A LÂMINA PARTIDA - EPISÓDIO ZERO.

FanFic escrita por: Calerom

Início: 22/10/2003 - 1a Versão

Final:

myamauchi1969@yahoo.com.br

Créditos:

Lobo Solitário: História original escrita por Kazuo Koike.

Publicada na revista Manga Action entre 1970 a 1976.

Desenhos de Goseki Kojima.

Nome Original: Kozure Ookami

Observação:

Esta obra foi feita única e exclusivamente como um fanfic para entretenimento pessoal e dos leitores. Obviamente tanto a série Lobo Solitário como a sua história, personagens não me pertencem, sendo de propriedade dos autores citados acima. .

Contudo, devido ao caráter desta obra acima citada, pode haver certas referências históricas ao período em que a história se desenrola, bem como a figuras reais.

Quaisquer personagens que não constam na série original são de minha criação.

Eles são totalmente fictícios, sendo qualquer semelhança com nomes, fatos e datas, mera coincidência.

Nota do Autor da Fanfic:

Kazuo Koike - autor também do sucesso Crying Freeman - escreveu a sua obra prima "Lobo Solitário", com 8400 páginas na década de 70 no Japão. Embora não tenha sido a primeira história a tratar de samurais após o período pós-guerra, a sua série teve o mérito para revitalizar o gênero, que estava em baixa desde a derrota daquele país na II Grande Guerra.

Contudo, teve que esperar até os meados dos anos 80 para que a sua obra fosse finalmente reconhecida no ocidente, pela iniciativa do famoso roteirista e desenhista Frank Miller (responsável pela popularização do herói Demolidor, pela personagem Elektra e pela incorporação da temática japonesa no passado do herói Wolverine, dos X-Man).

A série até hoje está sendo publicada nos Eua pela Dark Horse e recentemente saíram os volumes finais desta enorme saga.

No Brasil, "Lobo Solitário" foi publicado inicialmente pela Cedibra e depois pela Editora Nova Sampa no início da década de 90. Contudo, como era de se esperar, a série ficou incompleta.

Além de influenciar autores como Frank Miller e Bill Sienkiewicz, estendeu a sua influência também aos seus conterrâneos, como Rumiko Takahashi, que estudou em sua escola e publicou lá alguns de seus primeiros trabalhos. De certa maneira, Inuyasha foi influenciado pela mesma ambientação histórica que deu origem a Lobo Solitário.

Sobre a Fic:

A Fic "A Lâmina Partida" faz parte de um arco de duas ou três histórias abordando o clã Shinmeiryu da personagem Motoko Aoyama (Love Hina), sendo um projeto de longo prazo.

A história narra alguns acontecimentos ocorridos no período Tokugawa e mostra o encontro entre um dos antepassados da jovem Samurai com o famoso Itto Ogami, o Lobo Solitário.

Procurei respeitar algumas das referências encontradas no Love Hina, embora tenha complementado certas informações com as da obra de Koike e informações obtidas em sites da Internet.

Esta Fic de certa forma é uma "homenagem" às histórias do Kozure Ookami, retratando um sombrio período histórico pelo qual passou o Japão, tendo influenciado obras tão diversas como Inuyasha e Rurouni Kenshin.

Mesmo para os padrões atuais, "Lobo Solitário" permanece uma obra de referência. Retratando a progressiva decadência do Japão por trás da aparente "ordem e paz" da Dinastia Tokugawa, as histórias de Koike são marcadas pela tragédia, pela dor e pela violência presente no quotidiano de todos.

Os combates são rápidos e sangrentos e não há concessões para golpes especiais e "combos". Uma só estocada bem colocada já basta para matar o inimigo.

O erotismo e a sensualidade, quando existem, são mesclados com a dureza da realidade do estupro, da prostituição e da amarga condição da mulher naqueles tempos.

Os finais, quando existem, são curtos, tristes e até trágicos, não havendo "happy ends", ainda que possa perceber certa poesia em alguns deles.

O personagem principal, Itto Ogami, é uma espécie de anti-herói. Forçado a se tornar um assassino pelas circunstâncias e ainda preso ao seu código de honra, ele é capaz de cometer tanto assassinatos bárbaros a sangue-frio e massacres que fariam jus a qualquer Battousai como também trazer certa justiça a pessoas necessitadas.

CAPÍTULO 01.

O Lobo sai à Caça.

Japão. Era Tokugawa. Era o final de uma tarde ensolarada de verão.

Com a ascenção e a hegemonia do governo inaugurado por Tokugawa, inaugura-se uma suposta era de paz no Japão, aonde o Xogunato se fortalece ao passo que os senhores locais ficam mais fracos.

Temendo a indesejável influência estrangeira, Tokugawa ordena o fechamento de fronteiras e o isolamento externo do país. Tanto o Cristianismo como o Budismo são perseguidos, e a religião do estado passa a ser uma síntese do Xintoísmo com preceitos do Confucionismo chinês.

O Imperador - embora considerado uma figura divina e objeto de devoção, era somente um cargo decorativo. Quem detinha o poder na prática era o Xogun e o seu Conselho de Anciãos e ai de quem os desafiasse.

Se por um lado a Era Tokugawa trouxe um período de relativa paz interna, progresso nas artes, literatura e riquezas - como uma espécie de Renascimento Nipônico - de outro trouxe descontentamentos, decadência e miséria.

Para alimentar os crescentes gastos da administração em Edo, os magistrados recorriam a impostos cada vez mais exorbitantes, oprimindo os cidadãos. A fome era uma constante e bastava uma enchente ou uma seca para trazer o desespero a milhares de famílias.

