CAPÍTULO 02:
O LOBO REPOUSA
Das cercanias do Castelo Shoki até a cidade de Kyoto propriamente dita, a viagem iria durar pouco mais de uma hora .
Daigoro, o pequeno filho de Itto, olhava atentamente para a gradativa mudança da paisagem rural para o ambiente urbano enquanto o seu pai continuava impassível ao lado do cocheiro, que estava ao mesmo tempo impressionado e assustado.
O condutor estava Impressionado por estar ao lado do ex-Kaishakunin de Edo, um dos homens mais poderosos (e perigosos) do Japão.
E assustado, pois tinha notado a fisionomia séria e impassível de Itto, a sua enorme força física demonstrada ao colocar o pesado carrinho de seu filho (feito de madeira, bambu e ferro) no interior da carroça e a quase total ausência de emoção no seu olhar...
Tudo isto fazia com que o servo de Lorde Shingen sentisse como se estivesse diante da Morte em pessoa.
Sim, se a Morte fosse ter uma aparência humana, com certeza teria aqueles olhos frios e implacáveis.
- Então o senhor é o famoso Itto Ogami... Já veio a Kyoto antes? - Tenta puxar conversa o empregado de Shingen, cansado da monotonia da viagem.
- Como Kaishakunin umas duas vezes. Mas como Lobo Solitário, esta é a primeira vez. - O tom de voz de Itto sai quase que glacial. Uma das coisas que ele não tolerava era conversa inútil.
- Este é o seu filho? Qual o nome dele? - O cocheiro tenta parecer amável aos olhos de Itto e faz um cafuné na cabeça de garoto, mas a criança de quase quatro anos de idade demonstra que não gostou nem um pouco pelo seu olhar.
- Sim. Ele se chama Daigoro - Responde Itto mecanicamente.
- Bem, o meu nome é Sagame, mas todos aqui me chamam de Sagame "Kitsune", o raposa. Conheço Kyoto inteira na palma da minha mão! Quer saber onde fica o templo do monge Jinji? Tive ordens para... - Era evidente que este tal de Sagame sabia demais, falava demais e era mais do que um mero empregado. Este fato isto chamou a atenção de Itto.
- Não será necessário. Alguém que deve seguir a Trilha para o Meifumado tem que depender apenas de si mesmo para alcançar o seu objetivo... - Itto corta a conversa de vez no seu estilo peculiar.
- Pretende ficar quanto tempo aqui na cidade? - Sagame tenta puxar novamente conversa, um pouco contrariado.
- Apenas o suficiente - Responde Itto secamente enquanto Daigoro admira o cantar dos grilos e as luzes esverdeadas dos vagalumes que voavam ao redor da carroça naquela noite quente de verão.
- Tem interesse por alguma hospedaria em particular? Eu conheço um bairro com alguns lugares especiais, meu amigo. Lá o senhor poderá comer bem, beber bem, jogar e... Passar a noite com pessoas bem interessantes... - Por "lugares especiais", Sagame estava se referindo às estalagens de luxo, usadas por samurais em viagem e altos dignatários do Xogunato, aonde funcionavam serviços como jogos de azar e a companhia de moças arregimentadas para práticas nada familiares.
- Não será necessário. Apenas me indique um lugar honesto e honrado aonde eu e meu filho possa dormir com a certeza de que a minha cabeça estará presa ao meu corpo no dia seguinte... - Itto encerra de vez a argumentação de Sagame "Kitsune" com um argumento conclusivo.
- Como queira, Ogami-dono...
Temendo irritar o impassível samurai ainda mais, o indiscreto Sagame reprime um xingamento por estar tentando ser simpático com um guerreiro que mais parecia um demônio encarnado e acelera a sua carroça em direção à cidade.
Em instantes, os três estão na antiga capital Kyoto.
A cidade funcionou como capital imperial do Japão desde o início do período Heian (798 DC) até a decisão de Tokugawa mudar a sede governamental para Edo em época recente
A antiga capital imperial do País do Sol Nascente havia sido construída de acordo com princípios chineses, tomando-se o suntuoso palácio como centro de referência.
Contudo muito do esquema original havia sido modificado, desde que o início das guerras civis do Sengoku Jidai arrasou praticamente a cidade, quando daimyos pertencentes a duas facções rivais transformaram Kyoto em campo de batalha há dois séculos e meio passados.
Contudo, a Kyoto mantinha a sua glória, traduzida nas numerosas casas de madeira, nos imponentes palácios e moradias de samurais, bem como os numerosos templos budistas, construídos antes e durante a época pós-Tokugawa.
Cavalgando com habilidade incomum, o espertalhão Sagame caminha por um sem-fim de ruas e vielas da enorme cidade de meio milhão de almas.
Naquele horário, poucas pessoas honestas estavam nas ruas.
Os poucos estabelecimentos ainda disponíveis disputavam os raros transeuntes com anfitriões de ambos os sexos apregoando as vantagens de cada local e adulando clientes potenciais da melhor forma possível.
- Não deseja reconsiderar sua decisão, Itto-sama? A esta hora da noite, poucos lugares compatíveis para o seu nível estão abertos e... - Comenta Sagame ao notar que a solidão das ruas.
De repente um grito desesperado de mulher ecoa a dois quarteirões de distância. Itto fica em estado de total alerta.
- Alguém está em perigo. - Diz o samurai se preparando para sair da carroça.
- Deve ser alguma prostituta bêbada que... - Sagame tenta se fazer de indiferente, mas - Ei, aonde o senhor vai?
Itto salta da carroça sem esperar pelo seu falante condutor, com a sua espada em punho, indo em direção aonde ouvira o grito.
Daigoro - com os olhos já dominados pelo estado "shishogan" - vai atrás dele, como se não pudesse resistir ao apelo da batalha iminente.
Só resta ao indiscreto cocheiro acompanhar a dupla, carregando a sua arma, uma kusari-gama com uma corrente longa e fina.
Ele não podia sequer pensar em sonhar caso acontecesse algo de errado com o contratado de seu Lorde Shingen naquela noite. Seria muito melhor ele mudar de nome e de aparência e desaparecer para sempre da face da Terra.
Andando rapidamente como um lobo, Ogami finalmente entra num beco sem saída com a sua Dotanuki em punho.
Num canto escuro, estava uma jovem que aparentava ter pouco menos de dezoito anos.
Ela estava com o seu lindo semblante completamente aterrorizado e naquele momento estava ajoelhada no chão imundo e lamacento com três homens ao seu redor, como chacais famintos.
Um deles a imobilizava com a ajuda de um punhal encostado na sua garganta, o outro estava tentando arrancar as suas vestes com as mãos cobiçosas e um terceiro estava com uma katana, vigiando a rua.
Pelo seu aspecto, deviam ser membros de uma gangue e era óbvia a intenção do trio.
Eles estavam bem armados para serem marginais comuns, apesar da proibição de apenas os samurais e oficiais do xogunato poderem empunhar espadas, o que tornava a luta mais difícil.
Mas não para Itto Ogami, o Lobo Solitário.
- Soltem a garota! Agora!
- O que pensa que é, seu ronin vagabundo? Ela é nossa! E vamos fazer o que bem entendermos com ela! - Diz o cara da Katana sorrindo desafiadoramente.
- É isto aí! - Grita o rapaz que estava ameaçando a moça com o punhal.
- Se é assim... - Itto assume uma posição de ataque da escola Suio, permanecendo a postos contra qualquer movimento inimigo.
O homem que vigiava o beco decide atacar Ogami com um golpe surpresa, enquanto o seu outro comparsa saca uma afiada espada Wakizashi escondida nas dobras de suas roupas. E o terceiro capanga apenas observa, segurando firmemente a moça.
Contudo, aqueles chacais humanos não eram páreo para o lobo devorador que fez a sua fama com o sangue derramado de suas vítimas pelas 60 províncias do Japão.
O homem da katana é o primeiro a atacar, mas era óbvio que se tratava de um amador, já que fizera o seu movimento de forma afoita - sem respeitar o espaço de ataque entre ele e o seu inimigo.
