Capítulo Vinte e Seis – Cartas rasgadas e queimadas
Excetuando-se o sonho de poder um dia ver seus pais, Harry achava que seu maior desejo, em toda sua vida, era de que a frase que acabara de pronunciar não fosse verdadeira. Ele queria que Dumbledore a negasse, que dissesse que Harry estava equivocado, que tinha se enganado, que aquilo era um devaneio maluco de sua cabeça. Harry queria que ele lhe dissesse para ir descansar a cabeça, pois deveria estar exausto. Ele só desejava que Dumbledore falasse que ele estava enganado e lhe desse um chá ou coisa assim para ele dormir sem sonhar nem pensar mais nessas coisas.
Mas Harry descobriu que a maioria dos seus desejos não se realizam.
Dumbledore umedeceu os lábios, abaixou seus olhos azuis até as mãos de Harry, para depois voltar a encará-lo dentro dos olhos verdes. Harry podia ver que o azul dos orbes do diretor estavam opacas, e que ele não estava feliz com aquilo.
- Sim, Harry. Você finalmente chegou à verdade.
A mão do rapaz escorregou de onde estava, e a carta amassada jazeu solitária sobre a mesa de Dumbledore. Harry deu alguns passos para trás, olhando pasmo para o diretor. Sua boca estava aberta e seus olhos não piscavam, tal era seu assombro. Dumbledore o encarava com uma certa compaixão.
Harry não sabia o que dizer; ele estava completamente chocado. Chegar a essa conclusão era uma coisa; ouvi-la ser confirmada pela boca do homem que ele mais admirava e confiava no mundo, era outra completamente diferente. Era bem mais duro e incomensuravelmente perturbador.
- Neto... Eu tenho o sangue dele...
As palavras saíram entrecortadas e sussurradas. Harry chegou naquela sala com vontade de gritar com Dumbledore, brigar com ele, mas não conseguia fazer nada disso. Ele só conseguia olhar para o diretor, em estado de choque, e permanecer paralisado, com sua cabeça vazia. Só uma frase era repetida dentro dela:
"Eu sou neto dele... de Voldemort..."
- Harry...
Dumbledore se levantou e tentou se aproximar, mas Harry recuou e o impediu. Ele não queria que ninguém chegasse perto dele. Não era digno disso. Ele era neto do bruxo mais cruel e impiedoso dos últimos tempos e, se ele mesmo tinha nojo de si próprio, imaginava o quão asqueroso deveria ser para os outros.
- Você não tem nada para se envergonhar, Harry... – Dumbledore disse em um tom bondoso, enquanto Harry mantinha uma boa distância dele.
- Como não tenho? – o rapaz perguntou com a voz fraca. – Eu sou neto dele... Tenho o sangue dele... Talvez eu até seja como ele...
- Nunca diga uma coisa dessas! – Dumbledore exclamou veemente. – Você não é como ele, Harry! Você é uma pessoa totalmente diferente!
- Como posso saber? Eu nunca passei pelas situações que ele passou, mas e se passasse? Eu poderia reagir da mesma maneira... Poderia fazer as mesmas coisas, ter os mesmos desejos...
Doía dizer aquilo, mas era o que ele sentia. Doía admitir para si mesmo, mas ele sabia que poderia estar certo em suas deduções.
- Não! Não, Harry! Ter o sangue dele não significa que você precise ser como ele! Quem controla sua vida, suas atitudes, é você mesmo! Depende somente do seu caráter... E eu sei que você tem um bom caráter.
Fawkes se remexeu no poleiro. A sala estava quase totalmente escura. O vento fresco de verão apagou as poucas velas que estavam acesas anteriormente, e a única luz na sala era advinda da lua ligeiramente encoberta por nuvens. Mesmo assim, Harry conseguia enxergar o brilho compreensivo e bondoso nos olhos de Dumbledore.
- Como pode saber? O senhor não sabe nada sobre mim... Não sabe do que eu sou capaz...
- Está enganado. – sua voz soava convicta; apenas metade do rosto podia ser visto na escuridão, mas a barba branca refletia a luz da lua. – Eu sei muito mais sobre você do que possa imaginar. Eu posso afirmar, com toda a certeza e sem medo de estar errado, de que você tem valor.
- O senhor só está me dizendo isso para me consolar, mas nada vai me consolar. Nada vai me fazer conviver com o fato de que eu tenho o sangue sujo de Voldemort correndo nas minhas veias.
- Estou apenas dizendo a verdade. Você já me provou que tem caráter, Harry. Diversas vezes. Não preciso checar a sua descendência para saber disso. O sangue que corre nas suas veias não é o mais importante. O que realmente importa são os seus sentimentos. O seu coração fará a diferença...
- O meu coração está vazio.
A voz de Harry soava sombria e amargurada. Ele não podia ver a si mesmo na escuridão. Somente Dumbledore estava parcialmente iluminado na sala escura, mas seus olhos pareciam brilhar tão intensamente, que iluminavam tudo ao seu redor.
- Não, não está. Você só acha que ele está, mas nunca poderia estar.
- O senhor não entende...
Harry queria morrer. Ele não merecia estar vivo. Alguém como ele não merecia estar entre pessoas boas. Agora entendia porque sempre foi sozinho... era o que ele realmente merecia.
Os passos de Dumbledore ecoaram pela sala. Harry não o olhou, apenas manteve seus olhos fixos no chão. Ele ouviu o som de um papel sendo desamassado, mas não se importou em descobrir o que Dumbledore estava fazendo.
"Depois de alguns meses, nasceu uma menina..." – a voz de Dumbledore pôde ser ouvida e, quando Harry levantou os olhos, pôde ver que o diretor estava lendo a carta amassada que ele tinha deixado sobre sua mesa. – "Uma menina que era idêntica a mim."
Harry não conseguiu dizer nada. Não conseguiu pensar em mais nada. Ele apenas ouvia a voz de Dumbledore, lendo as palavras que sua avó tinha deixado naquela carta.
"Esta outra menina tinha os cabelos ruivos e os olhos verdes como os meus."
A voz de Dumbledore era calma, pausada e... confortadora. Harry deixou seus olhos se fecharem lentamente, para que ele pudesse sentir as palavras. Dumbledore parecia selecioná-las com cuidado, e era impressionante como a mesma carta que, lida por Harry, tinha se tornado uma arma, um punhal no seu coração, agora, lida por Dumbledore, era como o alívio de um vento fresco num dia quente de verão.
"Lílian era adorável... Quando ela ingressou na Grifinória eu tive certeza de que Lílian era mesmo igual a mim e não tinha nada de parecido com o pai verdadeiro."
Dumbledore fez uma pausa. Era como se ele estivesse sentindo que Harry queria falar. Apesar de estar com o coração ligeiramente mais leve, Harry ainda tinha muitas dúvidas. Ele abriu seus olhos para encarar Dumbledore.
