*** Capítulo 2 - Um Brilho Azul ***
Uma pincelada, duas pinceladas... Michiru pintava o seu mais recente quadro, a sua mais recente obra. Decerto um museu o quereria para exposição, quando estivesse pronto. Michiru era incrivelmente talentosa, e aquele era apenas mais um dos seus muitos hobbies. Pintava por diversão, sim, mas também para exprimir o que lhe ia na alma, para se tentar compreender a si própria quando estava confusa, para se encontrar quando se perdia. Pintava coisas que amava, via, ou sonhava. Como seria de esperar, já retratara Haruka mais do que uma vez. E agora, que já não havia nenhum inimigo para vencer e tinha mais tempo livre, podia dedicar-se mais aos seus hobbies e às actividades que lhe davam prazer.
Michiru era o tipo de pessoa que se entregava completamente ao que fazia. Quando nadava, pintava, ou tocava violino, ficava tão absorvida que não daria conta nem que uma bomba estourasse a seus pés. Às vezes, tão distante estava que, inconscientemente, falava sozinha, como se o quadro de pessoa se tratasse; dizia frases curtas e por vezes sem lógica, de que nem ela própria, mais tarde, se lembrava.
Quando se punha em frente a uma tela, pincel e tintas na mão, podia dizer-se que os traços surgiam quase instintivamente, e antes que parasse para pensar, já tinha o quadro acabado.
Era isso que estava a acontecer naquele momento. Cada vez mais rápida e precisa, a sua mão deslizava pelo tecido macio da tela: um esboço começava a tomar forma.
Haruka necessitava de se sentir livre, ao contrário da sua companheira, tão dependente dos que a rodeavam. Haruka TINHA de se sentir solta. Se pudesse fazer três desejos, o primeiro seria, muito provavelmente, ganhar asas e poder voar. Voar, livre e fresca, livre e forte, livre e feliz, como o próprio vento. Era o que ela mais queria.
Com uma personalidade bem vincada, Haruka sabia perfeitamente o que queria. Era forte e determinada, inteligente e justa, rápida e confiante, enfim, era uma líder. Talvez por isso fosse ela o lado protector da sua relação com Michiru.
Porém, ultimamente, algo invadia os seus sonhos e pensamentos, não a deixando descansar. Via, por vezes, a imagem de uma bela jovem, com os olhos azuis mais bonitos que já conhecera. Eram de um azul profundo, e pareciam tudo ver. Já tivera esse sonho repetidas vezes, mas nada dissera a Michiru, por pensar que não tinha importância, mas também para não a preocupar.
Já andava às voltas, a "sentir o vento", há mais de duas horas. Quando estava assim, era como um passarinho em liberdade: sentia-se tão bem que nem dava pelo passar do tempo.
Parou, no entanto, quando uma pequena loja situada à beira-mar lhe chamou à atenção. Era quase como uma barraquinha, construída com madeira vulgar, mas os objectos que nela se vendiam já não eram assim tão comuns. Haruka saiu do carro e dirigiu-se à loja. A vendedora era uma senhora de meia-idade de rosto gentil e expressão doce. Tinha traços indianos. Haruka sorriu-lhe, e deu uma vista de olhos pelo pequeno expositor. O que mais lhe chamara à atenção, do carro, haviam sido os enormes e numerosos espanta- espíritos, de todas as cores e feitios. Havia um que lhe interessava especialmente: tinha uma grande esfera dourada e redonda no centro, que parecia irradiar luz, à volta da qual pendiam outras nove, mais pequenas e de cores diferentes. Era uma representação do sistema solar. Mas isso não era o mais estranho. Entre Urano e Neptuno havia uma outra esfera, minúscula, que parecia uma safira. O seu intenso e ofuscante brilho azul lembrava-a de algo... mas o quê? Tinha de comprar aquele estranho objecto.
- Desculpe... - disse Haruka, educadamente, dirigindo-se à senhora - Gostaria de levar este espanta-espíritos, por favor.