Com rara agilidade, Itto saca a sua Dotanuki ao mesmo tempo em que se esquiva do golpe inimigo.
Um risco preciso corta o ar pútrido do beco, seguido de um grito lancinante.
O seu poderoso golpe atingira o inimigo na altura do ombro direito, talhando carne e ossos e forçando-o largar a sua espada Katana, que cai no chão.
O segundo capanga ataca com a wakizashi, mas Itto bloqueia o golpe com o mesmo movimento que usara para retirar a sua espada de combate do ombro ferido do primeiro adversário, fazendo-o gritar ainda mais.
A wakizashi se choca com a poderosa lâmina da Dotanuki três vezes antes de ser destroçada por um bloqueio eficaz.
Com o choque, os estilhaços da lâmina wakizashi acabam ferindo o rosto e o peito do segundo yakuza, que grita de dor ao ter o supercílio cortado por um fragmento de ferro. Só que logo ele não sentiria mais nada. A última visão que ele vê na vida é a da espada de Itto talhando ao meio a sua face.
A garota somente sai de seu transe de horror quando dá um grito ao ver o seu desconhecido salvador degolar a cabeça do primeiro atacante, que tentara sacar sua wakizashi numa tentativa desesperada de adiar o inevitável.
O pequeno Daigoro e o embasbacado Sagame estão na extremidade do beco, assistindo à insólita batalha, como testemunhas imóveis do massacre.
- Heh... Você p-pensa que me mete medo, seu ro-ronin vagabundo? Não dê m-mais um passo ou corto o pescoço desta ra-rameira... O-Oouviu? - Sorri de forma assustada o bandido mais jovem, se agarrando à sua refém como se ela representasse sua última esperança de escapar vivo daquele beco de dor e de morte.
- Faça isto com ela e te matarei. Lentamente. - Responde o Ronin,. Impassível como a própria morte.
- Não! Você não ousaria, seu maldi...!
De repente, o impasse se resolve da maneira mais inesperada possível. Completamente atordoado pela presença do Ki esmagador de seu adversário implacável, o yakuza remanescente atira em desespero a sua adaga que usara para imobilizar a sua jovem vítima em direção a Itto e simultaneamente empurra a garota, que cai de lado no chão úmido e mal-cheiroso do beco.
Usando a Dotanuki como bloqueio, Itto intercepta a adaga em pleno ar, seguido de um ruído seco e metálico.
Aproveitando a chance, o último bandido saca uma espada curta de fabricação chinesa e soltando um grito selvagem, ataca o aparentemente desprevenido ronin.
Sagame e a jovem desconhecida soltam um grito de espanto quando ambos vêem os dois inimigos se cruzando no embate final.
Apenas Daigoro, em seu estado Shishogan, assiste impassível sem demonstrar a menor sombra de medo ou receio.
Sentindo um pouco de dor, Itto pousa a mão esquerda no flanco esquerdo e percebe que foi ferido.na altura das costelas, aonde se nota um rasgo em seu gii.
O seu oponente sorri como se estivesse vitorioso e se prepara para dar outro golpe no ronin. Contudo, para o seu horror, ao girar o corpo, um jato escarlate explode em cores vivas e brutais. O golpe de Itto havia cortado uma artéria principal e várias veias. O jovem ladrão cai - tendo pago um altíssimo preço para satisfazer a sua sede de luxúria nesta noite.
- Papai! - Grita Daigoro.
- Ogami-Sama! - Exclama Sagame.
Daigoro sai correndo para abraçar ao pai que saiu vitorioso da breve mas violenta luta, enquanto que um frustrado Sagame desconta a sua raiva degolando o último malfeitor, que já estava praticamente morto ao cair no chão.
Estoicamente e sem demonstrar o mínimo esforço, Itto abraça o seu filho e em seguida, se dirige à jovem, que estava caída no chão seminua e quase em estado de choque.
- Por favor... Não me mate, samurai-sama, eu... - Diz ela, chorando copiosamente e tremendo, enquanto tentava arrumar suas vestes.
- Não tenha nada a temer. Quem eram estes? - Pergunta Itto sem reparar no estado de seminudez em que se encontrava a desconhecida.
- Oh... Eles... Eles... Eram capangas de Yamazaki-gumi... - Comenta a linda jovem, entre soluços.
- Trata-se de um bando de yakuzas locais que chantageam os comerciantes! - Exclama Sagame, enquanto repara, excitado, o quanto que a refém dos yakuzas era jovem e bonita, apesar de estar suja e desarrumada.
- O meu patrão tinha uma dívida com este grupo e eles queriam me levar... Para um lugar horrível... Eu tentei fugir, mas... - Completa a moça, enxugando suas lágrimas.
- Não precisa chorar mais. Você está a salvo. Onde você mora? - Pergunta Itto calmamente.
- Na Hospedaria Aramaki... Fica a seis quarteirões daqui...
- Não perca tempo com esta garota, Itto Sama. Ta na cara que ela é uma vagabunda e se quer saber, você acabou de arranjar encrenca com uma das piores quadrilhas de yakuzas da cidade! Eles não vão descansar enquanto... - Novamente Sagame tenta sair pela tangente, escolhendo a alternativa mais cômoda para ele, mas...
- Por favor. Leve-nos à sua hospedaria. - Diz Itto de forma firme e concisa, para a moça, sem se importar com o que o verborrágico serviçal dizia.
- Está bem... - Diz a moça se levantando de forma educada.
- Itto-sama! Eu... Protesto!
Só que Itto fita o falastrão empregado de Lorde Shingen com um olhar capaz de estremecer o mais arrogante dos homens. Engolindo seco, Sagame acaba concordando.
Minutos mais tarde, o grupo acaba parando em frente à Hospedaria Aramaki, um sobrado de dois andares feito de madeira e de bambu. A porta do local encontrava-se fechada e apenas uma das salas do seu interior encontrava-se iluminada.
- Abram a porta! Temos hóspedes! - Grita Sagame, furioso por ter entrado numa enrascada que ele não previa.
Ninguém responde. Após alguns minutos, Sagame bate na porta com mais força.
- Vamos, abram a porta!
Ouve-se um resmungo seguido de um insulto dito em voz baixa no dialeto local. Minutos mais tarde, a porta se abre.
- Pela misericórdia de Buda! Não costumamos atender estranhos a esta hora da noite... O quê?! Mizumi! Você, de volta? - Exclama um homem na casa dos cinqüenta anos, empunhando uma lanterna japonesa. .
- Sakuma-Sama!... Os homens de Yamazaki haviam me apanhado e iriam... iriam... - Começa a se emocionar novamente a moça.
- Você não deveria ter voltado! Quando Yamazaki souber que você fugiu, eles... - Era evidente que o velho dono da hospedaria não tinha qualquer consideração pela sua jovem empregada.
- Ei! Estamos falando com você, estalageiro. Existem vagas aí ou?... - Interfere Sagame.
- Heh! Não atendemos qualquer um a esta hora da noite. Esta casa é de respeito e... - Tenta discursar o ranzinza proprietário.
- Antes que fale alguma besteira, eu sou Sagame, o Kitsune. Venho da parte de Lorde Kazuo Shingen, e ele ordena que hospede este guerreiro e o seu filho durante o tempo que for necessário... Alguma objeção? - Identifica-se o "amigo" de Ogami para o relutante dono da hospedaria. A simples menção do nome de Shingen é o suficiente para fazê-lo mudar de idéia e o Lobo Solitário observa com um leve sorriso.
- Lorde Shingen?.. Bem, isto muda de figura... Podem entrar... Mizumi, como as outras empregadas estão dormindo, vá a cozinha e providencie um chá para estes cavalheiros! - Fala rudemente o estalageiro Sakuma, como se nada tivesse acontecido com a sua funcionária. Ela prontamente obedece, sem se questionar.
- Espere! Este homem está ferido... Ele precisa de curativos! - Exclama Mizumi, reparando na mancha vermelha que sobressaia no flanco do gii do seu salvador.
- Sério? perdoe-me... Vou ver o que posso fazer...
