Cap. 15 – O dia seguinte

Só muito depois de amanhecer que a maioria das pessoas se convenceu a descansar. E quando Rony acordou, horas mais tarde, estava com a cabeça em turbilhão. As lembranças dos acontecimentos da noite anterior ainda estavam nítidas em sua mente. E o embaraço pelo que havia feito...

Ele tinha beijado Mione. Isso era um fato concreto. Assim como era concreto que fora bom, fora maravilhoso. Mas também era concreto que agora ele não conseguiria encarar Hermione. O que ele fizera? Beijara sua melhor amiga, e agora estava morto de vergonha de ter que olhar para a cara dela. Ele não sabia o que pensar, e questionava-se o que ela estaria pensando. Será que estava com raiva dele, por ter tomado tal liberdade? É certo que ela correspondera ao beijo, mas quem poderia garantir que ela não o fizera só porque, assim como Rony, achou que fosse morrer? Por outro lado, talvez ela quisesse realmente ser beijada por ele, mas, como saber?

Se Hermione gostasse dele, diferente da maneira que se gosta de um amigo, teria contado a alguém. As meninas sempre contam essas coisas para as amigas mais íntimas. O problema era: para quem Hermione teria contado se gostasse de Rony? Ela não tinha amigas íntimas. Seus amigos eram Harry e Rony. E com certeza, este não era o tipo de assunto que ela conversaria com Harry. Bom, havia Gina, as duas viviam conversando, mas a perspectiva de perguntar a Gina se Mione gostava dele era ainda mais constrangedora do que perguntar à própria Hermione.

Justamente por ter tanto o que pensar, é que Rony não conseguia pensar em nada. Fantasiou, meio sem querer, cenas de como Hermione reagiria quando eles se encontrassem. Pensou que ela poderia recebê-lo com um "Bom dia, meu amor" e tascar-lhe um beijo ardente. Ou então que ela poderia sair correndo assim que o visse, com medo de se aproximar dele. Ou ela poderia dizer-lhe simplesmente "Não podemos ter um relacionamento, Rony. O seu beijo foi horrível e eu não namoraria um cara que beija tão mal". Ou ainda, ela o receberia normalmente, como os velhos amigos que eram, e como se a noite anterior nem tivesse existido. Pensou muito, e achou que a última alternativa era a que mais lhe agradava.

Foi assim, ainda sem ter decidido direito o que faria, que ele trombou de frente com Mione num corredor. Ela pediu desculpas pelo encontrão, disse que estava distraída e... olhando bem, Mione estava decididamente vermelha. Então Rony compreendeu. Ela e Harry eram seus únicos amigos de verdade. Ele não se arriscaria a perder a amizade dela, não correria esse risco por nada no mundo.

— Mione, eu... Eu queria que nós... Eu quero te pedir desculpas por... ontem... Aquilo foi meio impensado... Foi um impulso, entende?... Acho que nós deveríamos... esquecer o que aconteceu... Pela nossa amizade... Por tudo o que já passamos juntos... Eu... o que você acha?

— C-claro — balbuciou Mione — é o melhor a fazer... esquecer... Eu... já esqueci...

— Que bom, então, que nada mudou. Eu... seria horrível perder uma amiga como você, Mione. Então, já vou indo... comer... eu estou faminto... Tchau.

— Tchau.

E Rony foi embora, deixando para trás uma Hermione frustrada e com uma disposição para o mau-humor que ela não tinha quando começara o dia.

As aulas do resto da semana foram canceladas, e, como todas as vezes que algo estranho acontecia em Hogwarts, o movimento de bruxos de fora da escola aumentou. Mundungus Fletcher e Dédalo Diggle foram vistos nos castelo por três dias seguidos, e o velho nem de longe trazia aquela expressão sorridente e infantil que era sua marca registrada; ele estava grave e preocupado. Mundungus Fletcher, por sua vez, parecia mais mal-humorado ainda, se é que isso era possível.

O ataque não foi noticiado, e tudo o que se sabia vinha das fofocas que corriam pela escola. Estranhamente, ninguém notara que tanto Harry quanto Donald Sands haviam sumido durante o ataque; ninguém suspeitara que eles haviam ajudado os outros bruxos a se livrarem dos dementadores. Tanto que, quando Harry contou a Rony e Hermione o que havia feito, a garota quase morreu de preocupação "Você podia ter morrido, Harry!", e Rony ficou estupefato "Ainda não acredito que você fez uma coisa dessas!"