Sem uma palavra, mas com um sorriso constante, a mulherzinha retirou o objecto do expositor, embrulhou-o em papel de jornal, e, finalmente, disse: - São E40, por favor, menina.
Haruka pagou e preparava-se já para se ir embora, quando a mulher a chamou. Pensando não lhe ter dado dinheiro suficiente ou algo parecido, Haruka voltou para trás. A senhora limitou-se a dizer-lhe:
- Já está muito próximo, querida. Tem cuidado. Nunca se sabe quando o laço se pode desfazer.
Confusa, Haruka ouviu as palavras da mulher, mas nada disse. Não percebera. Virou-lhe as costas, voltou para o carro, e, ainda perturbada, deitou um último olhar à barraca. Mas a senhora e os seus estranhos objectos tinham-se evaporado.
Haruka meteu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um pequeno estalido, e, finalmente, o portal para o seu "paraíso" estava aberto. Caminhou para a sala, onde pousou a sua mais recente aquisição, o misterioso espanta-espíritos. Estava ainda atordoada e abalada devido aos recentes acontecimentos: poderia o desaparecimento, sem deixar rasto, da estranha senhora e dos seus pertences significar que o mal havia regressado? Haveria o Chaos saído de novo dos corações humanos e tomado proporções físicas? Teria, de novo, um corpo? Todas estas perguntas se agitavam na sua cabeça como um remoinho, deixando-a confusa. Queria organizar ideias, pensar sobre o assunto, talvez até chegar a conclusões, mas não sabia por onde começar. E depois havia, é claro, o espanta- espíritos. Porque razão haveria uma esfera minúscula, em forma de planeta, entre as órbitas de Urano e Neptuno? E o intenso brilho azul, que imediatamente capturara o seu olhar? Ela sabia que já o tinha visto nalgum sítio... mas onde? E os misteriosos sonhos que tivera ultimamente? Não conseguia pensar. O remoinho de questões aumentava e aumentava, começando a transformar-se numa valente dor de cabeça. Quando isto lhe acontecia, era em Michiru que encontrava sossego. Juntas pensavam muito melhor, e chegavam, normalmente, à conclusão certa. Não podiam viver uma sem a outra. A calma de Michiru suavizava o espírito rebelde de Haruka, e o seu amor tornava todos os momentos difíceis mais fácies de ultrapassar. Era dela, de Michiru, que Haruka precisava, agora e sempre. Necessitava de a ter nos seus braços, de sentir o calor do corpo dela contra o seu. Era como uma anestesia, ou talvez uma droga. Por momentos, os problemas desapareciam e davam lugar à felicidade, à realização total e completa. Compreendiam-se perfeitamente sem necessidade de palavras; bastava um olhar, um gesto, um sorriso, um toque. Era no silêncio que melhor se entendiam, era no escuro da noite que a sua paixão se libertava. Amavam-se. Tinham estado sempre juntas, na luz e na escuridão, nas alturas fáceis e difíceis. Juntas, haviam rido, chorado, gritado, brincado, lutado... eram como duas faces da mesma moeda: opostas, mas inevitavelmente inseparáveis.
A julgar pelo silêncio, só havia um sítio onde Michiru podia estar, pensou Haruka. A "câmara dos sonhos". Era assim que chamavam ao pequeno compartimento para onde Michiru ia sempre que precisava de pintar. Sim, porque era quase uma necessidade: era na pintura que ela se exprimia, era com um pincel na mão que o seu espírito se libertava.
Haruka dirigiu-se, portanto, à câmara. Michiru estava lá, sim. Mas algo de errado se passava com ela. Estava de pé, em frente à tela, fitando intensamente o que acabara de pintar. O seu olhar parecia ter-se perdido por entre os traços da pintura. Nas mãos inertes, que pendiam de ambos os lados do corpo, segurava o pincel, ainda húmido, e a palete das tintas.
- Michiru? - chamou Haruka, ainda da porta, na tentativa de tirar a companheira daquele "transe".
Como não obteve resposta, aproximou-se.
