CAPÍTULO 05:
Calmaria Antes da Tempestade.
Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam na Esfera Terrestre, uma nave de transporte interplanetária pousava no espaçoporto da principal colônia de L2.
Habitada principalmente por imigrantes vindos da América do Norte, a L2 e os seus vizinhos eram uma espécie de "Califórnia" do século XIX, atraindo aventureiros de toda a espécie - bem como pessoas simples em busca de um futuro melhor para suas famílias e novas oportunidades de progresso.
Contudo nem tudo eram rosas. O longo conflito com a Terra havia exaurido os recursos econômicos de todas as colônias espaciais e um alto preço em vidas humanas e lares desfeitos havia sido pago. Mesmo no pós-guerra, a recuperação econômica estava lenta, não havia empregos para todos e a criminalidade estava em alta.
Com o fim da guerra entre a OZ e as colônias, muitos dos ex-combatentes de ambos os lados tentavam uma vida melhor no espaço - na ilusão de encontrar novas perspectivas.
Alguns podiam se dar bem e tornar-se ricos da noite pro dia... A maioria sentia-se feliz por ter um emprego medíocre, e muitos outros encontravam apenas com a fome, a humilhação, o sofrimento, e a mais absoluta falta de perspectivas, caindo na marginalidade.
*****
A nave de transporte que estava pousando era um modelo adequado para viagens de longa distância - sendo adaptada para recolher lixo espacial, destroços e todo tipo de material encontrável no espaço - o que não era pouca coisa.
Em especial, a derradeira batalha entre o White Fang e a Nação Mundial de Treize causara uma destruição sem precedentes - tornando de certa maneira arriscadas as viagens entre a Terra e as colônias do espaço, devido os destroços do couraçado Libra e dos restos de mobile Suits da última batalha, poluindo o espaço.
Para resolver o problema, várias companhias privadas foram comissionadas para recolher o lixo ao redor das rotas de tráfego e, na medida do possível, retorná-lo às colônias para ser reciclado e reprocessado pelas indústrias locais, já que o desperdício precisava ser combatido a todo custo.
O governo se encarregava de monitorar apenas os processo de recolhimento, compra e venda de materiais radiativos, explosivos, restos de equipamento bélico e minerais raros - usados na fabricação das ligas de Neo-Titanium e Gundanium,- devido ao altíssimo custo dos mesmos, bem como sua periculosidade inata.
Depois que ficou evidente que, há 2 anos atrás, a Fundação Barton estava criando Mobile Suits modelo Serpent debaixo do nariz da Nação Unida da Esfera Terrestre - medidas rigorosas porém tardias foram tomadas.
Afora isto, os metais mais comuns - bem como os componentes que não eram tão perigosos para se manusear - podiam ser recolhidos e comercializados livremente.
Neste esquema, tanto a Terra como as colônias ganhavam, já que a primeira se beneficiava pelas as suas rotas espaciais livres para a navegação segura e as últimas garantiam para si alguns empregos, um certo aumento no movimento comercial e farta matéria-prima.
Para isto, além de dispor de um enorme compartimento de carga e aparelhos capazes de manipular o lixo com segurança, a nave também era equipada com Mobile Suits, mas de tipo diferente dos usados pela OZ e os Gundams. Eram MS de trabalho, não-armados e de uso exclusivamente civil, usados para exploração e coleta de materiais.
Algumas empresas mais aquinhoadas em termos de dinheiro - como as subsidiárias da toda-poderosa Romefeller - podiam se dar ao luxo de usar Mobile Dolls programados para tais tarefas (baseados nos bem-sucedidos modelos Virgo) e convertidos para fins de trabalho. Mas a grande maioria das firmas usava modelos tripulados, precisando de pilotos contratados com experiência - a grande maioria, sendo ex-combatentes das guerras.
Após ter descido da enorme nave - depois da mesma ter aterrissado, descarregado a sua carga nos caminhões e posteriormente guardada num enorme hangar - uma figura excêntrica e curiosa despede-se de seus colegas, cada um indo para o caminho de seus lares..
A singular figura tratava-se de um velho, vestido com roupas de turista havaiano e com o corpo ligeiramente curvado. Ele usava um bigode pontudo, cavanhaque e era calvo, além de usar um par de óculos escuros triangulares.
Seu nome era Howard. Ele havia sido antes um renomado cientista na Terra, sendo mestre nas áreas de engenharia, robótica, inteligência artificial e propulsão de foguetes espaciais.
Entre seu impressionante currículo constava o projeto que criou o primeiro MS de combate da Aliança, o chamado Talgeese 1.
Só que, desgostoso com os rumos ditatoriais que a Aliança Terrestre estava tomando, ele abandonou tudo e sumiu, caindo na clandestinidade - até retornar de forma inesperada durante a Eve Wars, prestando o suporte necessário aos jovens pilotos dos Gundams com a sua Organização "Sweeper" e não se alinhando nem com a terrível OZ e nem com a radical White Fang.
Após o desaparecimento dos cinco cientistas que criaram os Gundams, provavelmente Howard era a maior autoridade existente na Terra a entender do assunto Mobile Suits - podendo ter um ótimo emprego em qualquer agência do Governo da nova Nação Unida ou mesmo na Corporação Romefeller - que agora estava direcionando seus esforços industriais para fins mais "pacíficos".
Só que no momento, a sua preocupação imediata não era com as lutas e os conflitos militares recentes, mas com algo mais trivial...
Com o fim da Eve Wars e do desbaratamento da 2a Operação Meteoro, Howard retornou ao seu trabalho de coleta de lixo, tendo fundado uma pequena empresa para este fim, baseada na sua existente Organização "Sweeper".
Embora a concorrência fosse grande e a firma desse muito trabalho para pouco lucro, o excêntrico cientista gostava do que fazia e isto era muito melhor do que estar desenvolvendo máquinas de destruição em massa numa fábrica secreta ou testando novas armas numa frente de batalha, combatendo lutas sem sentido.
Contudo, Howard não trabalhava sozinho. Além dele mesmo e dos seus empregados, ele tinha dois "sócios" na empreitada. E precisava falar urgente com eles.
Naquele momento, logo após sair do espaçoporto, Howard pega um táxi comum e, após dar um endereço para o motorista, retira do bolso de seu jaleco de trabalho o seu intercomunicador - uma versão poderosíssima do antigo telefone celular, capaz de transmitir e receber arquivos, dados, som, imagens e voz da Terra para o espaço e vice-versa. Um sonho impossível no final do arcaico século XX, quando os primeiros modelos - primitivos e limitadíssimos - surgiram no mercado.
Contudo, existiam certas similaridades entre o rudimentar aparelho celular e seu equivalente da Era pós-AC. O idoso cientista abre o intercomunicador e tecla um número que constava na memória da pequena máquina, esperando completar a ligação. Um beep curto e claro indica que a linha foi completada.
- Alô, Hilde? O Duo está? - Howard inicia a conversação enquanto apanha um pequeno bloco de anotações do bolso de seu casaco.
Naquele instante, numa pequena, mas bem arrumada casinha localizada no Distrito Residencial de L2, o telefone toca.
Uma figura feminina sai do banheiro, vestida apenas de uma toalha - que mal recobre seu corpo franzino - e usando um par de chinelos. Ela tinha estatura baixa, compleição delicada, cabelos negros e um belo par de grandes olhos que contrastavam com as sobrancelhas finas. O seu cabelo era bem penteado e bem cuidado, exceto por uma teimosa franja que se destacava na parte da frente.
- Pronto, Hilde falando... Howard, é você? - Diz a jovem, retirando o telefone portátil do gancho, enquanto se dirige ao seu quarto.
A jovem fala no idioma universal padrão, embora o seu leve sotaque evidencie a ascendência alemã em seu sangue.
Hilde Schbeiker era o seu nome. Órfã de pai e de mãe devido à guerra, sua infância foi muito sofrida, tendo passado em diversos orfanatos, até ter entrado numa academia militar da OZ.
Aos quinze anos de idade, ela já era um soldado das Forças Espaciais de OZ e piloto de Mobile Suits, tendo experiência de combate.
Embora fosse membro da temível organização, a jovem alemã era, de caráter doce e um pouco ingênuo, achando que estava fazendo o certo.
E de certa forma, ela não era culpada, uma vez que na época quase toda a Terra estava nas mãos de OZ.
Todos os cidadãos - querendo ou não querendo - tinham que colaborar com ela. E somente um punhado de loucos se atrevia a combatê-la. A sua vida mudou, quando havia conhecido um destes loucos, num encontro no espaço.
O louco pilotava um poderoso Mobile Suit chamado Gundam, um modelo de cor negra, aspecto sombrio, e que era armado com uma poderosa foice laser.
O sinistro Mobile Suit era também conhecido como "Deathscythe" ou mais simplesmente, "Shinigami", o Deus da Morte.
O louco gostava vestir-se de preto e tinha a mesma idade dela, possuindo cabelos castanho-médios longos, amarrados num longo rabo de cavalo e um olhar vivaz e brincalhão que contrastava com suas crenças pessoais sombrias sobre vida e morte.
E foi graças a este louco que ela percebeu o erro de servir à OZ, decidindo mudar de lado, ajudando aos que lutavam pela paz da Terra e das Colônias.
E o nome do louco era...
- Ele já voltou do depósito, Hilde? - Pergunta Howard com um certo com de ansiedade na voz.
- Não, Howard... O Duo ainda não voltou, mas ele me disse há horas atrás que iria demorar um pouco no depósito. Quer deixar recado? Não? Depois o senhor passa aí? Ok. Deixo anotado. Sim... Tchau.
Duo Maxwell, o legendário piloto do Shinigami. Assim, como Hilde, ele era também um filho da guerra. Órfão de pai e de mãe, ele teve que se unir desde criança a uma gangue de órfãos de rua para não morrer de fome. Os alvos prioritários do grupo de meninos eram estabelecimentos comerciais e os depósitos de comida da Aliança.
Ele sequer tinha um nome e sobrenome. O seu prenome foi dado pelo líder da gangue, chamado "Solo", pouco antes deste morrer, após Duo ter tentado salvá-lo de uma doença contraída numa epidemia na L2 - cujo antídoto tinha sido negado pela Aliança aos membros "indesejáveis" das colônias - leia-se pobres, doentes terminais, deficientes físicos e órfãos.
O seu sobrenome foi dado quando ele - mais uma vez sem ter para onde ir - foi adotado por um sacerdote chamado Maxwell e pela irmã Helen, que mantinham uma igreja que cuidavam dos órfãos da guerra, mas que secretamente dava suporte para os membros da resistência, escondendo armas e transmitindo informações sigilosas.
Contudo, eles foram descobertos e as forças do governo não tardariam a agir.
Após o padre Maxwell e a irmã Helen terem sido eliminados pelos soldados e a igreja destruída, Duo acabou desaparecendo na clandestinidade.
O massacre - que ceifou 245 vidas - acabou sendo chamada de "A Tragédia da Igreja Maxwell" e serviu ainda mais para acirrar o ódio da colônia L2 contra a crueldade da Aliança.
Mais tarde, o jovem órfão acabou incorporando o sobrenome do falecido sacerdote, além de adotar uma roupa que lembrava uma batina, como forma de jamais esquecer suas raízes.
Mais tarde, Duo acabou sendo escolhido pelos membros da resistência para pilotar o Gundam Número 2 - DeathScythe - com o objetivo de libertar as colônias da opressão da Terra.
Após ter autodestruido "Shinigami" no final da tentativa de golpe de estado organizada por Dekim e Mariemeia e ter retornado à L2, Duo se juntou à "Sweeper", tornando-se parceiro e sócio de Howard, além de tocar um depósito de ferro-velho aonde se comprava e vendia de tudo para industrias de transformação e reciclagem.
Ele passou a viver junto com Hilde, que acabou se tornando sua companheira, "namorada" e sócia no negócio.
Durante o dia, ele se ocupava de comprar e vender de tudo, bem como contactar potenciais clientes; ao passo que ela cuidava da contabilidade e das finanças, além de conferir o "estoque" do incomum empreendimento.
O (pouco) lucro que eles obtinham era reinvestido no próprio depósito e os sócios retiravam apenas o mínimo para viver, o qual era complementado com uma pequena pensão quem Hilde recebia da Nação Unida por ter sido ex-combatente, o qual também dava ela o direito de receber alguns descontos em compras de gêneros alimentícios, assim como ajuda assistencial do novo governo.
Após muita insistência, a ex-combatente de origem alemã e a própria Relena Peacecraft em pessoa haviam conseguido convencer o teimoso rapaz a se inscrever num programa de ajuda aos ex-órfãos da guerra - criada pela jovem ministra para amenizar o problema da miséria - que dava a Duo o direito a receber assistência médico-odontológica gratuita, além de uma cesta básica mensal e cupons de descontos para compras de gêneros de primeira necessidade.
Ironicamente - mesmo tendo salvado o mundo das garras da OZ e mais tarde da Fundação Barton - Duo e seus colegas não receberam um centavo por isto, por uma decisão conjunta entre os pilotos - já que estavam cientes de que a liberdade conquistada e a vitória foram obtidas às custas de inúmeras vítimas e mesmo de sangue inocente derramado nos combates.
Relena e o próprio presidente Russell tentaram remediar a situação, oferecendo empregos e até uma pensão vitalícia para todos, mas eles taxativamente preferiram seguir suas vidas particulares.
Embora parecesse muito modesto o padrão de vida do casal Duo / Hilde se comparado ao de muitas pessoas, eles aparentemente não se queixavam.
Já haviam conhecido de perto o que era sofrer, passar fome, passar sede, não possuir um lar e não ter ninguém a quem recorrer.
Agora pelo menos tinham um teto, o que comer, o que vestir, e o mais importante, esperanças e perspectivas de vida.
Duo mantinha-se uma pessoa alegre, despreocupada e sorridente, conquistando facilmente a simpatia de quem convivia com ele - com a exceção talvez de Heero Yuy, que ficava constantemente irritado com as suas piadas e gracinhas.
Embora nunca tivesse estudado numa escola ou ginásio, Duo estava longe de ser um ignorante analfabeto, por ter aprendido a ler e escrever com o Padre Maxwell. Atualmente nas suas horas vagas, ele lia qualquer coisa que viesse parar em suas mãos, além de ser um especialista em computadores e eletrônica, graças ao treinamento que recebera no movimento de resistência da Colônia L2.
O relacionamento Duo / Hilde era algo ao mesmo tocante e engraçado aos olhos dos conhecidos e amigos. Tocante porque realmente ela gostava dele e vice-versa, e isto era evidente nos mínimos gestos entre ambos. E engraçado por causa dos incidentes e cenas causados pela diferença de temperamentos e gênios entre ambos.
Contudo, apesar de viverem juntos a quase 2 anos, eles pareciam muito mais dois velhos amigos do que namorados, convivendo no mesmo teto, apesar de já terem trocado algumas intimidades.
Hilde certamente não tinha o carisma de uma Lucrezia Noin e nem tampouco o senso prático da Sally Po, mas compensava a falta de talento para liderar com um caráter amável, dedicado e leal, além de manter um grande senso de idealismo e confiança. Isto apesar dela ter conhecido os horrores da guerra, junto com seu atual companheiro.
Estando sentada na borda da cama e tendo acabado de desligar o telefone que carregava, Hilde lembrava-se do primeiro encontro que teve com Duo, numa batalha espacial, quando ambos estavam ainda de lados opostos.
Realmente aquele encontro poderia ter sido fatal para ela, já que era um piloto da OZ. Contudo, o Deus da Morte decidiu não ceifar aquela jovem vida, apesar de ser um alvo para o "Shinigami".
Em que pese o fato de ter parado de estudar, Duo a incentivava retomar os estudos. Após o jantar, ela ia tomar algumas aulas num curso supletivo fazendo o equivalente a 8a série.
Embora fosse a aluna mais velha - tinha agora 18 anos - de uma classe aonde a média da turma era de 14 anos, a jovem alemã era bastante popular com as colegas e os professores. Mais algum tempo, e ela poderia completar os estudos colegiais e quem sabe, fazer uma faculdade. Mas isto era assunto a longo prazo.
Hilde estava tão pensativa em seus sentimentos que não havia percebido a chegada DELE.
Duo - quando queria - fazia um estardalhaço em toda a vizinhança, mas naquele dia havia conseguido a façanha de entrar na própria casa sem fazer um ruído sequer. Ele trazia uma enorme sacola numa das mãos e foi se dirigindo ao quarto, como se fosse fazer uma surpresa.
Naquele momento, Hilde tinha ido se levantar e foi ao guarda-roupas colocar algo para se vestir. Ela ainda precisava fazer rapidamente um lanche a título de jantar, antes de sair para o curso.
Só que ao abrir as portas do guarda-roupa, com ambas as mãos, ela deixou cair a sua toalha, que não estava suficientemente enrolada.
Isto não seria exatamente um problema, se Duo não tivesse aparecido lá naquele instante.
- Olá, querida, cheguei! Hilde, eu... Hã? - Diz o rapaz antes de se surpreender diante da cena inusitada.
- Duo!
Hilde fica totalmente corada como um pimentão, enquanto o americano faz uma de suas caretas típicas, enquanto que um jato de sangue jorra de uma de suas narinas. .
A cena seguinte mostra um Duo sendo nocauteado sucessivamente por um pote de creme, um spray de desodorante e outras coisas - coisa que nenhum inimigo havia conseguido fazer na época da guerra.
- Ai! Ui! Foi mal, benzinho!
O corpo nu de Hilde, embora magro, era muito bem proporcionado e bonito, com toda a beleza e o frescor da juventude. E ainda assim, Duo somente o vira pouquíssimas vezes no relacionamento de ambos, e apenas na penumbra da noite artificial de L2, quando os dois compartilhavam alguns momentos de privacidade.
- Seu tarado, pervertido ! Vai ficar de fora enquanto não terminar de me vestir!
O pouco sutil piloto do Shinigami fica de castigo, sentado do lado de fora, enquanto uma zangada Hilde termina de se vestir apressadamente.
Passados três minutos, ela sai do quarto, vestindo uma roupa esporte, pronta para sair. Duo vai com ela até a pequena cozinha e juntos, fazem algumas torradas e uma sopa leve a título de um rápido jantar.
- Humpf... Você e sua mania de entrar sem chamar a atenção... Por acaso esqueceu de desligar o seu "Hyper Jammer"? - Diz Hilde, já um pouco mais calma, mas ainda fingindo-se indignada, enquanto termina de servir a mesa.
Ela aludia ao dispositivo que o Gundam Deathscythe usava, tornando-o invisível para qualquer tipo de sensor ou radar, exceto á curtíssima distância.
- Desculpa, benzinho, eu estava distraído e não percebi que você já estava no quarto. - Responde Duo, admitindo que realmente estava "viajando", enquanto mastigava rapidamente uma torrada feita na hora. Só que ele preferiu manter silêncio sobre o pacote que trouxera.
- Bem, deixa para lá. Duo, o Howard te ligou há minutos atrás. - Comenta Hilde, avisando a respeito do telefonema.
- O que o tio Howard quer?
- Ele disse-me que hoje a noite, está trazendo as notas dos carregamentos da semana que ele fez e quer que a gente dê uma conferida. - Comenta a alemã enquanto termina o seu jantar improvisado e lava rapidamente o seu prato na pia.
- Ah, mas só isto? - Duo fica intrigado, porque geralmente quando Howard aparecia não era exatamente para contar abobrinhas;
- Bem, talvez ele tenha mais novidades... Desculpe-me por não poder mais ficar, mas tenho que ir senão chego atrasada ao curso... - Sorri a jovem, certificando-se de pegar a sua bolsa e a pasta com o material do curso.
- Mas... Hilde? - Duo se levanta e toca de leve no braço direito dela, antes que a sua garota saia para a sala.
- O quê foi?
- Você me perdoa pela mancada? - Duo pergunta em voz baixa e numa atitude surpreendentemente humilde..
- Só se a gente... Tiver uma conversa bem interessante... Depois que eu voltar e a gente formos nos deitar no quarto, à luz de velas. - Sorri maliciosamente a jovem, que conhecia Maxwell como ninguém.
- Hum... Legal... Mas qual é a diferença entre eu reparar na luz do dia e na intimidade? Não é a mesma coisa? - Desta vez é Duo que resolve maliciar, fazendo uma pergunta óbvia demais.
