Capítulo 1

A Promessa

                A minha infância não tinha sido exatamente feliz. Perdi minha mãe cedo demais, uma complicação após o parto a matou. Meu pai se tornou um homem amargo, se culpava pelo que acontecera. Sua esposa tinha problemas para engravidar e se insistisse em ter filhos sua gravidez seria de alto risco, os medibruxos o avisaram, e apesar disso ele quis tentar. Ela não fazia questão, para ela o afilhado, filho de seus melhores amigos, era suficiente, mas faria o que o marido desejasse.

                Minha casa não era um lugar agradável e por isso eu vivia nos vizinhos. A mansão dos Wyse fora desde muito cedo o meu lar. O filho único do casal e afilhado de meus pais era como meu irmão mais velho. Lá eu me tornava uma criança normal e esquecia o casarão sombrio ao lado e o homem taciturno que o habitava.

                Quando a querida senhora Wyse engravidou, aquilo surpreendeu a todos, afinal ela tinha um filho de quatorze anos. Devo confessar que detestei o fato a princípio. Fiquei com ciúmes e com medo de que ocorresse à minha madrinha o mesmo que acontecera com minha mãe. Eu temia pelo meu lugar no coração de Alex, já que ele teria um irmão de verdade. O observava acariciar a barriga da mãe e odiava o bebê que estava lá dentro, no entanto uma conversa entre eu e ele resolveu tudo. Ele me explicou que nada mudaria entre nós e que a criança que nasceria também seria como minha irmã.

                Eu estava lendo para minha pequena amiga. Ela tinha cabelos castanhos claros cacheados, pequeninos olhos cor de mel e os traços delicados conferiam uma expressão de fragilidade a seu rosto. A maioria das pessoas estranhava aquela amizade entre um garoto de onze anos e uma garota de oito, já que nessa idade meninos e meninas costumam não se tolerar. Talvez o mesmo acontecesse conosco se não tivéssemos Alex para nos unir.

Naquele dia a leitura de nosso livro favorito foi interrompida por um grito de angústia. Tínhamos ido nos refugiar no quarto de Eliza por ordem da mãe dela. Já nos acostumáramos às fisionomias preocupadas dos adultos e aos cochichos. Quase sempre nos isolávamos em um canto da casa para deixa-los conversar, na maioria das vezes no quarto do irmão dela.

                Os cômodos da casa eram espaçosos e decorados com bom gosto. O quarto dela tinha a parede de duas cores, em baixo branco e no meio uma faixa com flores salmon , que era o mesmo tom da parede em cima. O armário, a escrivaninha, a mesa de cabeceira e a cômoda também eram brancos. Demorei a perceber que aquela arrumação não combinava em nada com a ocupante.  Já o quarto de Alexander era azul com uma estante de madeira cheia de livros, principalmente de DCAT. No armário não havia nada demais e em um canto do quarto ainda havia um baú com os brinquedos remanescentes da infância do garoto, com os quais Eliza e eu sempre brincávamos. As paredes eram decoradas por pôsteres de Aurores famosos e do nosso time favorito o Tutshill Tornados. Tudo ali denunciava o sonho de Alex de se tornar Auror.

                Ouvimos um berro e reconhecemos a voz da senhora Wyse, largamos o livro e fomos correndo para o quarto de Alex, não havia ninguém lá.. Descermos a escada correndo e avistamos uma maca sendo carregada por um medibruxo e minha madrinha debruçada nela e chorando copiosamente. Achei que Eliza fosse desmaiar quando enxergamos o irmão dela ferido na maca. Quanto a mim, podes me julgar fraco, mas confesso que foi difícil me manter de pé e lutei muito para não me desfazer em lágrimas.

                - Ah! Voltem para o quarto. Não chore Lizzy. Alex vai ficar bom. - a Sra. Wyse nos viu e se recompôs um pouco.

                - Mas mamãe... - Eliza ainda tentou argumentar.

                - Por favor, me obedeçam. - ela pediu com tom de súplica na voz. Vi que minha amiga estava determinada a permanecer e a carreguei a força.

                - Por que não pude ficar lá? - já estávamos novamente no quarto e ela inquiriu irritada e contrariada.

                - Sua mãe pediu e não podíamos ajudar em nada lá – respondi.

                - Sirius, você acha que foi grave?

                - Sua mãe disse que não.

                - Nós dois sabemos que ela estava mentindo, ou pelo menos parecia... Eu achei que ele estava muito mal... - ela comentou tristemente.

Eu era muito grande para um menino de onze anos e ela, extremamente pequena para seus sete anos. Peguei-a no colo e nos abraçamos. Ela se pôs a chorar, e eu tentava resistir às lágrimas que teimavam em sair dos meus olhos. Eu não queria demonstrar fraqueza, pois ela não poderia saber que eu também estava assustado e abalado. Ficamos um tempo assim, nos consolando mutuamente, até que eu desisti e me permiti chorar junto a ela.