E quando Rony contara a Harry o que houvera entre ele e Hermione, o garoto se espantou. É verdade, sim, que ele sempre achara que havia alguma coisa a mais na amizade dos dois, e sempre achara que um dia aconteceria algo desse tipo. Mas também era verdade que tudo não passara de especulação, e ele não esperava realmente que essas especulações se tornassem reais. E a sensação de estranheza que isso provocava! Seus melhores amigos haviam se beijado. É bem verdade que o clima entre eles estava diferente... No fundo, Harry achou melhor que eles tivessem decidido esquecer e preferiram manter a amizade. Seria horrível que as coisas mudassem entre eles, porque Harry, Rony e Hermione tinham uma amizade perfeita.

O clima se manteve pesado no castelo por vários dias, todos ainda estavam muito abalados com o ocorrido, mas apesar disso, aliviados por não ter havido vítimas. Dumbledore continuava na ala hospitalar, mas Gina dissera que madame Pomfrey andava mais calminha, o que indicava que o estado de saúde de seu paciente progredira. A garota, aliás, ainda não se recuperara, continuava abatida; um reflexo da invasão dos dementadores, que deixara marcas profundas em todos na escola, mas principalmente naqueles que passaram por provações horríveis.

Na segunda-feira, a profª Figg surgiu com uma novidade:

— Este é o tipo de feitiço que, segundo o currículo, deveria ser ensinado a vocês somente no sétimo ano. Contudo, em vista dos recentes acontecimentos, creio que deve ser ensinado o quanto antes a todos, por ser a única maneira legal de se defender de um dementador. Chamamos esse feitiço de Patrono, e ele funciona como uma espécie de escudo, protegendo o bruxo do dementador.

Ela parou de falar e encarou a classe. Hermione ficara excitadíssima com a possibilidade de aprender a executar um feitiço tão complexo e que agora se mostraria muito útil. Desde que ela vira Harry praticá-lo, no terceiro ano, ela andava louca para fazer. Os outros alunos pareciam preocupados em ter que estudar um feitiço tão complicado até mesmo para alunos do sétimo ano. A ameaça dos dementadores, porém, ainda provocava medo na maioria deles e aprender uma defesa contra essas criaturas tão horripilantes dava uma maior sensação de segurança.

— Primeiro, vamos à teoria, e só depois à prática. Quero uma pesquisa para a próxima aula com a definição do que é o Patrono e quais seus efeitos sobre os dementadores. Vocês vão encontrar nos livros instruções de como executá-lo, mas devo adverti-los que elas não serão muito úteis. Prefiro ensiná-los eu mesma como executar o Patrono, então atenham-se à descrição do feitiço e de seus efeitos.

No final daquela semana, Dumbledore recuperou-se o suficiente para comparecer ao jantar no salão principal, o que o deixou muito feliz. O velho diretor presenteou-os com um discurso que animou a todos, e revelou o que quase ninguém em Hogwarts sabia: a participação de Harry e Donald no lamentável episódio de 30 de novembro. Os dois, que andavam trocando algumas palavras desde aquele dia, passaram a ser o centro das atenções. Fleur sorriu diretamente para eles, provocando exclamações invejosas de alguns garotos no salão.

— Também tenho duas outras notícias para vocês. A primeira é que, este ano, nenhum aluno poderá permanecer em Hogwarts durante o Natal. Terão todos que voltar para casa — Harry ficou pasmo. Teria mesmo de passar o Natal com os Dursley? — Isso se deve aos acontecimentos das últimas semanas. Reforçaremos uma série de feitiços protetores no castelo de maneira a evitar que ameaças como a do dia 30 de novembro venham a se concretizar novamente.

A maioria dos alunos não pareceu se importar, já que costumavam passar os natais em casa. Mas para Harry, ouvir aquilo era o mesmo que ouvir uma sentença de morte. Os Dursley o matariam se ele voltasse à rua dos Alfeneiros para estragar o Natal deles.

— A outra notícia é que, quando todos voltarem, realizaremos o já tradicional Baile de Inverno, no dia 6 de janeiro. Naturalmente, aberto a todos os alunos do quarto ano em diante, e os mais novos só poderão comparecer se acompanhados por algum dos alunos autorizados a vir.

Alvo Dumbledore sorriu radiante, e era incrível como mesmo fraco e cansado, ele esbanjava aquela vitalidade e energia contagiantes.

Então haveria um baile. Harry sentiu um ar gelado percorrer seu estômago ao lembrar do baile do ano anterior, quando Cho fora com Cedrico. Meio inconscientemente, olhou para ela, e surpreendeu seu olhar. Cho estava olhando para ele. Ela não podia estar pensando no vexame que Harry dera quando a convidara e ouvira um não como resposta, podia?