Reprimindo sua má-vontade, Sakuma traz um estojo de primeiros socorros e ordena à Mizumi que faça os curativos no ferimento de Itto. Por sorte, o corte não foi muito profundo e o sangramento foi controlado facilmente.
Após o ferimento ter sido devidamente tratado e fechado, a pobre jovem vai à cozinha do estabelecimento preparar alguma coisa para beber, sem se queixar. Enquanto isto, Sagame, Itto, Daigoro e o acomodado Sakuma sentam-se na mesinha baixa da sala de estar.
- Mil perdões, Sagame-sama, e Samurai-sama. É que não costumamos ficar tarde da noite para que este estabelecimento não seja maculado com a má fama que os outros tem e... - Sakuma tenta medir suas palavras embora tivesse vontade de maldizer a vinda inesperada deste ronin, e o que era pior, trazendo uma moça que já tinha sido vendida para os Yakuza como troca de um pagamento de dívidas antigas.
- Feh! Pode dispensar as desculpas de sempre, Sakuma-san. Sabemos que à noite todos os gatos são pardos... Eu tenho ordem do meu Mestre para arranjar um lugar para que este samurai e seu filho possam descansar por uma semana no máximo... Depois o meu senhor irá reembolsar todas as despesas... - Completa Sagame, passando algumas moedas de ouro em adiantamento.
-
Os olhos de Sakuma brilham com a ganância típica dos capitalistas.
- Verdade? Feito! Todos os convidados de Lorde Shingen podem se sentir em casa na minha humilde hospedaria! Mas... Temos um pequeno problema... - Pondera Sakuma com visível ar de preocupação
- Que tipo de problema, Sakuma-san? - Pergunta o Kitsune.
- Fui... obrigado a ceder a pequena Mizumi para o bando de Yamazaki... Por causa de dívidas passadas. Aqueles malditos vagabundos aumentaram nos últimos tempos a taxa de proteção que cobram de mim e de outros comerciantes honestos do bairro! Em princípio o acordo não era tão ruim, pois ela iria..trabalhar numa das casas de jogos do bando.. E se tivesse sorte, poderia até virar a amante do chefão... - Diz Sakuma mostrando a faceta amoral de sua personalidade, sem se preocupar com os sentimentos da garota.
- Mas não foi isto que ocorreu...Nós encontramos a garota num beco, bem longe da casa de jogos "Kuronekko" de propriedade da gangue... - Comenta Sagame, distorcendo um pouco os fatos ocorridos.
- Só que a idiota deve ter ficado com medo e fugido de lá. Se os capangas do grupo cruzarem o seu caminho, Samurai-sama, eu digo que a sua pele... - Tenta argumentar o ganancioso estalageiro..
- Eles já cruzaram... - Itto responde fitando bem nos olhos de Sakuma.
- O, O quê? E os homens de Yamazaki? - Sakuma fica incrédulo.
- Os três? Já não pertencem a este mundo... - Completa Sagame com visível sarcasmo.
- De qualquer maneira, isto é ainda uma enrascada. Ao amanhecer, provavelmente o bando todo ficará sabendo e então... - Tenta-se justificar Sakuma, só que temendo mais por sua segurança pessoal do que a dos outros.
- Por que se preocupa em demasia com estes cães, Sakuma-san? Está mais preocupado com a sua empregada ou com a possível represália que sofreria nas mãos destes facínoras? - Pergunta Itto com a rudeza que lhe é habitual, enojado pela sordidez do estalageiro.
- O quê? Ninguém fala desta... - Sakuma tenta protestar, fitando Itto com os olhos cheios de raiva.
- Não precisa se preocupar, Sakuma-sama... Se for necessário, pedirei ao Lorde Shingen que tome as.. - Tenta conciliar Sagame, atentando par ao fato de que Shingen era conhecido do dono da estalagem.
- Não será necessário. - Diz secamente Ogami.
- Como não? - Pergunta com o olhar desafiador e incrédulo, o idoso Sakuma.
- Apenas diga-me onde fica o covil dos Yakuza e os compensarei pelo infortúnio de hoje à noite... Amanhã.
- Bem... Eles ficam numa enorme casa com um gato preto pintado numa placa, a nove quarteirões à direita daqui. Não tem como errar... Mas, se eu fosse o senhor, sairia desta cidade enquanto fosse tempo... - Fala Sakuma sem rodeios.
- A gangue de Yamazaki tem vários capangas, entre eles, ex-soldados do... - Comenta o "raposa".
- Como disse, não precisam ter nada a temer. - Conclui Itto.
- Bem... Assim espero. - Retruca Sakuma dando de ombros.
- Tudo bem, da minha parte está feito. Amanhã voltarei ao final da tarde conforme o combinado. Sabe o que precisa ser feito, certo? - Comenta Sagame não ousando olhar diretamente para aqueles olhos glaciais.
- Por mim, tudo bem. - Responde secamente Itto.
- Até mais então. E trate de se manter vivo, hein?
Sagame sai do recinto e volta para a sua carroça, torcendo para que nunca mais encontrasse aquele samurai de olhos frios e implacáveis como aço.
Neste momento, Mizumi volta trazendo chá verde quente e três bolinhos de arroz com alguns pratinhos de picles à moda japonesa e peixe salgado.
- Perdão, Samurai-sama, mas qual o seu nome completo e o propósito de sua vinda? - Pergunta Sakuma.
- Peço desculpas, meu senhor, mas caso este é um assunto que interessa somente a Lorde Shingen e a mim... Perdoe-me pela minha atitude arrogante, mas isto lhe pouparia de muitos dissabores... - Diz cortesmente Itto, esperando que o seu anfitrião servisse primeiro do chá para ele poder pegar a sua porção..
- Entendo... Então veio à Kyoto em busca de trabalho ou está a serviço de Shingen-dono, não? Bem, esteja certo de que se cair nas boas graças dele, terá um ótimo serviço. Ele é um dos homens mais ricos e influentes da cidade. - Comenta Sakuma, tornando evidente de que ele era conhecido do senhor feudal ou até algo a mais.
- Sabe de alguns rumores a respeito da cidade? - O esperto ronin havia reparado que este tal Sakuma sabia mais do que podia um simples estalageiro.
- Heh... Só sei que é quase certo que Yamazaki-Oyabun terá um ataque de cólera se souber o que aconteceu com os capangas. Mas, falando sério, desde que o Bakufu Edo unificou o país, a cidade tem prosperado, só que... -Comenta Sakuma sarcasticamente se referindo ao Xogunato, após sorver de um gole a porção de chá quente.
- Continue.
- As pessoas sempre arranjam um jeito de arranjarem confusão... Às vezes alguém faz besteiras, provavelmente pelo ar abafado e quente das noites do verão... E de vez em quando, um ou outro cadáver aparece do nada... E a ralé supersticiosa começa a falar que demônios estão andando entre nós... - Em seguida, Sakuma se serve de um bolinho de arroz, comendo metade dele com uma mordida.
- Demônios? - Uma das sobrancelhas grossas de Itto levanta-se ligeiramente, em sinal de interesse.
- Pelo visto, é claro que você não é daqui... Perdoe-me pela minha grosseria... Nunca ouviu falar da fama de Kyoto? - Diz Sakuma enquanto com um par de palitinhos começava a comer os bolinhos de arroz, junto com um pouco de peixe salgado.
- Diga. - É claro que Itto sabia, mas finge-se de desentendido.
- Falam que esta linda cidade é assombrada por youkais e demônios desde tempos remotos... Relatos de fantasmas da época do Sengoku Jidai, vultos misteriosos, estranhos fenômenos e casas mal assombradas são muito comuns na região. Quando alguém morre de forma incomum ou misteriosa, os idiotas falam que eles foram mortos por demônios ou espíritos malignos. E o mesmo acontece quando alguém desaparece e nunca mais é visto. - Diz Sakuma, embora pelos seus trejeitos mostrasse que não acreditava em nada daquilo do que falava.
- E desde quando estes fatos se intensificaram?