Por trás do aparente verniz de ordem e disciplina, a corrupção e a ganância pelo ouro grassavam pelo governo, reduzindo os anciões a uma mera corte de parasitas.

Como reflexo da decadência social e moral, a prostituição e o jogo grassavam nos grandes centros urbanos. Havia bairros inteiros de prostitutas "legais" (sem falar nas clandestinas) e os assalariados gastavam suas míseras economias nas casas de jogos mantidas pelas gangues dos yakuzas, antepassados dos mafiosos nipônicos atuais. .

Neste ambiente de desesperança pelo futuro e descrença pelo presente, o antigo código do bushido, no qual sintetizava toda a filosofia samurai, foi distorcido pelas conveniências políticas. Os antigos ideais de honra, lealdade e coragem, foram transformados num código implacável e impiedoso, em nome de um governo corrupto e cruel, que cedo ou tarde haveria de prestar contas à História.

Entre colinas e planícies cobertas por árvores e arbustos, uma figura solitária e com a sua cabeça coberta por um chapéu de palha caminha silenciosamente, empurrando um pesado carrinho de madeira.

Dentro do carrinho, uma criança de três anos e meio comia em silêncio uma fruta que o seu pai havia catado de uma árvore quilômetros atrás.

Para os transeuntes, a figura anônima e silenciosa poderia passar muito bem por um viajante qualquer ou um pai de família retornando ao lar, se não fosse por pequenos detalhes.

Em primeiro lugar, o andarilho misterioso estava armado com uma espada katana.

Já fazia algumas décadas quando o então Xogun Toyonori Hideyoshi declarara que somente os samurais podiam ter o direito de empunhar uma espada.

Lei esta que foi mantida quando o seu rival Ieyasu Tokugawa tomara o poder, encerrando o período conhecido como o das guerras civis - Sengoku Jidai, inaugurando a era que teria o seu nome.

Em segundo lugar, o viajante trajava um conjunto de Gii (túnica) e Hakama (calça com pregas) com o corte e estilo característico dos samurais.

Contudo, não havia um padrão ou distintivo que o identificasse como membro de um clã ou a serviço de um senhor feudal, ou daimyo.

O estilo de seu penteado, o porte altivo e a maneira de andar fugiam do padrão de um homem comum. Ele estava acima da plebe que nascia, vivia, sofria e morria em nome de seu Xogum.

O andarilho era um guerreiro, mas também era um ronin, um samurai sem mestre.

Mas ele não era um ronin comum, como os muitos samurais que ficaram desempregados quando seus senhores a quem serviam foram mortos ou banidos pelo Xogunato Tokugawa. .E muito menos um mercenário a procura de alguém que necessitasse de seus préstimos.

Para uns era um matador frio e impiedoso, vítima de um destino cruel e condenado a trilhar o Caminho do Assassino, um dos Seis Caminhos do Homem, segundo a crença budista.

Para outros era um guerreiro. O melhor de todos, aquele que estava a caminho de se tornar uma lenda viva de seu tempo.

O andarilho era conhecido como "Kozure Ookami", o Lobo Solitário. Ou, o assassino do carrinho de bebê. E havia sido uma das pessoas mais poderosas do Japão, somente abaixo do próprio Imperador e do Xogun.

O seu nome era Itto Ogami.

Originário de uma família de guerreiros e mestre da escola de esgrima Suio, Itto Ogami era um dos mestres espadachins mais habilidosos de seu tempo e se destacara por sua bravura e coragem durante as batalhas que levaram a facção de Tokugawa ao poder. Como membro da segurança pessoal do Xogun, Itto havia ascendido gradualmente cargos de responsabilidade até vencer os seus concorrentes nos duelos que o capacitaram a se tornar titular do posto de Kaishakunin, o Oficial da Morte.

O Kaishakunin era o responsável pela segurança direta do Xogun e entre suas responsabilidades, cabia a ele executar diretamente a justiça do regime, reprimindo qualquer tentativa de rebelião nas províncias (Han).

Naqueles tempos, quando um daimyo caía em desgraça perante o Governo Central, havia duas alternativas para ele. A primeira, considerada mais honrosa e que visava a preservar o sobrenome e a honra de seu clã, era a de se sujeitar ao Xogun e cometer suicídio ritual, o Seppuku, conhecido vulgarmente como Harakiri.

E cabia ao Kaishakunin supervisionar a cerimônia ritual de suicídio dos daimyos considerados culpados.

Após longos preparativos e uma série de rituais, o executado - diante de testemunhas - suicidava-se cortando a barriga com uma wakizashi ou uma adaga tanto.

O Kaishakunin - postado atrás dele - abreviava o seu sofrimento, cortando com um movimento preciso a sua cabeça, mas de forma que ficasse pendendo do corpo por uma fina tira de pele.

A outra alternativa era a do daimyo rebelde tentar recrutar o máximo de soldados e cavalos e se preparar para defender o seu Han, na louca esperança de enfrentar os exércitos do Governo Central. Nestes casos, o seu clã era declarado proscrito, o seu sobrenome jogado na lama e o território posteriormente absorvido pelos "Han" vizinhos.

Como Kaishakunin, Itto Ogami havia executado dezenas de daimyos rebeldes, fortalecendo a fama dos Tokugawa e submetendo os outros senhores feudais à sua vontade.

Contudo, este fato, que marcou o apogeu de sua carreira, também foi a sua desgraça.

O Clã Yagyu, liderado pelo astuto Lorde Retsudo - irmão do famosíssimo Jubei - havia ocupado durante décadas este posto.

