CAPÍTULO 03: O LOBO E O MONGE.

Já amanhecia na cidade de Kyoto e os primeiros raios de Sol iluminavam a antiga capital imperial.

A jovem empregada Mizumi levantou-se cedo para fazer a faxina dos quartos da hospedaria. Ao passar pelo aposento ocupado pelo misterioso samurai que a salvara ontem à noite e o seu filho, ela sente uma sensação de curiosidade... e atração. Tomando cuidado para não ser notada e levar uma bronca do seu irascível patrão, ela abre a porta corrediça que separava o espaçoso quarto do corredor.

Contudo, um suspiro de decepção toma conta do seu ser e ela discretamente fecha o aposento. Pai e filho já haviam acordado e partido há vários minutos atrás, deixando o local impecavelmente limpo e perfeitamente arrumado como se não tivesse sido ocupado durante a noite anterior.

Itto Ogami levava o seu pequeno filho Daigoro no carrinho de bebê, se misturando aos trabalhadores e pessoas comuns que começavam a andar pelas ruas estreitas de Kyoto.

À medida que os raios solares iluminavam os tetos feitos de palha e madeira das residências, a cidade começava a ganhar sinais de vida: damas discretas elegantemente vestidas andavam aos pares, cochichando as fofocas do dia e sorrindo entre si. Um bêbado ainda cambaleante que passou a noite anterior na rua tentava encontrar o caminho de casa. Mercadores gritavam em voz alta, apregoando as vantagens de suas mercadorias, enquanto carregadores ambulantes e trabalhadores braçais andavam para lá e para cá, transformando a cidade num formigueiro aberto.

Após andarem um par de quarteirões, o Lobo Solitário encontra um templo budista - antigo, porém bem cuidado. Um mantra recitado em chinês arcaico podia ser ouvido do lado de fora do santuário, enquanto que passarinhos cantavam despreocupadamente nas árvores que ornamentavam o jardim.

Repetindo um ritual que quase sempre fazia por onde passavam, Itto e Daigoro entram no templo e ficam vários minutos recitando em absoluto silêncio uma oração pelos entes queridos mortos. O velho monge budista que estava orando no momento fica impressionado com a concentração do samurai, ignorando o fato dele ser uma alma percorrendo a trilha sangrenta que levava ao Meifumado.

Terminadas as orações, pai e filho saem em silêncio do santuário e Itto apanha uma garrafinha de água vazia do interior do carrinho. Em seguida, ele vai a um poço próximo e, usando um balde, enche-a do precioso líquido e o coloca de volta na condução de Daigoro. Isto não era bem um costume, mas - sempre que possível - ele fazia este pequeno gesto quando precisava sair para uma missão sem hora para voltar.

O poderoso samurai coloca o carrinho numa sombra de árvore e deixa o seu único filho na escadaria do santuário. Itto sorri discretamente para o seu pequeno lobo e este lhe retribui o cumprimento. Então, sem olhar para trás, o guerreiro sai do templo budista.

Desde cedo, Daigoro foi acostumado a esperar o seu progenitor por horas e horas seguidas - indiferente ao cansaço, sono e fome, sem reclamar. Não raras vezes, ele via o seu pai sair de manhãzinha para somente retornar ao anoitecer no cumprimento de suas sangrentas missões.

Quando passavam por alguma cidade, Daigoro ainda se podia dar ao luxo de aguardá-lo nas cercanias de um santuário xintoísta ou templo budista. Em outras ocasiões, o pequeno filhote tinha que esperar o lobo retornar da caçada no precário abrigo de um cemitério abandonado, na sombra de uma árvore, debaixo de uma ponte de madeira ou sobre uma colina deserta.

Embora isto pudesse ser interpretado como um ato cruel e desumano por muitos, na realidade fazia parte do treinamento de Daigoro como futuro samurai.

Itto desejava que o seu filho fosse indiferente aos ilusórios momentos de fartura e que se acostumasse com as privações do caminho do guerreiro como fome, sede, frio, calor e a falta de um teto. Coisas, aliás, comuns e corriqueiras para a maioria dos filhos de homens comuns que tentavam sobreviver na Era Tokugawa.