- Olha, faz alguns meses atrás... Começaram a acontecer mortes estranhas aqui e ali. Passou se um tempo sem nada de extraordinário, mas agora estas mortes voltaram com força total... Um homem foi encontrado sem uma só gota de sangue no corpo na zona rural. Uma jovem esposa foi linchada numa vila depois de ter dado a luz a fetos semelhantes a animais monstruosos... E de tempos em tempos...
- Continue...
- Há quem diga que youkais têm aparecido em cemitérios, templos abandonados e casebres, para atormentar os vivos e matar os incautos. Mas creio que estas baboseiras não irão te interessar...
- E não mesmo...
Sakuma e Itto terminam em silêncio a rápida refeição. Logo em seguida, o anfitrião ordena à Mizumi para que leve Itto e Daigoro a um dos quartos vazios.
Lá na entrada, a jovem serviçal providencia uma tina com água quente e com os seus dedos ágeis, começa a lavar os pés de seus anfitriões. Terminado o pequeno ritual de limpeza, os dois hóspedes podem entrar no amplo quarto, forrado com um tatame delicado.
Uma esteira de dormir é providenciada para Daigoro e outra, maior para Itto. Em seguida, a moça traz os edredons e habilmente os coloca sobre as esteiras. Ela fica impressionada com a maturidade do pequeno garoto que faz uma ligeira prece antes de se deitar.
Itto sente um pouco as dores do cansaço da viagem e das lutas que tivera naquele dia. Sem desconfiar disto, a jovem Mizumi retira delicadamente o gii do samurai e começa a fazer uma lenta, mas vigorosa massagem nos ombros e costas do guerreiro.
Embora o toque da moça fosse um pouco fraco para os padrões de Itto, ele nada reclama, fechando os olhos.
- Eu... lhe devo a minha vida, samurai-sama. Mas... temo por sua vida... Os bandidos... - Diz a moça, emocionada, mas temendo ser repreendida por tomar a iniciativa ao falar.
- Não se preocupe. Aquele que trilha os Seis Caminhos tem que estar preparado tanto para viver como para morrer.... - Responde Itto de acordo com a sua filosofia de caminhar rumo ao Meifumado.
- Por que arriscou a sua vida para proteger a esta serva? - Pergunta Intrigada Mizumi, enquanto o seu toque começa a se tornar mais suave e envolvente.
- Um guerreiro deve sempre proteger os inocentes.
- Posso saber ao menos o seu nome, para lembrá-lo em minhas preces?
- O meu nome e o meu propósito não têm o menor significado... Mas quem você é e de onde você vem?
- Meu nome é Mizumi... de Aoyama-mura... Até a algum tempo atrás, vivia com minha pobre família... Meus pais eram muito pobres e para que a gente não passasse fome, vim para a cidade procurar por emprego... Até entrar para a Hospedaria Aramaki... -Diz a jovem, reprimindo as suas lágrimas, enquanto massageia ternamente os ombros de Itto.
- Suponho que não tenha sido fácil...
- Apesar de tudo, gosto deste lugar... Só que há uma semana atrás vieram uns homens estranhos conversar com o meu patrão... - Continua Mizumi, enxugando discretamente uma lágrima.
- Continue...
- Eu percebi que eles... não tinham boas intenções.. Há três dias atrás, o meu mestre disse que estava dispensada e que iria ter outro dono... Então aqueles homens me levaram... Para aquele lugar horrível!...Era uma casa de jogos imunda e eles forçavam garotas como eu a induzir clientes a apostar nos jogos e beber.. Além de outras coisas horríveis... Não agüentei e tentei fugir nesta noite... Se não fosse pelo senhor... - A jovem se comove e por pouco quase não se abraça ao desconhecido.
- Já passou. Não há o que se preocupar...
- Como disse... Eu lhe devo a minha vida, samurai-sama... Por favor... - O tom de voz da linda moça se tornava cada vez mais íntimo e o seu toque outrora vigoroso estava quase se tornando uma carícia insinuante.
- Sim?
- Permita-me aquecê-lo esta noite... Eu... farei tudo o que o senhor desejar... tudo mesmo... - Subitamente ela para de massagear, e começa a envolver o pescoço e os ombros de Itto com seus dedos finos e ágeis.
- Não. Não posso aceitar. - Diz secamente Itto, repelindo de forma sutil, porém firme, à suplica da moça.
- O.. Senhor é casado? - Pergunta Mizumi, receando alguma coisa.
- Não. - Responde o ex-Kaishakunin, alternando severidade e piedade em seu olhar para a pequena adolescente, arrancada brutalmente de sua inocência pela mesquinharia dos homens.
- Mas... Eu não sei como posso te recompensar, samurai-sama.... Se não fosse.o senhor, eu...
- Você gostaria de voltar para sua família? Onde eles moram? - Diz Itto olhando firmemente para Mizumi e afastando quaisquer tentações que pudesse entrar em seu caminho rumo ao Meifumado.
- Eles... moram numa pequena comunidade... A Nordeste daqui... Mas... se fosse possível... Como disse, vim para cá porque os meus pais são idosos e pobres, e mesmo que o senhor quisesse, o meu mestre Sakuma...
- Não diga mais nada. Amanhã verei o que é necessário para você voltar sã e salva para casa. - Diz Itto com os seus olhos penetrantes de lobo para a pequena adolescente.
- Mas... - O coração da jovem bate depressa, entre a apreensão e a esperança. Nunca alguém havia demonstrado respeito e solidariedade com ela. Quanto mais um samurai.
- Cuidarei destes assuntos. Não se preocupe. Agora, com licença, preciso me repousar.
A pequena Mizumi, meio que desconcertada pela atitude rigorosa do seu anônimo salvador, se afasta carregando uma típica lanterna japonesa, deixando Itto sozinho na escuridão com seus pensamentos, enquanto Daigoro dormia placidamente na esteira de dormir.
Itto Ogami começa a meditar silenciosamente durante um longo tempo, esvaziando a sua mente das atribulações do dia e purificando a sua mente... Após vários minutos, ele finalmente abre os olhos e murmura uma frase, antes de se aprontar para dormir...
- Finalmente, a estrada negra do Meifumado se chocará com a essência do Som Divino....
NOTAS DO CAPÍTULO:
Sengoku-Jidai: Conhecido como "Período das Guerras", durou dos meados do Século XIV até o Século XVI, sendo caracterizado por numerosos conflitos entre senhores feudais que ambicionavam tomar o controle efetivo do país;
Daimyo: Senhor feudal japonês;
Yakuza: Espécie de mafioso, membro do submundo do crime japonês. Os Yakuzas já existiam desde a época feudal e dedicavam-se a atividades como extorsão de comerciantes, favorecimento à prostituição, e jogatina. Seus integrantes eram comandados por um "oyabun" (chefe) e reuniam-se em grupos chamados "gumis".
Bakufu Edo: Outro nome para o regime do Xogunato Tokugawa. Edo era o antigo nome de Tokyo, que passou a ser a sede do Xogunato após o final do século XVI.
Kyoto: Devido ao fato de se localizar um terreno cercado por montanhas de todos os lados, os verões em Kyoto costumavam ser quentes e abafados;
Esteira de Dormir: Na época da história não existiam camas no Japão, mas sim esteiras de dormir recobertas por "futons" (edredons). Os aposentos de dormir eram separados por biombos ou por portas corrediças e os hóspedes deviam retirar os calçados antes de entrar no interior das residências;
A Estrada Rumo ao Meifumado: Embora pareça sinistra, a filosofia seguida por Itto Ogami após ter se transformado num assassino baseava se nos seguintes pontos: Nunca depender dos outros para nada, nunca recuar ante as dificuldades, não tentar impor o seu caminho, mas aceitar as coisas como elas são, entre outras as coisas;
Mura: Pronuncia-se "Murah". Povoado ou aldeia menor do que "Machi" (pequena cidade).
Mizumi: Por ser filha de camponeses, Mizumi não tinha um sobrenome e para se identificar, cita a localidade no qual ela nasceu, no caso, Aoyama.