E o candidato mais natural era o filho de Retsudo, Gunbei, exímio espadachim e rival ferrenho de Itto Ogami.

Durante a prova final, Gunbei e Itto se enfrentaram num duelo decisivo, numa exibição onde estava a nata do Xogunato, incluindo o próprio Tokugawa. Embora Ogami fosse muito forte e habilidoso, Gunbei era mais experiente e tinha melhor técnica.

Contudo, ele cometeu a imprudência de - no calor da batalha - apontar a sua espada para a direção de Tokugawa, o que era considerado um ato gravíssimo, de lesa-majestade. Percebendo isto, Itto se colocou à frente de Gunbei, protegendo com o seu corpo o próprio Xogun, ficando indefeso diante da lâmina da espada do filho de Retsudo.

Num ato de pura prepotência, Gunbei não matou o seu adversário, embora ele estivesse à sua mercê. Contudo, o seu gesto foi notado por um dos conselheiros do Xogun e ele foi desclassificado, ficando o título para Itto Ogami.

Inconformado por seu filho ter perdido a luta, Retsudo articulou um plano maquiavélico, visando a retomar pela astúcia o que a imprudência de Gunbei pôs tudo a perder. Considerado um dos clãs mais poderosos do Japão, os Yagyus eram considerados os assassinos oficiais do Xogun, executando as missões mais sórdidas em nome do regime.

Retsudo, em primeiro lugar, ordenou ao seu filho que se escondesse por uns tempos. Em seguida, simulou o suicídio deste ordenando a um de seus guerreiros - que tinha muita semelhança física com Gunbei - cometesse o Seppuku, como se estivesse arrependido.

E finalmente, de posse deste álibi, tramou a queda de Ogami, forjando evidências de que ele estaria envolvido numa trama contra o próprio Xogun, aproveitando-se da inexperiência política do jovem Kaishakunin.

Iludido pela trama de Retsudo, o Xogun obriga Itto a cometer o suicídio ritual, porém este se recusa. O regime então destitui Itto de seu cargo e declara proscrito o seu clã, restituindo o posto de Kaishakunin ao clã Yagyu.

Os Yagyus mandam então um grupo de assassinos invadir a residência de Ogami. Contudo ele não foi encontrado lá, pois havia saído um pouco antes para orar num templo. Os assassinos, contudo, matam friamente a sua jovem esposa e seus criados.

Ogami somente percebe a sua desgraça quando retorna ao seu lar destruído e encontra a esposa morta. O único sobrevivente do massacre foi o seu filho Daigoro, que tinha ido junto com o pai orar.

Em seguida, Itto é obrigado a fugir da capital Edo - antiga Tóquio - após ter resistido à sua captura pelos guardas de Tokugawa. Ele nunca mais poderia pisar os pés naquela cidade.

O ex-kaishakunin se torna um andarilho e se transforma pela força de um destino cruel e amargo, num assassino sem mestre, vendendo os seus serviços para quem pagar mais.

Com o pequeno Daigoro acompanhando sua odisséia de morte, Itto Ogami adota a alcunha de "Kozure Ookami".

Passando a conhecer melhor as intrigas que permeavam a corte, Itto passa a penosamente tentar arrecadar com o dinheiro de seus assassinatos a fabulosa soma de 20000 moedas de ouro, que lhe permitiriam subornar os conselheiros de Tokugawa e restaurar o nome de seu clã, para poder continuar sua vingança contra os perversos Yagyus.

Os seus clientes são variados: Senhores feudais interessados em eliminar seus desafetos, pessoas procurando vingança, membros do próprio governo que precisam de alguém para executar serviços sigilosos e sujos, membros dos Han rebeldes e outros.

Em todos os casos, Itto sempre exigia uma soma mínima de 500 moedas de ouro - uma fortuna para a época - e somente aceitava o serviço mediante pagamento adiantado e que o empregador mencionasse de forma clara e inequívoca quem seria a vítima e o motivo pelo qual ela devia morrer.

Durante suas andanças, Itto e o pequeno Daigoro colecionaram inimigos por onde passavam. Entre os seus oponentes estavam os assassinos enviados pelos Yagyus, samurais rebeldes, senhores feudais insanos, matadores de aluguel, caçadores de recompensas, espiões ninjas e membros de gangues, entre outros.

Por outro lado, da mesma forma que ele podia cometer atos cruéis e bárbaros pelo seu extremado senso de honra, Itto também podia de fazer o bem.

Uma certa ocasião, ele abriu mão da recompensa para ajudar dois jovens a vingarem a morte do seu pai, assassinado barbaramente nas mãos de um chefe de quadrilha.

Em outra ele salvou a dignidade de uma garota que estava para ser vendida como prostituta por causa de dívidas de família, arrecadando a quantia necessária para o seu resgate.

E chegou mesmo ao extremo de ajudar um antigo nobre integrante do Xogunato - que acreditava em sua inocência - a se proteger da emboscada tramada pelos malditos Yagyus.

A esta altura, Itto Ogami e Daigoro estavam indo a caminho da antiga capital imperial, Kyoto. Ele se recorda que há poucos dias atrás havia sido contatado pelos emissários de um poderoso senhor local chamado Kazuo Shingen, que o aguardava ansiosamente em seu castelo, situado nos arredores da cidade.

O encontro havia sido sigiloso, tendo ocorrido à meia noite, num templo abandonado. Itto sabia que a sua cabeça sendo procurado não apenas pelo clã Yagyu, mas também pelos caçadores de recompensas e clãs de ninjas.