- Como ela pôde ser selecionada para a Grifinória se tinha o sangue dele?
O diretor dobrou a carta com cuidado. Ele piscou, e encarou Harry por detrás dos óculos de meia-lua.
- Ela escolheu a Grifinória.
- Escolheu? O senhor quer dizer que ela escolheu a Grifinória assim como...
- Como você também a escolheu. – Dumbledore completou. – Você se lembra, Harry? Se lembra quando conversarmos exatamente sobre isso... há quatro anos?
- O senhor me disse... disse que...
- "São as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades." Foi exatamente o que eu disse.
- Mas ela era filha de Voldemort! E eu sou neto dele! Nós temos o sangue de... – Harry parou para pensar. – O sangue de Salazar Slytherin. Como não fomos para a Sonserina?
- É simples, Harry. Vocês dois escolheram a Grifinória, porque são verdadeiros grifinórios. Você acha mesmo que o sangue é tão importante, Harry? Está enganado novamente. Tanto você, quanto sua mãe, têm sim qualidades de sonserinos. Mas também têm as de grifinórios. Mais do que isso, vocês escolheram ser grifinórios. Ninguém é igual a outra pessoa no universo. Você é uma pessoa, sua mãe outra, e Voldemort uma outra completamente diferente. Cada um tem a sua personalidade, toma suas próprias decisões, enfim, tem a sua própria vida. Você e sua mãe só iriam para a Sonserina se realmente quisessem isso.
- Naquele dia... – Harry começou lentamente. – O senhor me disse que eu tinha poderes de Slytherin porque Voldemort tinha transferido poderes para mim, na noite em que me deu a minha cicatriz.
- Eu menti.
- Mentiu?
Dumbledore assentiu calmamente. Harry estava estupefato. De todas as pessoas... de todas... a que ele menos achava que fosse mentir para ele era Dumbledore. E agora ele via que estava errado. Parecia que seu mundo estava terminando de ruir.
- Por quê?
A luz pálida da lua enfraqueceu, e a sala ficou mais escura. Harry ouviu a respiração pesada de Dumbledore.
- Porque eu não queria que você sofresse.
- Sofrer? – Harry falou com revolta. – O senhor não acha que eu sofri muito mais tendo que descobrir o real motivo sozinho?
Dumbledore negou.
- Seria pior se eu lhe contasse, acredite. Harry, eu nem conseguia imaginar qual seria sua reação se eu contasse diretamente isso para você. – ele respirou fundo. – Além disso, eu só lhe traria esse sofrimento mais cedo.
- O senhor está dizendo que mentiu para o meu bem?
- Encare como quiser. Foi o que eu achei mais correto a se fazer. Eu posso ter errado e lhe peço perdão. Mas eu segui meu coração.
- E por que o senhor não queria que eu sofresse?
A cabeça de Dumbledore estava ligeiramente inclinada, de modo que Harry não conseguia ver seus olhos.
- Porque gosto de você. Gosto de você como se... tivesse meu próprio sangue. Como se fosse alguém da minha família.
Harry não soube o que dizer depois disso. Ele não se lembrava de ter ouvido, alguma vez, a voz de Dumbledore tão entrecortada e sussurrante. O diretor também não disse mais nada. Ele deu as costas a Harry e caminhou até a janela.
- Professor?
Dumbledore não se virou. Pela primeira vez, ele parecia não querer olhar para Harry nos olhos.
- Eu tenho orgulho de você, Harry. – a voz dele estava tão baixa, que mal dava para Harry ouvi-lo. – Você se tornou uma pessoa melhor do que eu imaginava. Sei que deve estar se sentindo diminuído e, até, enojado de si mesmo por ser neto de Voldemort, mas até isso mostra o quanto você tem caráter, por mais que esteja enganado no seu julgamento. Não importa que você seja neto dele. Não importa para mim.
A garganta de Harry estava seca. Ele queria falar, mas não conseguia. Só foi capaz de ouvir a voz de Dumbledore, pausada, porém, cheia de emoção, quando ele voltou a ler a carta de sua avó.
"Orgulhosa por ver que, apesar de tudo, você é uma pessoa de caráter, com muitas qualidades." – ele lia. Harry não conseguia ver seu rosto. Dumbledore parecia não querer mostrá-lo.
"Eu rezo para que você consiga ser feliz algum dia, será difícil, mas você vai conseguir. Nunca esqueça que há muitas pessoas que te amam, Harry, muitas mesmo. Não acredite nas aparências, eu sou um exemplo disso; eu tentava ser fria com você, mas na verdade eu sempre te amei. Às vezes, são aquelas pessoas que parecem que não gostam de nós que nos amam de verdade. Eu tenho e sempre terei muito orgulho de você, meu neto. Lembre-se de fazer o que você pode e não o que as pessoas querem que você faça."
Dumbledore fez uma pausa. Respirou profundamente, e leu a última frase:
"Siga sempre o seu coração, somente ele pode te dar as respostas certas."
Harry quase não conseguia respirar, quanto mais falar. E ele tinha algo para falar, algo que estava na sua garganta, impedindo-o de respirar, mas ele não conseguia dizer.
- Você se lembra da Profecia Sagrada, Harry?
A voz de Dumbledore ecoou pela sala silenciosa. Ele permanecia de costas para Harry, encarando a noite pela janela. Fawkes se remexeu novamente. Harry soltar o ar longamente pela boca. Dumbledore pareceu encarar isso como um "sim".
- "Do seu coração cintilará a luz." – Dumbledore recitou. – Do seu coração, Harry.
- Eu sou mesmo o herdeiro a quem ela se refere?
- Sim. Eu vi o seu retrato quando foi a minha vez de entrar no Portal dos Tempos. Quando eu te vi, Harry, quando ainda era um bebê, eu o reconheci. Mesmo que você não tivesse a aparência do retrato que Helga Hufflepuff desenhou, no qual você estava com uma aparência muito próxima da de hoje, eu ainda assim pude reconhecê-lo perfeitamente.
Harry demorou alguns instantes para falar novamente.
- E como eu poderei derrotar Voldemort?
- Isso eu não posso lhe dizer, Harry. Não posso te ajudar a entender o que diz a profecia porque eu não sei o que ela significa. A única coisa que eu sabia era que você era o herdeiro, mas eu também não podia te dizer isso antes que você descobrisse sozinho. Você mesmo terá que interpretá-la, Harry, para saber o que terá que fazer... quando chegar a hora.
- Então... eu terei que fazer isso sozinho?
- Sim. Eu queria, do fundo do meu coração, poder ajudá-lo, mas não posso. Eu não sei tudo, Harry. Sou um humano como qualquer outro. Eu não consigo interpretar o que a profecia diz sobre o que você deverá fazer. Acho que essas linhas só podem ser interpretadas pelo verdadeiro herdeiro, que é você.