Escrito por: Calerom
Última Revisão: 04/12/2003;
myamauchi1969@yahoo.com.br
O LOBO REPOUSA
Das cercanias do Castelo Shoki até a cidade de Kyoto propriamente dita, a viagem iria durar pouco mais de uma hora .
Daigoro, o pequeno filho de Itto, olhava atentamente para a gradativa mudança da paisagem rural para o ambiente urbano enquanto o seu pai continuava impassível ao lado do cocheiro, que estava ao mesmo tempo impressionado e assustado.
O condutor estava Impressionado por estar ao lado do ex-Kaishakunin de Edo, um dos homens mais poderosos (e perigosos) do Japão.
E assustado, pois tinha notado a fisionomia séria e impassível de Itto, a sua enorme força física demonstrada ao colocar o pesado carrinho de seu filho (feito de madeira, bambu e ferro) no interior da carroça e a quase total ausência de emoção no seu olhar...
Tudo isto fazia com que o servo de Lorde Shingen sentisse como se estivesse diante da Morte em pessoa.
Sim, se a Morte fosse ter uma aparência humana, com certeza teria aqueles olhos frios e implacáveis.
- Então o senhor é o famoso Itto Ogami... Já veio a Kyoto antes? - Tenta puxar conversa o empregado de Shingen, cansado da monotonia da viagem.
- Como Kaishakunin umas duas vezes. Mas como Lobo Solitário, esta é a primeira vez. - O tom de voz de Itto sai quase que glacial. Uma das coisas que ele não tolerava era conversa inútil.
- Este é o seu filho? Qual o nome dele? - O cocheiro tenta parecer amável aos olhos de Itto e faz um cafuné na cabeça de garoto, mas a criança de quase quatro anos de idade demonstra que não gostou nem um pouco pelo seu olhar.
- Sim. Ele se chama Daigoro - Responde Itto mecanicamente.
- Bem, o meu nome é Sagame, mas todos aqui me chamam de Sagame "Kitsune", o raposa. Conheço Kyoto inteira na palma da minha mão! Quer saber onde fica o templo do monge Jinji? Tive ordens para... - Era evidente que este tal de Sagame sabia demais, falava demais e era mais do que um mero empregado. Este fato isto chamou a atenção de Itto.
- Não será necessário. Alguém que deve seguir a Trilha para o Meifumado tem que depender apenas de si mesmo para alcançar o seu objetivo... - Itto corta a conversa de vez no seu estilo peculiar.
- Pretende ficar quanto tempo aqui na cidade? - Sagame tenta puxar novamente conversa, um pouco contrariado.
- Apenas o suficiente - Responde Itto secamente enquanto Daigoro admira o cantar dos grilos e as luzes esverdeadas dos vagalumes que voavam ao redor da carroça naquela noite quente de verão.
- Tem interesse por alguma hospedaria em particular? Eu conheço um bairro com alguns lugares especiais, meu amigo. Lá o senhor poderá comer bem, beber bem, jogar e... Passar a noite com pessoas bem interessantes... - Por "lugares especiais", Sagame estava se referindo às estalagens de luxo, usadas por samurais em viagem e altos dignatários do Xogunato, aonde funcionavam serviços como jogos de azar e a companhia de moças arregimentadas para práticas nada familiares.
- Não será necessário. Apenas me indique um lugar honesto e honrado aonde eu e meu filho possa dormir com a certeza de que a minha cabeça estará presa ao meu corpo no dia seguinte... - Itto encerra de vez a argumentação de Sagame "Kitsune" com um argumento conclusivo.
- Como queira, Ogami-dono...
Temendo irritar o impassível samurai ainda mais, o indiscreto Sagame reprime um xingamento por estar tentando ser simpático com um guerreiro que mais parecia um demônio encarnado e acelera a sua carroça em direção à cidade.
Em instantes, os três estão na antiga capital Kyoto.
A cidade funcionou como capital imperial do Japão desde o início do período Heian (798 DC) até a decisão de Tokugawa mudar a sede governamental para Edo em época recente
A antiga capital imperial do País do Sol Nascente havia sido construída de acordo com princípios chineses, tomando-se o suntuoso palácio como centro de referência.
Contudo muito do esquema original havia sido modificado, desde que o início das guerras civis do Sengoku Jidai arrasou praticamente a cidade, quando daimyos pertencentes a duas facções rivais transformaram Kyoto em campo de batalha há dois séculos e meio passados.
Contudo, a Kyoto mantinha a sua glória, traduzida nas numerosas casas de madeira, nos imponentes palácios e moradias de samurais, bem como os numerosos templos budistas, construídos antes e durante a época pós-Tokugawa.
Cavalgando com habilidade incomum, o espertalhão Sagame caminha por um sem-fim de ruas e vielas da enorme cidade de meio milhão de almas.
Naquele horário, poucas pessoas honestas estavam nas ruas.
Os poucos estabelecimentos ainda disponíveis disputavam os raros transeuntes com anfitriões de ambos os sexos apregoando as vantagens de cada local e adulando clientes potenciais da melhor forma possível.
- Não deseja reconsiderar sua decisão, Itto-sama? A esta hora da noite, poucos lugares compatíveis para o seu nível estão abertos e... - Comenta Sagame ao notar que a solidão das ruas.
De repente um grito desesperado de mulher ecoa a dois quarteirões de distância. Itto fica em estado de total alerta.
- Alguém está em perigo. - Diz o samurai se preparando para sair da carroça.
- Deve ser alguma prostituta bêbada que... - Sagame tenta se fazer de indiferente, mas - Ei, aonde o senhor vai?
Itto salta da carroça sem esperar pelo seu falante condutor, com a sua espada em punho, indo em direção aonde ouvira o grito.
Daigoro - com os olhos já dominados pelo estado "shishogan" - vai atrás dele, como se não pudesse resistir ao apelo da batalha iminente.
Só resta ao indiscreto cocheiro acompanhar a dupla, carregando a sua arma, uma kusari-gama com uma corrente longa e fina.
Ele não podia sequer pensar em sonhar caso acontecesse algo de errado com o contratado de seu Lorde Shingen naquela noite. Seria muito melhor ele mudar de nome e de aparência e desaparecer para sempre da face da Terra.
Andando rapidamente como um lobo, Ogami finalmente entra num beco sem saída com a sua Dotanuki em punho.
Num canto escuro, estava uma jovem que aparentava ter pouco menos de dezoito anos.
Ela estava com o seu lindo semblante completamente aterrorizado e naquele momento estava ajoelhada no chão imundo e lamacento com três homens ao seu redor, como chacais famintos.
Um deles a imobilizava com a ajuda de um punhal encostado na sua garganta, o outro estava tentando arrancar as suas vestes com as mãos cobiçosas e um terceiro estava com uma katana, vigiando a rua.
Pelo seu aspecto, deviam ser membros de uma gangue e era óbvia a intenção do trio.
Eles estavam bem armados para serem marginais comuns, apesar da proibição de apenas os samurais e oficiais do xogunato poderem empunhar espadas, o que tornava a luta mais difícil.
Mas não para Itto Ogami, o Lobo Solitário.
- Soltem a garota! Agora!
- O que pensa que é, seu ronin vagabundo? Ela é nossa! E vamos fazer o que bem entendermos com ela! - Diz o cara da Katana sorrindo desafiadoramente.
- É isto aí! - Grita o rapaz que estava ameaçando a moça com o punhal.
- Se é assim... - Itto assume uma posição de ataque da escola Suio, permanecendo a postos contra qualquer movimento inimigo.
O homem que vigiava o beco decide atacar Ogami com um golpe surpresa, enquanto o seu outro comparsa saca uma afiada espada Wakizashi escondida nas dobras de suas roupas. E o terceiro capanga apenas observa, segurando firmemente a moça.
Contudo, aqueles chacais humanos não eram páreo para o lobo devorador que fez a sua fama com o sangue derramado de suas vítimas pelas 60 províncias do Japão.
O homem da katana é o primeiro a atacar, mas era óbvio que se tratava de um amador, já que fizera o seu movimento de forma afoita - sem respeitar o espaço de ataque entre ele e o seu inimigo.