- Seu bobo! Para nós, mulheres, é claro que não! E além do mais, eu sou muito recatada! - Responde Hilde fazendo um biquinho de garota mimada.
- Tá bom, tá bom, foi mal... Mas... você me perdoa? - Desta vez, Duo se aproxima e toca com ambas as mãos as de Hilde.
Hilde fica em silêncio por alguns instantes, mantendo uma fisionomia séria. Depois, se aproxima lentamente de seu amado, e o envolve com seus braços finos. Tomando a iniciativa, ela acaricia o longo rabo de cavalo de Duo, e encosta os seus lábios aos dele. Em seguida, ambos trocam um lento e apaixonado beijo...
- É claro que te perdôo, Duo-chan! Mas você precisa aprender que nós, mulheres, nos comportamos de forma um pouco diferente de vocês, homens... - Sorri a jovem alemã, usando um termo carinhoso muito comum na colônia L1 que aprendera de uma colega de cursinho que viera de lá.
- Querida, você sabe que eu...
- Shhh... eu sei... Benzinho, me desculpa, mas vou precisar sair agora... Se o Howard não ficar aqui até eu voltar, dê minhas lembranças para ele. Ah... e não se esqueça que o pó de café e a cafeteira automática estão na 2a prateleira do armário... - Comenta ela, piscando com um de seus olhos.
- Tchau, amor, se cuida.
Duo e Hilde trocam um último olhar de ternura quando ela termina de se aprontar e abre a porta, indo para a rua pegar um bondinho que a levaria em direção ao colégio.
Depois de se certificar de que não seria interrompido, Duo - com um ar de criança levada e travessa - pega sorrateiramente o seu pacote misterioso e
vai na direção ao outro quarto da casa, que servia como um misto de oficina e laboratório.
Em cima de uma mesa de oficina, lá estavam um monte de instrumentos eletrônicos, fios, circuitos, parafusos e peças de coisas que ninguém mais se interessava.
Lá era um lugar todo cheio de tranqueiras que ele tentava montar, com base nas peças que encontrava no depósito - a maioria sendo de décadas ou mesmo séculos atrás.
Como resultado, a residência do casal Maxwell/Schbeiker vivia cheia de cacarecos que ele havia conseguido restaurar com a sua genialidade, a ponto de não precisarem comprar muitas coisas para o conforto do lar.
Só que a jovem ex-piloto de MS da OZ havia "convencido" o seu namorado a não espalhar seus inventos pela casa depois que uma torradeira automática do final do século XX teve um curto circuito, quase pegando fogo na casa.
Assim, Duo resolve gastar um tempinho antes que o velho Howard chegue em casa, procurando ver um modo de reativar a estranha máquina que tinha em mãos.
*****
Colônia L-4.
Num pequeno salão de um enorme edifício, rapidamente improvisado como uma sala de concertos, um jovem loiro tocava com grande virtuosismo ao violino, os "Capriccios" do genial compositor italiano Paganini, que viveu no século XIX.
A sua técnica era perfeita e ele extraía do anacrônico instrumento, notas que emudeciam de emoção os convidados presentes.
Ele conseguia extrair tons que se assemelhavam à voz humana; outras vezes, fazia acordes que simulavam uma fanfarra de trompas e trompetes e finalmente podia dar a vibração e o calor de uma orquestra no primitivo violino modelo Stradivarius, um dos raríssimos exemplares ainda existentes no mundo.
Ao fim da pequena performance, uma tempestade de aplausos ecoa pelo salão. O violinista agradece com uma reverência. Pausa... Em seguida, entra uma linda jovem - uma de suas 29 irmãs - vestida com um longo vestido branco de seda e que senta ao banquinho de um elegante piano de cauda, para acompanhá-lo na próxima performance.
Nova pausa, um curto silêncio, porém de expectativa crescente.
A jovem toca os primeiros acordes do Concerto em Mi Menor para Violino e Orquestra de Mendelssohn, um compositor judeu-alemão, que viveu no distante século XIX - devidamente transcritos para serem executados ao piano.
Após a melancólica e inquieta introdução, o violinista loiro começa a tocar o seu solo, arrancando um suspiro mudo de admiração dos presentes...
E ele os vai conduzindo pela magia da música, através da melancolia inquieta do primeiro movimento, do lirismo cantante do segundo e finalmente do vibrante "finale" do terceiro movimento do concerto escrito há séculos, mas que ainda comovia e encantava seus ouvintes.
Nova tempestade de aplausos e pedidos de bis, que obrigam o jovem violinista a repetir um pequeno trecho do concerto por duas vezes seguidas. Em seguida, ele começa improvisar temas ao piano, tocando a quatro mãos com a sua irmã, para deleite dos presentes.
O rapaz e a linda jovem são aplaudidos de pé e ovacionados pela pequena platéia. Em seguida ambos saem do improvisado palco e são cumprimentados pelos convidados presentes, enquanto se dirigem ao salão vizinho, onde estava sendo feito um coquetel de boas vindas.
Havia algumas pessoas de traços europeus e outros árabes - pertencentes à família do jovem loiro que tocava no palco. Estavam no elegante salão as suas numerosas irmãs, alguns parentes, convidados e seguranças - além dos numerosos empregados que tentavam terminar rapidamente de colocar as bandejas contendo as entradas do coquetel, bem como as bebidas.
Contudo, a grande maioria dos elegantes cavalheiros e das lindas mulheres eram judeus - membros de uma comitiva vinda recentemente da Terra, mais precisamente de Tel-Aviv para discutirem assuntos comerciais, culturais e de negócios.
No singelo, porém sofisticado coquetel de boas vindas - preparado cuidadosamente para não infringir os costumes religiosos árabes e judeus ao mesmo tempo, notando-se a ausência de pratos à base de carne de porco e bebidas alcoólicas - um idoso rabino judeu vestido a caráter e membro integrante da comitiva se aproxima do violinista, que estava conversando com algumas moças sorridentes, e lhe dá um caloroso comprimento:
- Deus te abençoe, meu filho. Você tocou tão maravilhosamente bem que fez este velho emocionar-se às lágrimas... Qual o seu nome? - Pergunta o rabino, abraçando efusivamente Quattre de uma forma até constrangedora, arrancando risadinhas das lindas moças..
- Quattre, Quattre Raberba Winner, e o meu senhor?...
- Eu me chamo Ythzak Bernstein, sou rabino da sinagoga de Tel-Aviv. Mas pode me chamar apenas de Ythzak, senhor Quattre. Eu diria que o senhor tem a alma de um Filho de Ismael, mas toca como um autêntico violinista judeu!
- Muito obrigado, rabi Ythzak, sempre gostei de música erudita desde criança.
- Isto é muito bom! Poucas pessoas hoje em dia sabem valorizar a boa música! Sabe, eu tenho em casa uma coleção de Sinfonias do compositor Mahler que o senhor iria adorar! ... - Pelo visto, seria o começo de uma longa conversa sobre música erudita que o jovem loiro iria ter que aturar, apesar de sua paciência ser quase infinita.
Quattre Raberba Winner. Embora seu primeiro nome fosse de origem européia, e ele tivesse tido acesso à mais fina educação ocidental, o jovem herdeiro do clã árabe amava o seu povo e as suas origens a ponto de não ter movido a sede de sua organização para regiões como a ex-Europa ou o ex-EUA, o que seria mais condizente em termos estratégicos.
Embora parte de sua família se constituísse de humildes imigrantes árabes que fugiram das guerras que assolavam o Oriente Médio no século XX para a França, mais tarde foi comprovado que o seu ramo ancestral se estendia muito além, remontando por parentesco a linhagem do profeta Mohamed (Maomé), o que fez muitos virem no jovem loiro um grande promotor da causa árabe.
Contudo, estas raízes não impediram que despertasse no rapaz de modos finos, um legítimo apreço pelas outras culturas e outros povos, inclusive o dos seus convidados do singular sarau musical.
Boa parte dos investimentos da Organização Winner havia sido viabilizada com capital e recursos humanos árabes, mas com tecnologia de ponta vinda do pequeno país que um dia foi Israel e o apoio técnico de cientistas americanos e europeus.
Era sabido que em quase todo o século XX e em boa parte do século XXI, Árabes, Palestinos e Israelenses se digladiaram em várias guerras fraticidas, num ódio mortal, ceifando milhões de vítimas.
Enquanto gabinetes de extrema-direita comandada por belicistas como o tristemente famoso Ariel Sharon e outros se sucediam no pequeno país dos judeus, os árabes eram oprimidos por regimes autoritários que podiam variar, como a corrupta e venal monarquia árabe, o bizarro regime líbio de Kadhafi, o violento e personalista regime iraquiano de Saddam Hussein e finalmente, o virulento fundamentalismo apregoado por Osama Bin Laden e seus seguidores.
Nomes estes que apenas aparecem como meros registros históricos na era AC como testemunhos de uma época bárbara e genocida.
Foi quase um milagre divino tudo isto ter mudado, transformando as rivalidades entre ambos os povos para um novo relacionamento baseado na cordialidade e confiança, mas tudo isto foi conseguido com sacrifícios e muito sangue.
Tanto Israel como os países árabes sofreram durante a III Guerra Mundial e nas seguintes: A Terra Prometida chegou a perder quase a metade do seu povo nos massacres, bombardeios e na apocalíptica batalha de Megido (que custou quase todo o seu exército), enquanto várias cidades do Oriente Médio como Bagdhad, Cairo, Trípoli e Beirute foram arrasadas com armas nucleares e convencionais.
A paz na região somente havia sido conseguida depois que os regimes cruéis da região foram aniquilados, e uma nova dinastia - mais pacífica e democrática - unificou os povos árabes.
E de sua parte, quando Israel finalmente desistiu de suas tendências militaristas e tornou a semidestruída Jerusalém numa cidade aberta para todos os povos.
A Era AC (After Colony) somente foi possível quando o Oriente Médio foi finalmente pacificado e os governos locais resolveram investir na corrida espacial, ao perceberem que a riqueza que sustentou toda aquela região por séculos, mas que também despertava a cobiça dos governantes e das superpotências - o petróleo - estava se extinguindo.
Diferente dos infames e truculentos dirigentes árabes do século XX, Quattre Raberba Winner era o símbolo típico da nova época: uma pessoa culta, delicada, inteligente e pacífica - embora dotada de forte espírito de liderança e justiça.
Mesmo com o surgimento da Nação Unida e o fim das fronteiras nacionais, ele logrou preservar a identidade racial e cultural de seu povo, promovendo e apoiando movimentos culturais e religiosos, desde que não entrassem em choque com as regras da tolerância mútua e da civilização.
Enquanto a pitoresca cena do encontro do Rabino e de Quattre se desenrolava, um pequeno, mas discreto número de guarda-costas, vestidos em trajes árabes típicos, observava a cena.
- Puxa, Karin, o Mestre realmente toca muito bem, não acha? - Comenta um homem alto e musculoso, enquanto observa a cena.
- Posso não entender nada de música clássica, mas aquilo me tocou o coração, companheiro Rachid. - Responde o seu companheiro, que usava um barrete turco, dando um tapinha nas costas de seu amigo.
- É, quem diria... uma cena destas aonde um filho de Israel elogia seu irmão árabe, depois de séculos e séculos de desentendimentos e guerras...
- Melhor não falar do passado, caro irmão, mas viver o presente...E que Allah nos perdoe e proteja a todos. - Comentava outro guarda-costas enquanto discretamente "filava" um canapé com patê de uma das bandejas dispostas na mesa.
Os guarda-costas vestidos à moda turca eram os leais seguidores de Quattre, o Maganac Corps, formado por membros das mais diversas etnias que compunham os povos árabes.
Composto por 40 membros, o Maganac era fiel até a morte com o seu jovem mestre, depois que este havia salvado suas vidas, resgatando-os de um satélite minerador - aonde eram submetidos a maus tratos e um regime de semi-escravidão pelos seus prepotentes empregadores.
E foi com eles que Quattre logrou manter o Oriente Médio relativamente a salvo das garras da Aliança Terrestre e mais tarde da sinistra OZ, quando empreendeu a sua campanha de guerrilha contra as forças da opressão.
Manipulados nos séculos passados pelos interesses escusos das grandes potências, nunca mais os povos da região iriam se dobrar à opressão vinda da decadente Europa.
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Colônia L-3. Mais exatamente em X-18999
A L-3 foi construída para abrigar principalmente os imigrantes das Américas do Sul e Central, além de várias minorias étnicas que não eram representativas o bastante para ter suas próprias colônias autônomas.
No período das Guerras, ela foi uma das colônias mais discriminadas e oprimidas pela Aliança e mais tarde pela OZ.
Mesmo após os conflitos terem cessado e a nova Nação Unida da Esfera Terrestre tivesse injetado enormes recursos materiais e financeiros para reconstruir a infra-estrutura das colônias, a L-3 ainda se ressentia da lentíssima recuperação econômica, do desemprego e do êxodo espacial - o que impelia muitos de seus habitantes a buscar oportunidades de serviço em outros lugares.
A L-3 era conhecida também pelo infame apelido de "colônia-dormitório", como foi mencionada por um renomado planejador urbano da Esfera Terrestre, numa alusão às pequenas cidades-satélites das metrópoles dos séculos XX e XXI.
Aonde milhares de trabalhadores se deslocavam para os grandes centros vizinhos, apenas retornando aos seus lares de origem para dormir - acabando por gerar um desequilíbrio econômico e social enorme.
Não era de se admirar que a L-3 tivesse sido um dos berços da "Operação Meteoro", que visava a derrubar o despótico governo imposto na Terra pela Aliança, e mais recentemente, do segundo levante organizado por Dekim Barton, cabeça da poderosa organização que levava o nome de sua família e que destinava a colocar Mariemeia, sua neta, no poder como títere.
Após o fim da revolução da 2a Operação Meteoro e a morte de Dekim, a Fundação Barton foi posta sob intervenção governamental, tendo sido desmembrada em várias firmas menores, o que agravou ainda mais a frágil situação econômica da colônia - já que a fundação era um dos poucos conglomerados tecnológicos que sustentava economicamente a L-3 e as suas irmãs vizinhas.
E esta situação acabou por influenciar a vida até para quem pouco tinha a ver com isto, como... Um circo.
Sim. Um circo, localizado na recém-fundada colônia X-18999 que foi palco da rebelião tramada por Dekim Barton.
Talvez o único de seu gênero em atividade nas colônias, ele promovia shows e performances aonde passava, fornecendo um pouco de alegria e esperança para o pesado dia-a-dia dos colonos espaciais.
Embora tivesse várias coisas em comum com um circo convencional (como trapezistas, palhaços, mágicos, leões, elefantes e tudo o mais) o que diferenciava AQUELE circo dos demais é que a quase totalidade de seus integrantes era composta por órfãos ou refugiados da guerra.
Praticamente todos eles tinham alguma história trágica para contar - deles mesmos ou dos seus pais, irmãos, parentes, amigos e amados que perderam neste conflito sem sentido entre a Aliança Terrestre e as colônias.
Apesar disto, ainda assim o Circo da L3 logrou sobreviver durante a "Eve Wars", porque muitas pessoas o procuravam como meio de fugir da trágica realidade que os cercava, além de alguns verem nele um símbolo mudo da eterna resistência humana, do valor da arte como porta-voz de um ideal contra a tirania e a opressão.
Contudo, com a vinda da paz e da normalidade política, as pessoas da L-3 passaram a ter outras prioridades, surgindo novas opções de lazer.
E o Circo foi forçado a andar de colônia a colônia, buscando mais público para poder subsistir - nem sempre com sucesso - a despeito da excelente qualidade de seus artistas e a exuberante variedade de seus animais amestrados.
- Trowa, onde você está? - Perguntava em voz alta uma linda jovem de olhos azuis-claros e cabelos castanhos ondulados, enquanto caminhava por entre as carroças e barracas que abrigavam a equipe do circo.
Seu nome era Catherine Bloom Ela tinha por volta de 20 anos e era trapezista, atiradora de facas e uma das principais estrelas em atividade do Circo. A exemplo de muitas crianças da L-3, ela não tinha uma ascendência racial definida. Parte de sua família era inglesa, outra parte era francesa e também ela tinha em sua árvore genealógica antepassados espanhóis, brasileiros, bascos e até ciganos.
Assim como muitas vítimas da guerra, a sua infância foi marcada pela tragédia. Tendo um irmão mais novo chamado Triton, Catherine ainda era criancinha, quando seus pais - ambos artistas de Circo - morreram num incêndio durante uma apresentação pública.
Depois da tragédia, ela e o seu jovem irmão foram adotados pelas pessoas do Circo e aos quatro anos, durante uma viagem, a carroça aonde eles viajavam foi pega num fogo cruzado numa das batalhas empreendidas pela Aliança Terrestre.
E antes dela ser destruída, ambos foram jogados para fora, tendo se separado em definitivo. Depois disto, ela nunca mais viu o seu irmão caçula, dado como morto naquele dia.
Catherine estava começando a ficar nervosa com o sumiço de Trowa quando, de repente, ela sente algo pulando em seu ombro direito. Era Wendy, a simpática chipanzé fêmea amestrada que participava de alguns números cômicos.
Sentindo um pouco de dor devido ao peso da macaca, pacientemente Catherine a coloca no chão, mas Wendy estende a mão direita, como se quisesse guiar a jovem de olhos azuis para algum lugar.
- Puxa, Wendy, quem me dera se Trowa fosse tão atencioso como você... - Diz a jovem, com um olhar melancólico. Sim, ela sabia que a situação econômica do Circo estava difícil, e eles precisariam tomar medidas drásticas. Caso contrário, eles correriam o risco de fechar.
Wendy faz uma careta cômica e em seguida bate as palmas três vezes, dando uma cambalhota no final, tentando reanimar a sua amiga humana. Catherine olha a chipanzé com ternura... Em seguida, a inteligente primata estende a mão para a jovem trapezista.
- Você está querendo me guiar? Mas, eu já acabei de ir ao quarto de Trowa e ele não...
A macaca insiste e a relutante jovem acaba concordando em segui-la. Para sua surpresa, ela a guia até a carroça principal que servia de escritório de Mr. Picadilly, o patrono do Circo e pai adotivo de Catherine.
Picadilly não estava naquele momento, porque tinha ido até o centro negociar uma vultuosa dívida com os credores e tentar firmar algum contrato de apresentações. Ele precisava resolver a situação urgentemente, ou até mesmo os animais seriam penhorados pelo oficial de justiça.
Já na porta do escritório sobre rodas, Catherine hesita entrar, já que nunca o fazia quando o seu pai adotivo não estava. Só que Wendy é mais esperta do que ela e abre a porta.
Mas, como a porta estava aberta se Mister Picadilly tinha levado a chave consigo? Pensava Catherine.
Ela tem uma surpresa quando vê um vulto escondido na penumbra parcial em que se encontrava o escritório. O vulto estava naquele momento usando o único terminal de notebook existente no Circo, digitando com extrema rapidez e habilidade um texto sobre a tela brilhante que timidamente iluminava a pequena sala.
- Trowa, mas... Você aqui? - Indaga a jovem trapezista com ligeiro tom de censura na voz.
- Calma, já estou terminando. Tudo bem, Wendy? - Responde um jovem de cabelo espetado sem olhar para trás, tendo percebido a chegada através do reflexo do monitor da tela.
O vulto era Trowa Barton, como ele era mais conhecido, e ele estava terminando de rapidamente revisar um texto que iria remeter à Rede Mundial. Mais exatamente, uma "fanfiction".
Só que seu nome verdadeiro nunca foi Trowa e muito menos Barton. Órfão desde a infância, Trowa foi criado por um grupo mercenário com o nome de "Nanashi", ou "Inominado", tendo crescido nos campos de batalha. Aos dez anos de idade, ele já sabia pilotar MS-Leo com a mesma desenvoltura de um soldado veterano.
Por ter testemunhado desde cedo os horrores, as traições e a carnificina da guerra, o "Inominado" refugiou a sua personalidade doce e sensível por trás de uma máscara de frieza, taciturnidade e aparente ausência de emoções - como que para proteger sua sanidade mental diante das monstruosidades que ele presenciara: cidades inteiras destruídas, corpos mutilados de mulheres, velhos e crianças nas ruas, massacres, estupros, assassinatos...
"Nanashi" foi passando de um campo de batalha para outro até que foi trabalhar na colônia L-3 numa fábrica secreta de MS da resistência.