Mais tarde, quando Harry se levantara da mesa da Grifinória e estava saindo do salão, ouviu uma voz debochada que se dirigia a ele:

— Ora, ora, Potter.

Malfoy.

— O grande herói do país agora também é o grande herói da escola. Que aconteceu? Já superou seu probleminha com os dementadores? Não ficou com medinho deles? Ou será que sua vontade de se provar um grande herói é maior que os seus chiliques?

Harry fechou os punhos com raiva. Ainda estava de costas para Draco, mas se ele dissesse mais uma palavra, uma única palavra, Harry se viraria e daria um soco nele.

— Ou vai ver... vai ver você queria impressionar sua namoradinha sangue-ruim... — fez Draco, apertando os olhos na direção de Hermione.

Era o suficiente. Harry virou-se e seu punho teria ido direto no olho de Malfoy se Mione não o tivesse segurado.

Você não vai bater em ninguém, Harry! O melhor que você tem a fazer é ignorar essas provocações infantis. Finja que não enxerga esse... verme de sangue puro. — ela olhou para Draco com desprezo — Você não vai perder seu tempo com ele!

Harry olhou para a amiga. Ela não podia estar falando sério! Mas estava. Pelo menos foi o que ele sentiu ao olhar dentro dos olhos dela, que aquilo era sério. Sem questionar, obedecendo aquele olhar autoritário que Hermione lhe lançava, Harry simplesmente virou-se e subiu para a torre da Grifinória.

Até chegar ao salão comunal, Harry foi interpelado por vários colegas, até mesmo gente que ele nunca vira na vida, que vieram parabenizá-lo por ter ajudado a colocar os dementadores para correr. Queriam que Harry contasse como ele fizera, tudo com detalhes, e como ele estava se sentindo por ter ajudado a salvar a escola. Tudo o que o garoto fazia, porém, era dizer "mais tarde", "outra hora" e continuar seu caminho.

E quando entrou na torre da Grifinória, Fred Weasley o arrastou para perto da lareira e, oferecendo uma caneca de cerveja amanteigada, fez ele se sentar numa poltrona fofa e piscou os olhos apressadamente numa expressão excitada. Jorge e Lino logo se reuniram a eles, então os três amigos começaram a falar com Harry ao mesmo tempo, para depois rir da confusão, e deixar que Fred perguntasse:

— Então, Harry, por que não nos contou, hein? Eu não fazia idéia que você tinha ajudado os professores aquele dia. Podia ter nos dito que você ajudou a enxotar aquelas coisas feias daqui.

— Você viu a cara do Malfoy? — continuou Jorge — Ele quase morreu de inveja! Ah, Harry, todos os sonserinos estão mortos de inveja de nós, porque foi um grifinório que ganhou a fama de salvador da escola, e não um deles.

— Bom, tem o cara da Corvinal, é claro — falou Lino — Mas, quem se importa com ele? Aposto que você ajudou muito mais.

— E como é que foi enfrentar centenas de dementadores sozinho, hein Harry? — era Fred — Deve ter sido emocionante! Você vai ter que nos contar, ah, vai, com todos os detalhes!

Fred mirou-o com o rosto excitado como o de uma criança que acabasse de ouvir que teria todo o estoque da Dedosdemel a sua disposição. Harry olhou para Jorge e Lino, com as mesmas expressões, seus olhos brilhando como se fossem ouvir a melhor história de suas vidas. O queixo de Harry caiu de indignação. O que eles estavam pensando que ele era? Uma atração de circo?

Antes que pudesse se refrear, antes que pudesse sequer pensar, Harry começou a falar, e despejou em cima deles toda raiva que estava sentindo de Malfoy, de Voldemort, das crianças do primeiro ano que vieram lhe aborrecer, de todos que não paravam de cercá-lo, fosse para matá-lo, para expô-lo ao ridículo, ou para admirá-lo.

— O que é isso, hein? O que vocês pretendem, me enlouquecer? Não dá para parar de ficar me cercando, o tempo todo, para saber de todos os meus atos? Eu não posso fazer nada, que já viro notícia, e o meu nome vai parar na boca de todo mundo, e vocês ficam me tratando como se eu fosse o centro do universo? Se não perceberam, o que aconteceu aquele dia com os dementadores foi real, não era um teatro, não é uma história para ser contada por aí. Hogwarts poderia ter sido destruída, e tudo o que importa para vocês é a história emocionante que poderia sair daí. — os olhos de Harry brilhavam de raiva e indignação. Ninguém se atreveu a interrompê-lo — Talvez se vocês parassem de prestar atenção em tudo o que eu faço e fossem cuidar das suas vidas... Talvez se vocês parassem de enxergar tudo o que acontece como se fosse um espetáculo a mais... Talvez se vocês começassem a levar a sério o perigo que estamos correndo, todos nós... Quem sabe vocês poderiam contribuir, nem que fosse um pouco, para que coisas como as que aconteceram no dia 30 de novembro nunca mais se repitam...