Com rara agilidade, Itto saca a sua Dotanuki ao mesmo tempo em que se esquiva do golpe inimigo.
Um risco preciso corta o ar pútrido do beco, seguido de um grito lancinante.
O seu poderoso golpe atingira o inimigo na altura do ombro direito, talhando carne e ossos e forçando-o largar a sua espada Katana, que cai no chão.
O segundo capanga ataca com a wakizashi, mas Itto bloqueia o golpe com o mesmo movimento que usara para retirar a sua espada de combate do ombro ferido do primeiro adversário, fazendo-o gritar ainda mais.
A wakizashi se choca com a poderosa lâmina da Dotanuki três vezes antes de ser destroçada por um bloqueio eficaz.
Com o choque, os estilhaços da lâmina wakizashi acabam ferindo o rosto e o peito do segundo yakuza, que grita de dor ao ter o supercílio cortado por um fragmento de ferro. Só que logo ele não sentiria mais nada. A última visão que ele vê na vida é a da espada de Itto talhando ao meio a sua face.
A garota somente sai de seu transe de horror quando dá um grito ao ver o seu desconhecido salvador degolar a cabeça do primeiro atacante, que tentara sacar sua wakizashi numa tentativa desesperada de adiar o inevitável.
O pequeno Daigoro e o embasbacado Sagame estão na extremidade do beco, assistindo à insólita batalha, como testemunhas imóveis do massacre.
- Heh... Você p-pensa que me mete medo, seu ro-ronin vagabundo? Não dê m-mais um passo ou corto o pescoço desta ra-rameira... O-Oouviu? - Sorri de forma assustada o bandido mais jovem, se agarrando à sua refém como se ela representasse sua última esperança de escapar vivo daquele beco de dor e de morte.
- Faça isto com ela e te matarei. Lentamente. - Responde o Ronin,. Impassível como a própria morte.
- Não! Você não ousaria, seu maldi...!
De repente, o impasse se resolve da maneira mais inesperada possível. Completamente atordoado pela presença do Ki esmagador de seu adversário implacável, o yakuza remanescente atira em desespero a sua adaga que usara para imobilizar a sua jovem vítima em direção a Itto e simultaneamente empurra a garota, que cai de lado no chão úmido e mal-cheiroso do beco.
Usando a Dotanuki como bloqueio, Itto intercepta a adaga em pleno ar, seguido de um ruído seco e metálico.
Aproveitando a chance, o último bandido saca uma espada curta de fabricação chinesa e soltando um grito selvagem, ataca o aparentemente desprevenido ronin.
Sagame e a jovem desconhecida soltam um grito de espanto quando ambos vêem os dois inimigos se cruzando no embate final.
Apenas Daigoro, em seu estado Shishogan, assiste impassível sem demonstrar a menor sombra de medo ou receio.
Sentindo um pouco de dor, Itto pousa a mão esquerda no flanco esquerdo e percebe que foi ferido.na altura das costelas, aonde se nota um rasgo em seu gii.
O seu oponente sorri como se estivesse vitorioso e se prepara para dar outro golpe no ronin. Contudo, para o seu horror, ao girar o corpo, um jato escarlate explode em cores vivas e brutais. O golpe de Itto havia cortado uma artéria principal e várias veias. O jovem ladrão cai - tendo pago um altíssimo preço para satisfazer a sua sede de luxúria nesta noite.
- Papai! - Grita Daigoro.
- Ogami-Sama! - Exclama Sagame.
Daigoro sai correndo para abraçar ao pai que saiu vitorioso da breve mas violenta luta, enquanto que um frustrado Sagame desconta a sua raiva degolando o último malfeitor, que já estava praticamente morto ao cair no chão.
Estoicamente e sem demonstrar o mínimo esforço, Itto abraça o seu filho e em seguida, se dirige à jovem, que estava caída no chão seminua e quase em estado de choque.
- Por favor... Não me mate, samurai-sama, eu... - Diz ela, chorando copiosamente e tremendo, enquanto tentava arrumar suas vestes.
- Não tenha nada a temer. Quem eram estes? - Pergunta Itto sem reparar no estado de seminudez em que se encontrava a desconhecida.
- Oh... Eles... Eles... Eram capangas de Yamazaki-gumi... - Comenta a linda jovem, entre soluços.
- Trata-se de um bando de yakuzas locais que chantageam os comerciantes! - Exclama Sagame, enquanto repara, excitado, o quanto que a refém dos yakuzas era jovem e bonita, apesar de estar suja e desarrumada.
- O meu patrão tinha uma dívida com este grupo e eles queriam me levar... Para um lugar horrível... Eu tentei fugir, mas... - Completa a moça, enxugando suas lágrimas.
- Não precisa chorar mais. Você está a salvo. Onde você mora? - Pergunta Itto calmamente.
- Na Hospedaria Aramaki... Fica a seis quarteirões daqui...
- Não perca tempo com esta garota, Itto Sama. Ta na cara que ela é uma vagabunda e se quer saber, você acabou de arranjar encrenca com uma das piores quadrilhas de yakuzas da cidade! Eles não vão descansar enquanto... - Novamente Sagame tenta sair pela tangente, escolhendo a alternativa mais cômoda para ele, mas...
- Por favor. Leve-nos à sua hospedaria. - Diz Itto de forma firme e concisa, para a moça, sem se importar com o que o verborrágico serviçal dizia.
- Está bem... - Diz a moça se levantando de forma educada.
- Itto-sama! Eu... Protesto!
Só que Itto fita o falastrão empregado de Lorde Shingen com um olhar capaz de estremecer o mais arrogante dos homens. Engolindo seco, Sagame acaba concordando.
Minutos mais tarde, o grupo acaba parando em frente à Hospedaria Aramaki, um sobrado de dois andares feito de madeira e de bambu. A porta do local encontrava-se fechada e apenas uma das salas do seu interior encontrava-se iluminada.
- Abram a porta! Temos hóspedes! - Grita Sagame, furioso por ter entrado numa enrascada que ele não previa.
Ninguém responde. Após alguns minutos, Sagame bate na porta com mais força.
- Vamos, abram a porta!
Ouve-se um resmungo seguido de um insulto dito em voz baixa no dialeto local. Minutos mais tarde, a porta se abre.
- Pela misericórdia de Buda! Não costumamos atender estranhos a esta hora da noite... O quê?! Mizumi! Você, de volta? - Exclama um homem na casa dos cinqüenta anos, empunhando uma lanterna japonesa. .
- Sakuma-Sama!... Os homens de Yamazaki haviam me apanhado e iriam... iriam... - Começa a se emocionar novamente a moça.
- Você não deveria ter voltado! Quando Yamazaki souber que você fugiu, eles... - Era evidente que o velho dono da hospedaria não tinha qualquer consideração pela sua jovem empregada.
- Ei! Estamos falando com você, estalageiro. Existem vagas aí ou?... - Interfere Sagame.
- Heh! Não atendemos qualquer um a esta hora da noite. Esta casa é de respeito e... - Tenta discursar o ranzinza proprietário.
- Antes que fale alguma besteira, eu sou Sagame, o Kitsune. Venho da parte de Lorde Kazuo Shingen, e ele ordena que hospede este guerreiro e o seu filho durante o tempo que for necessário... Alguma objeção? - Identifica-se o "amigo" de Ogami para o relutante dono da hospedaria. A simples menção do nome de Shingen é o suficiente para fazê-lo mudar de idéia e o Lobo Solitário observa com um leve sorriso.
- Lorde Shingen?.. Bem, isto muda de figura... Podem entrar... Mizumi, como as outras empregadas estão dormindo, vá a cozinha e providencie um chá para estes cavalheiros! - Fala rudemente o estalageiro Sakuma, como se nada tivesse acontecido com a sua funcionária. Ela prontamente obedece, sem se questionar.
- Espere! Este homem está ferido... Ele precisa de curativos! - Exclama Mizumi, reparando na mancha vermelha que sobressaia no flanco do gii do seu salvador.
- Sério? perdoe-me... Vou ver o que posso fazer...