Lá, ele foi treinado pelo renomado Doutor S e tornou-se um exímio técnico em mecânica e eletrônica em pouco tempo, a ponto de entender os detalhes de funcionamento dos Mobile Suits.
A fábrica era pertencente à Fundação Barton e se destinava a construir um arrojado projeto chamado "Gundam Heavyarms", um poderoso modelo capaz de enfrentar outros MS a longa distância, sendo dotado de um poderoso armamento ofensivo.
O verdadeiro Trowa Barton era também piloto de MS, além de sero único filho de Dekim, o patriarca do grupo. E ele iria pilotar o "Heavyarms" caso não tivesse sido assassinado num incidente, após resolver denunciar Doutor S por traição, quando o cientista se opôs à idéia de iniciar a Operação Meteoro com um genocídio em massa sobre a Terra, fazendo cair uma das colônias.
O "Inominado" foi a única testemunha do assassinato cometido e ele concordou em usar o codinome Trowa Barton, substituindo o original, por achar simplesmente que estava cansado de não ter um nome.
Conhecendo a profunda habilidade de seu protegido, Doutor S concordou e confiou a ele a execução da arriscada empreitada, mas sem o aspecto genocida do mesmo.
O que, contudo, o próprio "Inominado" ainda não sabia é que ele já tivera um nome e uma família. Será que ele poderia ser Triton Bloom, o irmão mais novo de Catherine, e, separado dela, durante o incidente da carroça?
Embora Catherine não se lembrasse mais do seu irmão mais novo conscientemente, o seu coração torcia para que isto fosse verdade.
Desde quando conheceu "Trowa" pela primeira vez, quando ele se refugiou no circo - estando foragido da OZ - ela sentiu uma estranha atração pelo jovem e pelo seu misterioso caráter.
Então ela decidiu protegê-lo como se fosse seu irmãozinho outrora perdido com uma dedicação e apego incomuns...
Para os observadores superficiais, poderia parecer que ela estava apaixonada por ele, mas a afeição que ela dedicava era mais um sentimento fraternal muito forte e intenso do que a paixão típica dos amantes.
- Trowa, o que está fazendo com o notebook do senhor Picadilly? Ele... - Catherine fica preocupada, já que Trowa nunca foi de entrar no escritório sem a permissão do chefe. Muito menos para ficar mexendo no micro.
- Já conversei e ele me autorizou. - Responde o ex-piloto, com serenidade na voz, enquanto Wendy se aproxima dele, fazendo macaquices, tentando arrancar um sorriso do jovem sério.
- Mas... O que você estava fazendo? Tentando entrar em contato com seus "amigos" nas colônias? - Pergunta Catherine, desconfiada e um pouco enciumada.
- Não.
- E o que seria, posso saber? - Insiste ela, tocando o rapaz levemente no ombro, com a sua mão esquerda.
- Eu... Estava escrevendo. - Diz Trowa, após um ligeiro instante de hesitação.
- Escrevendo? Posso olhar? - Esta frase atiça novamente a curiosidade da jovem, já que o seu companheiro de palco nunca demonstrou dotes literários.
- Pode, Tudo bem...
Catherine se adianta e vê na tela brilhante e luminosa do notebook um texto. Mais precisamente uma história baseada num um anime muito popular chamado "Love in Space", que estava sendo transmitido por todas as redes de TV e computadores das Colônias naqueles tempos.
Com a volta da paz, a cultura e o entretenimento voltaram a ser valorizados novamente e as pessoas se sentiam menos estressadas para poderem apreciar de novo coisas aparentemente inofensivas e fúteis: artes, shows de variedades, musicais e até os desenhos animados no antigo estilo japonês, mais conhecidos como "animes", que ressurgiram com toda força após um período de obscuridade.
Só que Catherine não havia entendido o porquê da história ser chamada "fanfiction", como estava no cabeçalho do texto.
- Trowa... Me desculpe, mas o que é uma fanfiction? - Pergunta Catherine, desacostumada com estes termos complexos.
- Trata-se de uma história, um conto, uma narrativa escrita por fãs, mas ao contrário de um romance, ela é baseada num anime, mangá ou filme já existente, entre outras coisas. O fã pode alterar alguns detalhes da história ou dos personagens ou mesmo criar algo de novo - Diz o ex-piloto do "Heavyarms", se esforçando para explicar o melhor possível.
- Isto é uma moda recente? Nunca ouvi falar disto... - Diz a jovem atiradora de facas que quase nunca acessava a Rede Mundial de Computadores..
- Bem, alguns dizem que a fanfiction surgiu por volta do final do século XX, quando os fãs das séries de anime que passavam na época começaram criar suas próprias histórias, lançando-as numa antiga rede de computadores chamada Internet... - Responde Trowa, citando de memória um texto que vira num site especializado no assunto, que conseguira preservar várias das fanfictions que existiram dos séculos anteriores.
- Nossa, não sabia que isto era tão antigo. Século XX... - Suspira Catherine, impressionada com tanto tempo passado. Porém ela não tinha culpa de não saber o que era uma fanfiction, já que os treinamentos que fazia ocupavam a maior parte de seu tempo livre.
- Este hábito tornou-se comum desde então, só que infelizmente parou quando começaram as guerras entre a Aliança e as Colônias nesta era.
- Não sabia que você tinha dom para escrever este tipo de coisas. - Comenta a jovem, enquanto segura Wendy no colo.
- E nem eu, até o mês passado, quando comecei assistir a série de TV nas horas de folga e me deu vontade de escrever...
- Posso dar uma olhada? - Catherine fica curiosa para saber o que era este tipo de texto e coloca Wendy no chão, não sem a chipanzé protestar veementemente.
- Tudo bem. Mas por favor, não vá rir de mim porque ainda não revisei a fanfiction inteira. - Diz Trowa saindo da cadeira sobre rodas e esboçando um ligeiro sorriso - algo inusitado de sua parte.
Catherine olha o esboço completado na tela e lê rapidamente a história... Quando ao enredo em si, nada de mais...
O anime "Love in Space", do qual o fanfiction era baseado contava a história de um garoto órfão na eterna busca de seus familiares, viajando por vários lugares e planetas diferentes, fazendo amigos, apaixonando corações e enfrentando rivais invejosos.
De certa forma, o anime havia tocado a fria alma do piloto do Gundam Heavyarms, por lembrar a sua própria biografia e trajetória de vida.
Mas o que impressionou a jovem atiradora de facas não era o enredo em si... Mesmo não tendo cursado a escola com regularidade, Catherine percebeu que havia algo a mais naquele simples conto.
- Trowa... Nunca pensei que você tinha jeito para estas coisas... - Comenta Catherine, observando a quase ausência de erros ortográficos e gramaticais no texto, apesar de, à primeira vista, o conto parecer meio "seco" e com muitas frases curtas, ao estilo do silencioso operador do Heavyarms.
- E nem eu. Resolvi colocar no papel aquilo que estava no meu coração e na minha alma há tanto tempo... - Responde Trowa enquanto dá um pouco de colo para Wendy.
- Você sabia disto?
- Não, mas há uma primeira vez para tudo. Sempre.
- Fico contente por você! É sempre bom descobrir coisas novas. Sabe, infelizmente, aquela guerra horrível fez com que as pessoas somente ficassem pensando nela. Em tudo que fosse relacionado a sofrimento e morte... - Diz Catherine, enquanto escolhe as palavras para dizer ao seu companheiro sobre um assunto grave.
- Concordo.
- Trowa, precisaria falar contigo uma coisa. É sobre o papai e o circo. Ele... - Diz a jovem em tom baixo, bastante preocupada, fazendo força para não se emocionar.
- Sei. Escutei a conversa dele com os credores do lado de fora da tenda ontem à noite. Eles disseram que, se o empréstimo não fosse quitado ao menos em parte até a semana que vem... - Trowa aparentemente não parece demonstrar nada por fora, embora intimamente sofresse com a situação daqueles que o acolheram quando estava perdido.
- Oh... Que horrível! O que vai ser da gente, dos nossos amigos, da pequena Wendy e dos animais? - Catherine não resiste e lágrimas brilhantes como diamantes caem de seus olhos expressivos.
- Eu... Pensei nisto e por isto resolvi escrever esta fanfiction para poder participar de um concurso na Rede Mundial. - Explica o piloto sem se vangloriar. Objetivo como sempre.
- Concurso? Não sabia que faziam isto, ainda mais para este tipo de coisa... - Indaga Catherine, meio cética, já que aprendera desde cedo que nada caía do céu.
- Os melhores trabalhos ganharão um prêmio em créditos monetários. Parece-me que existe um instituto cultural que está patrocinando isto, junto com o estúdio que produziu o anime... - Comenta o jovem, mostrando uma atraente imagem de um folder contendo as regras do concurso que ele baixou da Rede.
- Que bom! Mas, Trowa... é a primeira vez que você está escrevendo, não? - Indaga Catherine, num momento de inspiração realista, temendo que as chances do novato escritor fossem mínimas.
- Sim. Mas sempre há uma primeira vez para tudo. Os grandes escritores começaram assim.
- Verdade. Como seria bom que... - Suspira Catherine, dividida entre o ceticismo e a esperança. Ela não podia entender muito bem de fanfictions e concursos virtuais, mas sabia que algo precisava ser feito.
De repente, a porta se abre e um homem de meia idade, cabelos negros e usando um fraque entra na cabana. É o Sr. Picadilly, pai adotivo de Catherine e dono do Circo. A sua fisionomia estava entre tensa e preocupada.
Após ele deixar sua pesada pasta de negócios numa das cadeiras, ele repara no trio à sua frente.
- Catherine, Wendy, Trowa! - A fisionomia tensa e severa do dono do circo se alegra momentaneamente e o cansaço que sentia, se esvai ao ver rostos amistosos e familiares.
- Olá, Senhor Picadilly. - Responde Trowa calmamente.
- Papai! - Catherine corre para abraçar o seu pai adotivo.
- Bem, pessoal, acabei de voltar da cidade. Primeiro as más notícias: Infelizmente, os credores somente deram para a gente um prazo de 15 dias além do combinado antes de executar a dívida. E nenhum banco quis dar empréstimos para o circo, alegando que não podem pegar os nossos equipamentos como garantia real. - Diz o senhor de meia idade, enquanto pega um pente para ajeitar o seu cabelo, mal escondendo o cansaço por ter voltado a pé do centro.
- Que horror! Então... Então... - a jovem se emociona de novo e começa a soluçar, pensando no pior.
- Não chore, querida Catherine. Agora, deixem-me contar o restante... Enquanto estava no banco esperando a minha vez de ser atendido, encontrei-me com uma pessoa da Terra que está interessada em nossa troupe.
- E o que aconteceu? - Pergunta Trowa.
- Consegui agendar com ela uma turnê de dez dias na ex-América do Norte. Se der tudo certo, conseguiremos arranjar o dinheiro necessário para quitarmos todas as dívidas e começarmos uma vida nova sem medo do futuro! - Responde Picadilly, tirando a sua casaca e ajeitando-a num armário embutido ante o olhar curioso de Wendy.
- E quanto as despesas de viagem e acomodação quando chegarmos lá? - Pergunta Catherine. De fato, raramente o Circo viajava para a Terra devido aos altos custos de transporte envolvidos.
- Ficarão por conta do patrocinador. - Responde o seu pai adotivo, enquanto termina de enxugar a fronte ensopada de suor com um lenço limpo.
- Patrocinador? - Pergunta Trowa, intrigado. Ele nunca ouvira falar de patrocinadores de tournées desde que entrara no circo. Geralmente, as temporadas ditadas em parte pelas oportunidades do momento e em parte pelo senso de oportunidade de Mister Picadilly.
- É. Bem... a pessoa com a qual conversei disse ser Diretora Cultural da Fundação Romefeller e estava interessada nas atividades de nosso circo para fazer parte das festividades da... - Comenta Picadilly, sentando-se numa cadeira vazia.
- Meu Deus, Romefeller, papai? Mas esta organização foi a que oprimiu as colônias por tanto tempo, fornecendo armas para aquela ditadura! - Exclama Catherine horrorizada.
- Por favor, senhor, deve haver outro jeito! Muitos dos nossos colegas não irão se sentir bem participando desta apresentação sabendo que estaremos sendo bancados por... - Comenta Trowa.
- Eu sei, meus jovens, mas a verdade é o seguinte. Foi o único contrato que consegui arranjar. E depois, me dói muito dizer isto, mas se não pudermos fazer as apresentações, seremos obrigados a demitir quase todo o pessoal e nos desfazermos de vários animais... - Comenta, cabisbaixo, Picadilly, sentindo como se tivesse vendido a alma ao Diabo e quase a ponto de chorar por causas das exigências absurdas e da prepotência dos credores que atendera.
- Por favor, não chore, papai. Faremos o que for possível. - Diz Catherine tentando consolar o veterano apresentador de circo, assim como Wendy.
- É, daremos o nosso melhor... - Diz Trowa, olhando de relance para o seu texto ainda presente na tela do Notebook, antes de ir desligá-lo.
*****
Terra, poucas horas antes da reunião na Nação Unida da Esfera Terrestre do qual Lady Une e Relena Participaram.
Algum lugar da Ex-Europa. Numa elegante mansão em estilo Neoclássico, localizada nos arredores de uma capital européia, uma reunião de cúpula atinge o seu clímax.
- O fato é que não podemos permanecer passivos! O governo da Nação Unida da Esfera Terrestre é fraco e mal consegue se sustentar contra os movimentos nacionalistas que se formaram em diferentes pontos do planeta. Este é o momento para a nossa Fundação retomar o lugar que lhe compete na condução dos destinos do planeta! - Diz exaltado, um aristocrático senhor usando uma casaca que lembrava o de um nobre da Era Vitoriana.
O cavalheiro exaltado e de fala mordaz era alto, magro, tinha cabelos e olhos negros e um proeminente bigode. A sua expressão facial era dura e implacável como granito puro e tentava se impor pela veemência de suas idéias.
- Mas Lorde Roberts, lembre-se que as nossas atuais políticas excluíram qualquer interferência no Novo Governo. E depois, o nosso resultado financeiro tem excedido as expectativas mais otimistas com os contratos firmados para reconstrução e revitalização da infra-estrutura das Cida... - Tenta argumentar, conciliador, Marquis Weridge, um homem discreto, mas de grande influência entre seus pares.
Um princípio de tumulto, cochichos e rumores começam a tomar conta da reunião, que reunia a nata da nobreza européia e dos grandes magnatas industriais que comandavam fortunas incalculáveis.
- Hah! E os senhores acham que foi uma "excelente" idéia converter nossas fábricas de Mobile Suits e Mobile Dolls para manufaturar tratores, caminhões e robôs de trabalho por causa daquela garota tola que faz pose de pacificadora? Se estivesse vivo, o Duque Dermail jamais... - Exalta-se de forma desafiadora Roberts, evocando a memória do antigo líder do grupo e seu amigo pessoal de outrora.
- Por favor, Lorde Roberts, este assunto está fora da pauta de nossa reunião e o mais importante é... - Contra-argumenta Weridge, ao perceber a fisionomia séria e ligeiramente pensativa da pessoa que presidia a reunião, como se estivesse ponderando os prós e contras de uma iniciativa radical.
- Meu caro Weridge, caros colegas: Em minha opinião particular, o nosso grupo tem que aproveitar o momento para voltarmos a ocupar a posição que sempre tivemos desde que... - Prossegue o inglês ao notar que parte da assembléia estava escutando suas palavras, provocando um princípio de indecisão e divisão.
- Parece que o senhor não entendeu o espírito dos "Novos Tempos", não é, Mister Roberts? - De repente, sem o menor aviso, a pessoa que presidia em silêncio aquele debate intervém. Ela era do sexo feminino, jovem, loira e elegantemente vestida.
Apesar de ter um tom de voz atraente e quase musical, as suas palavras estavam carregadas de ligeiro sarcasmo e ironia contra o exaltado conselheiro da Fundação..
- O que foi, senhorita? - Indaga Roberts, irritado com esta interrupção.
- É do conhecimento de todos que o nosso Plano de Metas 196-200 AC prevê a conversão de nosso complexo industrial-militar para... Atribuições mais pacíficas, acompanhando a nova fase da relação Terra-Colônias. E como o assunto já foi devidamente tratado na reunião anterior, rediscuti-lo está fora de cogitação - Responde a jovem prosseguindo calmamente em sua explanação, apesar de um brilho selvagem inflamar aquele olhar penetrante, como se estivesse reprimindo sua fúria.
- Lembre-se que naquels ocasião o meu voto sobre o assunto foi contra e continuo pensando da mesma forma! Proponho uma votação extraordinária para corrigir este equívo... - Tenta continuar Roberts, mas no que é interrompido pela presidente do grupo.
- A melhoria em nossos balanços e os índices ascendentes de popularidade na nossa pesquisa de opinião pública, são motivos mais do que suficientes para continuarmos sem hesitar com a política de cooperação com o atual governo - Conclui a jovem adolescente, cuja mocidade contrastava com a idade de seus pares e diretores, dos quais nenhum tinha menos de quarenta anos. Contudo, a sua calma faz com que toda a assembléia se cale.
- Eu protesto! Nunca em nossa história nos ajoelhamos feito coelhos perante a qualquer governo, seja democrático ou autoritário! Sempre fomos os mestres, não os... - Vendo-se perdido, o arrogante nobre inglês começa a gesticular e a levantar o tom de voz, tentando apelar para os sentimentos da platéia.
- Mister Roberts, vejo que não entendeu o meu recado, ou está se fazendo de surdo? - Pergunta a jovem elegantemente vestida enquanto fuzila seu interlocutor com o olhar.
- Eu não posso concordar com isto, garotinha! Peço a votação urgente de uma moção de desconfiança contra a mesa diretora de nossa corporação! - Esbraveja Roberts, lívido de raiva, apontando com o dedo em riste para a jovem que ocupava a cabeceira da enorme mesa em estilo clássico.
- Assim sendo, como Diretora-Presidente desta Fundação, sou obrigada a desligá-lo de nosso quadro de associados, conforme a Resolução 9 do nosso estatuto social. Isto, pela sua teimosia em se enquadrar dentro das nossas diretrizes e ainda cometendo o cúmulo de desafiar publicamente esta diretoria em suas declarações mais de uma vez!... - Diz a adolescente, adotando um tom mais incisivo e forte na sua fala.
- O quê? Você não ousaria fazer isto! Eu sou um dos antigos membros deste grupo e amigo pessoal do seu finado avô... Isto é uma injúria! - O rosto de Roberts fica pálido como cera antes de adquirir tons vermelhos pela cólera crescente.
- Simmons, por favor, entregue um cheque no exato valor das ações que Mister Roberts possui no momento dentro do nosso conglomerado. E peço ao senhor secretário desta reunião que ratifique a ata da dispensa de Lorde Roberts dos nossos quadros associados. Isto é tudo! - Diz a presidente da mesa, chamando o Diretor-Financeiro do grupo.
Um princípio de rumor e murmúrios inquietos percorre o luxuoso salão decorado com quadros que valiam milhões de créditos monetários e móveis finíssimos. Sem conseguir a adesão de seus colegas, o aristocrata britânico abaixa a cabeça, mordendo insistentemente o lábio inferior.
- Infelizmente, esta mesa diretora não compartilha de suas opiniões, Lorde Roberts, ainda mais que suas recentes declarações na imprensa levaram a Fundação a publicar um comunicado, informando ao público que tratava-se de um posicionamento pessoal que não reflete a nossa filosofia de negócios. - Diz Weridge, diante do fato consumado, após constatar a inutilidade de alcançar uma solução conciliadora.
- Humpf! Bem, pelo visto, não tenho mais nada a tratar com um rebanho de covardes que desonra a memória de Dermail e do velho Khushrenada! Passar bem, senhores! - Responde Lorde Roberts se referindo ao ex-amigo e ao finado pai de Treize, levantando repentinamente da enorme mesa de mogno.
Com um ar de visível desprezo, o aristocrata britânico recebe um cheque de vultuoso valor da parte de um intimidado Senhor Simmons, lança um último olhar de pura raiva e se retira do salão sem olhar para trás.
Dorothy Catalonia. Era a atual presidente da Fundação Romefeller, cargo ocupado por seu avô, recentemente falecido durante a Eve Wars.