O rosto de Harry estava vermelho de cólera, e ele parecia fora de si. Todos no salão estavam olhando para ele, estupefatos. Ninguém esperava aquela explosão repentina vinda de Harry Potter, nem mesmo Hermione, que acabara de entrar e olhava para a cena atordoada. Os gêmeos Weasley não sabiam o que dizer, e olhavam para Harry de boca aberta. Então ele virou-se e saiu sem olhar para ninguém, subindo a escada circular que levava ao seu dormitório, muito lentamente, porque estava tremendo e se tentasse subir mais rápido com certeza tropeçaria e cairia.

Rony entrou pelo buraco da Mulher Gorda e, diante daquele cenário, todo mundo com cara de espanto, perguntou, na maior inocência:

— Credo! O que foi que aconteceu aqui? Parece até que viram um dementador...

— Foi mais ou menos isso, Rony — disse Mione, a voz estranhamente fraca.

— Hã...?

— O Harry... Ah!, vem comigo que eu te conto tudo.

Enquanto as pessoas no salão ainda digeriam a cena que tinham acabado de presenciar, Harry caminhava pelos corredores com a mente em fogo. Aquilo era o cúmulo! Ele sentia-se como um animal num zoológico, que nada mais era do que uma coisa para ser observada, que nada fazia sem que todos soubessem. Ele sentia-se preso numa jaula, e essa jaula era sua fama. Maldita fama!, que lhe tirara os pais e a paz, e em troca lhe dera anos terríveis na companhia dos tios, e uma ameaça constante pairando sobre sua cabeça, uma ameaça chamada Voldemort.

Ele ia andando automaticamente, seguindo para o dormitório, e se encontrasse com alguém naquele momento, seria capaz de atirá-lo por uma janela, tamanha era a raiva que sentia. Mas não teve coragem de atirar Gina pela janela, quando a viu andando na direção dele.

— Harry — chamou ela, a voz hesitante — Eu queria dizer... Sobre o que aconteceu lá embaixo...

— Não tem necessidade de me dizer nada.

— Eu sabia... que você tinha ido lá fora... Você disse que ia... Foi muito... nobre da sua parte, Harry... Eu sei que você não fez isso para ser chamado de herói... Você nem queria que as pessoas soubessem disso...

— Gina...

— Me deixa terminar, Harry. Eu sei que você fez aquilo por Hogwarts... Porque você é digno... E porque... ah, eu sei lá... Só queria te dizer isso... E te agradecer por ter ficado comigo... Eu estava muito mal, mesmo. Foi muito... legal da sua parte, ter se importado comigo naquele momento. Eu estou muito grata, Harry.

— Eu... não foi tão importante assim, Gina... Qualquer pessoa no meu lugar teria feito o mesmo...

— Foi importante para mim. — afirmou a garota, com uma certeza na voz que Harry nunca notara nela — E qualquer pessoa como você teria feito isso. Mas, infelizmente, não há muitas pessoas como você por aí.

Eles ficaram em silêncio, se encarando por um longo tempo. Aquela não era a Gina que Harry conhecera, frágil e indefesa. Não era a Gina que chorara convulsivamente por estar nas mãos de Tom Riddle, que se deixara manipular por ele tão facilmente. Aquela Gina era diferente. Ela aprendera com sua amarga experiência, e havia na sua voz uma força e uma coragem que antes não havia. Harry descobriu-se sorrindo interiormente. No fundo, sentia-se um pouco responsável por essa mudança dela. Sabia que não fazia o menor sentido, mas era assim que ele se sentia.

— E quanto aos meus irmãos, não ligue para eles, Harry. Fred e Jorge encaram a vida como uma grande diversão, eles não têm idéia do que significa estar nas mãos de Voldemort, estar na mira dele...

Harry piscou os olhos com força.

— Quem sobrevive a Voldemort, como eu sobrevivi, não tem que ter medo de pronunciar o nome dele. Foi o que o diretor me disse.

— E ele está certo, Gina. Ele está certo.

Harry olhou uma última vez o rosto sorridente de Gina, então continuou seu caminho até o dormitório. Descobriu-se sorrindo, também, e toda a raiva que tomara conta dele minutos atrás, esvaiu-se, como por magia.

(continua...)