Dumbledore ainda não tinha se virado. Harry respirou fundo e caminhou até ele. Ele não se sentia mais vazio. O olhar de Dumbledore estava focalizado no horizonte, e ele não olhou para Harry quando o rapaz se posicionou ao seu lado. Harry, no entanto, não parava de olhar para o velhinho.
- Eu tenho algo mais para dizer ao senhor. – Harry murmurou, finalmente conseguindo soltar o que estava na sua garganta e que ele tanto queria dizer.
- Diga o que quiser, Harry.
- Eu também gosto muito do senhor, professor. – Harry disse com a voz embargada. – Como um mestre... como um amigo... como alguém da minha família.
Dumbledore finalmente se voltou para Harry, que o olhava sem piscar. A respiração do velhinho foi profunda. Ele sorriu levemente, e seus olhos voltaram a brilhar. Lentamente, sua mão enrugada se posicionou no lado direito da cabeça de Harry, que sentiu o toque carinhoso do velho senhor.
- Eu sempre estarei do seu lado, meu menino.
O velhinho, delicadamente, puxou Harry em um abraço carinhoso. Posicionou o rosto de Harry no seu ombro e tocou o alto da cabeça do rapaz com ternura. Harry fechou os olhos. Ele sim deveria ser seu avô...
Mesmo assim, ele sorriu. Sentiu-se querido, e isso preencheu seu vazio.
Aquela semana passou lentamente. Era a última antes das férias. O tempo quente obrigava os alunos a passarem a maior parte de seus dias fora do castelo, aproveitando o sol ou o vento fresco dos fins de tarde.
Os jardins estavam mais bonitos do que de costume. A horta que Hagrid cultivava próxima à sua cabana dava mais frutos e belezas do que deu durante todo o ano. O sol refletido nas flores das mais diversas cores e na grama verde vivo emoldurava o quadro perfeito. Era quase impossível lembrar que, fora dali, estava havendo uma guerra.
O sol se punha atrás das árvores altas e espessas da Floresta Proibida naquele fim de tarde de sexta-feira, dando um tom avermelhado ao campo de quadribol. As arquibancadas estavam vazias, e o único som era o de pássaros cantando em algum lugar distante dali. O vento quente batia forte no rosto de Harry enquanto ele voava.
Ele tentou se apegar às palavras de Dumbledore, mas ainda assim era complicado. Tanto que, durante toda a semana, Harry tentou se afastar o máximo que pôde do convívio entre outras pessoas. Até de Rony e Hermione ele se afastou ligeiramente. Era estranho, mas ele se sentia outra pessoa depois do que descobriu. Era como se, somente agora, soubesse quem realmente era.
Hogwarts estava em clima de fim de aulas. Não se falava em outra coisa entre os alunos que não fossem as notas dos exames finais ou os planos para os dois meses de descanso que teriam dali a pouco tempo. Entre os professores, os assuntos eram outros; o mais comentado, certamente, era a saída repentina de Samantha Stevens do cargo de professora de Defesa Contra as Artes das Trevas.
Corria o boato entre os alunos de que Snape tivesse feito alguma armação para que a professora desistisse e que, agora, ele já estivesse tentando convencer Dumbledore a colocá-lo como professor da matéria. Harry sabia que, por mais que Snape desejasse essa cadeira, ele não tinha feito isso. Era provável que somente Harry, dentre todos os alunos, soubesse o real motivo da saída de Samantha. Entre os professores, parecia que só Snape sabia disso também. Mas Harry achava muito difícil que Dumbledore também não soubesse, mesmo que ele não tivesse se pronunciado sobre isso.
Mais uma vez (e isso era de se esperar), comentários sobre o cargo de Defesa Contra as Artes das Trevas estar amaldiçoado voltaram a correr pelo castelo. Desde o primeiro ano de Harry que nenhum professor ou professora parava no posto. E especulações sobre quem seria o próximo maluco a se aventurar a pegar esse trabalho corriam como vento pelos corredores.
Porém, a única coisa que todos sabiam de concreto era que Hogwarts tinha aberto uma vaga para professor e que começava a procurar por um antes mesmo que o ano letivo se encerrasse.
No meio disso tudo, pelo menos uma coisa boa Harry sabia: tinha passado de ano. Sua melhor nota foi mesmo em Defesa Contra as Artes das Trevas e a pior em Poções. Típico. Rony, como também era típico, passou raspando. E, para completar a lista de acontecimentos já esperados, Hermione passou com as melhores notas em todas as matérias. E falando nela, uma garota de cabelos espessos acenava para Harry de um ponto distante no meio do campo.
- Hermione? – ele murmurou para si mesmo, estreitando os olhos para vê-la melhor e desviando a Firebolt para descer.
O vento que a vassoura de Harry produziu quando ele aterrizou fez os cabelos da menina se agitarem, e ela teve que segurá-los para que não despenteassem. Ela se aproximou do rapaz com um grande sorriso no rosto.
- O que aconteceu? – ele perguntou cauteloso por ela estar próxima. Ultimamente, ele não se sentia muito bem quando qualquer pessoa se aproximava, mesmo que fossem seus melhores amigos.
- Vim te chamar, Harry! – ela exclamou ainda com o sorriso. – Preciso que venha ver uma coisa.
Ele enrugou a testa.
- E como você me achou aqui?
Hermione fez a mesma expressão que costumava fazer quando algo era muito óbvio. Ela postou as mãos nos quadris e olhou para Harry como se ele fosse bobo ou algo assim.
- Fácil. Eu vim no lugar mais provável de você estar. Afinal, você tem passado quase todas as tardes dessa semana voando nesse campo sozinho, que eu sei.
Harry fingiu que não entendeu a insinuação dela e começou a caminhar até o vestiário. Hermione o seguiu, e ele sabia que ela começaria a fazer perguntas. Ela e Rony estavam bastante desconfiados devido ao seu comportamento, mas só Hermione tinha coragem de enchê-lo de perguntas sobre o assunto.
- Harry, já não é de hoje que eu ando reparando que você anda esquisito... Aconteceu alguma...
- Não aconteceu nada. – ele a cortou rapidamente, guardando na caixa o pomo de ouro que tinha usado para se distrair enquanto voava.
- Isso não é verdade! – ela retrucou zangada, cruzando os braços, enquanto Harry fingia estar muito ocupado. – Aconteceu alguma coisa que você está escondendo! E nem aconteceu há muito tempo, porque você ficou estranho há poucos dias!
Harry suspirou cansado.
- Quantas vezes eu vou ter que insistir que não aconteceu nada? – ele mentiu o mais verdadeiramente que pôde. – Que saco, Hermione!
Ele ouviu o som de ela fungando nervosa às suas costas.
- E quantas vezes eu vou ter que repetir que não adianta você negar! Harry, pelo amor de Deus, qualquer um percebe que você tá diferente! Tá estampado na sua cara! Eu percebi. Até o Rony notou! E olha que o Rony é desligado...
- Vocês estão procurando chifre em cabeça de cavalo.
