- Você nem trocou de roupa, Harry? – Hermione perguntou, observando-o.

Harry parou no meio do quarto e observou a si mesmo. Ele ainda estava com a mesma roupa suja da noite anterior. Sua cabeça estava tão dolorida do dia anterior, que ele nem se lembrava direito do que tinha acontecido. Só sabia que, depois de ter saído da masmorra de Snape, foi direto para a Torre da Grifinória. A Mulher Gorda o xingou de tudo quanto era nome por ele tê-la acordado às quatro e meia da madrugada. Quando chegou no quarto, estava tão cansado que adormeceu com a roupa do corpo.

- A detenção com a Profª. Stevens deve ter sido realmente divertida para você ficar lá todo aquele tempo. – Rony comentou rindo. – Eu voltei da minha detenção à uma da madrugada, e você ainda não tinha voltado.

Se Rony soubesse o quanto fora divertido... Tão "divertido" que Harry não queria nunca mais se lembrar daquela noite. Mas ele não tinha certeza se contaria aos amigos o que tinha acontecido. Não estava disposto a narrar as coisas que tinha visto na Penseira, ou então o que ocorrera depois... o beijo e a maldição. Talvez fosse melhor fingir que ele tinha apenas contado números na sua detenção.

- AH! – Hermione exclamou bruscamente, batendo as mãos no colchão da cama de Rony. Ele e Harry olharam para a garota ligeiramente assustados. – Vocês precisam saber de uma coisa!

Harry e Rony se entreolharam. Para Hermione estar com aquele sorriso, tinha que ser algo muito bom. Harry se sentou na cama e ficou encarando a amiga intrigado. A voz de Rony se fez ouvir:

- Uma coisa? Que coisa?

- Eu ainda não te contei, Rony... Você acordou muito tarde hoje também.

- Tá, mas será que você podia contar logo? – ele insistiu. – Ou vai ficar enrolando com todo esse suspense?

O sorriso de Hermione era enorme. Ela olhou de Harry para Rony, e depois voltou a encarar Harry. Ele começou a ficar curioso.

- Essa detenção que Stevens lhe aplicou foi a última coisa que ela fez aqui em Hogwarts, Harry... Parece que ela foi despedida!

- Despedida? – Rony perguntou pasmo.

"Despedida?", Harry pensou. Claro, depois do que ela fez, não poderia continuar em Hogwarts. Mas ela tinha fugido...

- Isso mesmo! – Hermione exclamou sorridente. Harry pôde entendê-la, finalmente. Depois do que Samantha fez a ela, Hermione tinha todas as razões para querê-la longe.

- Mas espera um pouco... – Rony começou. – Despedida? Assim, da noite para o dia?

- Não exatamente "despedida". – Hermione explicou com desagrado. – Parece que ela "pediu as contas".

Harry levantou os olhos. "Pediu as contas"? Era esquisito pensar que, depois de fugir dele e de Snape, Samantha tivesse ido tranqüilamente até o escritório de Dumbledore pedir demissão. Era maluquice pensar assim. Certamente ela deveria ter fugido mesmo, e o que Hermione estava dizendo era apenas uma explicação que inventaram para a saída dela.

- Quem te contou isso, Hermione? – Harry perguntou.

- Quem mais poderia ser? Peta Spencer...

- É claro... – Rony comentou com um risinho. – Tem que ser a Peta para saber das mais novas fofocas de Hogwarts... Me admira você, Mione, sair por aí escutando fofoca...

Hermione fez um bico emburrado depois da provocação de Rony.

- Isso me interessava. – ela disse com dignidade. – Saber que Stevens foi para bem longe é uma das melhores notícias que eu poderia ter recebido.

Harry pegou seus óculos, que estavam sobre a cabeceira, e colocou-os no rosto. O relógio marcava três e quinze da tarde. O globo de vidro que sua avó Arabella lhe dera de presente tocava uma música baixa e sussurrante; uma chuva fina caía, constante e teimosa, sobre o castelo de Hogwarts, e era uma noite escura ali dentro.

- Uma coisa eu não consigo entender... – Rony falou lentamente. – Por que você odeia tanto a Profª. Stevens, Hermione? Sim, porque, tá certo que ela não é exatamente "simpática", mas... ninguém odeia alguém gratuitamente.

Harry olhou de esguelha para Hermione. Ela mexia seus olhos freneticamente, e parecia tentar desviá-los de Rony e Harry.