Embora tivesse assumido a presidência muito jovem, ela aos poucos estava começando a impor o seu estilo de liderança na complexa organização, estando acima das intrigas e do complexo jogo de poder entre os seus pares.
Apesar de alguns conselheiros a considerassem uma garota excêntrica, egocêntrica e mimada, ela tinha um certo estilo, perspicácia, sangue-frio e um senso de humor cáustico que encantava a alguns e intimidava os outros - mas que ninguém conseguia ficar indiferente a ela.
Após ter ocupado a cadeira da Fundação, como herdeira dos Romefeller, ela tratou de adaptar o conglomerado industrial aos novos tempos, renunciando às pretensões anteriores de conquistar o mundo. Para isto resolveu direcionar as suas novas atividades visando a paz e a reconstrução da infra-estrutura destruída durante as duas guerras.
Mesmo sendo ainda antipatizada por boa parte da população colonial, a Fundação de origem européia adotou um ambicioso plano de melhorar a sua imagem pública, desenvolvendo atividades assistenciais, abrindo vagas de emprego para ex-combatentes sem serviço, fundando escolas profissionalizantes e sobretudo - investindo recursos anteriormente destinados à produção de armamentos e munições para fins mais "pacíficos", nas áreas de construção civil, educação, cultura, alta tecnologia e produção de alimentos.
Algumas empresas subsidiárias foram criadas para este fim, para desvincular a Romefeller da sua antiga imagem belicista e ditatorial.
Em que pese o fato de alguns questionarem a validade e a credibilidade de tais iniciativas, poucos duvidavam da sinceridade dos esforços de Dorothy, - que, no entanto, não fazia isto por mero idealismo - como Relena; mas por um senso de realidade, bem como de adaptação empresarial aos novos tempos.
Para ela, não era nada impossível a Romefeller conquistar por meios pacíficos o que havia tentado pela força da intriga e das armas. Poucas empresas podiam competir de frente com ela e com a reconstrução das cidades e colônias destruídas, havia oportunidades de negócios para todos.
- Senhorita Dorothy, não questiono a validade da ação tomada, já que Mister Roberts realmente se excedeu ao desafiar esta Diretoria, mas receio que tenhamos problemas a médio prazo. Ele... - Cochicha Weridge ao ouvido da Diretora-Presidente, enquanto outros membros do conselho da Fundação Romefeller aproveitam a saída de seu ex-colega para comentarem os assuntos do dia entre si.
- Sim, eu sei, Weridge. Mas, falaremos sobre isto mais tarde... Primeiro precisamos terminar os assuntos da pauta - Diz Dorothy enquanto se prepara para tomar o seu chá, antes de passar para o próximo assunto do dia .
- Como quiser, Senhorita.
- Bem, cavalheiros. Agora que este incômodo foi resolvido, vamos passar ao próximo assunto da pauta: A melhoria da imagem organizacional do nosso conglomerado nesta Nova Era. Com a palavra, a nossa Diretora Cultural, a Senhora Dionne Lewis Troy. - Diz solenemente Weridge, após uma pausa de 3 minutos e somente após Dorothy ter acabado de esvaziar a sua xícara.
Uma linda morena na casa de 35 anos se levanta, e sorrindo discretamente para os presentes, se dirige a um pequeno tablado reservado para os apresentadores, levando um pequeno computador portátil e o seu material de apoio.
Dionne era a típica executiva moderna da era AC: Bem Jovem para o posto que ocupava, muito bonita, ambiciosa e inteligente. E era uma das poucas diretoras que não tivera a Romefeller como o seu primeiro emprego, tendo sido contratada recentemente pela sua esperteza, capacidade e competência profissionais.
Antes de se tornar a Diretora Cultural da Fundação, Dionne havia sido executiva júnior numa grande empresa de utilidades domésticas, gerente de marketing, administradora de uma Fundação patrocinadora de uma casa de ópera (muito freqüentada pelos membros da Romefeller) e finalmente "promoter" de uma empresa especializada em organizar festas e eventos para a nata da alta sociedade.
Para ser admitida na Romefeller, ela foi recrutada por uma empresa especializada em contratação de altos executivos, passou por uma exaustiva bateria de testes e entrevistas, além de ter conversado várias vezes com a própria Dorothy e Marquis Weridge.
"Miss Troy", como era chamada, superou todos os obstáculos e algumas intrigas de seus colegas, tendo completado nove meses de permanência no cargo - fato inédito para quem veio de fora da Fundação. E, com o seu novo projeto, ela pretendia marcar para sempre a sua passagem no conglomerado de negócios europeu.
*****
Lord Maximilien Roberts estava para sair da mansão onde os membros da Romefeller estavam reunidos, se dirigindo ao estacionamento onde a sua elegante limusine Rolls-Royce estava esperando. Acompanhado de seus dois seguranças vestidos de preto, ele estava visivelmente magoado, decepcionado e furioso pela sua recente destituição da diretoria.
Membro da velha guarda da Romefeller, suas raízes familiares remontavam aos proprietários das empresas que inauguraram a Era Industrial na Inglaterra do Século XIX.
Um de seus antepassados foi um dos fabricantes de um tipo de bombardeiro quadrimotor que ajudou o seu país a derrotar a Alemanha Nazista durante a II Guerra Mundial. E o seu complexo industrial era um dos principais fornecedores do Exército de Sua Majestade antes da Ex-Inglaterra se unir à Aliança Terrestre.
Amigo pessoal do falecido Duque Dermail, Roberts sempre foi defensor da tese de que as colônias deveriam ser tratadas com rédea curta e que a Romefeller deveria dirigir os destinos da Terra, em todos os sentidos.
Apesar de se dar bem com o velho Khushrenada, ele nunca simpatizou com o seu filho Treize e quando este se rebelou contra a Romefeller, pressionou o máximo que pôde o seu velho amigo Dermail a enviar batalhões de Mobile Dolls Virgo para dar uma lição naquele "garoto irresponsável".
Com o fim da Eve Wars, as suas indústrias foram forçadas a converter os MS militares para uso civil e todas as pesquisas e desenvolvimento de novos modelos foram canceladas. O faturamento de suas empresas caiu expressivamente quando o Novo Governo cortou drasticamente o orçamento militar vigente e estatizou os arsenais remanescentes.
Inconformado com os "novos tempos", Lorde Roberts causou celeuma quando numa entrevista feita num programa da TV, ele defendeu a criação de milícias paramilitares armadas nas fábricas, "para reprimir os grevistas baderneiros" que estavam fazendo protestos (na realidade, pacíficos) na Ex-Europa Oriental, em busca de melhores condições de trabalho e qualidade de vida.
E foi mais ainda, propondo a volta da fabricação de Mobile Suits armados para uso em empresas de segurança patrimonial e milícias particulares.
A desastrosa declaração causou um visível mal estar entre o Presidente Russell e os diretores da Romefeller. E apenas a intervenção oportuna de Dorothy junto ao Ministro da Defesa Maxwell Taylor salvou a empresa de uma investigação judicial em grande escala. Por muito pouco, a Agência Preventer de Lady Une não foi convocada para tomar parte das investigações envolvendo a infeliz entrevista de Roberts, que foi transmitida para o mundo todo e nas colônias, gerando críticas e protestos.
A Fundação foi obrigada a fazer um desmentido público oficial, desautorizando Lorde Maximilien a falar em nome dela em público. Além disto, o polêmico diretor foi criticado abertamente por todos os colegas e ele teve que se retratar numa reunião a portas fechadas.
A mente de Roberts estava absorvida por pensamentos de vingança e auto-piedade, quando uma figura anônima - com cabelos loiros compridos, físico forte e bem delineado, vestindo um impecável terno preto e com elegantes óculos escuros, se aproxima a passos rápidos do aristocrata.
- Mister Roberts, eu presumo? - Diz cordialmente, o desconhecido, cuja face parecia talhada em granito, apesar do sorriso aparentemente cordial.
- Humpf. Sou eu mesmo. Mas não conheço o senhor e acho um atrevimento de vossa parte dirigir a mim desta forma! O que deseja de mim?
- Oh, perdão se ofendi o senhor. O meu nome é Paul Clancy. E tenho uma proposta que pode te interessar muito... - Cumprimenta o desconhecido, estendendo-lhe a mão direita.
- Muito bem. Senhor Clancy. Diga logo o que quer antes que... - Roberts hesita antes de cumprimentar o atrevido anônimo, e sob o olhar dos seus seguranças armados, ele responde com um aperto de mãos frio e formal.
- Eu represento os interesses de um seleto grupo chamado "The Net". E tenho certeza que o senhor irá se interessar em se unir a nós...
- E o que tem este raio desse grupo do qual nunca ouvi falar? Pois saiba que não negocio com pretenciosos! Passar bem, cavalheiro! - Furioso por escutar o que julgava uma asneira inaudita, Roberts se indigna e se preparava para ir em direção à sua limusine.
- Espere! É do nosso conhecimento que o Senhor se indispôs com a Romefeller... Nós temos um interesse em comum com o senhor e queremos te ajudar a dar a volta por cima, dando o troco... - Clancy sorri, como prevesse a reação do intempestivo nobre e responde com a voz mais calma do mundo.
- Ei, como sabem disto? Se vocês forem o que estou pensando... - Indaga Roberts, recuando um passo e quase a ponto de mandar seus seguranças a expulsarem o intrometido.
- Não. Não somos chantagistas profissionais e nem qualquer coisa deste tipo. Apenas queremos te ajudar a reverter uma situação injusta... Acredite, o senhor tem muitos amigos...- A voz de Clancy era muito convincente, quase insinuante.
- Não estou interessado nesta conversa sem sentido! Vá embora antes que...
- O nome "Lord Kitchner" diz alguma coisa para o senhor? - Clancy lança a cartada decisiva, sussurrando um nome aparentemente desconhecido de todos, mas
O velho lorde fica pasmo e antes que os seus dois seguranças expulsem o incômodo desconhecido dali, Roberts faz um sinal para que o deixe em paz. O jovem executivo sorri de contentamento, como que o seu objetivo tivesse sido completado.
- Como e onde posso contactá-los? - Diz secamente Roberts, enquanto luta para conter sua ansiedade.
- Aqui está um cartão especial de telefonia. Ele foi programado apenas para funcionar com o senhor. Ligue para o número existente no verso, após às 21 horas do horário de Greenwitch. Mister Kitchner terá o maior prazer de atendê-lo. - Responde Clancy.
- Tudo bem. Vou pensar no caso. Mas, se estiverem brincando comigo, irão se arrepender até o último fio de cabelo! Eu tenho meios para infernizá-los pelos próximos 100 anos com os meus advogados!
- Não precisa se preocupar. Como dissemos, o senhor está entre amigos. - Responde Clancy, de maneira surpreendentemente calma e auto-confiante.
- Pois bem. Diga ao seu patrão que quero encontrá-lo o mais rápido possível. - Após dizer isto, Roberts se retira com os seus guarda-costas, entrando no luxuoso Rolls-Royce, que o estava esperando.
- Oh, sim. Eu te garanto que ele está igualmente ansioso para vê-lo. - Sorri enigmaticamente o escorregadio desconhecido, enquanto ajeita o seu impecável par de óculos escuros.
Uma olhada mais atenta revela que aquele par não era um modelo normal, mas um sofisticado aparelho que transmitia as imagens vistas pelo seu portador a uma fonte externa.
Também habilmente escondido em sua orelha estava, um pequeno aparelho transmissor e receptor de sons, que lembrava muito um fone portátil de ouvido mas com um enorme alcance - além de estar protegido contra interferências e aparelhos de rastreamento eletrônico - valendo uma pequena fortuna.
A quilômetros dali, um furgão pertencente a uma emissora de TV fazia um aparente documentário sobre os castelos franceses da Renascença. Contudo, as imagens captadas pelos monitores dos aparelhos situados na cabine mostravam exatamente as imagens de Roberts e Clancy conversando no estacionamento da propriedade particular dos Romefeller.
Ao ver o sucesso de seu enviado, o "diretor" do documentário faz uma pausa e pede ao seu ajudante que o conecte à sua base, situada a centenas de quilômetros, do outro lado do Canal da Mancha.
Certificando-se de que a transmissão não estava sendo monitorada, o "funcionário" da emissora sintoniza uma freqüência sigilosa e imediatamente põe o seu diretor em contato com a central. Um logotipo surge na tela, no formato de uma rede de aranha estilizada.
Em seguida, imagens de silhuetas humanas impecavelmente vestidas aparecem nos diversos monitores, como se estivessem numa vídeo-conferência. Após um breve instante de silêncio, o que parece ser o líder deles - um homem de meia idade, alto, magro, de óculos - se pronuncia, tendo a sua face encoberta pelas sombras.
- Recebemos a sua transmissão, agente número 9. Vocês podem retornar à Inglaterra na primeira oportunidade. Tomem as precauções necessárias. Excelente trabalho. - Fala uma voz protegida digitalmente e distorcida por um eco metálico.
- Agradeço o elogio, Webmaster. Devemos continuar monitorando Mister Roberts até o encontro?
- Não. Não será necessário. Se eu o conheço, ele nos procurará, no máximo em uma semana.
- Mas pelo visto, Mister Roberts parece ter uma psique um tanto instável... E quanto a sua lealdade?
- Não se precisa preocupar quanto a isto, Agente número 9. A sua fortuna e o complexo industrial que ele possui é o que nos interessa. Em pouco tempo acabaremos de uma só cajadada com o Governo do Presidente Russell e a Romefeller.
- E os pilotos dos Gundams, será que eles não podem...
- A esta altura, eles pouco poderão fazer. Com a auto-destruição dos mesmos, não são mais ameaça. E mesmo que eles os tivessem de volta, um novo tipo de guerra está para começar... Uma guerra no qual os Gundams são totalmente inoperantes.
- Mas e a Agência Preventer? A Lady Une pode ser uma pedra em nosso caminho...
- Não se preocupe. Une será neutralizada o mais rápido possível. O nosso coringa irá por a Agência fora de combate, enquanto tomamos o poder.
- E quanto a ele, o nosso coringa? Será que ele irá conseguir a informação que tanto necessitamos?
- Fala do "Sem-Nome"?. É claro! Ele está tão obcecado pela sua vingança pessoal que esquece que está sendo vigiado... por nós. O idiota não sabe que nossos computadores estão rastreando todos os seus passos. E quando ele destravar todo o sistema...
- E o que faremos com ele depois que tivermos os dados necessários para o nosso projeto de guerra virtual?
- Eliminaremos ele, claro. Um mendigo a mais ou a menos na face da Terra não fará qualquer diferença. Agora, escute com atenção...
O misterioso líder transmite as ordens para o seu agente localizado na França e ele escuta tudo sem hesitar. Em seguida, ele encerra a transmissão e continua trabalhando por mais alguns minutos, fingindo fazer o suposto documentário, junto com os seus auxiliares.
Meia hora depois, todos montam no veículo e ele parte em instantes, deixando a paradisíaca paisagem do castelo que estava sendo televisionado para trás.
Notas e Comentários deste Capítulo:
1) Cada colônia espacial da série Gundam Wing tinha um país ou continente de origem de onde vinha a maioria dos colonos:
L1 - Japão;
L2 - Estados Unidos;
L3 - América Latina;
L4 - Oriente Médio;
L5 - China.
Somente a Europa não tinha sua colônia própria, pois aparentemente ela era o poder político dominante no cenário mundial mostrado na série;
2) Apesar da maioria das fics de GW (mesmo em inglês) não dê um papel de destaque a Hilde Schbeiker, o seu potencial não pode ser descartado, já que ela foi a pessoa que conseguiu levar os dados do Couraçado Libra para os pilotos Gundams, com risco de sua própria vida, num dos episódios finais da série. Embora não fique claro o quanto Duo gostava dela, é certo que os dois eram mais do que amigos. O background do capítulo foi inspirado numa das cenas finais do OVA Endless Waltz, aonde mostra o casal em cima de uma enorme pilha de sucata;
3) Paganini era um violinista italiano muito famoso (contemporâneo de Liszt e Chopin) do início do século XIX que, segundo a lenda, havia feito um pacto com o Diabo para conseguir dominar ao máximo a técnica virtuosísitica do instrumento de arco.
Stradivarius foi um fabricante de violinos do século XVIII que produziu verdadeiras obras-primas inigualáveis. Conta-se que o segredo da sonoridade de seus instrumentos era devido à composição do verniz usado na fabricação dos violinos, cuja fórmula infelizmente se perdeu.
4) Mendelssohn e Mahler eram compositores de origem judaica;
5) O comentário sobre os diversos conflitos no Oriente Médio foi escrito a quase um mês antes da Líbia anunciar publicamente que estava renunciando a fabricação de armas de destruição em massa. Contudo, isto não anula o fato deste país ter sido um dos maiores importadores de armas nos anos 80 e de ter financiado vários grupos terroristas no passado recente;
6) A origem étnica da Catherine é um pouco controvertida e mesmo alguns sites apresentam informações divergentes. Fiz um pouco de "licença artística" partindo do argumento de que geralmente artistas de circo são nômades e não se fixam num mesmo lugar por muito tempo - circunstância esta ainda mais agravada pela guerra;
7) Embora pareça absurdo o plot que coloquei para Trowa, não é tão impossível de acontecer na vida real. Geralmente pessoas aparentemente retraídas, mas com uma vida interior intensa sentem-se atraídas pela música, poesia e literatura.
8) Até onde pude ver, o nome do dono do circo aonde Trowa e Catherine trabalham não aparece. Dei a ele a alcunha de "Picadilly", já que este era o nome de um famoso circo inglês. Caso um dia consiga saber o nome oficial deste personagem, irei substitui-lo.
9) Pode parecer um exagero colocar um concurso sobre fanfictions patrocinado por um instituto cultural na "Rede Mundial" (a internet do futuro) numa fic de GW.
Mas, se pensarmos bem, muitas coisas que a gente considera como arte hoje não era vista como tal há séculos atrás. Na Idade Média, somente a música sacra era vista como arte.
Na França de Luís XIV, o teatro não era encarado como uma forma artística, embora fosse um entretenimento das elites. Inclusive os termos "ator" e "atriz" tinham uma conotação nada positiva.
E, mais recentemente, somente nos finais do século XIX o balé clássico passou a ser considerado uma forma de arte, graças à teimosia do compositor russo Tchaikovsky.
A mesma coisa pode estar acontecendo com os mangás e animes na época atual. Antes considerado como mera diversão para crianças, hoje eles estão sendo considerados como ícones da cultura pop contemporânea e não é de se duvidar caso algum dia eles sejam considerados obras artísticas.
10) Marquis Weridge era um dos membros da ala moderada da Romefeller e foi um dos que apoiaram a idéia de fazer de Relena a soberana da Terra. Alguns sites na internet sugerem que ele possa ser o avô materno de Relena;
11) A minissérie "Battlefield of Pacifists" (volumes 7 e 8 da edição brasileira publicada pela Panini), dá a entender que Dorothy Catalonia havia se desligado da Romefeller. Contudo, pelo que vi na série original, ela não tem o perfil de acabar se tornando uma "dondoca".
Muito pelo contrário, a jovem aristocrata tem uma excelente capacidade de argumentação e um inato senso de oportunismo, como fica evidente na cena do Endless Waltz, aonde ela convence vários populares a irem até o centro de Bruxelas para darem apoio à Relena - que estava presa pelos golpistas - e protestarem contra o golpe de estado.
12) A figura do arrogante Lorde Roberts foi inspirada num general inglês que combateu na guerra dos Boers (final do século XIX), aonde a Grã-Bretanha arrancou a África do Sul dos colonos holandeses. A repressão aos vencidos foi terrível e as notícias de atrocidades cometidas causaram comoção inclusive na Inglaterra.
13) O nome "Paul Clancy" foi inspirado num vilão do game "Ninja Gaiden 3" do console Nintendo.
14) Agradeço à colega Kitsune-Onna por ter lido e comentado este capítulo, bem como suas as observações sobre Relena e Dorothy. A sua saga "205 AC" merece ser lida por todos os fãs (e não-fãs) de Gundam Wing e tem sido para mim uma excelente fonte de referência e inspiração. O trecho deste capítulo onde aparecem Catherine, Trowa e o circo não teria saído desta forma se não fosse pela leitura do capítulo número 6 de "205 AC", sob o título "Circo Fantástico". Arigatou Gozaimassu, Kitsune-chan! Sucesso para a sua fic!