Sim, Itto amava realmente o seu filho, talvez mais do que a ele próprio. Contudo - uma vez que ele estava trilhando o caminho da vingança que o levaria inevitavelmente rumo ao Negro Mundo do Inferno - era o seu dever como pai e como samurai forjar a alma de seu rebento para que ela fosse forte o bastante para agüentar esta caminhada até aonde o Destino determinasse.

Após certificar-se de que Daigoro estava em segurança, Itto segue sozinho para outro bairro de Kyoto. Não seria difícil para ele encontrar o tal do monge budista Jinji, já que o tal Templo Bossatsuken deveria ser bastante conhecido na cidade. Contudo, como o encontro aconteceria no começo da tarde, não faria mal fazer uma breve caminhada pelas intrincadas ruas do centro da "cidade dos 1000 anos".

Após memorizar de cabeça as principais ruas e locações, o Lobo Solitário se desvia um pouco do caminho e parece retornar ao local aonde ele e aquele comparsa de Lorde Shingen - o seu empregador em potencial - haviam encontrado a jovem Mizumi.

Era na entrada de um bairro de péssima reputação, quase colado com o distrito das meretrizes da cidade.

Mesmo de dia, a região fedia a decadência e devassidão - com casebres caindo aos pedaços, albergues suspeitos que pareciam mais arapucas para depenar os ingênuos viajantes, antros de jogatina aonde fortunas se faziam e se perdiam com um movimento de dados e locais lúgubres aonde se vendiam bebidas alcóolicas, alguns momentos de prazer carnal... e vidas humanas.

A figura imponente e severa do guerreiro contrastava com a sordidez dos ratos humanos que infestavam as vielas tortuosas. Num canto da rua, dois homens arrastavam o cadáver de uma jovem prostituta que foi estuprada e teve a garganta cortada na noite anterior. Em um beco, um mendigo estava dormindo, com o corpo todo coberto de feridas e com as extremidades dos pés já roídas pelos ratos. Um punhado de crianças esfarrapadas com a idade pouco maior do que a de seu filho corria para lá e para cá atirando pedras uns nos outros e proferindo palavrões obscenos, numa brincadeira mortal.

Sem se importar ou se impressionar com as visões deprimentes à sua volta, Itto Ogami caminhava pela rua de terra batida, com a precaução habitual ao seu temperamento. Estava em território hostil e sabia muito bem nisto. Não havia aliados, locais seguros e qualquer passo em falso decretaria o seu fim.

Ele anda em linha reta, até encontrar a construção que estava procurando: Uma casa enorme feita de madeira, com um padrão de luxo acima da média e ostentando uma tabuleta vermelha de mau-gosto ostentando um gato preto pintado nela. Era o "Kuronekko".

De propriedade do "oyabun" (chefão) Hajime Yamazaki, o Kuronekko funcionava de dia como uma academia de kendô e lá podiam ser recrutados guarda-costas e capangas para qualquer eventualidade, caso alguém tivesse os contatos e o dinheiro certo.

Contudo, à noite, o local se transformava por completo, revelando a sua verdadeira identidade: Uma casa de jogos clandestina, possuindo bebida farta, comida, música e lindas garotas como "atrações"; além de servir de quartel-general para os líderes do bando.

A maior parte dos marginais que lá freqüentavam era composta de "kobuns" (yakuzas de hierarquia inferior), jogadores profissionais, rufiões e desocupados. Embora houvesse também no grupo alguns ronins, ex-soldados e assassinos profissionais - o que ampliava a periculosidade do chamado "Yamazaki-Gumi".

Independente da missão ser um simples espancamento de um comerciante que não pagou em dia a "taxa de proteção" ou um assassinato sob encomenda, Yamazaki sempre tinha a pessoa certa.

Embora as atividades dos gangsters atraíssem a ira dos comerciantes locais, estes não tinham força política para requerer ajuda por parte do governo.

Fazer uma petição às autoridades locais seria como atrair sérias dores de cabeça (pois os funcionários do Xogunato encaravam qualquer requerimento popular ou protesto como sinal de desacato à autoridade pela mentalidade vigente da época, trazendo o risco de terríveis retaliações), além de ser um convite quase certo de represálias por parte do Yamazaki-Gumi, que tinha informantes por toda parte.