- Tenho meus motivos.

- Mas quais são? Mione, por que você não quer contar para nós?

- Talvez... um dia... eu conte. Mas agora não. Não quero pensar nisso.

O tom dela era de que a conversa estava encerrada. Harry pegou o globo de vidro e começou a mexer nele. Assim que o tocou, a chuva se tornou mais forte, e a noite mais escura.

- Nós sabemos que são bons motivos, Mione. – ele murmurou.

Rony o olhou intrigado, bem como Hermione. Ela suspirou e disse numa voz tão baixa, que era difícil ouvi-la:

- Ela mexeu... com as coisas mais importantes da minha vida.

Um meio sorriso surgiu nos lábios de Harry, mas ele foi discreto; nem Rony ou Hermione perceberam. Bom saber isso. Saber que era importante para alguém. Era uma sensação boa. A chuva melhorou sensivelmente, mas ainda era noite.

Harry depositou o globo de vidro na mesa de cabeceira. Precisava de um bom café sem açúcar para melhorar sua ressaca.

O sol de fim de tarde iluminava o dormitório masculino do sexto ano. Depois de ficar algum tempo nos jardins conversando com Rony e Hermione sobre a detenção de Rony no dia anterior, Harry disse a eles que estava com um pouco de dor de cabeça (o que não era totalmente uma mentira) e que ia deitar por algum tempo.

Ele encarava o teto da sua cama de dossel. Sua cabeça ainda estava um pouco tonta, mas isso não o impedia de pensar. Sim, mesmo querendo esquecer, ele recomeçou a pensar sobre o que tinha acontecido.

Parecia um quebra-cabeças. Ele sabia que tinha solução, e que ela estava próxima, mas não tinha certeza se realmente queria encontrá-la. Não sabia se a figura formada pelas peças era algo que o agradaria. Talvez fosse melhor deixá-la incompleta, mas mesmo assim, ele ainda sabia que precisava terminar. Precisava obter as respostas, e só as conseguiria se pensasse.

O que ele sabia de concreto? Sabia que era filho de Tiago e Lílian. Sim, ele era filho de Lílian, tinha certeza disso. Ele tinha olhos verdes. Até Snape admitia isso. Até Samantha. E depois da última cena da maldição, a cena mais dolorosa, ele não poderia duvidar de que Lílian fosse sua mãe. A maneira como ela o beijou e disse que o amava... o seu olhar... só uma mãe faria aquilo. Só uma mãe daria sua vida pela do filho.

Harry se virou na cama. Seu braço ficou solto do lado do colchão, e ele o balançava de um lado para outro. A luz opaca do sol poente iluminava-o fracamente. Ele queria mesmo saber? Sentia que não havia luz no fim do túnel. Se ele chegasse no fim, suas aflições aumentariam. Ele não queria chegar. Tinha que admitir para si mesmo: ele estava com medo de chegar ao fim.

O que mais sabia? Seu pai era herdeiro de Gryffindor. Isso também o fazia um herdeiro. Porém, se ele era herdeiro de Gryffindor, por que o Chapéu Seletor quis colocá-lo na Sonserina? Ele tinha características sonserinas? Não gostava de pensar nisso, mas tinha que continuar pensando.

"Gryffindor e Slytherin será"

O Chapéu Seletor tinha visto mais alguma coisa na sua cabeça. Harry fechou os olhos. Droga, ele não queria ver. Tinha que parar de pensar, queria parar, mas não conseguia. Ele não podia chegar ao fim...

Tinha visto seus avós paternos na Penseira. Sabia que Arabella era sua avó materna. Mas Christopher não era seu avô de sangue... Quem era seu avô? Harry queria parar de pensar, desesperadamente.

"Não existem coincidências."

Samantha era filha de Voldemort. Mas seria possível que... Não... Ele estava chegando perto, mas não queria ouvir as palavras que começavam a surgir em um ponto distante, escuro e esquecido do seu cérebro.

"Então... ele é... herdeiro de Gryffindor?

O seu sangue não pode se misturar ao dele.

Isso significa... Espera um pouco. Quer dizer que... o sangue da sua preferida também não pode..."

Preferida... preferida...

"Lílian, a perfeitinha, a preferida..."

"PORQUE VOCÊ TAMBÉM TEM O SANGUE DELE, O SANGUE DE VOLDEMORT!"