Reprimindo sua má-vontade, Sakuma traz um estojo de primeiros socorros e ordena à Mizumi que faça os curativos no ferimento de Itto. Por sorte, o corte não foi muito profundo e o sangramento foi controlado facilmente.
Após o ferimento ter sido devidamente tratado e fechado, a pobre jovem vai à cozinha do estabelecimento preparar alguma coisa para beber, sem se queixar. Enquanto isto, Sagame, Itto, Daigoro e o acomodado Sakuma sentam-se na mesinha baixa da sala de estar.
- Mil perdões, Sagame-sama, e Samurai-sama. É que não costumamos ficar tarde da noite para que este estabelecimento não seja maculado com a má fama que os outros tem e... - Sakuma tenta medir suas palavras embora tivesse vontade de maldizer a vinda inesperada deste ronin, e o que era pior, trazendo uma moça que já tinha sido vendida para os Yakuza como troca de um pagamento de dívidas antigas.
- Feh! Pode dispensar as desculpas de sempre, Sakuma-san. Sabemos que à noite todos os gatos são pardos... Eu tenho ordem do meu Mestre para arranjar um lugar para que este samurai e seu filho possam descansar por uma semana no máximo... Depois o meu senhor irá reembolsar todas as despesas... - Completa Sagame, passando algumas moedas de ouro em adiantamento.
-
Os olhos de Sakuma brilham com a ganância típica dos capitalistas.
- Verdade? Feito! Todos os convidados de Lorde Shingen podem se sentir em casa na minha humilde hospedaria! Mas... Temos um pequeno problema... - Pondera Sakuma com visível ar de preocupação
- Que tipo de problema, Sakuma-san? - Pergunta o Kitsune.
- Fui... obrigado a ceder a pequena Mizumi para o bando de Yamazaki... Por causa de dívidas passadas. Aqueles malditos vagabundos aumentaram nos últimos tempos a taxa de proteção que cobram de mim e de outros comerciantes honestos do bairro! Em princípio o acordo não era tão ruim, pois ela iria..trabalhar numa das casas de jogos do bando.. E se tivesse sorte, poderia até virar a amante do chefão... - Diz Sakuma mostrando a faceta amoral de sua personalidade, sem se preocupar com os sentimentos da garota.
- Mas não foi isto que ocorreu...Nós encontramos a garota num beco, bem longe da casa de jogos "Kuronekko" de propriedade da gangue... - Comenta Sagame, distorcendo um pouco os fatos ocorridos.
- Só que a idiota deve ter ficado com medo e fugido de lá. Se os capangas do grupo cruzarem o seu caminho, Samurai-sama, eu digo que a sua pele... - Tenta argumentar o ganancioso estalageiro..
- Eles já cruzaram... - Itto responde fitando bem nos olhos de Sakuma.
- O, O quê? E os homens de Yamazaki? - Sakuma fica incrédulo.
- Os três? Já não pertencem a este mundo... - Completa Sagame com visível sarcasmo.
- De qualquer maneira, isto é ainda uma enrascada. Ao amanhecer, provavelmente o bando todo ficará sabendo e então... - Tenta-se justificar Sakuma, só que temendo mais por sua segurança pessoal do que a dos outros.
- Por que se preocupa em demasia com estes cães, Sakuma-san? Está mais preocupado com a sua empregada ou com a possível represália que sofreria nas mãos destes facínoras? - Pergunta Itto com a rudeza que lhe é habitual, enojado pela sordidez do estalageiro.
- O quê? Ninguém fala desta... - Sakuma tenta protestar, fitando Itto com os olhos cheios de raiva.
- Não precisa se preocupar, Sakuma-sama... Se for necessário, pedirei ao Lorde Shingen que tome as.. - Tenta conciliar Sagame, atentando par ao fato de que Shingen era conhecido do dono da estalagem.
- Não será necessário. - Diz secamente Ogami.
- Como não? - Pergunta com o olhar desafiador e incrédulo, o idoso Sakuma.
- Apenas diga-me onde fica o covil dos Yakuza e os compensarei pelo infortúnio de hoje à noite... Amanhã.
- Bem... Eles ficam numa enorme casa com um gato preto pintado numa placa, a nove quarteirões à direita daqui. Não tem como errar... Mas, se eu fosse o senhor, sairia desta cidade enquanto fosse tempo... - Fala Sakuma sem rodeios.
- A gangue de Yamazaki tem vários capangas, entre eles, ex-soldados do... - Comenta o "raposa".
- Como disse, não precisam ter nada a temer. - Conclui Itto.
- Bem... Assim espero. - Retruca Sakuma dando de ombros.
- Tudo bem, da minha parte está feito. Amanhã voltarei ao final da tarde conforme o combinado. Sabe o que precisa ser feito, certo? - Comenta Sagame não ousando olhar diretamente para aqueles olhos glaciais.
- Por mim, tudo bem. - Responde secamente Itto.
- Até mais então. E trate de se manter vivo, hein?
Sagame sai do recinto e volta para a sua carroça, torcendo para que nunca mais encontrasse aquele samurai de olhos frios e implacáveis como aço.
Neste momento, Mizumi volta trazendo chá verde quente e três bolinhos de arroz com alguns pratinhos de picles à moda japonesa e peixe salgado.
- Perdão, Samurai-sama, mas qual o seu nome completo e o propósito de sua vinda? - Pergunta Sakuma.
- Peço desculpas, meu senhor, mas caso este é um assunto que interessa somente a Lorde Shingen e a mim... Perdoe-me pela minha atitude arrogante, mas isto lhe pouparia de muitos dissabores... - Diz cortesmente Itto, esperando que o seu anfitrião servisse primeiro do chá para ele poder pegar a sua porção..
- Entendo... Então veio à Kyoto em busca de trabalho ou está a serviço de Shingen-dono, não? Bem, esteja certo de que se cair nas boas graças dele, terá um ótimo serviço. Ele é um dos homens mais ricos e influentes da cidade. - Comenta Sakuma, tornando evidente de que ele era conhecido do senhor feudal ou até algo a mais.
- Sabe de alguns rumores a respeito da cidade? - O esperto ronin havia reparado que este tal Sakuma sabia mais do que podia um simples estalageiro.
- Heh... Só sei que é quase certo que Yamazaki-Oyabun terá um ataque de cólera se souber o que aconteceu com os capangas. Mas, falando sério, desde que o Bakufu Edo unificou o país, a cidade tem prosperado, só que... -Comenta Sakuma sarcasticamente se referindo ao Xogunato, após sorver de um gole a porção de chá quente.
- Continue.
- As pessoas sempre arranjam um jeito de arranjarem confusão... Às vezes alguém faz besteiras, provavelmente pelo ar abafado e quente das noites do verão... E de vez em quando, um ou outro cadáver aparece do nada... E a ralé supersticiosa começa a falar que demônios estão andando entre nós... - Em seguida, Sakuma se serve de um bolinho de arroz, comendo metade dele com uma mordida.
- Demônios? - Uma das sobrancelhas grossas de Itto levanta-se ligeiramente, em sinal de interesse.
- Pelo visto, é claro que você não é daqui... Perdoe-me pela minha grosseria... Nunca ouviu falar da fama de Kyoto? - Diz Sakuma enquanto com um par de palitinhos começava a comer os bolinhos de arroz, junto com um pouco de peixe salgado.
- Diga. - É claro que Itto sabia, mas finge-se de desentendido.
- Falam que esta linda cidade é assombrada por youkais e demônios desde tempos remotos... Relatos de fantasmas da época do Sengoku Jidai, vultos misteriosos, estranhos fenômenos e casas mal assombradas são muito comuns na região. Quando alguém morre de forma incomum ou misteriosa, os idiotas falam que eles foram mortos por demônios ou espíritos malignos. E o mesmo acontece quando alguém desaparece e nunca mais é visto. - Diz Sakuma, embora pelos seus trejeitos mostrasse que não acreditava em nada daquilo do que falava.
- E desde quando estes fatos se intensificaram?