Depois, ele sabia que não era prudente se aventurar pelas cercanias de Edo, preferindo-se refugiar nas localidades aonde sabia existir certa indiferença ou mesmo ressentimento com relação ao arrogante Xogunato.

De súbito, ele interrompe a sua caminhada, desconfiado. O ambiente estava calmo demais e os passarinhos haviam parado de cantar a instantes. Um ruído semelhante ao pio de uma coruja é ouvido a certa distância, tendo se repetido por uma, duas, três vezes.

Daigoro sente por instinto a mesma coisa que o seu pai e se acomoda dentro do carrinho, se protegendo.

Mal Ogami tem tempo de olhar ao redor quando quatro figuras saem dos arbustos à sua frente. Eram salteadores de estrada, bastante comuns naqueles tempos, apesar das patrulhas feitas pelos soldados do Xogunato.

Dois deles deveriam ser ronins renegados, já que carregavam o conjunto de uma katana e uma wakizashi (versão mais curta da katana) na cintura. O terceiro estava armado com um enorme porrete de chumbo com cravos nas extremidades e o último - e o mais jovem deles - estava equipado com um par de foices curtas - kamas.

- Ei, Ryosaburo, olha só o que temos aí, Ah, ah, ah! Um ronin como vocês! - Diz o ladrão armado de kamas. O seu nome era Sanada e antes de se unir à quadrilha, vivia de roubos e furtos;

- Um ronin sem destino e seu filhote... Muito bem, se você quer ficar vivo, passe tudo o que tem de valor, se tem amor à sua vida! - Diz Ryosaburo, que havia sido um samurai antes de seu Han ser dissolvido e ele ficar sem serviço, passando a viver de roubos e assassinatos;

- Isto mesmo, passe-nos o dinheiro ou seu filho ficará órfão! - Urra o grandalhão de porrete, um valentão estúpido apelidado de "Oni" por seu tamanho e força descomunais.

- Ei, ronin, diga-nos o seu nome e de onde veio! - Fala com um tom autoritário o segundo samurai, de nome Takada, que se tornou ronin após ter matado o seu mestre numa violenta discussão.

- Não tenho nada a responder a vocês. - Responde secamente Itto, com um olhar glacial.

- O quê? Está nos desafiando, cão? Fale o seu nome ou a gente...- Retruca Ryosaburo, visivelmente incomodado com a frieza do desconhecido.

- Lobo solitário e filhote... Assassino! - Itto responde, se preparando mentalmente para a peleja inevitável.

- O quê? Itto Ogami?? Matem-no, meus irmãos! A sua cabeça vale uma fortuna! - Grita o ex-samurai Takada, ao reconhecer a identidade do desconhecido.

Confiantes em sua superioridade numérica, os ladrões avançam, cercando o aparentemente desprotegido ronin e o seu filho. Urrando como um urso, "Oni" brande o seu gigantesco porrete recoberto de chumbo com a mão esquerda - pronto para partir o crânio do seu inimigo como se fosse um ovo podre.

Itto espera até o último momento e ao mesmo tempo em que se esquiva, saca a sua espada de combate "Dotanuki" - aquela que corta troncos espessos, usando uma perícia de sua escola de esgrima que valorizava o ato de sacar a espada - o Iaijutsu.

O pesado porrete passa a poucos centímetros de sua cabeça. Contudo, usando o impulso do movimento do saque de sua arma, Itto corta o braço direito de seu oponente na altura do ombro, que cai no chão soltando um grito horrível. Alarmados, os outros ladrões assumem uma postura defensiva.

Diferentemente de uma katana normal, uma espada de combate como a "Dotanuki" era de fabricação mais complexa e custosa, cujo processo durava semanas, sendo formada de várias lâminas de dureza e maleabilidade variáveis - unidas entre si pelo processo de forja - ao invés da espada convencional, que era formada por uma, ou no máximo, duas camadas de ferro.

O resultado final garantia à katana de combate uma têmpera e resistência inigualáveis, podendo derrotar praticamente qualquer tipo de arma conhecida na época.

Tendo derrotado o seu primeiro oponente, Itto assume a posição do golpe "Talho de Cavalo", da esgrima Suio. Os seus oponentes avançam de forma lenta, tentando descobrir alguma brecha em sua guarda.

Os olhos silenciosos de Daigoro acompanham sem demonstrar emoção alguma o desenrolar da luta. Desde a mais tenra infância ele já estava acostumado a presenciar emboscadas e massacres como este, a ponto de adquirir o chamado "Shishogan", o olhar de um guerreiro que presenciou incontáveis mortes, adquirindo um tremendo desapego pela vida e destemor pelo fatídico fim.

Ryosaburo e Takada sacam as suas espadas e tentam atacar Itto pelos flancos, mas o ex-Kaishakunin é mais habilidoso e se desvia com facilidade de suas investidas, mantendo-se longe de seus respectivos campos de ataque. .

Sanada aproveita e tenta fazer um ataque simultâneo usando as suas duas kamas, afiadas como um par de navalhas, imaginando que o seu oponente estava ocupado demais para prestar atenção à ele.

Ledo engano. Mantendo se fora da linha de ação das espadas de seus oponentes, Itto já estava prevendo o ataque desferido pelo fora-da-lei.

Com um movimento rápido, ele executa a manobra "Tsuki" (estocada) acertando com um golpe preciso o pescoço do delinqüente e retirando a ponta da lâmina no mesmo instante.