O que viu deixou-a muito, muito surpreendida.
Uma pincelada, duas pinceladas... Michiru pintava o seu mais recente quadro, a sua mais recente obra. Decerto um museu o quereria para exposição, quando estivesse pronto. Michiru era incrivelmente talentosa, e aquele era apenas mais um dos seus muitos hobbies. Pintava por diversão, sim, mas também para exprimir o que lhe ia na alma, para se tentar compreender a si própria quando estava confusa, para se encontrar quando se perdia. Pintava coisas que amava, via, ou sonhava. Como seria de esperar, já retratara Haruka mais do que uma vez. E agora, que já não havia nenhum inimigo para vencer e tinha mais tempo livre, podia dedicar-se mais aos seus hobbies e às actividades que lhe davam prazer.
Michiru era o tipo de pessoa que se entregava completamente ao que fazia. Quando nadava, pintava, ou tocava violino, ficava tão absorvida que não daria conta nem que uma bomba estourasse a seus pés. Às vezes, tão distante estava que, inconscientemente, falava sozinha, como se o quadro de pessoa se tratasse; dizia frases curtas e por vezes sem lógica, de que nem ela própria, mais tarde, se lembrava.
Quando se punha em frente a uma tela, pincel e tintas na mão, podia dizer-se que os traços surgiam quase instintivamente, e antes que parasse para pensar, já tinha o quadro acabado.
Era isso que estava a acontecer naquele momento. Cada vez mais rápida e precisa, a sua mão deslizava pelo tecido macio da tela: um esboço começava a tomar forma.
Haruka necessitava de se sentir livre, ao contrário da sua companheira, tão dependente dos que a rodeavam. Haruka TINHA de se sentir solta. Se pudesse fazer três desejos, o primeiro seria, muito provavelmente, ganhar asas e poder voar. Voar, livre e fresca, livre e forte, livre e feliz, como o próprio vento. Era o que ela mais queria.
Com uma personalidade bem vincada, Haruka sabia perfeitamente o que queria. Era forte e determinada, inteligente e justa, rápida e confiante, enfim, era uma líder. Talvez por isso fosse ela o lado protector da sua relação com Michiru.
Porém, ultimamente, algo invadia os seus sonhos e pensamentos, não a deixando descansar. Via, por vezes, a imagem de uma bela jovem, com os olhos azuis mais bonitos que já conhecera. Eram de um azul profundo, e pareciam tudo ver. Já tivera esse sonho repetidas vezes, mas nada dissera a Michiru, por pensar que não tinha importância, mas também para não a preocupar.
Já andava às voltas, a "sentir o vento", há mais de duas horas. Quando estava assim, era como um passarinho em liberdade: sentia-se tão bem que nem dava pelo passar do tempo.
Parou, no entanto, quando uma pequena loja situada à beira-mar lhe chamou à atenção. Era quase como uma barraquinha, construída com madeira vulgar, mas os objectos que nela se vendiam já não eram assim tão comuns. Haruka saiu do carro e dirigiu-se à loja. A vendedora era uma senhora de meia-idade de rosto gentil e expressão doce. Tinha traços indianos. Haruka sorriu-lhe, e deu uma vista de olhos pelo pequeno expositor. O que mais lhe chamara à atenção, do carro, haviam sido os enormes e numerosos espanta- espíritos, de todas as cores e feitios. Havia um que lhe interessava especialmente: tinha uma grande esfera dourada e redonda no centro, que parecia irradiar luz, à volta da qual pendiam outras nove, mais pequenas e de cores diferentes. Era uma representação do sistema solar. Mas isso não era o mais estranho. Entre Urano e Neptuno havia uma outra esfera, minúscula, que parecia uma safira. O seu intenso e ofuscante brilho azul lembrava-a de algo... mas o quê? Tinha de comprar aquele estranho objecto.
- Desculpe... - disse Haruka, educadamente, dirigindo-se à senhora - Gostaria de levar este espanta-espíritos, por favor.