- Se algo o aflige, nós estamos aqui para te ouvir! Você não confia na gente, Harry?
Ele suspirou longamente mais uma vez. Fechou a caixa de bolas, levantou-se e olhou a amiga de frente.
- Eu confio em vocês.
- Então por que fica se martirizando com algo que poderia dividir conosco?
- Não é que eu não tenha confiança em vocês para lhes contar isso... – ele começou tímido. – É só que eu...
- Então confessa que realmente algo aconteceu?
Ele bufou irritado. Hermione percebeu e decidiu não interrompê-lo mais.
- É algo... pessoal e complicado demais, entende? – ele tentou explicar. – Eu não me sinto bem em dividir isso com qualquer pessoa que seja. É uma coisa que... eu tenho dificuldade em repetir em voz alta.
- Ah... eu... acho que posso entender.
Harry encarou a amiga; ela tinha abaixado ligeiramente a cabeça, desviando o olhar. Ele também pôde entendê-la.
- É mais ou menos como o que aconteceu entre você e a Profª. Stevens que você não quis contar.
Ela levantou os olhos rapidamente, alarmada. Ele não sabia se, por um instante, chegou a passar pela cabeça dela que ele poderia saber o que tinha acontecido. De qualquer maneira, Hermione preferiu não comentar e desviou do assunto.
- Tudo bem, Harry. Você que sabe o que é melhor para você. Mas... – ela abriu novamente o antigo sorriso. - ... eu tenho algo para te mostrar e acho, ou melhor, espero, que isso te faça se sentir melhor.
Ele a encarou intrigado.
- O que é?
- Se eu contar, estraga a surpresa. – ela deu a volta nele, apoiando as mãos nas suas costas e começando a empurrá-lo. – Vamos logo, porque eu estou ansiosa pra que você veja!
Hermione seguiu empurrando-o até fora do vestiário, e ele pôde ver que o sol já estava quase totalmente escondido. Ainda havia muitos alunos conversando nos jardins do castelo.
- Ei, Hermione!
- O que foi?
- Você já pode parar de me empurrar agora. Eu vou te acompanhar, ok?
Ela saiu de trás dele com um risinho e se posicionou ao seu lado, um tanto quanto sem jeito, enquanto ele apoiava sua Firebolt nas costas. Harry olhou para a amiga curioso; ela não era de fazer aquelas coisas. Além disso, ele estava notando a falta de alguém.
- Cadê o Rony, hein?
- Pra começar, eu e o Rony não nascemos grudados, para o seu governo. – ela disse com dignidade. – Segundo, ele está muito ocupado, então eu mesma me encarreguei de vir chamá-lo, Harry.
- E isso não podia esperar até que eu voltasse sozinho?
- É claro que não! É importante demais para esperar!
A cabeça de Harry estava formigando de curiosidade quando ele e Hermione ultrapassaram a porta de carvalho e começaram a subir as escadas. A garota até pegou um atalho para chegarem mais rápido ao seu destino, o que deixou Harry ainda mais curioso. Hermione realmente parecia ansiosa.
- Ah... eu só quero ver a sua cara quando vir! – ela soltou um risinho. – E também a de... – ela percebeu que estava falando demais. – Deixa pra lá.
Só mesmo a cara cômica que Hermione fez para fazê-lo se esquecer por um segundo as suas preocupações, ele pensou por um instante.
Eles finalmente chegaram até a Mulher Gorda e estava havendo uma fervorosa discussão entre um casal de namorados do sétimo ano. O quadro da Mulher Gorda, que estava aberto, gritava para que entrassem logo e parassem de gritar. Hermione bufou de irritação e postou as mãos na cintura.
- Ei, vocês dois! Vão gritar em outro canto, aqui não é lugar para isso!
Eles pararam de brigar por um momento, olharam para Hermione e se viraram novamente para voltarem a discutirem, como se nem tivessem notado a presença dela. A garota fez uma expressão de profunda indignação.
- Eu sou uma monitora! E exijo que me respeitem! Cinco pontos a menos para a Grifinória!
Harry olhou para a amiga estupefato. Ela estufou o peito, e seu distintivo de monitora reluziu. A garota que estava brigando com o namorado disse com ares de desimportância:
- Vamos, Josh. Terminaremos isso em outro lugar.
Hermione lançou um olhar assassino para a garota, que fingiu não ver. O garoto foi atrás dela, ainda argumentando em sua defesa. Harry achou melhor não comentar; talvez Hermione não estivesse em um dia bom para ser chateada.
Ela entrou pelo retrato aberto, fazendo um gesto para que Harry a seguisse. Ele preferiu não discutir. Além disso, ainda estava bastante curioso para saber o que tanto a amiga queria lhe mostrar.
Não havia muitas pessoas na sala comunal, mas o grupinho amontoado nos sofás perto da lareira fazia muito barulho. Harry olhou bem para eles: Rony, sorrindo muito, conversava com alguém ao seu lado, mas não dava para ver quem era; Peta cobria a pessoa com sua cabeça. Colin estava ao lado de Peta e, sentado no chão, estava o sempre emburrado Jonnathan, que surpreendentemente não estava emburrado: até mostrava um sorriso. Neville, Dino e Lilá estavam sentados juntos em um sofá, enquanto Simas e Parvati estavam abraçados no chão, rindo de algo que estava sendo falado na roda. Hermione puxou o braço de Harry bruscamente.
- Vem logo, Harry! Você precisa ver! Depressa!
Ele olhou confuso para a amiga, enquanto ela o conduzia arrastado pelo braço até o grupo que ele tinha observado anteriormente. Harry sentia que estava tropeçando nos próprios pés. Hermione estava tão animada e absorta, que nem estava notando.
- Mione, eu vou cair desse jeito! – ele reclamou, concentrando-se em não tropeçar.
- Não importa!
Ela riu e parou, empurrando Harry ligeiramente em seguida. Por causa do susto, ele teve que apoiar suas mãos no encosto do sofá onde Peta e Colin estavam sentados. Harry se sentiu nervoso quando todos o olharam, mas ele ainda não tinha olhado para todos.
- Qual é, hein, Mione? – ele chiou para a amiga, virando seu rosto para ela.
Hermione soltou uma gargalhada, que foi copiada por alguns que também presenciavam a cena. A garota colocou as mãos no rosto de Harry e o forçou a se virar para ver uma pessoa sentada no sofá, ao lado de Rony.
Harry não conseguiu dizer mais nada depois disso. Por um instante, parecia que ele tinha ensurdecido. Ele apenas encarou, estarrecido, a garota de cabelos vermelhos e olhos castanhos que o encarava com um leve sorriso no rosto.
Gina Weasley.
- Onde você o achou, Mione? – a voz de Rony, distante, ecoou.
- No campo de quadribol. Eu o arrastei até aqui e consegui não contar nada durante o caminho!