Harry tapou os ouvidos com o travesseiro. Não queria ouvir isso, mas as palavras ecoavam na sua cabeça como se Samantha ainda as estivesse gritando. Ele estava chegando no final... mas não queria. Não queria abrir os olhos e ver o que sua cabeça insistia em lhe mostrar. Ele sabia que não ia gostar da figura que se formaria no quebra-cabeças.

Ele se sentou na cama de joelhos. Tinha anoitecido. Chegara até ali, não é? Precisava continuar, mesmo que soubesse que iria doer. Não poderia continuar de olhos fechados. Cego, ele não conseguiria prosseguir. Tinha que ver a verdade e encará-la de frente. Aceitá-la.

Levantou-se e abriu seu malão. Havia tanta coisa jogada ali dentro, que ele demorou algum tempo para achar o que queria. Onde estava mesmo? Dentro da caixa. E onde estava a caixa? Debaixo de todas aquelas roupas.

Harry segurou a caixa entre as mãos, depois de muito revirar as roupas. Aquela mesma caixa... de madeira escura, com desenhos apagados pelo tempo. A sua "caixa de lembranças", onde guardava tudo que lhe era precioso. Ele caminhou de volta até sua cama e se sentou na beirada dela. Apoiou a caixa no colo, e posicionou seus dedos no fecho enferrujado que sempre emperrava. Por um instante, desejou que ele emperrasse agora e que não abrisse mais.

Mas ele não emperrou. Abriu mais rapidamente do que em qualquer outra vez que Harry tenha tentado abri-lo. Agora ele tinha que continuar. Parecia que tinha mesmo que fazer aquilo.

Abriu lentamente a caixa. E se não estivesse ali dentro o que ele "queria"? Suspirou. Estava ali dentro. Foi a primeira coisa em que Harry bateu seus olhos. O destino realmente não estava a seu favor. Ele não iria ajudá-lo com imprevistos bem-vindos.

Pegou a carta de sua avó entre os dedos, e colocou a caixa de lado. Levantou-se, nunca deixando de olhar o envelope na sua mão. A letra de sua avó... Andou em círculos pelo quarto. Não adiantava adiar, ele teria que ler o que estava ali dentro mais cedo ou mais tarde.

Harry se sentou no parapeito da janela. Por mais que já tivesse lido aquela carta centenas de vezes, nunca a lera sem emoção. Racionalmente. Porém, agora, ele sentia que poderia fazer isso. Era o momento em que se sentia mais vazio de emoções na sua vida. Poderia ler aquela carta, pensando em cada linha, cada palavra.

Era isso que iria fazer, mesmo que soubesse que o resultado disso seria algo que ele não gostaria de saber.

Abriu a carta e desenrolou o pergaminho. Leu cada palavra com cuidado, cada frase... Não chorou em nenhuma parte, não conseguia chorar. Ainda estava oco por dentro. Porém, mesmo assim, ele mordeu tanto o lábio inferior ao ler aquela carta novamente, que ele começou a sangrar. O silêncio na sala era favorável para que as palavras ecoassem na sua cabeça.

Estava escrito tudo ali. Claramente. Ele que nunca quis enxergar. Nunca se preocupou em fazer isso, porque nunca quis realmente. Sua avó não lhe disse tudo diretamente, mas mesmo assim, ela deixou as pistas bem claras para que ele pudesse perceber... Mas ele não queria. Porque sabia que se sentiria dessa maneira.

Harry tinha nojo de si mesmo.

A carta estava prensada entre seus dedos cerrados. Ela estava ficando cada vez mais amassada, mas ele não se importava nem um pouco. Também não via as pessoas que passavam ao seu lado enquanto descia a escada quase pulando os degraus.

A sala comunal era apenas um borrão na frente dos seus olhos quando ele chegou. Sua cabeça não queria entender mais nada. Ele só sabia que tinha chegar a um lugar, e não precisava pensar para chegar até lá. Sabia o caminho de cor.

- Melhorou da dor de cabeça, Harry? – ouviu Hermione, de um local muito distante na sua cabeça perturbada, perguntar.

Não respondeu.

- Ei, Harry, a gente tá falando com você! – Rony gritou indignado.

Ele atravessou a passagem impetuosamente, sem se preocupar com as palavras de Rony. Não pediu desculpas quando derrubou Neville, que estava entrando na sala. E muito menos respondeu o "boa noite" que Colin e Peta lhe desejaram no corredor do sétimo andar.