Enquanto Sanada cai ao chão com os olhos esbugalhados e as mãos tentando inutilmente estancar o sangue que jorra aos borbotões do horrendo ferimento aberto, Ryosaburo tenta aproveitar o golpe de Itto para tentar rasgar-lhe o ombro.

Só que Ogami recua a tempo e o golpe desferido pelo seu oponente rasga o tecido do Gii do lobo solitário, fazendo um arranhão superficial.

Itto se defende com maestria dos golpes simultâneos de Ryosaburo e de Takada, causando surpresa a eles, pois ambos eram espadachins experientes. Porém o seu destino estava selado desde que cruzaram o caminho com a lenda viva.

Takada executa uma arriscada manobra visando a cortar em diagonal o pescoço de Itto, só que o seu perigoso oponente executa o "Talho de Cavalo", ao mesmo tempo em que dá um pequeno salto à direita, causando um profundo corte no peito do bandoleiro, que dá o seu derradeiro grito de agonia.

Ryosaburo percebe a chance única e investe contra Itto, erguendo a sua katana com as duas mãos, para rachar a cabeça de seu famoso inimigo ao meio.

Sem perder a calma, o Lobo Solitário atira a sua "Dotanuki", perfurando o peito do último sobrevivente, que cai para trás com o impacto do golpe.

Ao todo a peleja durara pouco mais de três minutos. O sangue dos bandidos tingia a relva e as folhas que estavam no chão de vermelho. Itto já ia limpar e guardar a sua espada, quando percebe que o grandalhão "Oni" ainda estava vivo.

O bandido olhava para o seu algoz com uma expressão de horror e de angústia, como se estivesse implorando por algo. A extensão do ferimento era enorme e o gigante iria continuar sangrando até morrer, numa agonia terrível.

O Lobo Solitário sabe o que deve ser feito e com um golpe preciso dá o derradeiro gesto de misericórdia para o seu adversário, que morre na hora.

Depois o ex-samurai.olha para o seu filho e constata se está tudo bem. O menino acena a cabeça e ambos retomam a sua jornada, deixando para trás os corpos dos bandoleiros mortos.

Cerca de meia hora mais tarde, quando as primeiras estrelas começaram a aparecer no céu, Itto nota uma pequena surpresa. Uma patrulha de homens armados, lideradas por um oficial a cavalo.

De repente, sem aviso prévio, o oficial galopa em sua direção, sacando a sua espada, como se quisesse matá-lo. O Lobo Solitário saca imediatamente a sua Dotanuki e ambas as lâminas se chocam num ruído metálico e estridente.

A katana de seu misterioso agressor foi partida ao meio.

- Dotanuki... A legendária espada... Murmura o misterioso agressor que desce de seu cavalo enquanto constata que a lâmina de sua katana foi partida um pouco acima da empunhadura. .

Itto nada reage, pois já tinha idéia de quem era o oficial.

- Ela é uma arma formidável. Pouquíssimas espadas feitas pela mão do homem podem superá-la. - Comenta o ronin.

- Peço perdão pela minha conduta inapropriada. Mas precisava ter certeza de que se tratava do famoso Itto Ogami, o Lobo Solitário e seu filhote... - Responde o oficial, curvando a cabeça como se estivesse diante de um superior.

- Desculpas aceitas. Suponho que seja o emissário...

- O meu nome é Hideki Takada. Sou inspetor de armas do castelo Shoki e fui mandado pelo lorde Shingen para escoltá-lo até a sua presença.. - Identifica-se o oficial. Tratava-se de um homem na casa dos quarenta anos e de olhar penetrante.

- Compreendo.. Então o assunto é de suma importância...

- Exatamente. Por favor, acompanhe-me, Ogami-Dono.

Recusando polidamente a montaria que lhe foi oferecida, Itto empurra estoicamente o carrinho de seu filho Daigoro nos três quilômetros que lhe restam até as cercanias do Castelo Shoki, nos arredores de Kyoto.

Kyoto havia sido a capital imperial desde o período Heian, que se iniciara no ano 794 DC, até a sede do Xogunato mudar-se para Edo, no período Tokugawa.

Ainda assim, a cidade de Kyoto era um próspero centro comercial e religioso, sendo também o centro de divulgação da religião Budista - que apesar das perseguições e do desfavor oficial - ainda se mantinha na região.

Contudo, por trás desta aparente calma e prosperidade, a cidade também tinha uma outra fama. A de ser uma cidade com um passado negro. Durante as guerras civis que caracterizaram o Sengoku Jidai (1400-1600), Kyoto foi sacudida por inúmeros conflitos armados e revoltas, bem como sucessivas epidemias e períodos de anarquia. Por causa de tais motivos, Kyoto foi apelidada de "Cidade dos Demônios".

Estas desgraças eram atribuídas aos inúmeros espíritos malignos que saiam das dimensões das trevas para atacar os incautos humanos.

Quase uma hora depois, o cortejo alcança as muralhas do Castelo Shoki, um dos mais luxuosos da região.

Comentava-se que a construção do mesmo durou mais de 20 anos e que era um dos mais seguros de Kyoto. Dizia a lenda que o seu arquiteto e os auxiliares imediatos cometeram Seppuku ao terminar a gigantesca obra, para garantir que jamais entregariam ao inimigo a localização das passagens secretas do mesmo. E que todos eles foram enterrados nos subterrâneos, de maneira a protegê-lo pela eternidade.

Lorde Shingen era uma das pessoas mais poderosas e ricas da cidade, contudo, muito pouco sabia a seu respeito.

Embora era conhecido que ele não morria de amores pelo Xogunato Tokugawa, também por outro lado nunca cometeu um ato que pusesse em risco a sua lealdade.