Sem uma palavra, mas com um sorriso constante, a mulherzinha retirou o objecto do expositor, embrulhou-o em papel de jornal, e, finalmente, disse: - São E40, por favor, menina.
Haruka pagou e preparava-se já para se ir embora, quando a mulher a chamou. Pensando não lhe ter dado dinheiro suficiente ou algo parecido, Haruka voltou para trás. A senhora limitou-se a dizer-lhe:
- Já está muito próximo, querida. Tem cuidado. Nunca se sabe quando o laço se pode desfazer.
Confusa, Haruka ouviu as palavras da mulher, mas nada disse. Não percebera. Virou-lhe as costas, voltou para o carro, e, ainda perturbada, deitou um último olhar à barraca. Mas a senhora e os seus estranhos objectos tinham-se evaporado.
Haruka meteu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um pequeno estalido, e, finalmente, o portal para o seu "paraíso" estava aberto. Caminhou para a sala, onde pousou a sua mais recente aquisição, o misterioso espanta-espíritos. Estava ainda atordoada e abalada devido aos recentes acontecimentos: poderia o desaparecimento, sem deixar rasto, da estranha senhora e dos seus pertences significar que o mal havia regressado? Haveria o Chaos saído de novo dos corações humanos e tomado proporções físicas? Teria, de novo, um corpo? Todas estas perguntas se agitavam na sua cabeça como um remoinho, deixando-a confusa. Queria organizar ideias, pensar sobre o assunto, talvez até chegar a conclusões, mas não sabia por onde começar. E depois havia, é claro, o espanta- espíritos. Porque razão haveria uma esfera minúscula, em forma de planeta, entre as órbitas de Urano e Neptuno? E o intenso brilho azul, que imediatamente capturara o seu olhar? Ela sabia que já o tinha visto nalgum sítio... mas onde? E os misteriosos sonhos que tivera ultimamente? Não conseguia pensar. O remoinho de questões aumentava e aumentava, começando a transformar-se numa valente dor de cabeça. Quando isto lhe acontecia, era em Michiru que encontrava sossego. Juntas pensavam muito melhor, e chegavam, normalmente, à conclusão certa. Não podiam viver uma sem a outra. A calma de Michiru suavizava o espírito rebelde de Haruka, e o seu amor tornava todos os momentos difíceis mais fácies de ultrapassar. Era dela, de Michiru, que Haruka precisava, agora e sempre. Necessitava de a ter nos seus braços, de sentir o calor do corpo dela contra o seu. Era como uma anestesia, ou talvez uma droga. Por momentos, os problemas desapareciam e davam lugar à felicidade, à realização total e completa. Compreendiam-se perfeitamente sem necessidade de palavras; bastava um olhar, um gesto, um sorriso, um toque. Era no silêncio que melhor se entendiam, era no escuro da noite que a sua paixão se libertava. Amavam-se. Tinham estado sempre juntas, na luz e na escuridão, nas alturas fáceis e difíceis. Juntas, haviam rido, chorado, gritado, brincado, lutado... eram como duas faces da mesma moeda: opostas, mas inevitavelmente inseparáveis.
A julgar pelo silêncio, só havia um sítio onde Michiru podia estar, pensou Haruka. A "câmara dos sonhos". Era assim que chamavam ao pequeno compartimento para onde Michiru ia sempre que precisava de pintar. Sim, porque era quase uma necessidade: era na pintura que ela se exprimia, era com um pincel na mão que o seu espírito se libertava.
Haruka dirigiu-se, portanto, à câmara. Michiru estava lá, sim. Mas algo de errado se passava com ela. Estava de pé, em frente à tela, fitando intensamente o que acabara de pintar. O seu olhar parecia ter-se perdido por entre os traços da pintura. Nas mãos inertes, que pendiam de ambos os lados do corpo, segurava o pincel, ainda húmido, e a palete das tintas.
- Michiru? - chamou Haruka, ainda da porta, na tentativa de tirar a companheira daquele "transe".
Como não obteve resposta, aproximou-se.
O que viu deixou-a muito, muito surpreendida.