                - Sirius, Alex quer falar com você. - a Sra. Wyse entrara sem que nenhum de nós percebesse. Minha madrinha estava com aparência horrivelmente envelhecida. Os cabelos louros e cacheados estavam desgrenhados, seus olhos, da mesma cor dos da filha, estavam inexpressivos e os traços parecidos com os de Eliza, só que um pouco mais fortes, estavam lhe fazendo parecer mais frágil do que nunca. Naquele momento os olhos marejados e a face manchada pelas lágrimas tiraram-me qualquer esperança de que ela tinha dito a verdade.

                Ao me levantar Lizzy segurou minha mão, até hoje não sei se para me transmitir apoio ou para pedir que eu ficasse, encarei os olhos tristes dela e desejei retornar com boas novas. Andei pelos corredores meio perdido e permitindo que minhas pernas me guiassem. Eu me indagava o que tinha acontecido. "Como Alexander se feriu?" era a pergunta que me fazia e que tinha vontade de gritar, mas sabia que não obteria resposta.

                Entrei no quarto, a atmosfera era pesada e o clima tenso. O senhor Wyse conversava com o medibruxo em um canto e Alex estava acordado, deitado em sua própria cama. Aproximei-me do leito hesitante e ele pareceu sorrir ao me ver. Os cabelos, normalmente castanhos escuros, estavam molhados e sua face estampava sofrimento e dor. Ele estava muito pálido e os olhos azuis bem claros estavam fora de foco.

                - Oi Sirius – falou com esforço. - Preciso te pedir uma coisa. Você tem que me prometer que, se por algum motivo, eu não estiver mais por aqui você vai cuidar de Lizzy como se ela fosse sua irmã. Promete?- ouvir aquilo me forçava a encarar a situação e me mostrava o quanto ela era grave.

                - Que bobagem! Não posso tomar conta dela sozinho, sua ajuda é importante! Você não pode nos deixar. O que faríamos sem você? Quem vai treinar quadribol comigo? Ou me ensinar a ter um pouco mais de juízo? - se ele tivesse forças teria rido.

                - Simplesmente me prometa! Se tudo terminar bem fica o compromisso para o futuro, e se eu piorar, pelo menos vou estar em paz sabendo que vocês cuidarão um do outro.

                -Você vai melhorar! Não posso cuidar dela sem você.

                - Lembra-se daquela conversa, quando minha mãe estava grávida da princesinha? Você estava com medo de eu não ligar mais para você quando o bebê nascesse...

                - Sim.. e você disse que eu sempre podia contar com você, que tudo ia ser igual e que seríamos sempre irmãos.

                - E é verdade. No meu coração tudo continua como antes da Lizzy nascer. Se você fosse meu irmão de sangue ela seria sua irmã também. Só estou te pedindo que estenda seus sentimentos a princesinha e se torne o irmão mais velho dela.

                - Só que ela já tem um. Você sempre falou que queria dois irmãos. Um menino para ser seu camarada, o melhor amigo, e uma garotinha para mimar e proteger. Agora que tem, não pode nos abandonar.

                - Nem tudo depende de nossa vontade, Sirius. Há coisas que acontecem sem previsão e não se pode controlar. Prometa para mim que vai cuidar da princesinha como eu faria se pudesse. Por favor, é tudo que eu te peço! - ele tinha cada vez mais dificuldade para articular as palavras. O tom de sua voz era de urgência e eu resolvi tranqüilizá-lo. 

                - Se é assim tão importante eu prometo. Eliza será minha pequena irmãzinha para sempre.

- Obrigado! Agora você poderia chamá-la pra mim?

Meu padrinho e o medibruxo haviam deixado o quarto. Abri a porta para ver se havia alguém no corredor e os encontrei.

- Aconteceu alguma coisa? - o Sr. Wyse perguntou preocupado.

- Não, ele quer ver a Lizzy. Acho melhor ser rápido, ele está nervoso.

- Fale que ela já está vindo. Vou avisa-la. - ele se foi e eu voltei para junto do leito.

Ver aquele que era meu melhor amigo caído, arrasado e a beira da morte foi para mim angustiante. Eliza não demorou a chegar, entrou correndo com esperança de perceber alguma melhora no estado do irmão. Senti-me ainda pior ao encarar seu olhar temeroso e decepcionado.

                  - Princesinha, como é bom te ver! Estava com saudades! - Alexander se esforçou para tentar disfarçar seu estado.

                - Eu também! Agora fique caladinho. Você tem que descansar. - em outras circunstâncias acharia engraçado aquele rosto infantil com aquela expressão severa e compenetrada.