Escrito por: Calerom
Última Versão: 08/02/2004
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Calmaria Antes da Tempestade.
Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam na Esfera Terrestre, uma nave de transporte interplanetária pousava no espaçoporto da principal colônia de L2.
Habitada principalmente por imigrantes vindos da América do Norte, a L2 e os seus vizinhos eram uma espécie de "Califórnia" do século XIX, atraindo aventureiros de toda a espécie - bem como pessoas simples em busca de um futuro melhor para suas famílias e novas oportunidades de progresso.
Contudo nem tudo eram rosas. O longo conflito com a Terra havia exaurido os recursos econômicos de todas as colônias espaciais e um alto preço em vidas humanas e lares desfeitos havia sido pago. Mesmo no pós-guerra, a recuperação econômica estava lenta, não havia empregos para todos e a criminalidade estava em alta.
Com o fim da guerra entre a OZ e as colônias, muitos dos ex-combatentes de ambos os lados tentavam uma vida melhor no espaço - na ilusão de encontrar novas perspectivas.
Alguns podiam se dar bem e tornar-se ricos da noite pro dia... A maioria sentia-se feliz por ter um emprego medíocre, e muitos outros encontravam apenas com a fome, a humilhação, o sofrimento, e a mais absoluta falta de perspectivas, caindo na marginalidade.
*****
A nave de transporte que estava pousando era um modelo adequado para viagens de longa distância - sendo adaptada para recolher lixo espacial, destroços e todo tipo de material encontrável no espaço - o que não era pouca coisa.
Em especial, a derradeira batalha entre o White Fang e a Nação Mundial de Treize causara uma destruição sem precedentes - tornando de certa maneira arriscadas as viagens entre a Terra e as colônias do espaço, devido os destroços do couraçado Libra e dos restos de mobile Suits da última batalha, poluindo o espaço.
Para resolver o problema, várias companhias privadas foram comissionadas para recolher o lixo ao redor das rotas de tráfego e, na medida do possível, retorná-lo às colônias para ser reciclado e reprocessado pelas indústrias locais, já que o desperdício precisava ser combatido a todo custo.
O governo se encarregava de monitorar apenas os processo de recolhimento, compra e venda de materiais radiativos, explosivos, restos de equipamento bélico e minerais raros - usados na fabricação das ligas de Neo-Titanium e Gundanium,- devido ao altíssimo custo dos mesmos, bem como sua periculosidade inata.
Depois que ficou evidente que, há 2 anos atrás, a Fundação Barton estava criando Mobile Suits modelo Serpent debaixo do nariz da Nação Unida da Esfera Terrestre - medidas rigorosas porém tardias foram tomadas.
Afora isto, os metais mais comuns - bem como os componentes que não eram tão perigosos para se manusear - podiam ser recolhidos e comercializados livremente.
Neste esquema, tanto a Terra como as colônias ganhavam, já que a primeira se beneficiava pelas as suas rotas espaciais livres para a navegação segura e as últimas garantiam para si alguns empregos, um certo aumento no movimento comercial e farta matéria-prima.
Para isto, além de dispor de um enorme compartimento de carga e aparelhos capazes de manipular o lixo com segurança, a nave também era equipada com Mobile Suits, mas de tipo diferente dos usados pela OZ e os Gundams. Eram MS de trabalho, não-armados e de uso exclusivamente civil, usados para exploração e coleta de materiais.
Algumas empresas mais aquinhoadas em termos de dinheiro - como as subsidiárias da toda-poderosa Romefeller - podiam se dar ao luxo de usar Mobile Dolls programados para tais tarefas (baseados nos bem-sucedidos modelos Virgo) e convertidos para fins de trabalho. Mas a grande maioria das firmas usava modelos tripulados, precisando de pilotos contratados com experiência - a grande maioria, sendo ex-combatentes das guerras.
Após ter descido da enorme nave - depois da mesma ter aterrissado, descarregado a sua carga nos caminhões e posteriormente guardada num enorme hangar - uma figura excêntrica e curiosa despede-se de seus colegas, cada um indo para o caminho de seus lares..
A singular figura tratava-se de um velho, vestido com roupas de turista havaiano e com o corpo ligeiramente curvado. Ele usava um bigode pontudo, cavanhaque e era calvo, além de usar um par de óculos escuros triangulares.
Seu nome era Howard. Ele havia sido antes um renomado cientista na Terra, sendo mestre nas áreas de engenharia, robótica, inteligência artificial e propulsão de foguetes espaciais.
Entre seu impressionante currículo constava o projeto que criou o primeiro MS de combate da Aliança, o chamado Talgeese 1.
Só que, desgostoso com os rumos ditatoriais que a Aliança Terrestre estava tomando, ele abandonou tudo e sumiu, caindo na clandestinidade - até retornar de forma inesperada durante a Eve Wars, prestando o suporte necessário aos jovens pilotos dos Gundams com a sua Organização "Sweeper" e não se alinhando nem com a terrível OZ e nem com a radical White Fang.
Após o desaparecimento dos cinco cientistas que criaram os Gundams, provavelmente Howard era a maior autoridade existente na Terra a entender do assunto Mobile Suits - podendo ter um ótimo emprego em qualquer agência do Governo da nova Nação Unida ou mesmo na Corporação Romefeller - que agora estava direcionando seus esforços industriais para fins mais "pacíficos".
Só que no momento, a sua preocupação imediata não era com as lutas e os conflitos militares recentes, mas com algo mais trivial...
Com o fim da Eve Wars e do desbaratamento da 2a Operação Meteoro, Howard retornou ao seu trabalho de coleta de lixo, tendo fundado uma pequena empresa para este fim, baseada na sua existente Organização "Sweeper".
Embora a concorrência fosse grande e a firma desse muito trabalho para pouco lucro, o excêntrico cientista gostava do que fazia e isto era muito melhor do que estar desenvolvendo máquinas de destruição em massa numa fábrica secreta ou testando novas armas numa frente de batalha, combatendo lutas sem sentido.
Contudo, Howard não trabalhava sozinho. Além dele mesmo e dos seus empregados, ele tinha dois "sócios" na empreitada. E precisava falar urgente com eles.
Naquele momento, logo após sair do espaçoporto, Howard pega um táxi comum e, após dar um endereço para o motorista, retira do bolso de seu jaleco de trabalho o seu intercomunicador - uma versão poderosíssima do antigo telefone celular, capaz de transmitir e receber arquivos, dados, som, imagens e voz da Terra para o espaço e vice-versa. Um sonho impossível no final do arcaico século XX, quando os primeiros modelos - primitivos e limitadíssimos - surgiram no mercado.
Contudo, existiam certas similaridades entre o rudimentar aparelho celular e seu equivalente da Era pós-AC. O idoso cientista abre o intercomunicador e tecla um número que constava na memória da pequena máquina, esperando completar a ligação. Um beep curto e claro indica que a linha foi completada.
- Alô, Hilde? O Duo está? - Howard inicia a conversação enquanto apanha um pequeno bloco de anotações do bolso de seu casaco.
Naquele instante, numa pequena, mas bem arrumada casinha localizada no Distrito Residencial de L2, o telefone toca.
Uma figura feminina sai do banheiro, vestida apenas de uma toalha - que mal recobre seu corpo franzino - e usando um par de chinelos. Ela tinha estatura baixa, compleição delicada, cabelos negros e um belo par de grandes olhos que contrastavam com as sobrancelhas finas. O seu cabelo era bem penteado e bem cuidado, exceto por uma teimosa franja que se destacava na parte da frente.
- Pronto, Hilde falando... Howard, é você? - Diz a jovem, retirando o telefone portátil do gancho, enquanto se dirige ao seu quarto.
A jovem fala no idioma universal padrão, embora o seu leve sotaque evidencie a ascendência alemã em seu sangue.
Hilde Schbeiker era o seu nome. Órfã de pai e de mãe devido à guerra, sua infância foi muito sofrida, tendo passado em diversos orfanatos, até ter entrado numa academia militar da OZ.
Aos quinze anos de idade, ela já era um soldado das Forças Espaciais de OZ e piloto de Mobile Suits, tendo experiência de combate.
Embora fosse membro da temível organização, a jovem alemã era, de caráter doce e um pouco ingênuo, achando que estava fazendo o certo.
E de certa forma, ela não era culpada, uma vez que na época quase toda a Terra estava nas mãos de OZ.
Todos os cidadãos - querendo ou não querendo - tinham que colaborar com ela. E somente um punhado de loucos se atrevia a combatê-la. A sua vida mudou, quando havia conhecido um destes loucos, num encontro no espaço.
O louco pilotava um poderoso Mobile Suit chamado Gundam, um modelo de cor negra, aspecto sombrio, e que era armado com uma poderosa foice laser.
O sinistro Mobile Suit era também conhecido como "Deathscythe" ou mais simplesmente, "Shinigami", o Deus da Morte.
O louco gostava vestir-se de preto e tinha a mesma idade dela, possuindo cabelos castanho-médios longos, amarrados num longo rabo de cavalo e um olhar vivaz e brincalhão que contrastava com suas crenças pessoais sombrias sobre vida e morte.
E foi graças a este louco que ela percebeu o erro de servir à OZ, decidindo mudar de lado, ajudando aos que lutavam pela paz da Terra e das Colônias.
E o nome do louco era...
- Ele já voltou do depósito, Hilde? - Pergunta Howard com um certo com de ansiedade na voz.
- Não, Howard... O Duo ainda não voltou, mas ele me disse há horas atrás que iria demorar um pouco no depósito. Quer deixar recado? Não? Depois o senhor passa aí? Ok. Deixo anotado. Sim... Tchau.
Duo Maxwell, o legendário piloto do Shinigami. Assim, como Hilde, ele era também um filho da guerra. Órfão de pai e de mãe, ele teve que se unir desde criança a uma gangue de órfãos de rua para não morrer de fome. Os alvos prioritários do grupo de meninos eram estabelecimentos comerciais e os depósitos de comida da Aliança.
Ele sequer tinha um nome e sobrenome. O seu prenome foi dado pelo líder da gangue, chamado "Solo", pouco antes deste morrer, após Duo ter tentado salvá-lo de uma doença contraída numa epidemia na L2 - cujo antídoto tinha sido negado pela Aliança aos membros "indesejáveis" das colônias - leia-se pobres, doentes terminais, deficientes físicos e órfãos.
O seu sobrenome foi dado quando ele - mais uma vez sem ter para onde ir - foi adotado por um sacerdote chamado Maxwell e pela irmã Helen, que mantinham uma igreja que cuidavam dos órfãos da guerra, mas que secretamente dava suporte para os membros da resistência, escondendo armas e transmitindo informações sigilosas.
Contudo, eles foram descobertos e as forças do governo não tardariam a agir.
Após o padre Maxwell e a irmã Helen terem sido eliminados pelos soldados e a igreja destruída, Duo acabou desaparecendo na clandestinidade.
O massacre - que ceifou 245 vidas - acabou sendo chamada de "A Tragédia da Igreja Maxwell" e serviu ainda mais para acirrar o ódio da colônia L2 contra a crueldade da Aliança.
Mais tarde, o jovem órfão acabou incorporando o sobrenome do falecido sacerdote, além de adotar uma roupa que lembrava uma batina, como forma de jamais esquecer suas raízes.
Mais tarde, Duo acabou sendo escolhido pelos membros da resistência para pilotar o Gundam Número 2 - DeathScythe - com o objetivo de libertar as colônias da opressão da Terra.
Após ter autodestruido "Shinigami" no final da tentativa de golpe de estado organizada por Dekim e Mariemeia e ter retornado à L2, Duo se juntou à "Sweeper", tornando-se parceiro e sócio de Howard, além de tocar um depósito de ferro-velho aonde se comprava e vendia de tudo para industrias de transformação e reciclagem.
Ele passou a viver junto com Hilde, que acabou se tornando sua companheira, "namorada" e sócia no negócio.
Durante o dia, ele se ocupava de comprar e vender de tudo, bem como contactar potenciais clientes; ao passo que ela cuidava da contabilidade e das finanças, além de conferir o "estoque" do incomum empreendimento.
O (pouco) lucro que eles obtinham era reinvestido no próprio depósito e os sócios retiravam apenas o mínimo para viver, o qual era complementado com uma pequena pensão quem Hilde recebia da Nação Unida por ter sido ex-combatente, o qual também dava ela o direito de receber alguns descontos em compras de gêneros alimentícios, assim como ajuda assistencial do novo governo.
Após muita insistência, a ex-combatente de origem alemã e a própria Relena Peacecraft em pessoa haviam conseguido convencer o teimoso rapaz a se inscrever num programa de ajuda aos ex-órfãos da guerra - criada pela jovem ministra para amenizar o problema da miséria - que dava a Duo o direito a receber assistência médico-odontológica gratuita, além de uma cesta básica mensal e cupons de descontos para compras de gêneros de primeira necessidade.
Ironicamente - mesmo tendo salvado o mundo das garras da OZ e mais tarde da Fundação Barton - Duo e seus colegas não receberam um centavo por isto, por uma decisão conjunta entre os pilotos - já que estavam cientes de que a liberdade conquistada e a vitória foram obtidas às custas de inúmeras vítimas e mesmo de sangue inocente derramado nos combates.
Relena e o próprio presidente Russell tentaram remediar a situação, oferecendo empregos e até uma pensão vitalícia para todos, mas eles taxativamente preferiram seguir suas vidas particulares.
Embora parecesse muito modesto o padrão de vida do casal Duo / Hilde se comparado ao de muitas pessoas, eles aparentemente não se queixavam.
Já haviam conhecido de perto o que era sofrer, passar fome, passar sede, não possuir um lar e não ter ninguém a quem recorrer.
Agora pelo menos tinham um teto, o que comer, o que vestir, e o mais importante, esperanças e perspectivas de vida.
Duo mantinha-se uma pessoa alegre, despreocupada e sorridente, conquistando facilmente a simpatia de quem convivia com ele - com a exceção talvez de Heero Yuy, que ficava constantemente irritado com as suas piadas e gracinhas.
Embora nunca tivesse estudado numa escola ou ginásio, Duo estava longe de ser um ignorante analfabeto, por ter aprendido a ler e escrever com o Padre Maxwell. Atualmente nas suas horas vagas, ele lia qualquer coisa que viesse parar em suas mãos, além de ser um especialista em computadores e eletrônica, graças ao treinamento que recebera no movimento de resistência da Colônia L2.
O relacionamento Duo / Hilde era algo ao mesmo tocante e engraçado aos olhos dos conhecidos e amigos. Tocante porque realmente ela gostava dele e vice-versa, e isto era evidente nos mínimos gestos entre ambos. E engraçado por causa dos incidentes e cenas causados pela diferença de temperamentos e gênios entre ambos.
Contudo, apesar de viverem juntos a quase 2 anos, eles pareciam muito mais dois velhos amigos do que namorados, convivendo no mesmo teto, apesar de já terem trocado algumas intimidades.
Hilde certamente não tinha o carisma de uma Lucrezia Noin e nem tampouco o senso prático da Sally Po, mas compensava a falta de talento para liderar com um caráter amável, dedicado e leal, além de manter um grande senso de idealismo e confiança. Isto apesar dela ter conhecido os horrores da guerra, junto com seu atual companheiro.
Estando sentada na borda da cama e tendo acabado de desligar o telefone que carregava, Hilde lembrava-se do primeiro encontro que teve com Duo, numa batalha espacial, quando ambos estavam ainda de lados opostos.
Realmente aquele encontro poderia ter sido fatal para ela, já que era um piloto da OZ. Contudo, o Deus da Morte decidiu não ceifar aquela jovem vida, apesar de ser um alvo para o "Shinigami".
Em que pese o fato de ter parado de estudar, Duo a incentivava retomar os estudos. Após o jantar, ela ia tomar algumas aulas num curso supletivo fazendo o equivalente a 8a série.
Embora fosse a aluna mais velha - tinha agora 18 anos - de uma classe aonde a média da turma era de 14 anos, a jovem alemã era bastante popular com as colegas e os professores. Mais algum tempo, e ela poderia completar os estudos colegiais e quem sabe, fazer uma faculdade. Mas isto era assunto a longo prazo.
Hilde estava tão pensativa em seus sentimentos que não havia percebido a chegada DELE.
Duo - quando queria - fazia um estardalhaço em toda a vizinhança, mas naquele dia havia conseguido a façanha de entrar na própria casa sem fazer um ruído sequer. Ele trazia uma enorme sacola numa das mãos e foi se dirigindo ao quarto, como se fosse fazer uma surpresa.
Naquele momento, Hilde tinha ido se levantar e foi ao guarda-roupas colocar algo para se vestir. Ela ainda precisava fazer rapidamente um lanche a título de jantar, antes de sair para o curso.
Só que ao abrir as portas do guarda-roupa, com ambas as mãos, ela deixou cair a sua toalha, que não estava suficientemente enrolada.
Isto não seria exatamente um problema, se Duo não tivesse aparecido lá naquele instante.
- Olá, querida, cheguei! Hilde, eu... Hã? - Diz o rapaz antes de se surpreender diante da cena inusitada.
- Duo!
Hilde fica totalmente corada como um pimentão, enquanto o americano faz uma de suas caretas típicas, enquanto que um jato de sangue jorra de uma de suas narinas. .
A cena seguinte mostra um Duo sendo nocauteado sucessivamente por um pote de creme, um spray de desodorante e outras coisas - coisa que nenhum inimigo havia conseguido fazer na época da guerra.
- Ai! Ui! Foi mal, benzinho!
O corpo nu de Hilde, embora magro, era muito bem proporcionado e bonito, com toda a beleza e o frescor da juventude. E ainda assim, Duo somente o vira pouquíssimas vezes no relacionamento de ambos, e apenas na penumbra da noite artificial de L2, quando os dois compartilhavam alguns momentos de privacidade.
- Seu tarado, pervertido ! Vai ficar de fora enquanto não terminar de me vestir!
O pouco sutil piloto do Shinigami fica de castigo, sentado do lado de fora, enquanto uma zangada Hilde termina de se vestir apressadamente.
Passados três minutos, ela sai do quarto, vestindo uma roupa esporte, pronta para sair. Duo vai com ela até a pequena cozinha e juntos, fazem algumas torradas e uma sopa leve a título de um rápido jantar.
- Humpf... Você e sua mania de entrar sem chamar a atenção... Por acaso esqueceu de desligar o seu "Hyper Jammer"? - Diz Hilde, já um pouco mais calma, mas ainda fingindo-se indignada, enquanto termina de servir a mesa.
Ela aludia ao dispositivo que o Gundam Deathscythe usava, tornando-o invisível para qualquer tipo de sensor ou radar, exceto á curtíssima distância.
- Desculpa, benzinho, eu estava distraído e não percebi que você já estava no quarto. - Responde Duo, admitindo que realmente estava "viajando", enquanto mastigava rapidamente uma torrada feita na hora. Só que ele preferiu manter silêncio sobre o pacote que trouxera.
- Bem, deixa para lá. Duo, o Howard te ligou há minutos atrás. - Comenta Hilde, avisando a respeito do telefonema.
- O que o tio Howard quer?
- Ele disse-me que hoje a noite, está trazendo as notas dos carregamentos da semana que ele fez e quer que a gente dê uma conferida. - Comenta a alemã enquanto termina o seu jantar improvisado e lava rapidamente o seu prato na pia.
- Ah, mas só isto? - Duo fica intrigado, porque geralmente quando Howard aparecia não era exatamente para contar abobrinhas;
- Bem, talvez ele tenha mais novidades... Desculpe-me por não poder mais ficar, mas tenho que ir senão chego atrasada ao curso... - Sorri a jovem, certificando-se de pegar a sua bolsa e a pasta com o material do curso.
- Mas... Hilde? - Duo se levanta e toca de leve no braço direito dela, antes que a sua garota saia para a sala.
- O quê foi?
- Você me perdoa pela mancada? - Duo pergunta em voz baixa e numa atitude surpreendentemente humilde..
- Só se a gente... Tiver uma conversa bem interessante... Depois que eu voltar e a gente formos nos deitar no quarto, à luz de velas. - Sorri maliciosamente a jovem, que conhecia Maxwell como ninguém.
- Hum... Legal... Mas qual é a diferença entre eu reparar na luz do dia e na intimidade? Não é a mesma coisa? - Desta vez é Duo que resolve maliciar, fazendo uma pergunta óbvia demais.