Harry não estava prestando atenção. Ele apenas estava olhando para Gina e tentando entender o que se passava dentro dele. Era uma imensa confusão de sentimentos. Ele estava chocado, boquiaberto e imensamente surpreso em vê-la; sabia que ela já estava bem, mas não imaginava que ela fosse retornar ao castelo, ainda mais agora, que faltava apenas um pouco mais de um dia para que voltassem no Expresso de Hogwarts.
Ele também sentiu um movimento estranho bem no topo do seu estômago, e um arrepio nos pêlos da nuca. Então ele se lembrou de quando ela o chutou, naquela noite de chuva, e tudo isso se desfez. Ele sentiu um vazio dentro de si e até mesmo um pouco de raiva. Ele lembrou das lágrimas que derramou e, rapidamente, tentou se recompor e assumir um tom natural e indiferente. Mas ele estava artificial, na realidade.
Gina estava diferente, ele pôde notar assim que parou de analisar seus sentimentos confusos. Ela tinha cortado os cabelos na altura dos ombros, e eles não estavam mais tão lisos e escorridos como de costume: agora eram levemente ondulados. Seus olhos pareciam mais atentos e espertos, porém, menos expressivos; seu rosto, no entanto, contrastava com os cabelos vermelhos: ela ainda estava ligeiramente pálida e abatida devido à tudo que tinha passado. Gina carregava um certo ar de menina sapeca, mas que sabia muito bem o que acontecia ao seu redor.
- Olá, Harry.
O tom de voz dela era diferente. Parecia mais amadurecido e, Harry poderia jurar, até mesmo um pouco ríspido e cauteloso. Ele não podia julgá-la, pensou rapidamente; Gina tinha passado por coisas nesse semestre que lhe davam motivos suficientes para estar assim.
- Oi... Gina. – ele respondeu, querendo se bater pela voz ter falhado quando mais precisava. Pigarreou, para tentar disfarçar, mas duvidava que Hermione não tivesse percebido, devido ao sorriso maroto que lhe mostrou. Ela se sentou no braço do sofá, ao lado de Rony, enquanto Harry se acomodou em uma poltrona próxima de Gina, o que o incomodava. Jonnathan olhou torto para ele.
- Ei, o campeonato de quadribol já terminou, Harry! – Dino brincou do outro lado da roda. – Não precisava mais ficar treinando!
Peta abafou um risinho.
- Eu não estava treinando... – Harry respondeu um pouco áspero. – Só estava voando para... refrescar as idéias.
- E você tem feito isso muito, diga-se de passagem. – Hermione alfinetou. Harry lhe lançou um olhar assassino, e ela não disse mais nada.
Gina encostou-se ao sofá fazendo barulho.
- Dino já me contou que ele me substituiu como artilheiro no time, Harry. Uma boa escolha, eu diria.
Harry olhou de esguelha para ela. Gina estava realmente diferente; parecia mais descontraída e menos tímida. Geralmente, em uma roda grande de amigos assim, ela costumava se retrair um pouco.
- É, eu realmente coloquei Dino no seu lugar nos últimos jogos. – ele respondeu, cruzando os braços. – Mas sua vaga ainda está lá; Dino desistiu.
O garoto em questão fez um gesto displicente.
- Não era para mim. Muito complicado e muita responsabilidade também...
Rony se inclinou para frente no sofá. O sorriso dele devia ter uns trinta centímetros.
- Gina chegou hoje de tarde. E o pior é que ela nem me avisou, não é? – ele lançou um olhar fingido de repreensão para a irmã, que riu baixinho.
- Não contou pra ninguém mesmo! – Peta reclamou. – Você me mandou uma carta há pouco tempo, mas não comentou nada sobre vir para cá!
- Eu não poderia estragar a surpresa, não é? – Gina perguntou em um tom divertido.
- Mas por que você resolveu vir? – Jonnathan perguntou, olhando atentamente para ela. – Quero dizer, falta apenas um dia para voltarmos!
Ela se ajeitou no sofá. Era incrível como ela não estava mais se importando com todos os olhares sobre si. Alguns meses atrás isso seria o suficiente para Gina ficar vermelha igual um pimentão.
- Foi a única data em que eu pude vir... Gostaria de ter vindo antes, mas a família toda, até Fred e Jorge, falaram que eu precisava me recuperar primeiro... – ela disse cansada. Rony soltou um riso baixo. – Eles nem queriam que eu viesse, mas eu insisti muito. Eu sabia que poderia ver alguns de vocês se fosse os encontrar na... – ela pigarreou. - ...estação, mas não seriam todos, então eu preferi vir para cá. Além disso, eu queria mesmo ver Hogwarts antes de começar o sexto ano.
- Mas como você vai fazer com os exames, Gina? – Hermione perguntou alarmada. Todos a olharam sem acreditar que ela tocou no assunto "escola" em um momento como esse.
- Mione, dá pra você parar de ser obcecada? – Rony olhou para a namorada indignado. – Nós não queremos falar de exames agora!
Hermione fez um bico.
- Mas exames são importantes!
- Você é irritante às vezes, sabia?
- E você é um irresponsável!
Gina riu da discussão dos dois. Enquanto todos observavam a briga dos monitores, ela se virou para Harry com um sorriso no rosto e murmurou:
- Eu estava sentindo falta dessas coisas.
Ele não se sentiu muito à vontade para sorrir também e apenas falou muito rápido:
- Eu vejo isso quase todos os dias.
Gina riu mais uma vez. Harry se sentiu aliviado quando Hermione quase esmagou Rony para fazer novamente sua pergunta à menina. Ele não gostava quando Gina falava com ele.
- Eu já falei com a Profª. McGonagall. – Gina explicou. – Ela disse que eu receberei aulas particulares nas férias e poderei fazer os N.O.M.s no começo do sexto ano. É claro que não é a mesma coisa, mas ela falou que se eu me esforçar poderei alcançar os outros.
- Ah, a gente pode te dar umas dicas! – Colin piscou para ela. – Afinal, acabamos de passar por isso.
A conversa se desviou para outros assuntos mais amenos. Simas e Rony começaram a contar piadas (Rony estava mesmo bastante alegre), e até mesmo Neville se animou a contar algumas, o problema era que ele era tão péssimo em piadas quanto era em Poções. Depois de um tempo, as conversas logo se separaram em grupinhos menores e, para desespero de Harry, Gina voltou a lhe dirigir a palavra:
- Você está diferente, Harry. – ela comentou num tom que só ele conseguiria ouvir. O rapaz levantou os olhos e alcançou os dela; Gina o encarava atentamente, mas seus olhos não brilhavam como antes.
- Você também. – ele murmurou, sem saber o que dizer a mais.
- Também... tanta coisa deve ter acontecido durante todo esse tempo...
Ele assentiu, encostando-se na poltrona. Era uma situação desagradável. Parecia que nenhum dos dois tinha alguma idéia do que dizer em um momento como aquele. Era como se fossem estranhos.