Ele era como o fiel da balança do complexo jogo de poder dos clãs que dominavam Kyoto e se procurava manter eqüidistante das disputas locais. Era conveniente para o Xogunato, que Kyoto se mantivesse dividida em facções opostas, pois se elas unissem, poderiam representar uma séria ameaça à sua hegemonia.

O Xogunato podia cobrir de favores uma certa facção e beneficiar outra depois.

Contudo, nesta sórdida guerra de politicagem e benesses hipócritas o objetivo era manter os líderes dos clãs divididos e preocupados em superar um ao outro, mas sem chegar a um resultado decisivo definitivo.

Contudo, Shingen era uma incógnita. O seu silêncio e o hábito de falar pouco nas reuniões tornavam-o difícil de ser decifrado, porém ele estava longe de ser considerado passivo e influenciável.

Agindo através de diplomatas e representantes, ele sutilmente influenciava no balanço de forças das facções locais, enquanto aumentava lenta e seguramente o seu poder interno.

Ao chegar ao Castelo, já na entrada, Itto e Daigoro são apresentados a um idoso senhor que os encaminha através dos complexos corredores, para um mais do que bem vindo banho de água quente.

Antes disto, porém, o corte superficial que Itto sofrera foi devidamente tratado e limpo pelo médico particular do lorde. Também foram providenciadas roupas limpas e novas para os dois para serem usadas após o banho.

Embora o encontro fosse urgente, não seria de bom tom o ex-kaishakunin Itto Ogami se apresentar a Lorde Shingen totalmente sujo, cansado e empoeirado. Até nos mínimos detalhes, o anfitrião pensara em tudo.

Após o banho, em seguida, pai e filho são encaminhados até a uma pequena sala aonde é servida uma ligeira refeição, servida por lindas e amáveis damas de companhia.

Embora algo frugal, o jantar era considerado um pequeno banquete para os padrões da época. Além do tradicional arroz cozido, também havia uma variedade de acompanhamentos dispostos em pequenas tigelas: Peixes cozidos e salgados, vários tipos de picles de verduras picadas em conserva, frutos do mar, gengibre picado, uma tigela de sopa quente, além do tradicional chá verde.

Itto e Daigoro servem-se das tigelas com arroz cozido, com a característica etiqueta Samurai, enquanto uma dama toca uma melodia nostálgica e melancólica ao som de seu shamisen, um instrumento primitivo que lembrava um banjo.

Aparentemente a sala era reservada para visitas ilustres, embora o local aonde Lorde Shingen e sua família faziam suas refeições fosse outro.

Terminada a refeição, os dois descansam numa sala anexa, enquanto a dama mais bonita e experiente tenta iniciar uma conversa amena dirigindo um sorriso insinuante ao samurai.

Estava evidente de que ela era uma verdadeira profissional de agradar os convidados, com boa conversa, grande conhecimento de artes, poesia e música e algo a mais...

Percebendo a intenção da moça, Itto muito diplomaticamente recusa, sem ofendê-la, apenas se limitando a conversar polidamente, como faria com qualquer outra mulher.

A jovem gueixa deixa escapar um sorriso melancólico... Não seria desta vez que ela se deitaria com um homem tão impressionante, como misterioso. Mas tudo bem, como uma fina e educada dama de companhia treinada em suas artes desde criança, ela iria cumprir o seu dever da melhor maneira possível.

Minutos mais tarde, o colóquio é interrompido com o soar de um gongo importado da China. O idoso senhor que recebera Lobo Solitário e seu filhote avisa discretamente que Lorde Shingen estava à sua espera, no salão principal. Com um discreto sorriso, a dama de companhia se retira, deixando Itto e Daigoro à vontade.

Guiados pelo velho, pai e filho são levados até a porta da sala principal do castelo. Seguindo o rigoroso costume samurai, Itto e Daigoro se prostram de joelhos, com seus rostos voltados para o chão.

- Itto Ogami, eu presumo? - Pergunta uma misteriosa voz que parecia ser impressionante devido ao eco da enorme sala.

- Lorde Shingen-Dono, eu e o meu filho humildemente pedimos sua permissão para adentrar neste recinto.

- Tudo bem. Que assim seja. - Responde a voz, de maneira condescendente.

Itto e Daigoro cautelosamente entram na ampla sala principal do castelo Shoki, iluminada por braseiros incandescentes. O pequeno Daigoro nota que as tábuas do piso reluziam à luz dos braseiros de tão bem cuidadas e enceradas que estavam.

Em contraste com a imensidão do lugar, a sala principal era relativamente simples e despojada. Uma inscrição tradicional feita a nanquim enfeitava uma das paredes, enquanto um conjunto de uma espada katana ricamente ornamentada e uma wakizashi estavam guardadas num suporte. Afora isto, dois biombos importados da China, de finíssimo acabamento, uma mesinha baixa feita de laca e algumas almofadas de seda compunham a esparsa mobília do imenso salão.

Sentado numa almofada, na clássica posição oriental estava Lorde Shingen em pessoa. Ele era magro, de estatura baixa para média e alguns cabelos grisalhos começavam a despontar em sua cabeça, cujo penteado era à moda samurai. Ele ainda usava um kimono de finíssimo acabamento, embora suas cores fossem sóbrias e discretas, como convinha a um potentado.

- É uma honra ser convidado por Vossa Excelência, Shingen-dono... Agradeço humildemente pela sua gentil acolhida a este indigno servo e ao seu filho. - Saúda Itto, curvando a sua cabeça. O seu filho faz o mesmo.