- Seu bobo! Para nós, mulheres, é claro que não! E além do mais, eu sou muito recatada! - Responde Hilde fazendo um biquinho de garota mimada.
- Tá bom, tá bom, foi mal... Mas... você me perdoa? - Desta vez, Duo se aproxima e toca com ambas as mãos as de Hilde.
Hilde fica em silêncio por alguns instantes, mantendo uma fisionomia séria. Depois, se aproxima lentamente de seu amado, e o envolve com seus braços finos. Tomando a iniciativa, ela acaricia o longo rabo de cavalo de Duo, e encosta os seus lábios aos dele. Em seguida, ambos trocam um lento e apaixonado beijo...
- É claro que te perdôo, Duo-chan! Mas você precisa aprender que nós, mulheres, nos comportamos de forma um pouco diferente de vocês, homens... - Sorri a jovem alemã, usando um termo carinhoso muito comum na colônia L1 que aprendera de uma colega de cursinho que viera de lá.
- Querida, você sabe que eu...
- Shhh... eu sei... Benzinho, me desculpa, mas vou precisar sair agora... Se o Howard não ficar aqui até eu voltar, dê minhas lembranças para ele. Ah... e não se esqueça que o pó de café e a cafeteira automática estão na 2a prateleira do armário... - Comenta ela, piscando com um de seus olhos.
- Tchau, amor, se cuida.
Duo e Hilde trocam um último olhar de ternura quando ela termina de se aprontar e abre a porta, indo para a rua pegar um bondinho que a levaria em direção ao colégio.
Depois de se certificar de que não seria interrompido, Duo - com um ar de criança levada e travessa - pega sorrateiramente o seu pacote misterioso e
vai na direção ao outro quarto da casa, que servia como um misto de oficina e laboratório.
Em cima de uma mesa de oficina, lá estavam um monte de instrumentos eletrônicos, fios, circuitos, parafusos e peças de coisas que ninguém mais se interessava.
Lá era um lugar todo cheio de tranqueiras que ele tentava montar, com base nas peças que encontrava no depósito - a maioria sendo de décadas ou mesmo séculos atrás.
Como resultado, a residência do casal Maxwell/Schbeiker vivia cheia de cacarecos que ele havia conseguido restaurar com a sua genialidade, a ponto de não precisarem comprar muitas coisas para o conforto do lar.
Só que a jovem ex-piloto de MS da OZ havia "convencido" o seu namorado a não espalhar seus inventos pela casa depois que uma torradeira automática do final do século XX teve um curto circuito, quase pegando fogo na casa.
Assim, Duo resolve gastar um tempinho antes que o velho Howard chegue em casa, procurando ver um modo de reativar a estranha máquina que tinha em mãos.
*****
Colônia L-4.
Num pequeno salão de um enorme edifício, rapidamente improvisado como uma sala de concertos, um jovem loiro tocava com grande virtuosismo ao violino, os "Capriccios" do genial compositor italiano Paganini, que viveu no século XIX.
A sua técnica era perfeita e ele extraía do anacrônico instrumento, notas que emudeciam de emoção os convidados presentes.
Ele conseguia extrair tons que se assemelhavam à voz humana; outras vezes, fazia acordes que simulavam uma fanfarra de trompas e trompetes e finalmente podia dar a vibração e o calor de uma orquestra no primitivo violino modelo Stradivarius, um dos raríssimos exemplares ainda existentes no mundo.
Ao fim da pequena performance, uma tempestade de aplausos ecoa pelo salão. O violinista agradece com uma reverência. Pausa... Em seguida, entra uma linda jovem - uma de suas 29 irmãs - vestida com um longo vestido branco de seda e que senta ao banquinho de um elegante piano de cauda, para acompanhá-lo na próxima performance.
Nova pausa, um curto silêncio, porém de expectativa crescente.
A jovem toca os primeiros acordes do Concerto em Mi Menor para Violino e Orquestra de Mendelssohn, um compositor judeu-alemão, que viveu no distante século XIX - devidamente transcritos para serem executados ao piano.
Após a melancólica e inquieta introdução, o violinista loiro começa a tocar o seu solo, arrancando um suspiro mudo de admiração dos presentes...
E ele os vai conduzindo pela magia da música, através da melancolia inquieta do primeiro movimento, do lirismo cantante do segundo e finalmente do vibrante "finale" do terceiro movimento do concerto escrito há séculos, mas que ainda comovia e encantava seus ouvintes.
Nova tempestade de aplausos e pedidos de bis, que obrigam o jovem violinista a repetir um pequeno trecho do concerto por duas vezes seguidas. Em seguida, ele começa improvisar temas ao piano, tocando a quatro mãos com a sua irmã, para deleite dos presentes.
O rapaz e a linda jovem são aplaudidos de pé e ovacionados pela pequena platéia. Em seguida ambos saem do improvisado palco e são cumprimentados pelos convidados presentes, enquanto se dirigem ao salão vizinho, onde estava sendo feito um coquetel de boas vindas.
Havia algumas pessoas de traços europeus e outros árabes - pertencentes à família do jovem loiro que tocava no palco. Estavam no elegante salão as suas numerosas irmãs, alguns parentes, convidados e seguranças - além dos numerosos empregados que tentavam terminar rapidamente de colocar as bandejas contendo as entradas do coquetel, bem como as bebidas.
Contudo, a grande maioria dos elegantes cavalheiros e das lindas mulheres eram judeus - membros de uma comitiva vinda recentemente da Terra, mais precisamente de Tel-Aviv para discutirem assuntos comerciais, culturais e de negócios.
No singelo, porém sofisticado coquetel de boas vindas - preparado cuidadosamente para não infringir os costumes religiosos árabes e judeus ao mesmo tempo, notando-se a ausência de pratos à base de carne de porco e bebidas alcoólicas - um idoso rabino judeu vestido a caráter e membro integrante da comitiva se aproxima do violinista, que estava conversando com algumas moças sorridentes, e lhe dá um caloroso comprimento:
- Deus te abençoe, meu filho. Você tocou tão maravilhosamente bem que fez este velho emocionar-se às lágrimas... Qual o seu nome? - Pergunta o rabino, abraçando efusivamente Quattre de uma forma até constrangedora, arrancando risadinhas das lindas moças..
- Quattre, Quattre Raberba Winner, e o meu senhor?...
- Eu me chamo Ythzak Bernstein, sou rabino da sinagoga de Tel-Aviv. Mas pode me chamar apenas de Ythzak, senhor Quattre. Eu diria que o senhor tem a alma de um Filho de Ismael, mas toca como um autêntico violinista judeu!
- Muito obrigado, rabi Ythzak, sempre gostei de música erudita desde criança.
- Isto é muito bom! Poucas pessoas hoje em dia sabem valorizar a boa música! Sabe, eu tenho em casa uma coleção de Sinfonias do compositor Mahler que o senhor iria adorar! ... - Pelo visto, seria o começo de uma longa conversa sobre música erudita que o jovem loiro iria ter que aturar, apesar de sua paciência ser quase infinita.
Quattre Raberba Winner. Embora seu primeiro nome fosse de origem européia, e ele tivesse tido acesso à mais fina educação ocidental, o jovem herdeiro do clã árabe amava o seu povo e as suas origens a ponto de não ter movido a sede de sua organização para regiões como a ex-Europa ou o ex-EUA, o que seria mais condizente em termos estratégicos.
Embora parte de sua família se constituísse de humildes imigrantes árabes que fugiram das guerras que assolavam o Oriente Médio no século XX para a França, mais tarde foi comprovado que o seu ramo ancestral se estendia muito além, remontando por parentesco a linhagem do profeta Mohamed (Maomé), o que fez muitos virem no jovem loiro um grande promotor da causa árabe.
Contudo, estas raízes não impediram que despertasse no rapaz de modos finos, um legítimo apreço pelas outras culturas e outros povos, inclusive o dos seus convidados do singular sarau musical.
Boa parte dos investimentos da Organização Winner havia sido viabilizada com capital e recursos humanos árabes, mas com tecnologia de ponta vinda do pequeno país que um dia foi Israel e o apoio técnico de cientistas americanos e europeus.
Era sabido que em quase todo o século XX e em boa parte do século XXI, Árabes, Palestinos e Israelenses se digladiaram em várias guerras fraticidas, num ódio mortal, ceifando milhões de vítimas.
Enquanto gabinetes de extrema-direita comandada por belicistas como o tristemente famoso Ariel Sharon e outros se sucediam no pequeno país dos judeus, os árabes eram oprimidos por regimes autoritários que podiam variar, como a corrupta e venal monarquia árabe, o bizarro regime líbio de Kadhafi, o violento e personalista regime iraquiano de Saddam Hussein e finalmente, o virulento fundamentalismo apregoado por Osama Bin Laden e seus seguidores.
Nomes estes que apenas aparecem como meros registros históricos na era AC como testemunhos de uma época bárbara e genocida.
Foi quase um milagre divino tudo isto ter mudado, transformando as rivalidades entre ambos os povos para um novo relacionamento baseado na cordialidade e confiança, mas tudo isto foi conseguido com sacrifícios e muito sangue.
Tanto Israel como os países árabes sofreram durante a III Guerra Mundial e nas seguintes: A Terra Prometida chegou a perder quase a metade do seu povo nos massacres, bombardeios e na apocalíptica batalha de Megido (que custou quase todo o seu exército), enquanto várias cidades do Oriente Médio como Bagdhad, Cairo, Trípoli e Beirute foram arrasadas com armas nucleares e convencionais.
A paz na região somente havia sido conseguida depois que os regimes cruéis da região foram aniquilados, e uma nova dinastia - mais pacífica e democrática - unificou os povos árabes.
E de sua parte, quando Israel finalmente desistiu de suas tendências militaristas e tornou a semidestruída Jerusalém numa cidade aberta para todos os povos.
A Era AC (After Colony) somente foi possível quando o Oriente Médio foi finalmente pacificado e os governos locais resolveram investir na corrida espacial, ao perceberem que a riqueza que sustentou toda aquela região por séculos, mas que também despertava a cobiça dos governantes e das superpotências - o petróleo - estava se extinguindo.
Diferente dos infames e truculentos dirigentes árabes do século XX, Quattre Raberba Winner era o símbolo típico da nova época: uma pessoa culta, delicada, inteligente e pacífica - embora dotada de forte espírito de liderança e justiça.
Mesmo com o surgimento da Nação Unida e o fim das fronteiras nacionais, ele logrou preservar a identidade racial e cultural de seu povo, promovendo e apoiando movimentos culturais e religiosos, desde que não entrassem em choque com as regras da tolerância mútua e da civilização.
Enquanto a pitoresca cena do encontro do Rabino e de Quattre se desenrolava, um pequeno, mas discreto número de guarda-costas, vestidos em trajes árabes típicos, observava a cena.
- Puxa, Karin, o Mestre realmente toca muito bem, não acha? - Comenta um homem alto e musculoso, enquanto observa a cena.
- Posso não entender nada de música clássica, mas aquilo me tocou o coração, companheiro Rachid. - Responde o seu companheiro, que usava um barrete turco, dando um tapinha nas costas de seu amigo.
- É, quem diria... uma cena destas aonde um filho de Israel elogia seu irmão árabe, depois de séculos e séculos de desentendimentos e guerras...
- Melhor não falar do passado, caro irmão, mas viver o presente...E que Allah nos perdoe e proteja a todos. - Comentava outro guarda-costas enquanto discretamente "filava" um canapé com patê de uma das bandejas dispostas na mesa.
Os guarda-costas vestidos à moda turca eram os leais seguidores de Quattre, o Maganac Corps, formado por membros das mais diversas etnias que compunham os povos árabes.
Composto por 40 membros, o Maganac era fiel até a morte com o seu jovem mestre, depois que este havia salvado suas vidas, resgatando-os de um satélite minerador - aonde eram submetidos a maus tratos e um regime de semi-escravidão pelos seus prepotentes empregadores.
E foi com eles que Quattre logrou manter o Oriente Médio relativamente a salvo das garras da Aliança Terrestre e mais tarde da sinistra OZ, quando empreendeu a sua campanha de guerrilha contra as forças da opressão.
Manipulados nos séculos passados pelos interesses escusos das grandes potências, nunca mais os povos da região iriam se dobrar à opressão vinda da decadente Europa.
*****
Colônia L-3. Mais exatamente em X-18999
A L-3 foi construída para abrigar principalmente os imigrantes das Américas do Sul e Central, além de várias minorias étnicas que não eram representativas o bastante para ter suas próprias colônias autônomas.
No período das Guerras, ela foi uma das colônias mais discriminadas e oprimidas pela Aliança e mais tarde pela OZ.
Mesmo após os conflitos terem cessado e a nova Nação Unida da Esfera Terrestre tivesse injetado enormes recursos materiais e financeiros para reconstruir a infra-estrutura das colônias, a L-3 ainda se ressentia da lentíssima recuperação econômica, do desemprego e do êxodo espacial - o que impelia muitos de seus habitantes a buscar oportunidades de serviço em outros lugares.
A L-3 era conhecida também pelo infame apelido de "colônia-dormitório", como foi mencionada por um renomado planejador urbano da Esfera Terrestre, numa alusão às pequenas cidades-satélites das metrópoles dos séculos XX e XXI.
Aonde milhares de trabalhadores se deslocavam para os grandes centros vizinhos, apenas retornando aos seus lares de origem para dormir - acabando por gerar um desequilíbrio econômico e social enorme.
Não era de se admirar que a L-3 tivesse sido um dos berços da "Operação Meteoro", que visava a derrubar o despótico governo imposto na Terra pela Aliança, e mais recentemente, do segundo levante organizado por Dekim Barton, cabeça da poderosa organização que levava o nome de sua família e que destinava a colocar Mariemeia, sua neta, no poder como títere.
Após o fim da revolução da 2a Operação Meteoro e a morte de Dekim, a Fundação Barton foi posta sob intervenção governamental, tendo sido desmembrada em várias firmas menores, o que agravou ainda mais a frágil situação econômica da colônia - já que a fundação era um dos poucos conglomerados tecnológicos que sustentava economicamente a L-3 e as suas irmãs vizinhas.
E esta situação acabou por influenciar a vida até para quem pouco tinha a ver com isto, como... Um circo.
Sim. Um circo, localizado na recém-fundada colônia X-18999 que foi palco da rebelião tramada por Dekim Barton.
Talvez o único de seu gênero em atividade nas colônias, ele promovia shows e performances aonde passava, fornecendo um pouco de alegria e esperança para o pesado dia-a-dia dos colonos espaciais.
Embora tivesse várias coisas em comum com um circo convencional (como trapezistas, palhaços, mágicos, leões, elefantes e tudo o mais) o que diferenciava AQUELE circo dos demais é que a quase totalidade de seus integrantes era composta por órfãos ou refugiados da guerra.
Praticamente todos eles tinham alguma história trágica para contar - deles mesmos ou dos seus pais, irmãos, parentes, amigos e amados que perderam neste conflito sem sentido entre a Aliança Terrestre e as colônias.
Apesar disto, ainda assim o Circo da L3 logrou sobreviver durante a "Eve Wars", porque muitas pessoas o procuravam como meio de fugir da trágica realidade que os cercava, além de alguns verem nele um símbolo mudo da eterna resistência humana, do valor da arte como porta-voz de um ideal contra a tirania e a opressão.
Contudo, com a vinda da paz e da normalidade política, as pessoas da L-3 passaram a ter outras prioridades, surgindo novas opções de lazer.
E o Circo foi forçado a andar de colônia a colônia, buscando mais público para poder subsistir - nem sempre com sucesso - a despeito da excelente qualidade de seus artistas e a exuberante variedade de seus animais amestrados.
- Trowa, onde você está? - Perguntava em voz alta uma linda jovem de olhos azuis-claros e cabelos castanhos ondulados, enquanto caminhava por entre as carroças e barracas que abrigavam a equipe do circo.
Seu nome era Catherine Bloom Ela tinha por volta de 20 anos e era trapezista, atiradora de facas e uma das principais estrelas em atividade do Circo. A exemplo de muitas crianças da L-3, ela não tinha uma ascendência racial definida. Parte de sua família era inglesa, outra parte era francesa e também ela tinha em sua árvore genealógica antepassados espanhóis, brasileiros, bascos e até ciganos.
Assim como muitas vítimas da guerra, a sua infância foi marcada pela tragédia. Tendo um irmão mais novo chamado Triton, Catherine ainda era criancinha, quando seus pais - ambos artistas de Circo - morreram num incêndio durante uma apresentação pública.
Depois da tragédia, ela e o seu jovem irmão foram adotados pelas pessoas do Circo e aos quatro anos, durante uma viagem, a carroça aonde eles viajavam foi pega num fogo cruzado numa das batalhas empreendidas pela Aliança Terrestre.
E antes dela ser destruída, ambos foram jogados para fora, tendo se separado em definitivo. Depois disto, ela nunca mais viu o seu irmão caçula, dado como morto naquele dia.
Catherine estava começando a ficar nervosa com o sumiço de Trowa quando, de repente, ela sente algo pulando em seu ombro direito. Era Wendy, a simpática chipanzé fêmea amestrada que participava de alguns números cômicos.
Sentindo um pouco de dor devido ao peso da macaca, pacientemente Catherine a coloca no chão, mas Wendy estende a mão direita, como se quisesse guiar a jovem de olhos azuis para algum lugar.
- Puxa, Wendy, quem me dera se Trowa fosse tão atencioso como você... - Diz a jovem, com um olhar melancólico. Sim, ela sabia que a situação econômica do Circo estava difícil, e eles precisariam tomar medidas drásticas. Caso contrário, eles correriam o risco de fechar.
Wendy faz uma careta cômica e em seguida bate as palmas três vezes, dando uma cambalhota no final, tentando reanimar a sua amiga humana. Catherine olha a chipanzé com ternura... Em seguida, a inteligente primata estende a mão para a jovem trapezista.
- Você está querendo me guiar? Mas, eu já acabei de ir ao quarto de Trowa e ele não...
A macaca insiste e a relutante jovem acaba concordando em segui-la. Para sua surpresa, ela a guia até a carroça principal que servia de escritório de Mr. Picadilly, o patrono do Circo e pai adotivo de Catherine.
Picadilly não estava naquele momento, porque tinha ido até o centro negociar uma vultuosa dívida com os credores e tentar firmar algum contrato de apresentações. Ele precisava resolver a situação urgentemente, ou até mesmo os animais seriam penhorados pelo oficial de justiça.
Já na porta do escritório sobre rodas, Catherine hesita entrar, já que nunca o fazia quando o seu pai adotivo não estava. Só que Wendy é mais esperta do que ela e abre a porta.
Mas, como a porta estava aberta se Mister Picadilly tinha levado a chave consigo? Pensava Catherine.
Ela tem uma surpresa quando vê um vulto escondido na penumbra parcial em que se encontrava o escritório. O vulto estava naquele momento usando o único terminal de notebook existente no Circo, digitando com extrema rapidez e habilidade um texto sobre a tela brilhante que timidamente iluminava a pequena sala.
- Trowa, mas... Você aqui? - Indaga a jovem trapezista com ligeiro tom de censura na voz.
- Calma, já estou terminando. Tudo bem, Wendy? - Responde um jovem de cabelo espetado sem olhar para trás, tendo percebido a chegada através do reflexo do monitor da tela.
O vulto era Trowa Barton, como ele era mais conhecido, e ele estava terminando de rapidamente revisar um texto que iria remeter à Rede Mundial. Mais exatamente, uma "fanfiction".
Só que seu nome verdadeiro nunca foi Trowa e muito menos Barton. Órfão desde a infância, Trowa foi criado por um grupo mercenário com o nome de "Nanashi", ou "Inominado", tendo crescido nos campos de batalha. Aos dez anos de idade, ele já sabia pilotar MS-Leo com a mesma desenvoltura de um soldado veterano.
Por ter testemunhado desde cedo os horrores, as traições e a carnificina da guerra, o "Inominado" refugiou a sua personalidade doce e sensível por trás de uma máscara de frieza, taciturnidade e aparente ausência de emoções - como que para proteger sua sanidade mental diante das monstruosidades que ele presenciara: cidades inteiras destruídas, corpos mutilados de mulheres, velhos e crianças nas ruas, massacres, estupros, assassinatos...
"Nanashi" foi passando de um campo de batalha para outro até que foi trabalhar na colônia L-3 numa fábrica secreta de MS da resistência.