- Erm... – ele começou. – E você já está bem, Gina?
- Ah, estou sim. Obrigada por perguntar. – ela sorriu. – Os curandeiros disseram que minha recuperação foi surpreendente. Eles não esperavam que eu estivesse bem tão rápido para voltar para casa... É claro que eu tive que um período de adaptação, e eu ainda sinto algumas dores... mas nada grave. Mamãe queria que eu ficasse em casa e não viesse, mas eu não agüentava mais ficar lá sem fazer nada... Você sabe, todos em casa trabalham e fica meio sem graça. Então eu insisti muito, e foi meu pai que acabou cedendo; ele convenceu os outros que eu deveria vir.
- Oh... – Harry disse simplesmente. Ele pensou alguns instantes antes de prosseguir. – Fico feliz que esteja bem.
- Obrigada.
- Ei, Harry! – Simas chamou do outro lado da roda, interrompendo a tentativa de diálogo entre Gina e Harry. – Você teve detenção com a Profª. Stevens... não sabe mesmo por que ela foi embora?
- Ah, não é possível que não saiba! – Peta exclamou. – Vai, capitão... diz pra gente por que a maluca foi embora...
- Maluca? – Colin perguntou intrigado olhando para a menina.
- Claro! Ela era meio doida, não?
- Eu não tinha nada contra, não. – Dino falou. – Aliás, só de olhar para ela, já tinha muitas coisas a favor.
Todas as garotas fizeram caras emburradas quando os garotos riram. Harry achou que tivessem esquecido dele, mas foi Gina quem insistiu no assunto:
- Então você sabe mesmo por que ela foi embora?
Harry bufou ligeiramente. Não gostava quando as conversas seguiam aquele caminho.
- Não, eu não sei. – mentiu, tentando soar o mais convincente possível. – Naquele dia da detenção eu só fiz umas coisas para ela, mas ela não disse nada a respeito de sair de Hogwarts. Nós nem conversamos.
Ele achava que mentia muito mal, mas para sua sorte ninguém contestou a história, e o assunto passou a ser sobre quem seria o novo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. A maioria achava mesmo que Dumbledore encontraria outro maluco, mas alguns discordavam. Neville disse que rezaria todos os dias para que Snape não assumisse o cargo, e parecia que todos pensaram a mesma coisa: talvez Neville não estivesse exagerando tanto. Harry, particularmente, achava que não suportaria Snape dando aula da matéria que ele mais gostava.
Foi só depois de algum tempo que Harry notou que Gina estava lhe observando. Ele se virou para olhá-la, e ela sorriu ligeiramente.
- Que foi?
- Eu só estava imaginando se... – ela riu sem jeito. – Ah, deixa pra lá.
- Pode dizer...
Ela moveu a cabeça de um lado para o outro.
- É tolice. Esqueça.
Harry deu de ombros e se levantou. Ela acompanhou o movimento dele com o olhar, mas não disse mais nada.
- Já vai, capitão? – Peta perguntou com seu jeito descontraído.
- Deixa de ser anti-social, Harry! – Rony riu. – Agora todo dia é isso, é?
Rony foi atingido por um travesseiro bem no nariz. Hermione riu com gosto. Harry tinha acertado a mira.
- Não enche, Rony!
Harry olhou para Gina antes de ir; ela o encarou com um leve ar de superioridade, quase imperceptível. Ele não se importou e deu-lhe as costas. Precisava pensar, e não conseguia se estivesse entre pessoas.
Subiu as escadas de dois em dois degraus, ainda ouvindo o barulho que o grupo fazia. Ele chegou o mais rápido que pôde ao dormitório, e se encostou na porta depois de fechá-la.
Não esperava ver Gina tão cedo. Aquilo tinha lhe confundido. Ainda mais, para falar a verdade. Tinha tanta coisa que queria que não tivesse acontecido... Tudo seria bem mais fácil.
Ainda gostava dela? Não sabia responder. Era complicado demais para entender. Talvez, se esperasse o tempo correr... Mesmo assim, ele não tinha certeza se algum dia compreenderia o que sentia. É claro que tinha ficado feliz por ela estar bem novamente, mas ainda não se sentia bem perto dela. Era muito desconfortável. Ele não sabia, mas era provável que isso só fosse por eles terem terminado o relacionamento. Talvez acontecesse com todo mundo...
Mas ela estava diferente, e isso o incomodava de uma maneira que ele não conseguia compreender.
- O que ela queria dizer com "estava imaginando"?
Essa dúvida povoou sua cabeça por um bom tempo. Tinha que parar de ser curioso.
A lareira estava apagada quando Harry se sentou no chão, encostado ao sofá, naquela noite. Era calor, mas ele estava com vontade de ver o fogo queimar, por isso acendeu com um feitiço um fogo sem calor que brilhava em chamas azuladas na lareira. A luz fraca da lua incidia sobre a sala comunal vazia e silenciosa, iluminando-a parcialmente.
Harry posicionou uma caixa de madeira sobre seu colo. Passeou a ponta dos dedos sobre os desenhos gastos dela até que os pousou sobre o fecho velho e enferrujado da caixa. Forçou-o, mas ele não abriu. Bufou irritado. Quando queria que aquele bendito fecho abrisse, ele não abria, e quando queria que ele não abrisse, ele abria. Talvez ele e aquele fecho nunca fossem se entender. Eles não falavam a mesma língua.
- Ok, Harry, é só ter paciência que ele abre. – o rapaz repetiu para si mesmo, e começou a bater no fecho. – Paciência...
- O que você está fazendo? – uma voz perguntou. Harry parou de bater na caixa e olhou para o lugar de onde ela vinha. Gina estava parada na escada que levava aos dormitórios femininos.
Ótimo, era tudo que ele precisava: uma droga de caixa que não abria e, agora, uma Gina para o deixar ainda mais irritado e pior, sem jeito. Ele era bem sortudo mesmo.
- Estou tentando abrir essa caixa.
Ele ouviu o som dos passos dela se aproximando, enquanto ele batia ainda mais forte no fecho velho da caixa. A porcaria não abria de jeito nenhum. Gina se sentou perto dele no sofá onde o rapaz estava encostado, e retirou a caixa das mãos dele sem pedir licença.
- Ei! – ele se virou, olhando aborrecido para a garota. Ela, por sua vez, apenas ficou olhando a caixa com curiosidade, enquanto passeava os dedos pelos desenhos, assim como ele também tinha feito anteriormente.
- É uma caixa bonita. – ela comentou, sem se importar com o olhar de Harry. Gina posicionou seu dedo polegar sobre o fecho enferrujado e o pressionou. – É isso que não abre?
O queixo de Harry caiu quando viu a caixa abrir com facilidade. Gina soltou um risinho baixo.
- Como você fez isso?
- Eu só pressionei o fecho. – ela disse com simplicidade. – O que você estava fazendo?
Harry se sentiu burro.