- Ora, ora, deixemos as formalidades de lado, meu caro Ogami-san. É este o seu filho? Qual o nome dele? - O poderoso daimyo aparentemente está de bom humor e afável. Tanto que ele acaricia a cabeça do pequeno Daigoro, que fica num silêncio e respeito de maneira incomum para uma criança de menos de quatro anos. .

- Sim. Ele se chama Daigoro... - Limita-se a responder Itto. Desde cedo ele criara Daigoro com o mesmo rigor que os seus pais o criaram. Embora fosse muito rigoroso e severo com ele, Itto queria que Daigoro sentisse orgulho de sua origem samurai, apesar das privações atuais aos quais eles estavam submetidos.

- Uma criança admirável... O meu oficial da guarda me informou que vocês chegaram um dia antes do prazo combinado... - Sorri condescendente o poderoso nobre.

- Não podia deixar Vossa Excelência esperar em demasia, pois o seu emissário disse tratar-se de um assunto importante. - Responde sucintamente Itto, lembrando-se do primeiro encontro com o representante do lorde Shingen.

- Ah, sim. Vamos ao que interessa. Já ouvi falar de sua habilidade na espada e na eficiência com que executa os seus assassinatos. E o meu oficial comprovou isto pessoalmente, ao constatar o extermínio de quatro salteadores de estrada foragidos... - Fala Shingen, sabendo de tudo que ocorrera horas atrás.

- Foi inevitável. Tive-me que defender.

- Pois bem, se cumprir esta missão, além da recompensa prometida, você terá muito mais do que imagina, Ogami-san. - Os olhos do nobre pareciam reluzir pelo reflexo da luz emanada dos braseiros.

- O Meifumado me trouxe até aqui. O que deseja, Shingen-dono? - Responde Itto, referindo-se a sua filosofia de trilhar o chamado Caminho do Assassino, um dos que levam ao mundo infernal.

- Por favor, peço que mate Akira Aoyama, líder do clã dos Aoyama e mestre do Shinmeiryu. - Responde Shingen, com um tom de dureza na sua voz.

- O motivo? - Por mais tentadora que fosse a oferta, Itto jamais aceitava um contrato sem saber de todos os detalhes da missão. Isto já era uma praxe em seu modo de operação. Mais de uma vez recusara ofertas obscuras.

- O clã dos Aoyama evitou se envolver ao longo dos tempos com quaisquer facções, devendo sua suposta lealdade unicamente ao Imperador... Contudo, há evidências de que este clã é na realidade uma fachada para uma seita secreta demoníaca que corrompe jovens para a perdição dos Seis Caminhos e que muito mal tem sido feito nesta linda cidade. - Os olhos de Shingen deixam a serenidade habitual e pareciam reluzir de ódio enquanto escolhia cuidadosamente as palavras.

- E porque os monges e o povo em geral não se manifestam contra eles? - Indaga Itto, um tanto intrigado pelo motivo desta convocação. Além de não ser do tipo supersticioso, ele sabia que se alguém estivesse envolvido com qualquer tipo de magia negra, os primeiros que iriam se levantar contra seriam o clero e o povo em geral. .

- Heh... Os camponeses e artesãos têm muito medo para dizer de frente o que pensam, pois são supersticiosos e temem ser amaldiçoados... E quanto ao clero, procure o monge Jinji, no templo Bossatsuken, na cidade velha. Ele lhe dará mais detalhes. - Sorrindo, lorde Shingen percebe a hesitação interior de Itto e reforça a sua argumentação.

- Há algum motivo que impede lorde Shingen de agir? - Indaga Itto com a sua franqueza habitual.

- Como assim? - Shingen finge-se de surpreso, mas isto fazia parte de sua tática, pois já sabia que o Lobo Solitário não era nenhum idiota.

- Não é todo empregador que me recepciona a mim e ao meu filho com uma escolta armada e que me recebe de forma suntuosa em seu lar. Reparei no seu castelo e de fato, Shingen-dono tem um poderio militar que faz jus ao seu nome e à sua fama.. Não teria dificuldades em trazer justiça a esta terra sem depender de um andarilho como eu... - Responde Itto com delicadeza, mas carregando suas palavras com certa ironia.

- Eis o ponto, Ogami-san. Como membro dos anciões desta cidade, tenho a minha parcela de poder e de responsabilidade. Contudo, os malditos Aoyama têm conexões com grupos que desejam a minha desonra e queda. Qualquer ato inadequado de minha parte poderia trazer conseqüências catastróficas à estabilidade política de Kyoto... - Procura-se justificar Shingen, notando que seu interlocutor era mais esperto do que supunha.

- E por este motivo, o senhor precisa de um andarilho como eu para fazer o serviço, sem ter que manchar suas mãos de sangue... - Responde Itto com a franqueza que lhe era típica.

- Isto é uma ofensa ou... - Shingen finge-se de ofendido, mas compreendera o que o assassino quis dizer. E estava intimamente satisfeito com isto. Não iria pagar uma fortuna para um idiota sem cérebro.

- Não. É apenas uma constatação ditada pela realidade, Shingen-dono. Não quis em absoluto duvidar de sua palavra. - Responde Ogami, como se executasse um lance de xadrez no complexo jogo de palavras e argumentos da diplomacia.

- Sei que somente aceita executar um serviço destes após saber de todos os fatos. Pois bem, de minha parte, já falei o bastante. Amanhã pode procurar o Monge Jinji e saber dos detalhes. Pode dar uma resposta inequívoca até amanhã a noite? - Responde Shingen com certa ansiedade.