Lá, ele foi treinado pelo renomado Doutor S e tornou-se um exímio técnico em mecânica e eletrônica em pouco tempo, a ponto de entender os detalhes de funcionamento dos Mobile Suits.
A fábrica era pertencente à Fundação Barton e se destinava a construir um arrojado projeto chamado "Gundam Heavyarms", um poderoso modelo capaz de enfrentar outros MS a longa distância, sendo dotado de um poderoso armamento ofensivo.
O verdadeiro Trowa Barton era também piloto de MS, além de sero único filho de Dekim, o patriarca do grupo. E ele iria pilotar o "Heavyarms" caso não tivesse sido assassinado num incidente, após resolver denunciar Doutor S por traição, quando o cientista se opôs à idéia de iniciar a Operação Meteoro com um genocídio em massa sobre a Terra, fazendo cair uma das colônias.
O "Inominado" foi a única testemunha do assassinato cometido e ele concordou em usar o codinome Trowa Barton, substituindo o original, por achar simplesmente que estava cansado de não ter um nome.
Conhecendo a profunda habilidade de seu protegido, Doutor S concordou e confiou a ele a execução da arriscada empreitada, mas sem o aspecto genocida do mesmo.
O que, contudo, o próprio "Inominado" ainda não sabia é que ele já tivera um nome e uma família. Será que ele poderia ser Triton Bloom, o irmão mais novo de Catherine, e, separado dela, durante o incidente da carroça?
Embora Catherine não se lembrasse mais do seu irmão mais novo conscientemente, o seu coração torcia para que isto fosse verdade.
Desde quando conheceu "Trowa" pela primeira vez, quando ele se refugiou no circo - estando foragido da OZ - ela sentiu uma estranha atração pelo jovem e pelo seu misterioso caráter.
Então ela decidiu protegê-lo como se fosse seu irmãozinho outrora perdido com uma dedicação e apego incomuns...
Para os observadores superficiais, poderia parecer que ela estava apaixonada por ele, mas a afeição que ela dedicava era mais um sentimento fraternal muito forte e intenso do que a paixão típica dos amantes.
- Trowa, o que está fazendo com o notebook do senhor Picadilly? Ele... - Catherine fica preocupada, já que Trowa nunca foi de entrar no escritório sem a permissão do chefe. Muito menos para ficar mexendo no micro.
- Já conversei e ele me autorizou. - Responde o ex-piloto, com serenidade na voz, enquanto Wendy se aproxima dele, fazendo macaquices, tentando arrancar um sorriso do jovem sério.
- Mas... O que você estava fazendo? Tentando entrar em contato com seus "amigos" nas colônias? - Pergunta Catherine, desconfiada e um pouco enciumada.
- Não.
- E o que seria, posso saber? - Insiste ela, tocando o rapaz levemente no ombro, com a sua mão esquerda.
- Eu... Estava escrevendo. - Diz Trowa, após um ligeiro instante de hesitação.
- Escrevendo? Posso olhar? - Esta frase atiça novamente a curiosidade da jovem, já que o seu companheiro de palco nunca demonstrou dotes literários.
- Pode, Tudo bem...
Catherine se adianta e vê na tela brilhante e luminosa do notebook um texto. Mais precisamente uma história baseada num um anime muito popular chamado "Love in Space", que estava sendo transmitido por todas as redes de TV e computadores das Colônias naqueles tempos.
Com a volta da paz, a cultura e o entretenimento voltaram a ser valorizados novamente e as pessoas se sentiam menos estressadas para poderem apreciar de novo coisas aparentemente inofensivas e fúteis: artes, shows de variedades, musicais e até os desenhos animados no antigo estilo japonês, mais conhecidos como "animes", que ressurgiram com toda força após um período de obscuridade.
Só que Catherine não havia entendido o porquê da história ser chamada "fanfiction", como estava no cabeçalho do texto.
- Trowa... Me desculpe, mas o que é uma fanfiction? - Pergunta Catherine, desacostumada com estes termos complexos.
- Trata-se de uma história, um conto, uma narrativa escrita por fãs, mas ao contrário de um romance, ela é baseada num anime, mangá ou filme já existente, entre outras coisas. O fã pode alterar alguns detalhes da história ou dos personagens ou mesmo criar algo de novo - Diz o ex-piloto do "Heavyarms", se esforçando para explicar o melhor possível.
- Isto é uma moda recente? Nunca ouvi falar disto... - Diz a jovem atiradora de facas que quase nunca acessava a Rede Mundial de Computadores..
- Bem, alguns dizem que a fanfiction surgiu por volta do final do século XX, quando os fãs das séries de anime que passavam na época começaram criar suas próprias histórias, lançando-as numa antiga rede de computadores chamada Internet... - Responde Trowa, citando de memória um texto que vira num site especializado no assunto, que conseguira preservar várias das fanfictions que existiram dos séculos anteriores.
- Nossa, não sabia que isto era tão antigo. Século XX... - Suspira Catherine, impressionada com tanto tempo passado. Porém ela não tinha culpa de não saber o que era uma fanfiction, já que os treinamentos que fazia ocupavam a maior parte de seu tempo livre.
- Este hábito tornou-se comum desde então, só que infelizmente parou quando começaram as guerras entre a Aliança e as Colônias nesta era.
- Não sabia que você tinha dom para escrever este tipo de coisas. - Comenta a jovem, enquanto segura Wendy no colo.
- E nem eu, até o mês passado, quando comecei assistir a série de TV nas horas de folga e me deu vontade de escrever...
- Posso dar uma olhada? - Catherine fica curiosa para saber o que era este tipo de texto e coloca Wendy no chão, não sem a chipanzé protestar veementemente.
- Tudo bem. Mas por favor, não vá rir de mim porque ainda não revisei a fanfiction inteira. - Diz Trowa saindo da cadeira sobre rodas e esboçando um ligeiro sorriso - algo inusitado de sua parte.
Catherine olha o esboço completado na tela e lê rapidamente a história... Quando ao enredo em si, nada de mais...
O anime "Love in Space", do qual o fanfiction era baseado contava a história de um garoto órfão na eterna busca de seus familiares, viajando por vários lugares e planetas diferentes, fazendo amigos, apaixonando corações e enfrentando rivais invejosos.
De certa forma, o anime havia tocado a fria alma do piloto do Gundam Heavyarms, por lembrar a sua própria biografia e trajetória de vida.
Mas o que impressionou a jovem atiradora de facas não era o enredo em si... Mesmo não tendo cursado a escola com regularidade, Catherine percebeu que havia algo a mais naquele simples conto.
- Trowa... Nunca pensei que você tinha jeito para estas coisas... - Comenta Catherine, observando a quase ausência de erros ortográficos e gramaticais no texto, apesar de, à primeira vista, o conto parecer meio "seco" e com muitas frases curtas, ao estilo do silencioso operador do Heavyarms.
- E nem eu. Resolvi colocar no papel aquilo que estava no meu coração e na minha alma há tanto tempo... - Responde Trowa enquanto dá um pouco de colo para Wendy.
- Você sabia disto?
- Não, mas há uma primeira vez para tudo. Sempre.
- Fico contente por você! É sempre bom descobrir coisas novas. Sabe, infelizmente, aquela guerra horrível fez com que as pessoas somente ficassem pensando nela. Em tudo que fosse relacionado a sofrimento e morte... - Diz Catherine, enquanto escolhe as palavras para dizer ao seu companheiro sobre um assunto grave.
- Concordo.
- Trowa, precisaria falar contigo uma coisa. É sobre o papai e o circo. Ele... - Diz a jovem em tom baixo, bastante preocupada, fazendo força para não se emocionar.
- Sei. Escutei a conversa dele com os credores do lado de fora da tenda ontem à noite. Eles disseram que, se o empréstimo não fosse quitado ao menos em parte até a semana que vem... - Trowa aparentemente não parece demonstrar nada por fora, embora intimamente sofresse com a situação daqueles que o acolheram quando estava perdido.
- Oh... Que horrível! O que vai ser da gente, dos nossos amigos, da pequena Wendy e dos animais? - Catherine não resiste e lágrimas brilhantes como diamantes caem de seus olhos expressivos.
- Eu... Pensei nisto e por isto resolvi escrever esta fanfiction para poder participar de um concurso na Rede Mundial. - Explica o piloto sem se vangloriar. Objetivo como sempre.
- Concurso? Não sabia que faziam isto, ainda mais para este tipo de coisa... - Indaga Catherine, meio cética, já que aprendera desde cedo que nada caía do céu.
- Os melhores trabalhos ganharão um prêmio em créditos monetários. Parece-me que existe um instituto cultural que está patrocinando isto, junto com o estúdio que produziu o anime... - Comenta o jovem, mostrando uma atraente imagem de um folder contendo as regras do concurso que ele baixou da Rede.
- Que bom! Mas, Trowa... é a primeira vez que você está escrevendo, não? - Indaga Catherine, num momento de inspiração realista, temendo que as chances do novato escritor fossem mínimas.
- Sim. Mas sempre há uma primeira vez para tudo. Os grandes escritores começaram assim.
- Verdade. Como seria bom que... - Suspira Catherine, dividida entre o ceticismo e a esperança. Ela não podia entender muito bem de fanfictions e concursos virtuais, mas sabia que algo precisava ser feito.
De repente, a porta se abre e um homem de meia idade, cabelos negros e usando um fraque entra na cabana. É o Sr. Picadilly, pai adotivo de Catherine e dono do Circo. A sua fisionomia estava entre tensa e preocupada.
Após ele deixar sua pesada pasta de negócios numa das cadeiras, ele repara no trio à sua frente.
- Catherine, Wendy, Trowa! - A fisionomia tensa e severa do dono do circo se alegra momentaneamente e o cansaço que sentia, se esvai ao ver rostos amistosos e familiares.
- Olá, Senhor Picadilly. - Responde Trowa calmamente.
- Papai! - Catherine corre para abraçar o seu pai adotivo.
- Bem, pessoal, acabei de voltar da cidade. Primeiro as más notícias: Infelizmente, os credores somente deram para a gente um prazo de 15 dias além do combinado antes de executar a dívida. E nenhum banco quis dar empréstimos para o circo, alegando que não podem pegar os nossos equipamentos como garantia real. - Diz o senhor de meia idade, enquanto pega um pente para ajeitar o seu cabelo, mal escondendo o cansaço por ter voltado a pé do centro.
- Que horror! Então... Então... - a jovem se emociona de novo e começa a soluçar, pensando no pior.
- Não chore, querida Catherine. Agora, deixem-me contar o restante... Enquanto estava no banco esperando a minha vez de ser atendido, encontrei-me com uma pessoa da Terra que está interessada em nossa troupe.
- E o que aconteceu? - Pergunta Trowa.
- Consegui agendar com ela uma turnê de dez dias na ex-América do Norte. Se der tudo certo, conseguiremos arranjar o dinheiro necessário para quitarmos todas as dívidas e começarmos uma vida nova sem medo do futuro! - Responde Picadilly, tirando a sua casaca e ajeitando-a num armário embutido ante o olhar curioso de Wendy.
- E quanto as despesas de viagem e acomodação quando chegarmos lá? - Pergunta Catherine. De fato, raramente o Circo viajava para a Terra devido aos altos custos de transporte envolvidos.
- Ficarão por conta do patrocinador. - Responde o seu pai adotivo, enquanto termina de enxugar a fronte ensopada de suor com um lenço limpo.
- Patrocinador? - Pergunta Trowa, intrigado. Ele nunca ouvira falar de patrocinadores de tournées desde que entrara no circo. Geralmente, as temporadas ditadas em parte pelas oportunidades do momento e em parte pelo senso de oportunidade de Mister Picadilly.
- É. Bem... a pessoa com a qual conversei disse ser Diretora Cultural da Fundação Romefeller e estava interessada nas atividades de nosso circo para fazer parte das festividades da... - Comenta Picadilly, sentando-se numa cadeira vazia.
- Meu Deus, Romefeller, papai? Mas esta organização foi a que oprimiu as colônias por tanto tempo, fornecendo armas para aquela ditadura! - Exclama Catherine horrorizada.
- Por favor, senhor, deve haver outro jeito! Muitos dos nossos colegas não irão se sentir bem participando desta apresentação sabendo que estaremos sendo bancados por... - Comenta Trowa.
- Eu sei, meus jovens, mas a verdade é o seguinte. Foi o único contrato que consegui arranjar. E depois, me dói muito dizer isto, mas se não pudermos fazer as apresentações, seremos obrigados a demitir quase todo o pessoal e nos desfazermos de vários animais... - Comenta, cabisbaixo, Picadilly, sentindo como se tivesse vendido a alma ao Diabo e quase a ponto de chorar por causas das exigências absurdas e da prepotência dos credores que atendera.
- Por favor, não chore, papai. Faremos o que for possível. - Diz Catherine tentando consolar o veterano apresentador de circo, assim como Wendy.
- É, daremos o nosso melhor... - Diz Trowa, olhando de relance para o seu texto ainda presente na tela do Notebook, antes de ir desligá-lo.
*****
Terra, poucas horas antes da reunião na Nação Unida da Esfera Terrestre do qual Lady Une e Relena Participaram.
Algum lugar da Ex-Europa. Numa elegante mansão em estilo Neoclássico, localizada nos arredores de uma capital européia, uma reunião de cúpula atinge o seu clímax.
- O fato é que não podemos permanecer passivos! O governo da Nação Unida da Esfera Terrestre é fraco e mal consegue se sustentar contra os movimentos nacionalistas que se formaram em diferentes pontos do planeta. Este é o momento para a nossa Fundação retomar o lugar que lhe compete na condução dos destinos do planeta! - Diz exaltado, um aristocrático senhor usando uma casaca que lembrava o de um nobre da Era Vitoriana.
O cavalheiro exaltado e de fala mordaz era alto, magro, tinha cabelos e olhos negros e um proeminente bigode. A sua expressão facial era dura e implacável como granito puro e tentava se impor pela veemência de suas idéias.
- Mas Lorde Roberts, lembre-se que as nossas atuais políticas excluíram qualquer interferência no Novo Governo. E depois, o nosso resultado financeiro tem excedido as expectativas mais otimistas com os contratos firmados para reconstrução e revitalização da infra-estrutura das Cida... - Tenta argumentar, conciliador, Marquis Weridge, um homem discreto, mas de grande influência entre seus pares.
Um princípio de tumulto, cochichos e rumores começam a tomar conta da reunião, que reunia a nata da nobreza européia e dos grandes magnatas industriais que comandavam fortunas incalculáveis.
- Hah! E os senhores acham que foi uma "excelente" idéia converter nossas fábricas de Mobile Suits e Mobile Dolls para manufaturar tratores, caminhões e robôs de trabalho por causa daquela garota tola que faz pose de pacificadora? Se estivesse vivo, o Duque Dermail jamais... - Exalta-se de forma desafiadora Roberts, evocando a memória do antigo líder do grupo e seu amigo pessoal de outrora.
- Por favor, Lorde Roberts, este assunto está fora da pauta de nossa reunião e o mais importante é... - Contra-argumenta Weridge, ao perceber a fisionomia séria e ligeiramente pensativa da pessoa que presidia a reunião, como se estivesse ponderando os prós e contras de uma iniciativa radical.
- Meu caro Weridge, caros colegas: Em minha opinião particular, o nosso grupo tem que aproveitar o momento para voltarmos a ocupar a posição que sempre tivemos desde que... - Prossegue o inglês ao notar que parte da assembléia estava escutando suas palavras, provocando um princípio de indecisão e divisão.
- Parece que o senhor não entendeu o espírito dos "Novos Tempos", não é, Mister Roberts? - De repente, sem o menor aviso, a pessoa que presidia em silêncio aquele debate intervém. Ela era do sexo feminino, jovem, loira e elegantemente vestida.
Apesar de ter um tom de voz atraente e quase musical, as suas palavras estavam carregadas de ligeiro sarcasmo e ironia contra o exaltado conselheiro da Fundação..
- O que foi, senhorita? - Indaga Roberts, irritado com esta interrupção.
- É do conhecimento de todos que o nosso Plano de Metas 196-200 AC prevê a conversão de nosso complexo industrial-militar para... Atribuições mais pacíficas, acompanhando a nova fase da relação Terra-Colônias. E como o assunto já foi devidamente tratado na reunião anterior, rediscuti-lo está fora de cogitação - Responde a jovem prosseguindo calmamente em sua explanação, apesar de um brilho selvagem inflamar aquele olhar penetrante, como se estivesse reprimindo sua fúria.
- Lembre-se que naquels ocasião o meu voto sobre o assunto foi contra e continuo pensando da mesma forma! Proponho uma votação extraordinária para corrigir este equívo... - Tenta continuar Roberts, mas no que é interrompido pela presidente do grupo.
- A melhoria em nossos balanços e os índices ascendentes de popularidade na nossa pesquisa de opinião pública, são motivos mais do que suficientes para continuarmos sem hesitar com a política de cooperação com o atual governo - Conclui a jovem adolescente, cuja mocidade contrastava com a idade de seus pares e diretores, dos quais nenhum tinha menos de quarenta anos. Contudo, a sua calma faz com que toda a assembléia se cale.
- Eu protesto! Nunca em nossa história nos ajoelhamos feito coelhos perante a qualquer governo, seja democrático ou autoritário! Sempre fomos os mestres, não os... - Vendo-se perdido, o arrogante nobre inglês começa a gesticular e a levantar o tom de voz, tentando apelar para os sentimentos da platéia.
- Mister Roberts, vejo que não entendeu o meu recado, ou está se fazendo de surdo? - Pergunta a jovem elegantemente vestida enquanto fuzila seu interlocutor com o olhar.
- Eu não posso concordar com isto, garotinha! Peço a votação urgente de uma moção de desconfiança contra a mesa diretora de nossa corporação! - Esbraveja Roberts, lívido de raiva, apontando com o dedo em riste para a jovem que ocupava a cabeceira da enorme mesa em estilo clássico.
- Assim sendo, como Diretora-Presidente desta Fundação, sou obrigada a desligá-lo de nosso quadro de associados, conforme a Resolução 9 do nosso estatuto social. Isto, pela sua teimosia em se enquadrar dentro das nossas diretrizes e ainda cometendo o cúmulo de desafiar publicamente esta diretoria em suas declarações mais de uma vez!... - Diz a adolescente, adotando um tom mais incisivo e forte na sua fala.
- O quê? Você não ousaria fazer isto! Eu sou um dos antigos membros deste grupo e amigo pessoal do seu finado avô... Isto é uma injúria! - O rosto de Roberts fica pálido como cera antes de adquirir tons vermelhos pela cólera crescente.
- Simmons, por favor, entregue um cheque no exato valor das ações que Mister Roberts possui no momento dentro do nosso conglomerado. E peço ao senhor secretário desta reunião que ratifique a ata da dispensa de Lorde Roberts dos nossos quadros associados. Isto é tudo! - Diz a presidente da mesa, chamando o Diretor-Financeiro do grupo.
Um princípio de rumor e murmúrios inquietos percorre o luxuoso salão decorado com quadros que valiam milhões de créditos monetários e móveis finíssimos. Sem conseguir a adesão de seus colegas, o aristocrata britânico abaixa a cabeça, mordendo insistentemente o lábio inferior.
- Infelizmente, esta mesa diretora não compartilha de suas opiniões, Lorde Roberts, ainda mais que suas recentes declarações na imprensa levaram a Fundação a publicar um comunicado, informando ao público que tratava-se de um posicionamento pessoal que não reflete a nossa filosofia de negócios. - Diz Weridge, diante do fato consumado, após constatar a inutilidade de alcançar uma solução conciliadora.
- Humpf! Bem, pelo visto, não tenho mais nada a tratar com um rebanho de covardes que desonra a memória de Dermail e do velho Khushrenada! Passar bem, senhores! - Responde Lorde Roberts se referindo ao ex-amigo e ao finado pai de Treize, levantando repentinamente da enorme mesa de mogno.
Com um ar de visível desprezo, o aristocrata britânico recebe um cheque de vultuoso valor da parte de um intimidado Senhor Simmons, lança um último olhar de pura raiva e se retira do salão sem olhar para trás.
Dorothy Catalonia. Era a atual presidente da Fundação Romefeller, cargo ocupado por seu avô, recentemente falecido durante a Eve Wars.