- Eu estava puxando-o. – ele disse ligeiramente envergonhado.
Gina soltou uma risadinha superior que o irritou profundamente. Ela voltou sua atenção à caixa e começou a abri-la.
- O que há aqui dentro?
Harry arrancou a caixa das mãos dela rapidamente. Não queria que ela visse seu interior.
- Nada que diga respeito a mais alguém que não seja eu. – ele respondeu asperamente. Ela sorriu.
- Nossa... Agora eu fiquei curiosa. – Gina disse divertida. – É aí que você guarda seus segredos?
Ele suspirou e abriu a tampa da caixa com cuidado.
- Não são segredos. Só coisas... particulares.
Harry ia fechar a caixa rapidamente assim que viu a primeira coisa que aparecia dentro dela, mas Gina foi mais rápida que ele e arrancou mais uma vez a caixa de suas mãos displicentes. O meio sorriso no rosto dela não sumiu mesmo ao apanhar o porta-retrato em forma de coração que ela tinha dado a Harry como presente de aniversário. Ele, pelo contrário, ficou totalmente sem saber o que fazer.
Gina posicionou a caixa de lado no sofá, ainda segurando na outra mão o retrato dos dois. Harry respirou fundo, apenas observando a garota enquanto ela escorregava para o chão, ao seu lado. Ele não estava gostando daquela sua proximidade com o corpo dela. Podia sentir o perfume que os cabelos dela exalavam e também o calor do seu corpo.
No retrato, ele e Gina não estavam mais abraçados como ficavam anteriormente. Eles estavam sentados lado a lado, muito próximos um do outro, exatamente como estavam agora. O Harry do retrato olhava de esguelha para Gina, que observava o céu como que hipnotizada. Harry deixou de olhar o retrato para ver a Gina real ao seu lado; os olhos da garota não desgrudavam da foto.
- Não pensei que você ainda guardasse isso. – ela comentou depois de algum tempo.
Harry se virou para olhar o fogo frio da lareira.
- Por que eu jogaria fora?
- Não sei... Mas eu achei que você fosse fazer isso. – ela deu de ombros. – Quando relacionamentos terminam, é isso que as pessoas fazem, não é? Jogam fora tudo o que lembra a outra pessoa...
Aquilo era esquisito. Era a primeira vez que os dois conversavam sobre o que tinha acontecido desde o dia em que Gina terminara o namoro. Harry preferia que ela não estivesse tocando nesse assunto. Aliás, ele preferia que ela não estivesse ali do seu lado, tão perto, conversando com ele.
- Eu não pensei em fazer isso. – Harry murmurou. Ele sentiu o olhar de Gina sobre ele, mas preferiu não se virar. Continuou observando o fogo.
- Não pensou? – ela repetiu. – Isso quer dizer... que você ainda pensa em mim?
Harry se assustou tanto com a pergunta, que acabou se virando para olhá-la. Grande erro. O rosto dela estava muito próximo do seu, e isso era terrivelmente perigoso. Mas agora ele não podia fugir.
- Se eu penso em você? – ele murmurou.
- Não se faça de tonto. Você me entendeu, Harry.
Ele não gostou do tom dela. Carregou a voz com seu tom mais endurecido.
- Sim, eu penso. Penso em como você me jogou fora. Penso em como você me magoou. E ainda fico com muita raiva disso.
- Você está sendo infantil. As coisas não funcionaram assim.
- É claro que foi assim! – ele aumentou ligeiramente o tom de voz. – Você me chutou, Gina.
Ela umedeceu os lábios com a língua e não desviou o olhar. Harry também não e sentia que faíscas pulavam dos seus olhos verdes.
- Eu não queria que as coisas fossem assim... Não quero que você tenha mágoa de mim...
Gina se aproximou alguns centímetros, e Harry podia sentir o hálito fresco dela. Por que ela estava fazendo isso? Droga! Seus narizes estavam quase se tocando, e ele conseguia ver as imperfeições na pele dela, de tão próximos que estavam. Ele recuou um pouco, mas Gina continuou a se inclinar levemente sobre ele e, quando ela estava começando a fechar seus olhos, Harry se desviou bruscamente e voltou a encarar a lareira.
"Quem ela pensava que era para fazer isso, afinal?", ele pensou com raiva. Ela achava o quê? Que era só ela chegar, pedir, e ele sairia correndo atrás dela, como um cachorrinho na coleira? Ele não faria isso. Ele tinha orgulho. E Gina tinha ferido seu orgulho gravemente. Isso ele não perdoaria assim tão fácil.
Ele sentiu quando Gina suspirou levemente e voltou a se encostar no sofá. Harry respirou profundamente. Queria que ela fosse embora. No entanto, Gina não foi embora; ela voltou a encarar o retrato nas suas mãos com mais atenção do que antes.
- Eu estive pensando bastante em você durante esses dias... – Harry não respondeu. – Pensando se as coisas ainda seriam as mesmas quando eu voltasse...
- É mesmo? – ele perguntou irônico. – Não sei se você notou, Gina, mas as coisas definitivamente não são as mesmas. Eu não sou a mesma pessoa, se você não percebeu.
- Eu notei.
Harry respirou fundo novamente. Se ela não iria embora, ele aproveitaria para perguntar uma coisa.
- O que você quis dizer com "estou imaginando"?
- Quando isso?
Ele notou que ela estava se fingindo de desentendida.
- Hoje de tarde. Quando você chegou.
- Ah... claro. Talvez seja melhor você não saber o que eu estava pensando naquele momento.
Harry estreitou os olhos e se virou para vê-la. As chamas azuladas estavam refletidas no olhos de Gina. Ela parecia preferir não olhar para ele.
- Eu quero saber.
Gina soltou o ar lentamente pela boca e encarou Harry firmemente nos olhos.
- Eu estava imaginando se você ainda estaria sozinho.
Ele ergueu as sobrancelhas, espantado. Gina estava dizendo o que ele estava pensando?
- Sozinho como? – ele fingiu inocência. Ela o olhou superior.
- Você entendeu. – Gina encostou a cabeça no assento do sofá, fechando os olhos. – Ora, Harry, você é um garoto atraente. Ok, você pode ser um pouco desajeitado e irritadiço, mas ainda assim é atraente. Não acredito que ficou todo esse tempo longe de garotas. Você é um adolescente.
Harry estava estático. O que estava havendo com Gina? Aquilo era uma tentativa de aproximação ou ele estava enganado? Se fosse, Gina estava indo pelo lado errado. Com toda a certeza do mundo, Harry não contaria justo a ela suas aventuras a respeito do que ela perguntava. Beijar um fantasma e uma professora bem mais velha não era exatamente o tipo de assunto que Harry debateria com qualquer um. Muito menos com sua ex-namorada.
- Acho que isso não é da sua conta. – ele se virou novamente para encarar o fogo da lareira.