                - Lizzy, eu fiquei muito feliz quando você nasceu. Você sabe disso, não?

                - Por que você está dizendo isso agora? - ela o questionou com lágrimas nos olhos.

                - Só queria que você soubesse que e te amo muito!- depois de dizer isso ele perdeu os sentidos.

                - Acorda! Alex! O que aconteceu? Alexander! Maninho, não faz isso comigo! - ela pedia desesperada e tentava despertá-lo. O choro, antes silencioso, parecia uma enxurrada de lágrimas acompanhadas por soluços.

                Eu a deixei no quarto e fui procurar ajuda. Encontrei o medibruxo no corredor, alertei-o da situação e fui em busca de meus padrinhos. Ouvi a voz deles no escritório e fui até lá, prestei bastante atenção na conversa:

                - Ele já chegou aqui muito mal! Parece que houve um ataque a escola de Aurores. - era minha madrinha respondendo sem saber a pergunta que não saía da minha mente.

                - Agora não tem mais jeito. A guerra começou. - reconheci a voz do meu pai. - Algo assim ia ocorrer mais cedo ou mais tarde, o ministério devia ter se prevenido.

                - Não adianta ficarmos pensando nas medidas que deveriam ter sido tomadas, é tarde demais para isso! Ele quis mostrar seu poder e conseguiu. Ninguém mais pode fingir que nada está acontecendo. - meu padrinho entrou na conversa.

                -Você está certo, uma época difícil está começando. Quando tiveram mais notícias me avisem. O garoto não está incomodando, está?

                - Claro que não! Pode ficar tranqüilo. Ele está conversando com o Alexander.

                - Vocês é que sabem! Adeus! - eu bati na porta tentando me fingir de inocente para esconder a culpa por ter espionado a conversa.

                - Aconteceu alguma coisa? - a Sra. Wyse me questionou ansiosa.

                - Alex piorou... - ela nem me esperou terminar o que tinha a dizer e já saiu correndo até o quarto do filho. Eu e meu padrinho a seguimos. Lizzy estava lá ainda debruçada sobre o corpo do irmão, entretanto demonstrava ter se acalmado um pouco.

                 -Ele está apenas desmaiado. - o medibruxo disse consolando minha madrinha. - Preciso conversar sobre o estado dele e... - ele falou me olhando de esguelha, compreendi bem o recado e achei melhor que Eliza me acompanhasse. No início ela resistiu, mas acabou se deixando levar. Antes de sair do quarto olhei bem para Alexander, ele estava recuperando a consciência. Foi a última vez que o vi com vida. Ele ainda conversou um pouco com os pais. Morreu no fim da tarde.

                Eu passei o tempo de espera cumprindo a promessa e tentando demonstrar a princesinha que ela não ficaria sozinha e que ela sempre poderia contar comigo. Quando os adultos entraram no quarto eu não precisei que dissessem uma palavra para saber o que tinha acontecido.

                Deixei Lizzy com a mãe e saí. Não queria assistir a reação de minha querida amiga e nem escutar o que sabia que eles diriam. À medida que ia descendo a escada ia ganhando velocidade. Tudo que desejava era um pouco de solidão, no entanto, antes eu precisava cumprir uma árdua tarefa. Tinha obrigação de comunicar a triste notícia a meu pai.

Minha casa, como já disse, era um lugar triste. As paredes eram de cores escuras, os móveis antigos e não havia fotos dos últimos onze anos. Era como se o casal feliz que se via nas fotos tivesse viajado e deixado apenas os empregados para manterem a casa limpa. Fui até o escritório no andar de cima. Aquele costumava ser o cômodo mais sombrio, onde meu pai passava seus dias e raramente saía de lá a não ser para ir ao trabalho. Naquele dia me surpreendi ao entrar, havia uma claridade maior que a normal. Olhei para a janela e fiquei ainda mais surpreso: os postigos mantidos sempre fechados estavam abertos e ele olhava a rua.

                - O que está fazendo aqui? - perguntou ao se virar.

                - Alexander está morto. - falei abruptamente.

Ele já devia estar esperando ouvir isso, apenas pela minha presença naquele lugar. Era raro eu ir até lá sem ser chamado, e quase nunca o era. Dei o recado e não tive forças para fazer o que planejara, em vez de dar a notícia e ir para o meu quarto eu permaneci parado, esperando, talvez, que aquele homem fosse paternal ao menos uma vez.

- Já deu o recado. Por que ainda está aqui? - eu não respondi, só dei meia volta e o abandonei a sua reclusão.

Corri para o meu quarto, que era do outro lado do corredor. Entrei, bati a porta e me atirei na cama. Finalmente liberei as lágrimas e chorei como nunca. Perdi-me em lembranças, recordações de dias e momentos felizes, e de uma forma estranha tirei algum consolo disso.