Embora tivesse assumido a presidência muito jovem, ela aos poucos estava começando a impor o seu estilo de liderança na complexa organização, estando acima das intrigas e do complexo jogo de poder entre os seus pares.
Apesar de alguns conselheiros a considerassem uma garota excêntrica, egocêntrica e mimada, ela tinha um certo estilo, perspicácia, sangue-frio e um senso de humor cáustico que encantava a alguns e intimidava os outros - mas que ninguém conseguia ficar indiferente a ela.
Após ter ocupado a cadeira da Fundação, como herdeira dos Romefeller, ela tratou de adaptar o conglomerado industrial aos novos tempos, renunciando às pretensões anteriores de conquistar o mundo. Para isto resolveu direcionar as suas novas atividades visando a paz e a reconstrução da infra-estrutura destruída durante as duas guerras.
Mesmo sendo ainda antipatizada por boa parte da população colonial, a Fundação de origem européia adotou um ambicioso plano de melhorar a sua imagem pública, desenvolvendo atividades assistenciais, abrindo vagas de emprego para ex-combatentes sem serviço, fundando escolas profissionalizantes e sobretudo - investindo recursos anteriormente destinados à produção de armamentos e munições para fins mais "pacíficos", nas áreas de construção civil, educação, cultura, alta tecnologia e produção de alimentos.
Algumas empresas subsidiárias foram criadas para este fim, para desvincular a Romefeller da sua antiga imagem belicista e ditatorial.
Em que pese o fato de alguns questionarem a validade e a credibilidade de tais iniciativas, poucos duvidavam da sinceridade dos esforços de Dorothy, - que, no entanto, não fazia isto por mero idealismo - como Relena; mas por um senso de realidade, bem como de adaptação empresarial aos novos tempos.
Para ela, não era nada impossível a Romefeller conquistar por meios pacíficos o que havia tentado pela força da intriga e das armas. Poucas empresas podiam competir de frente com ela e com a reconstrução das cidades e colônias destruídas, havia oportunidades de negócios para todos.
- Senhorita Dorothy, não questiono a validade da ação tomada, já que Mister Roberts realmente se excedeu ao desafiar esta Diretoria, mas receio que tenhamos problemas a médio prazo. Ele... - Cochicha Weridge ao ouvido da Diretora-Presidente, enquanto outros membros do conselho da Fundação Romefeller aproveitam a saída de seu ex-colega para comentarem os assuntos do dia entre si.
- Sim, eu sei, Weridge. Mas, falaremos sobre isto mais tarde... Primeiro precisamos terminar os assuntos da pauta - Diz Dorothy enquanto se prepara para tomar o seu chá, antes de passar para o próximo assunto do dia .
- Como quiser, Senhorita.
- Bem, cavalheiros. Agora que este incômodo foi resolvido, vamos passar ao próximo assunto da pauta: A melhoria da imagem organizacional do nosso conglomerado nesta Nova Era. Com a palavra, a nossa Diretora Cultural, a Senhora Dionne Lewis Troy. - Diz solenemente Weridge, após uma pausa de 3 minutos e somente após Dorothy ter acabado de esvaziar a sua xícara.
Uma linda morena na casa de 35 anos se levanta, e sorrindo discretamente para os presentes, se dirige a um pequeno tablado reservado para os apresentadores, levando um pequeno computador portátil e o seu material de apoio.
Dionne era a típica executiva moderna da era AC: Bem Jovem para o posto que ocupava, muito bonita, ambiciosa e inteligente. E era uma das poucas diretoras que não tivera a Romefeller como o seu primeiro emprego, tendo sido contratada recentemente pela sua esperteza, capacidade e competência profissionais.
Antes de se tornar a Diretora Cultural da Fundação, Dionne havia sido executiva júnior numa grande empresa de utilidades domésticas, gerente de marketing, administradora de uma Fundação patrocinadora de uma casa de ópera (muito freqüentada pelos membros da Romefeller) e finalmente "promoter" de uma empresa especializada em organizar festas e eventos para a nata da alta sociedade.
Para ser admitida na Romefeller, ela foi recrutada por uma empresa especializada em contratação de altos executivos, passou por uma exaustiva bateria de testes e entrevistas, além de ter conversado várias vezes com a própria Dorothy e Marquis Weridge.
"Miss Troy", como era chamada, superou todos os obstáculos e algumas intrigas de seus colegas, tendo completado nove meses de permanência no cargo - fato inédito para quem veio de fora da Fundação. E, com o seu novo projeto, ela pretendia marcar para sempre a sua passagem no conglomerado de negócios europeu.
*****
Lord Maximilien Roberts estava para sair da mansão onde os membros da Romefeller estavam reunidos, se dirigindo ao estacionamento onde a sua elegante limusine Rolls-Royce estava esperando. Acompanhado de seus dois seguranças vestidos de preto, ele estava visivelmente magoado, decepcionado e furioso pela sua recente destituição da diretoria.
Membro da velha guarda da Romefeller, suas raízes familiares remontavam aos proprietários das empresas que inauguraram a Era Industrial na Inglaterra do Século XIX.
Um de seus antepassados foi um dos fabricantes de um tipo de bombardeiro quadrimotor que ajudou o seu país a derrotar a Alemanha Nazista durante a II Guerra Mundial. E o seu complexo industrial era um dos principais fornecedores do Exército de Sua Majestade antes da Ex-Inglaterra se unir à Aliança Terrestre.
Amigo pessoal do falecido Duque Dermail, Roberts sempre foi defensor da tese de que as colônias deveriam ser tratadas com rédea curta e que a Romefeller deveria dirigir os destinos da Terra, em todos os sentidos.
Apesar de se dar bem com o velho Khushrenada, ele nunca simpatizou com o seu filho Treize e quando este se rebelou contra a Romefeller, pressionou o máximo que pôde o seu velho amigo Dermail a enviar batalhões de Mobile Dolls Virgo para dar uma lição naquele "garoto irresponsável".
Com o fim da Eve Wars, as suas indústrias foram forçadas a converter os MS militares para uso civil e todas as pesquisas e desenvolvimento de novos modelos foram canceladas. O faturamento de suas empresas caiu expressivamente quando o Novo Governo cortou drasticamente o orçamento militar vigente e estatizou os arsenais remanescentes.
Inconformado com os "novos tempos", Lorde Roberts causou celeuma quando numa entrevista feita num programa da TV, ele defendeu a criação de milícias paramilitares armadas nas fábricas, "para reprimir os grevistas baderneiros" que estavam fazendo protestos (na realidade, pacíficos) na Ex-Europa Oriental, em busca de melhores condições de trabalho e qualidade de vida.
E foi mais ainda, propondo a volta da fabricação de Mobile Suits armados para uso em empresas de segurança patrimonial e milícias particulares.
A desastrosa declaração causou um visível mal estar entre o Presidente Russell e os diretores da Romefeller. E apenas a intervenção oportuna de Dorothy junto ao Ministro da Defesa Maxwell Taylor salvou a empresa de uma investigação judicial em grande escala. Por muito pouco, a Agência Preventer de Lady Une não foi convocada para tomar parte das investigações envolvendo a infeliz entrevista de Roberts, que foi transmitida para o mundo todo e nas colônias, gerando críticas e protestos.
A Fundação foi obrigada a fazer um desmentido público oficial, desautorizando Lorde Maximilien a falar em nome dela em público. Além disto, o polêmico diretor foi criticado abertamente por todos os colegas e ele teve que se retratar numa reunião a portas fechadas.
A mente de Roberts estava absorvida por pensamentos de vingança e auto-piedade, quando uma figura anônima - com cabelos loiros compridos, físico forte e bem delineado, vestindo um impecável terno preto e com elegantes óculos escuros, se aproxima a passos rápidos do aristocrata.
- Mister Roberts, eu presumo? - Diz cordialmente, o desconhecido, cuja face parecia talhada em granito, apesar do sorriso aparentemente cordial.
- Humpf. Sou eu mesmo. Mas não conheço o senhor e acho um atrevimento de vossa parte dirigir a mim desta forma! O que deseja de mim?
- Oh, perdão se ofendi o senhor. O meu nome é Paul Clancy. E tenho uma proposta que pode te interessar muito... - Cumprimenta o desconhecido, estendendo-lhe a mão direita.
- Muito bem. Senhor Clancy. Diga logo o que quer antes que... - Roberts hesita antes de cumprimentar o atrevido anônimo, e sob o olhar dos seus seguranças armados, ele responde com um aperto de mãos frio e formal.
- Eu represento os interesses de um seleto grupo chamado "The Net". E tenho certeza que o senhor irá se interessar em se unir a nós...
- E o que tem este raio desse grupo do qual nunca ouvi falar? Pois saiba que não negocio com pretenciosos! Passar bem, cavalheiro! - Furioso por escutar o que julgava uma asneira inaudita, Roberts se indigna e se preparava para ir em direção à sua limusine.
- Espere! É do nosso conhecimento que o Senhor se indispôs com a Romefeller... Nós temos um interesse em comum com o senhor e queremos te ajudar a dar a volta por cima, dando o troco... - Clancy sorri, como prevesse a reação do intempestivo nobre e responde com a voz mais calma do mundo.
- Ei, como sabem disto? Se vocês forem o que estou pensando... - Indaga Roberts, recuando um passo e quase a ponto de mandar seus seguranças a expulsarem o intrometido.
- Não. Não somos chantagistas profissionais e nem qualquer coisa deste tipo. Apenas queremos te ajudar a reverter uma situação injusta... Acredite, o senhor tem muitos amigos...- A voz de Clancy era muito convincente, quase insinuante.
- Não estou interessado nesta conversa sem sentido! Vá embora antes que...
- O nome "Lord Kitchner" diz alguma coisa para o senhor? - Clancy lança a cartada decisiva, sussurrando um nome aparentemente desconhecido de todos, mas
O velho lorde fica pasmo e antes que os seus dois seguranças expulsem o incômodo desconhecido dali, Roberts faz um sinal para que o deixe em paz. O jovem executivo sorri de contentamento, como que o seu objetivo tivesse sido completado.
- Como e onde posso contactá-los? - Diz secamente Roberts, enquanto luta para conter sua ansiedade.
- Aqui está um cartão especial de telefonia. Ele foi programado apenas para funcionar com o senhor. Ligue para o número existente no verso, após às 21 horas do horário de Greenwitch. Mister Kitchner terá o maior prazer de atendê-lo. - Responde Clancy.
- Tudo bem. Vou pensar no caso. Mas, se estiverem brincando comigo, irão se arrepender até o último fio de cabelo! Eu tenho meios para infernizá-los pelos próximos 100 anos com os meus advogados!
- Não precisa se preocupar. Como dissemos, o senhor está entre amigos. - Responde Clancy, de maneira surpreendentemente calma e auto-confiante.
- Pois bem. Diga ao seu patrão que quero encontrá-lo o mais rápido possível. - Após dizer isto, Roberts se retira com os seus guarda-costas, entrando no luxuoso Rolls-Royce, que o estava esperando.
- Oh, sim. Eu te garanto que ele está igualmente ansioso para vê-lo. - Sorri enigmaticamente o escorregadio desconhecido, enquanto ajeita o seu impecável par de óculos escuros.
Uma olhada mais atenta revela que aquele par não era um modelo normal, mas um sofisticado aparelho que transmitia as imagens vistas pelo seu portador a uma fonte externa.
Também habilmente escondido em sua orelha estava, um pequeno aparelho transmissor e receptor de sons, que lembrava muito um fone portátil de ouvido mas com um enorme alcance - além de estar protegido contra interferências e aparelhos de rastreamento eletrônico - valendo uma pequena fortuna.
A quilômetros dali, um furgão pertencente a uma emissora de TV fazia um aparente documentário sobre os castelos franceses da Renascença. Contudo, as imagens captadas pelos monitores dos aparelhos situados na cabine mostravam exatamente as imagens de Roberts e Clancy conversando no estacionamento da propriedade particular dos Romefeller.
Ao ver o sucesso de seu enviado, o "diretor" do documentário faz uma pausa e pede ao seu ajudante que o conecte à sua base, situada a centenas de quilômetros, do outro lado do Canal da Mancha.
Certificando-se de que a transmissão não estava sendo monitorada, o "funcionário" da emissora sintoniza uma freqüência sigilosa e imediatamente põe o seu diretor em contato com a central. Um logotipo surge na tela, no formato de uma rede de aranha estilizada.
Em seguida, imagens de silhuetas humanas impecavelmente vestidas aparecem nos diversos monitores, como se estivessem numa vídeo-conferência. Após um breve instante de silêncio, o que parece ser o líder deles - um homem de meia idade, alto, magro, de óculos - se pronuncia, tendo a sua face encoberta pelas sombras.
- Recebemos a sua transmissão, agente número 9. Vocês podem retornar à Inglaterra na primeira oportunidade. Tomem as precauções necessárias. Excelente trabalho. - Fala uma voz protegida digitalmente e distorcida por um eco metálico.
- Agradeço o elogio, Webmaster. Devemos continuar monitorando Mister Roberts até o encontro?
- Não. Não será necessário. Se eu o conheço, ele nos procurará, no máximo em uma semana.
- Mas pelo visto, Mister Roberts parece ter uma psique um tanto instável... E quanto a sua lealdade?
- Não se precisa preocupar quanto a isto, Agente número 9. A sua fortuna e o complexo industrial que ele possui é o que nos interessa. Em pouco tempo acabaremos de uma só cajadada com o Governo do Presidente Russell e a Romefeller.
- E os pilotos dos Gundams, será que eles não podem...
- A esta altura, eles pouco poderão fazer. Com a auto-destruição dos mesmos, não são mais ameaça. E mesmo que eles os tivessem de volta, um novo tipo de guerra está para começar... Uma guerra no qual os Gundams são totalmente inoperantes.
- Mas e a Agência Preventer? A Lady Une pode ser uma pedra em nosso caminho...
- Não se preocupe. Une será neutralizada o mais rápido possível. O nosso coringa irá por a Agência fora de combate, enquanto tomamos o poder.
- E quanto a ele, o nosso coringa? Será que ele irá conseguir a informação que tanto necessitamos?
- Fala do "Sem-Nome"?. É claro! Ele está tão obcecado pela sua vingança pessoal que esquece que está sendo vigiado... por nós. O idiota não sabe que nossos computadores estão rastreando todos os seus passos. E quando ele destravar todo o sistema...
- E o que faremos com ele depois que tivermos os dados necessários para o nosso projeto de guerra virtual?
- Eliminaremos ele, claro. Um mendigo a mais ou a menos na face da Terra não fará qualquer diferença. Agora, escute com atenção...
O misterioso líder transmite as ordens para o seu agente localizado na França e ele escuta tudo sem hesitar. Em seguida, ele encerra a transmissão e continua trabalhando por mais alguns minutos, fingindo fazer o suposto documentário, junto com os seus auxiliares.
Meia hora depois, todos montam no veículo e ele parte em instantes, deixando a paradisíaca paisagem do castelo que estava sendo televisionado para trás.
Notas e Comentários deste Capítulo:
1) Cada colônia espacial da série Gundam Wing tinha um país ou continente de origem de onde vinha a maioria dos colonos:
L1 - Japão;
L2 - Estados Unidos;
L3 - América Latina;
L4 - Oriente Médio;
L5 - China.
Somente a Europa não tinha sua colônia própria, pois aparentemente ela era o poder político dominante no cenário mundial mostrado na série;
2) Apesar da maioria das fics de GW (mesmo em inglês) não dê um papel de destaque a Hilde Schbeiker, o seu potencial não pode ser descartado, já que ela foi a pessoa que conseguiu levar os dados do Couraçado Libra para os pilotos Gundams, com risco de sua própria vida, num dos episódios finais da série. Embora não fique claro o quanto Duo gostava dela, é certo que os dois eram mais do que amigos. O background do capítulo foi inspirado numa das cenas finais do OVA Endless Waltz, aonde mostra o casal em cima de uma enorme pilha de sucata;
3) Paganini era um violinista italiano muito famoso (contemporâneo de Liszt e Chopin) do início do século XIX que, segundo a lenda, havia feito um pacto com o Diabo para conseguir dominar ao máximo a técnica virtuosísitica do instrumento de arco.
Stradivarius foi um fabricante de violinos do século XVIII que produziu verdadeiras obras-primas inigualáveis. Conta-se que o segredo da sonoridade de seus instrumentos era devido à composição do verniz usado na fabricação dos violinos, cuja fórmula infelizmente se perdeu.
4) Mendelssohn e Mahler eram compositores de origem judaica;
5) O comentário sobre os diversos conflitos no Oriente Médio foi escrito a quase um mês antes da Líbia anunciar publicamente que estava renunciando a fabricação de armas de destruição em massa. Contudo, isto não anula o fato deste país ter sido um dos maiores importadores de armas nos anos 80 e de ter financiado vários grupos terroristas no passado recente;
6) A origem étnica da Catherine é um pouco controvertida e mesmo alguns sites apresentam informações divergentes. Fiz um pouco de "licença artística" partindo do argumento de que geralmente artistas de circo são nômades e não se fixam num mesmo lugar por muito tempo - circunstância esta ainda mais agravada pela guerra;
7) Embora pareça absurdo o plot que coloquei para Trowa, não é tão impossível de acontecer na vida real. Geralmente pessoas aparentemente retraídas, mas com uma vida interior intensa sentem-se atraídas pela música, poesia e literatura.
8) Até onde pude ver, o nome do dono do circo aonde Trowa e Catherine trabalham não aparece. Dei a ele a alcunha de "Picadilly", já que este era o nome de um famoso circo inglês. Caso um dia consiga saber o nome oficial deste personagem, irei substitui-lo.
9) Pode parecer um exagero colocar um concurso sobre fanfictions patrocinado por um instituto cultural na "Rede Mundial" (a internet do futuro) numa fic de GW.
Mas, se pensarmos bem, muitas coisas que a gente considera como arte hoje não era vista como tal há séculos atrás. Na Idade Média, somente a música sacra era vista como arte.
Na França de Luís XIV, o teatro não era encarado como uma forma artística, embora fosse um entretenimento das elites. Inclusive os termos "ator" e "atriz" tinham uma conotação nada positiva.
E, mais recentemente, somente nos finais do século XIX o balé clássico passou a ser considerado uma forma de arte, graças à teimosia do compositor russo Tchaikovsky.
A mesma coisa pode estar acontecendo com os mangás e animes na época atual. Antes considerado como mera diversão para crianças, hoje eles estão sendo considerados como ícones da cultura pop contemporânea e não é de se duvidar caso algum dia eles sejam considerados obras artísticas.
10) Marquis Weridge era um dos membros da ala moderada da Romefeller e foi um dos que apoiaram a idéia de fazer de Relena a soberana da Terra. Alguns sites na internet sugerem que ele possa ser o avô materno de Relena;
11) A minissérie "Battlefield of Pacifists" (volumes 7 e 8 da edição brasileira publicada pela Panini), dá a entender que Dorothy Catalonia havia se desligado da Romefeller. Contudo, pelo que vi na série original, ela não tem o perfil de acabar se tornando uma "dondoca".
Muito pelo contrário, a jovem aristocrata tem uma excelente capacidade de argumentação e um inato senso de oportunismo, como fica evidente na cena do Endless Waltz, aonde ela convence vários populares a irem até o centro de Bruxelas para darem apoio à Relena - que estava presa pelos golpistas - e protestarem contra o golpe de estado.
12) A figura do arrogante Lorde Roberts foi inspirada num general inglês que combateu na guerra dos Boers (final do século XIX), aonde a Grã-Bretanha arrancou a África do Sul dos colonos holandeses. A repressão aos vencidos foi terrível e as notícias de atrocidades cometidas causaram comoção inclusive na Inglaterra.
13) O nome "Paul Clancy" foi inspirado num vilão do game "Ninja Gaiden 3" do console Nintendo.
14) Agradeço à colega Kitsune-Onna por ter lido e comentado este capítulo, bem como suas as observações sobre Relena e Dorothy. A sua saga "205 AC" merece ser lida por todos os fãs (e não-fãs) de Gundam Wing e tem sido para mim uma excelente fonte de referência e inspiração. O trecho deste capítulo onde aparecem Catherine, Trowa e o circo não teria saído desta forma se não fosse pela leitura do capítulo número 6 de "205 AC", sob o título "Circo Fantástico". Arigatou Gozaimassu, Kitsune-chan! Sucesso para a sua fic!
Escrito por: Calerom
Última Versão: 08/02/2004
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