Gina se levantou bruscamente e caminhou até dar a volta no sofá. Harry não se moveu um centímetro sequer. Esperou até que Gina se manifestasse. Ele queria saber até onde ela iria.
- Você não entendeu aonde eu quero chegar, Harry? – a voz dela se fez ouvir às costas dele.
- É claro que eu entendi. Mas eu quero ouvir da sua boca, Gina. – ele retrucou com malícia.
Harry ouviu o som de tropeços e passos apressados. Em dois segundos, Gina estava bem à sua frente. Ele não levantou os olhos para vê-la e a escutou bufar com irritação sobre sua cabeça. Gina se abaixou até alcançar os olhos de Harry, impedindo a visão dele da lareira. Ela estava bastante impaciente.
- O que você quer ouvir, afinal? Que eu estou arrependida? – era a vez dela aumentar o tom de voz. – Eu não vou dizer isso para você só porque quer.
- Ficou orgulhosa agora, é? – ele riu ligeiramente com sarcasmo. – Sinto muito, Gina, mas eu quero ouvir...
Ela segurou o queixo dele e o forçou a olhá-lo. Harry achou graça. Estava sendo divertido brincar com ela. Era ele que estava por cima agora. Gina estava vermelha de fúria.
- Você está sendo um idiota.
Harry riu. Isso pareceu irritá-la ainda mais. Gina apertou o queixo dele e aproximou seu rosto. Harry segurou os pulsos dela, e Gina foi obrigada a soltá-lo.
- Essa é a sua opinião, Gina. Idiota eu era antes.
A respiração dela estava descompassada, e ela o olhava com raiva contida. Movia seus braços, tentando se soltar, mas era inútil. O retrato que ela segurava caiu com estrondo da sua mão, e o vidro se partiu em dois.
- VOCÊ ESTÁ ME MACHUCANDO! – ela gritou.
Harry se aproximou do rosto de Gina e sussurrou no seu ouvido:
- Eu disse que tinha mudado. Vai ter que fazer melhor do que isso para me amolecer, Gina.
Ele a soltou, e ela caiu de bunda no chão por causa da força que estava fazendo para se soltar. Os cabelos caíam-lhe sobre os olhos, que brilhavam intensamente de raiva. A respiração forte dela fazia algumas mechas dos cabelos movimentarem-se levemente.
Harry se recostou no sofá e cruzou os braços. Gina ia dizer algo, mas ele não permitiu:
- Você é muito mimada, Gina. É a única garota numa família com tantos filhos homens, e eu não estranho que você seja assim. É até natural. Talvez você consiga as coisas fácil demais. Mas eu quero te avisar que comigo não vai ser assim. – ela respirava com força, mas não disse nada. – Você me magoou muito e me endureceu de certa maneira. Talvez, se você viesse me dizer essas coisas um pouco depois de ter terminado comigo, eu até poderia ter aceitado... Mas agora, Gina, a situação é outra. Eu descobri muitas coisas sobre mim. Descobri que sou uma pessoa diferente do que eu pensava. E eu não vou voltar com você só porque você quer.
- Você quer, Harry. Eu sei disso.
- Está enganada. – ele disse sinceramente. – Eu não quero.
Essas últimas palavras pareceram cair como gelo sobre Gina. Ela ficou estática por alguns segundos, apenas olhando para o rapaz à sua frente, aparentemente sem acreditar que estava ouvindo aquilo. Emburrada, ela assentiu e se levantou. Harry acompanhou o movimento dela com o olhar.
Gina caminhou até a escada, sem dizer uma única palavra a mais. Porém, quando ia subir o primeiro degrau, ela parou e deu meia volta. Se abaixou ao lado de Harry sem olhá-lo e apanhou o porta retrato que ainda estava no chão. Harry olhou para ele também: o vidro tinha rachado exatamente entre ele e Gina, separando os dois na foto.
A garota se levantou, apenas observando o retrato entre suas mãos. Harry ficou imaginando o que ela iria fazer. Gina levantou os olhos para a lareira e havia puro ódio nos seus olhos.
CRASH.
O objeto se estatelou quando Gina o atirou na lareira. O queixo de Harry caiu. O porta retrato escorregou para o fogo, e começou a se desfazer, lentamente. Gina tinha cerrado seus dedos da mão.
- Você tem razão. Acabou.
Harry assistiu embasbacado enquanto a garota caminhava batendo os pés até a escada. Ele ainda pôde escutar por um bom tempo os passos firmes dela subindo os degraus, até que, finalmente, eles se perderam no silêncio da noite. Harry se virou para olhar a lareira. O fogo consumia o porta retrato e a foto que estava nele. Suspirou lentamente.
Era isso que ela queria, então? Pois se Gina queria guerra, teria guerra.
Harry apanhou sua caixa e vasculhou todo o seu interior em busca das cartas que Gina lhe enviara. Não sossegou enquanto não achou todas. Olhou-as por um instante e depois encarou o fogo. Ouviu o som de papel rasgado. Uma por uma, ele rasgou todas as cartas de Gina.
Ela achava que ele era o quê? Um brinquedo? Pois ele estava longe de ser isso. Ele não permitiria que ninguém, em especial Gina, pisasse nele. Grande coisa que ela o queria de volta... Ele não queria. Não iria aceitá-la para depois ela lhe chutar novamente. Harry não seria bobo de novo.
Ele fez uma bola amassada com as cartas e atirou-as na lareira, onde queimaram junto com o retrato. Harry ficou observando o papel queimar até se reduzir a cinzas. Estava acabado. Definitivamente.
Harry se encostou no assento do sofá, fechando os olhos. Sentia-se dolorido e cansado. Pior; sentia como se algo ruim e venenoso estivesse dentro dele, mas não sabia como retirar isso de lá. Aliás, não sabia nem se queria mesmo fazer isso.
Quando ele reabriu os olhos, estes encontraram, mais uma vez, a velha caixa de madeira. Ficou alguns instantes a observá-la até que, sem perceber, sua mão esquerda começou a abri-la novamente. Seus dedos vasculharam o interior da caixa até encontrarem algo que lhe interessasse.
Um cartão. Um pequeno cartão mal desenhado pelas mãos desajeitadas de uma criança. Ele lembrava daquilo. Era aquele mesmo cartão que tinha visto em seus devaneios na Terra das Sombras. O cartão de Dia das Mães que desenhara quando tinha três anos de idade.
"Um dia você encontrará alguém que será como uma mãe para você e vai dá-lo a ela."
Irônico que justamente aquela pessoa tenha vindo à sua cabeça...
N/A: O próximo capítulo encerra a fic. Nossa, nem acredito que ela está acabando. É claro que ela está enorme e tem que acabar, e um dia ela teria que acabar de qualquer maneira, mas me dá uma nostalgia... Meu bebê!!! Obrigada mesmo à todos que têm deixado reviews aqui no ff.net... Nossa, cada uma delas me deixa imensamente feliz... Vocês não têm idéia. ;) Obrigada mesmo!!!