- Olha, faz alguns meses atrás... Começaram a acontecer mortes estranhas aqui e ali. Passou se um tempo sem nada de extraordinário, mas agora estas mortes voltaram com força total... Um homem foi encontrado sem uma só gota de sangue no corpo na zona rural. Uma jovem esposa foi linchada numa vila depois de ter dado a luz a fetos semelhantes a animais monstruosos... E de tempos em tempos...
- Continue...
- Há quem diga que youkais têm aparecido em cemitérios, templos abandonados e casebres, para atormentar os vivos e matar os incautos. Mas creio que estas baboseiras não irão te interessar...
- E não mesmo...
Sakuma e Itto terminam em silêncio a rápida refeição. Logo em seguida, o anfitrião ordena à Mizumi para que leve Itto e Daigoro a um dos quartos vazios.
Lá na entrada, a jovem serviçal providencia uma tina com água quente e com os seus dedos ágeis, começa a lavar os pés de seus anfitriões. Terminado o pequeno ritual de limpeza, os dois hóspedes podem entrar no amplo quarto, forrado com um tatame delicado.
Uma esteira de dormir é providenciada para Daigoro e outra, maior para Itto. Em seguida, a moça traz os edredons e habilmente os coloca sobre as esteiras. Ela fica impressionada com a maturidade do pequeno garoto que faz uma ligeira prece antes de se deitar.
Itto sente um pouco as dores do cansaço da viagem e das lutas que tivera naquele dia. Sem desconfiar disto, a jovem Mizumi retira delicadamente o gii do samurai e começa a fazer uma lenta, mas vigorosa massagem nos ombros e costas do guerreiro.
Embora o toque da moça fosse um pouco fraco para os padrões de Itto, ele nada reclama, fechando os olhos.
- Eu... lhe devo a minha vida, samurai-sama. Mas... temo por sua vida... Os bandidos... - Diz a moça, emocionada, mas temendo ser repreendida por tomar a iniciativa ao falar.
- Não se preocupe. Aquele que trilha os Seis Caminhos tem que estar preparado tanto para viver como para morrer.... - Responde Itto de acordo com a sua filosofia de caminhar rumo ao Meifumado.
- Por que arriscou a sua vida para proteger a esta serva? - Pergunta Intrigada Mizumi, enquanto o seu toque começa a se tornar mais suave e envolvente.
- Um guerreiro deve sempre proteger os inocentes.
- Posso saber ao menos o seu nome, para lembrá-lo em minhas preces?
- O meu nome e o meu propósito não têm o menor significado... Mas quem você é e de onde você vem?
- Meu nome é Mizumi... de Aoyama-mura... Até a algum tempo atrás, vivia com minha pobre família... Meus pais eram muito pobres e para que a gente não passasse fome, vim para a cidade procurar por emprego... Até entrar para a Hospedaria Aramaki... -Diz a jovem, reprimindo as suas lágrimas, enquanto massageia ternamente os ombros de Itto.
- Suponho que não tenha sido fácil...
- Apesar de tudo, gosto deste lugar... Só que há uma semana atrás vieram uns homens estranhos conversar com o meu patrão... - Continua Mizumi, enxugando discretamente uma lágrima.
- Continue...
- Eu percebi que eles... não tinham boas intenções.. Há três dias atrás, o meu mestre disse que estava dispensada e que iria ter outro dono... Então aqueles homens me levaram... Para aquele lugar horrível!...Era uma casa de jogos imunda e eles forçavam garotas como eu a induzir clientes a apostar nos jogos e beber.. Além de outras coisas horríveis... Não agüentei e tentei fugir nesta noite... Se não fosse pelo senhor... - A jovem se comove e por pouco quase não se abraça ao desconhecido.
- Já passou. Não há o que se preocupar...
- Como disse... Eu lhe devo a minha vida, samurai-sama... Por favor... - O tom de voz da linda moça se tornava cada vez mais íntimo e o seu toque outrora vigoroso estava quase se tornando uma carícia insinuante.
- Sim?
- Permita-me aquecê-lo esta noite... Eu... farei tudo o que o senhor desejar... tudo mesmo... - Subitamente ela para de massagear, e começa a envolver o pescoço e os ombros de Itto com seus dedos finos e ágeis.
- Não. Não posso aceitar. - Diz secamente Itto, repelindo de forma sutil, porém firme, à suplica da moça.
- O.. Senhor é casado? - Pergunta Mizumi, receando alguma coisa.
- Não. - Responde o ex-Kaishakunin, alternando severidade e piedade em seu olhar para a pequena adolescente, arrancada brutalmente de sua inocência pela mesquinharia dos homens.
- Mas... Eu não sei como posso te recompensar, samurai-sama.... Se não fosse.o senhor, eu...
- Você gostaria de voltar para sua família? Onde eles moram? - Diz Itto olhando firmemente para Mizumi e afastando quaisquer tentações que pudesse entrar em seu caminho rumo ao Meifumado.
- Eles... moram numa pequena comunidade... A Nordeste daqui... Mas... se fosse possível... Como disse, vim para cá porque os meus pais são idosos e pobres, e mesmo que o senhor quisesse, o meu mestre Sakuma...
- Não diga mais nada. Amanhã verei o que é necessário para você voltar sã e salva para casa. - Diz Itto com os seus olhos penetrantes de lobo para a pequena adolescente.
- Mas... - O coração da jovem bate depressa, entre a apreensão e a esperança. Nunca alguém havia demonstrado respeito e solidariedade com ela. Quanto mais um samurai.
- Cuidarei destes assuntos. Não se preocupe. Agora, com licença, preciso me repousar.
A pequena Mizumi, meio que desconcertada pela atitude rigorosa do seu anônimo salvador, se afasta carregando uma típica lanterna japonesa, deixando Itto sozinho na escuridão com seus pensamentos, enquanto Daigoro dormia placidamente na esteira de dormir.
Itto Ogami começa a meditar silenciosamente durante um longo tempo, esvaziando a sua mente das atribulações do dia e purificando a sua mente... Após vários minutos, ele finalmente abre os olhos e murmura uma frase, antes de se aprontar para dormir...
- Finalmente, a estrada negra do Meifumado se chocará com a essência do Som Divino....
NOTAS DO CAPÍTULO:
Sengoku-Jidai: Conhecido como "Período das Guerras", durou dos meados do Século XIV até o Século XVI, sendo caracterizado por numerosos conflitos entre senhores feudais que ambicionavam tomar o controle efetivo do país;
Daimyo: Senhor feudal japonês;
Yakuza: Espécie de mafioso, membro do submundo do crime japonês. Os Yakuzas já existiam desde a época feudal e dedicavam-se a atividades como extorsão de comerciantes, favorecimento à prostituição, e jogatina. Seus integrantes eram comandados por um "oyabun" (chefe) e reuniam-se em grupos chamados "gumis".
Bakufu Edo: Outro nome para o regime do Xogunato Tokugawa. Edo era o antigo nome de Tokyo, que passou a ser a sede do Xogunato após o final do século XVI.
Kyoto: Devido ao fato de se localizar um terreno cercado por montanhas de todos os lados, os verões em Kyoto costumavam ser quentes e abafados;
Esteira de Dormir: Na época da história não existiam camas no Japão, mas sim esteiras de dormir recobertas por "futons" (edredons). Os aposentos de dormir eram separados por biombos ou por portas corrediças e os hóspedes deviam retirar os calçados antes de entrar no interior das residências;
A Estrada Rumo ao Meifumado: Embora pareça sinistra, a filosofia seguida por Itto Ogami após ter se transformado num assassino baseava se nos seguintes pontos: Nunca depender dos outros para nada, nunca recuar ante as dificuldades, não tentar impor o seu caminho, mas aceitar as coisas como elas são, entre outras as coisas;
Mura: Pronuncia-se "Murah". Povoado ou aldeia menor do que "Machi" (pequena cidade).
Mizumi: Por ser filha de camponeses, Mizumi não tinha um sobrenome e para se identificar, cita a localidade no qual ela nasceu, no caso, Aoyama.
Escrito por: Calerom
Última Revisão: 04/12/2003;
myamauchi1969@yahoo.com.br