- Independentemente de Jinji falar ou não, sim. Pelo Meifumado, não costumo deixar quem me procura esperando tanto tempo.

- Excelente! Saiba que se o serviço for bem executado, você não somente receberá 500 moedas de ouro como o habitual, mas o dobro disto, além de muitas outras recompensas! - Os olhos de Shingen brilham de satisfação, tendo conseguido dobrar a vontade férrea do seu interlocutor.

- Bem, com a sua licença, eu e o meu filho precisamos nos retirar.

Pai e filho já se preparavam para retirar do recinto quando...

- Esperem, não gostariam de se hospedar no meu castelo? Já está tarde e se chegarem à Kyoto, dificilmente encontrarão uma hospedaria decente a esta hora... Se me permitirem, mandarei providenciar um quarto adequado para você e seu filho... -

Teoricamente a proposta de Lorde Shingen parecia ser razoável, pois quase todas as hospedarias decentes (as que não eram arapucas para depenar viajantes incautos) fechavam cedo. Depois, ele supunha erradamente que a companhia de suas gueixas faria Itto ficar mais "predisposto" a aceitar a arriscada missão.

- Agradeço mais uma vez a sua gentileza e hospitalidade, mas a minha condição de ronin me impede de aceitar tão generosa dádiva... - Responde Itto, fiel aos estóicos preceitos morais que seguia.

- Como assim? - Shingen fica surpreso.

- Vossa excelência disse fazer parte do Conselho de Anciões desta cidade... Não ficaria adequado se cedo ou tarde alguém soubesse que Vossa Excelência tenha acolhido um andarilho jurado de morte pelo Governo Central como eu... - Responde o Lobo Solitário, mostrando mais uma vez sua faceta de caráter inflexível a possíveis concessões.

- Sim, entendo, mas mesmo assim, ninguém mais precisa saber que você veio aqui...Os meus oficiais já foram instruídos a guardar sigilo sob pena de morte...

- Ainda sim, suplico para que reconsidere, Shingen-dono.

- Bem, já que insiste... Contudo, se me permite, irei instruir um dos meus homens a te acompanhar até a cidade e encaminhar a uma hospedaria decente aonde possa dormir sem ter medo de ser assaltado. Procure o monge Jinji amanhã cedo conforme o combinado e no final da tarde, procure-me. no meu castelo - Resigna-se o Nobre, surpreso por tamanha demonstração de teimosia... E de integridade.

- Agradeço mais uma vez a sua generosidade, lorde Shingen.

- Está dispensado. Boa noite a você e ao seu filho, Ogami-san.

Lorde Shingen se retira discretamente da sala por uma das portas e em seguida, Itto Ogami e Daigoro são levados pelo velhinho que os atendera até a saída do castelo.

Lá fora eles aguardam alguns minutos até que um dos homens de Shingen aparece - vestido à paisana - com uma carroça.

O carrinho de bebê - bastante resistente e pesado - é colocado com cuidado na carroça e em seguida os três partem, deixando o Castelo Shoki para trás.

REFERÊNCIAS ADOTADAS NO CAPÍTULO:

RONIN: Samurai sem mestre. Com o fim das guerras civis e a unificação do Japão pela Dinastia Tokugawa, a classe dos samurais se enfraqueceu. Muitos guerreiros ficaram sem mestre e vagavam de localidade a localidade procurando alguém para oferecer os seus serviços, alguns como caçadores de recompensas e outros aderindo ao banditismo. Vários samurais foram obrigados à prática da mendicância e mesmo passando fome.

(Fulano)-DONO: Tratamento arcaico destinado apenas a personalidades nobres e ilustres;

MEIFUMADO: A estrada que leva para o Negro Mundo do Inferno. O lugar aonde segundo a crença budista, as almas culpadas iam para pagar pelos seus pecados cometidos em vida até terem a chance de uma nova reencarnação.

SOBRENOMES: Na época do Lobo Solitário, apenas os nobres e a classe dos samurais tinham o privilégio de terem sobrenomes. Devido à raridade dos mesmos, era possível deduzir a procedência da família, o seu status e até a região aonde a pessoa vivia pelo sobrenome que usava. Contudo, as mulheres não tinham este privilégio, ainda que fossem de origem nobre, adotando comumente o sobrenome do marido depois de casadas.

Os populares usavam o nome combinado com a profissão e nome do local aonde viviam.

Somente após a restauração Meiji (meados do século XIX), o direito de usar sobrenomes foi estendido a todas as classes sociais.

GUEIXAS: Sabe-se que as chamadas gueixas surgiram por volta da Era Tokugawa, se tornando uma classe à parte das chamadas cortesãs e prostitutas de luxo, que já existiam desde o século XIII.

Inicialmente o termo se designava apenas para nomear as damas de companhia que se especializavam em entreter os convidados de um nobre, através da dança, do canto, da música, da poesia e da arte da conversação. Diferentemente das prostitutas, o sexo não fazia parte de seus préstimos, embora fosse comum os patronos e clientes de longa data se envolverem com as gueixas. Contudo, com o passar do tempo, tal prática foi se disseminando a ponto do governo da época baixar uma lei regulamentando a classe.

Embora a maioria das gueixas trabalhasse em estabelecimentos próprios, administrados por uma gueixa mais velha e experiente, algumas delas eram recrutadas e patrocinadas por nobres e pessoas influentes. Elas eram relativamente comuns em Edo e em Kyoto na época da Era Tokugawa.

Escrito por: Calerom

E-Mail: myamauchi1969@yahoo.com.br

Última Versão: Outubro de 2003.