*** Capítulo 1 - Uma Forma de Vida Diferente ***

- Michiru! - chamou a jovem rapariga loira, com belos olhos azul- esverdeados.
- Sim, Haruka? - a suave e delicada resposta da elegante jovem de cabelos verdes veio do quarto.
Haruka deslocou-se impacientemente da sala, onde se encontrava, para o quarto, apenas para encontrar a sua ninfa sentada, a olhar para o espelho, enquanto penteava os belos cabelos verdes, completamente apaixonada pelo próprio reflexo.
Quando a viu, o sentimento de impaciência deu lugar a um outro mais doce, de ternura. Dirigiu-se a Michiru, e colocou-se mesmo atrás dela. Entrara tão sorrateiramente que Michiru só dera conta que ela ali estava quando o seu reflexo apareceu, também, naquele pedaço de vidro polido a que tão pomposamente chamamos "espelho". Uma rapariga de 17 anos, 17 anos apenas, que disfrutava da vida ao máximo. Ficaram ali durante alguns momentos, como que em transe, a olhar uma para a outra através do espelho, a divagar sobre tudo o que lhes vinha à cabeça quando viam o rosto amado. Foi um momento tão profundo, que até a delicada escova ficou parada, muito quieta, na mão inerte de Michiru. Qualquer um diria que era ridículo, mas elas sabiam bem o que aquilo significava. Admiração. Respeito. Afectividade. Amor. Era naquelas pequenas coisas, naqueles curtos momentos, para nós tão patéticos, que todos esses sentimentos silenciosamente se soltavam. E eram de tal maneira fortes, que nenhuma delas conseguia falar, gesticular, ou até respirar. Durava pouco, era certo, mas, por segundos, parecia uma eternidade. E quem lhes dera que fosse mesmo. Respirar para sempre, viver para sempre, amar para sempre...
Com um leve suspiro e um sorriso afectuoso no rosto, Haruka colocou os braços à volta de Michiru e quebrou, finalmente, o gelo: - Vou dar uma volta...
Michiru pousou lentamente a escova e colocou as suas mãos nas de Haruka, sobre o seu próprio peito. Ainda não haviam olhado directamente uma para a outra, continuavam a fazê-lo através do reflexo no espelho. - Aonde vais...?
- Sei lá... vou por aí... sabes como preciso destes momentos. Preciso de reflectir, respirar, sentir o vento... o sopro do vento é para mim o que o som das ondas a bater na areia é para ti, Michiru. - Então deve ser muito importante... - comentou Michiru.
- Claro que é, tonta, mas não tanto como tu... - disse Haruka, com ternura, dando-lhe um beijo na face - Ficas bem? Michiru sorriu.
- Claro. Não te preocupes. Se houver algum problema, eu chamo-te - lançou um olhar ao intercomunicador que trazia sempre no pulso esquerdo, como um relógio - Mas não vai haver. Além disso, ainda tenho isto - retirou um pequeno ceptro em forma de caneta de uma das primeiras gavetinhas da pequena cómoda em frente à qual estava sentada, e onde constava também o tão famoso espelho, que já a tanto assistira - Também não sou assim tão inofensiva, Haruka! - Agora já estava a ficar um pouco indignada. Haruka riu:
- Pois claro que não! Se aparecer por aí um demónio qualquer, sempre podes pôr-te em bicos de pés e rezar para que apareça uma bola de água! Isto, é claro, se entretanto não caíres dos saltos abaixo!
O riso de Haruka foi diminuindo à medida que esta foi reparando que Michiru não partilhava do seu divertimento. Estava séria. Séria de mais, até. - Uh... desculpa.... acho eu.... - acabou por murmurar.
Um sorriso maldoso começou a desenhar-se no rosto reflectido de Michiru, enquanto Haruka recuava, fingindo-se assustada. Quando estavam assim, sozinhas, tinham muitas brincadeiras e joguinhos deste tipo. Era nestas alturas que revelavam o seu lado mais brincalhão e menos sério, coisa que nunca acontecia quando estavam acompanhadas.
- Vai... VAI-TE EMBORA ANTES QUE EU TE FAÇA PROVAR A BOLA DE ÁGUA, E... uh...? Michiru olhou, confusa, para o espelho. O reflexo de Haruka já lá não estava! Levantou-se e olhou à volta. Nada. Foi então que percebeu. "Esqueço- me sempre de como és rápida, Haruka Tenoh. Rápida como o vento...", pensou. E esse pensamento fê-la sorrir.

Haruka estava já a sair do prédio. Viviam num espaçoso e confortável apartamento situado num dos bairros mais ricos de Tóquio. Não era um apartamento qualquer; por exigência de Michiru, que era obcecada por natação e por tudo o que incluísse água (talvez seja por isso que ela mete tanta água :P), fora acrescentado um andar, preenchido no seu total por uma piscina, onde Michiru treinava todas as manhãs. Era assim que se sentia bem, em contacto com a água fresca, transparente e macia, que lhe moldava o corpo perfeito. Passava ali horas, a divagar, a imaginar, a recordar, a sonhar... de tal forma se perdia nos seus pensamentos, que a maior parte das vezes nem percebia que Haruka a observava, de uma das cadeiras desdobráveis ao lado da piscina. Mas ela também não se denunciava: gostava de ficar simplesmente a observar, a admirar... aquele era, de facto e sem sombra de dúvida, o meio natural de Michiru. Haruka era diferente, a água não era o seu mundo. Tinha os pés bem assentes na terra, em todos os aspectos, e nada lhe dava mais prazer do que conduzir a alta velocidade, sentindo o vento, forte e livre, a bater-lhe no rosto. Transmitia-lhe uma incrível sensação de independência, e a indepêndencia era uma das coisas mais importantes do mundo, para ela. Nessa manhã saía de casa e entrava no seu lindíssimo descapotável amarelo, que, aliás, era já uma espécie de "imagem de marca", para dar mais um desses passeios a que ela tão rebeldemente chamava "voltas". Ia tão distraidamente que nem reparou na bizarra figurinha feminina que espreitava da esquina do prédio, e que parecia observá-la com toda a atenção. Tinha altura média, era bastante elegante, e os longos cabelos negros, muito lisos, emolduravam-lhe o rosto oval, de pele morena. Através dos óculos escuros era quase impossível percepcionar os olhos grandes e penetrantes, tão azuis e profundos como safiras. - Então sempre é verdade... - murmurou, com um sorriso de vitória e satisfação espelhado no rosto - Sempre valeu a pena... Com isto, virou-se e dobrou a esquina do prédio, no sentido contrário à porta de entrada. Podia dizer-se que não era a última vez que ali ia.