Não ouvia as vozes ao seu redor. Seus pés se sobrepunham um ao outro, sem se embaralharem. Eles sabiam aonde ir. Nem ao menos precisava pensar...

Queria que Hogwarts não fosse tão grande. Ou que estivesse com sua vassoura para poder chegar mais rápido ao seu destino. Os quadros viravam grandes borrões de tinta quando passava por eles. As escadas eram obstáculos a serem ultrapassados, e ele as descia mais rápido do que jamais fez.

POF.

- Você nunca olha por onde anda, Potter?

Ele não respondeu novamente. Desviou-se de Katherine Willians, e a deixou sozinha, sem ao menos olhar para trás.

- Grosso!

Estava chegando perto. O corredor do terceiro andar... Era ali. Apenas mais alguns passos...

- Pudim de leite!

O gárgula de pedra girou. Ele entrou pela passagem antes mesmo que ela se abrisse por completo. Subiu a escada circular de dois em dois degraus. Quase podia sentir as palavras saltando de sua boca na forma de gritos. Ele queria gritar com uma pessoa. Uma pessoa que nunca foi capaz de lhe contar o que ele precisava saber...

Pra que educação? Ele não precisava disso naquele momento. Não bateu na porta como de costume. Sentiu a maçaneta gelada entre seus dedos suados e girou-a, escancarando a porta com estrondo.

Atrás da mesa. Ali estava quem ele queria: Alvo Dumbledore. Ficou parado na porta, encarando o velhinho que lhe respondia com um olhar, que no início, era de alguém que foi pego de surpresa. Porém, mais tarde, o seu olhar assumiu um brilho de entendimento. Dumbledore sabia por que ele estava ali.

- Harry Potter! – a Profª. McGonagall exclamou horrorizada. Ela estava ali, e ele nem percebeu. A única coisa que via dentro daquela sala era Dumbledore, e aqueles seus odiosos olhos azuis, que exalavam uma compreensão que o enraiveciam ainda mais.

A professora se levantou da cadeira onde estava sentada, enquanto Dumbledore não pronunciava uma palavra sequer; apenas encarava-o profundamente, sem desviar o olhar. A Profª. McGonagall se colocou na sua frente, impedindo sua visão de Dumbledore. Porém, mesmo assim, ele continuou com o olhar na mesma direção.

- Isso são maneiras de entrar na sala do diretor, Harry? Você não pode fazer isso, está desrespeitando...

- Minerva! – Dumbledore exclamou. A professora se moveu para olhá-lo, de maneira que ele pôde enxergar novamente o diretor. – Deixe-nos a sós, por favor. Harry tem algo para me falar.

Ele riu baixinho. Mas não era um riso feliz, era vazio. Dumbledore voltou a olhá-lo, e era irritante como ele parecia entendê-lo. A Profª. McGonagall, pelo contrário, não estava entendendo absolutamente nada.

- Mas, Alvo...

- Por favor, Minerva.

Ela bufou e olhou para ele repreendedoramente. Por sua vez, ele não a olhou de volta. Seus olhos estavam grudados em Dumbledore. A professora se desviou dele para sair, fechando a porta atrás de si.

Eles ficaram a sós na sala vazia. Fawkes soltava alguns sons no seu poleiro, mas Fawkes não era importante naquele momento. Seus olhos não paravam de se mirar por um segundo sequer. Dumbledore respirou fundo, e apontou para a cadeira à sua frente.

- Sente-se, Harry.

Ainda bem que ele não tinha sorrido. Ele estava com raiva até do sorriso do velhinho. Mas também o irritava o pedido para se sentar. Ele não queria sentar. Estava elétrico demais para isso.

Atravessou a distância que o separava de Dumbledore em menos de três segundos. Com a mesma mão que segurava a carta, bateu com força na mesa dele, tanto que o vidro de tinta que estava sobre ela tremeu, caiu e se quebrou em vários pedaços sobre o chão, manchando-o de preto. Dumbledore pareceu não se importar.

Eles se encararam por mais um segundo. O brilho dos olhos azuis de Dumbledore dizia claramente que ele entendia o que estava acontecendo com perfeição. Ele ajeitou os óculos de meia-lua sobre o nariz comprido, esperando pelo que o rapaz à sua frente tinha a lhe dizer. Ele respirou fundo antes de falar. Sentia vontade de vomitar só de pensar em dizer aquelas palavras, mas era necessário.

- Eu sou neto de Lord Voldemort.