De manhã, os principais membros da gangue se reuniam no Kuronekko para treinarem com suas "shinai" e em seguida, para tomarem a refeição matinal. Tudo isto, antes de fazerem o trabalho sujo do dia, como cobrar a "taxa de proteção" dos comerciantes, espancar algum desafeto ou "recrutar" alguma garota jovem e linda para práticas nada morais.

O interior do enorme salão era bastante amplo e mais de vinte homens tomavam suas posições em confortáveis almofadas, deixando as espadas de bambu no assoalho limpo e lustroso.

Era a hora do "asa-gohan" e nenhum membro da gangue perdia este momento por nada. Uma dupla de empregados carregava uma enorme panela contendo arroz branco quente e distribuía o mesmo nas tigelas dos capangas, enquanto outro serviçal servia a porção de chá verde quente de cada um. Todos comiam avidamente a refeição, acompanhada de uma pequena porção de peixe seco e picles de pepino.

Sentado à frente de todos e de costas para uma espécie de palco, estava o "Oyabun" Yamazaki, facilmente identificável pela almofada de melhor acabamento, estando protegido por um imediato armado com uma katana. Ele habilmente degustava o seu almoço - servido numa tigela maior do que a dos seus subordinados - enquanto que com os "hashis" selecionava os diversos acompanhamentos à sua disposição.

De repente, o silêncio quase silencioso do ambiente é quebrado pela porta do salão se abrindo. Uma figura alta e carrancuda abre caminho, avançando em passos lentos e altivos.

- Olhem, é um samurai. - Comenta um yakuza ainda sonolento enquanto mordiscava um pedaço de peixe seco.

- Não está vendo, idiota? Ele não é mais um samurai, mas sim um ronin desempregado e faminto! - Fala outro capanga, dando um sorriso amarelo enquanto aponta os seus "hashis" na direção do desconhecido, reparando na roupa.

- Ei, ronin, o que veio fazer aqui? Mendigar? Ah!Ah!Ah! - Zomba um terceiro capanga, obeso e gordo, parecendo um Buda encarnado.

Um dos seguranças - alto, bem forte e com os músculos à mostra - se aproxima e tenta expulsar o incômodo intruso.

- Cão! Esta é uma propriedade particular! Vá mendigar arroz em outr.... UFFF!

Sem olhar para o lado, o desconhecido apenas dá uma cotovelada na boca do estômago do arrogante capanga, que cai como se fosse um saco furado - quase vomitando a comida ingerida por causa do espasmo de dor e a súbita falta de ar. Um murmúrio de temor e respeito percorre o interior do Kuronekko.

- Ronin, infelizmente não temos mais vagas. Se está faminto, espere a gente terminar de comer. Quem sabe, sobre alguns restos para você matar a fome... - Diz o imediato do chefão, franzindo o cenho, numa atitude desconfiada.

- Quem é Yamazaki? - Pergunta a figura desconhecida, sem se intimidar com nada.

- Sou eu, ronin. O que deseja de mim? Fale agora ou... - Responde rispidamente Yamazaki, sem ao menos levantar os olhos para o intruso enquanto comia.

- Sou o seu executor... Lobo Solitário, Assassino!

- O quê? Matem ele, meus homens! - Grita o chefão, apontando para o arrogante importuno.

- Verme ronin, você vai morrer! - Exclama o Imediato, imediatamente se levantando da almofada.



Os dois capangas que estavam mais próximo de Itto Ogami tentam agarrá-lo pelos braços, mas o Iaijutsu sai perfeito e ambos os mafiosos caem banhados em seu próprio sangue antes que a espada de combate complete o seu curso.

Como se fossem um homem só, vários gangsteres se levantam empunhando suas shinais e avançam em direção à Itto, num furor selvagem. Estas espadas de treinamento eram até resistentes e podiam até fraturar os ossos de um homem normal, se fossem usadas com toda a força. E aqueles yakuzas eram bem treinados com estas armas.

Só que Itto Ogami não era um homem normal e muito menos a sua Dotanuki que ele carregava era uma lâmina qualquer.

Com poucos golpes, ele ceifa pele e ossos, causando uma trilha de sangue ao seu redor. Com um movimento em forma de arco, os braços de um capanga são cortados com precisão cirúrgica, ao mesmo tempo que a espada estraçalha a shinai de outro atacante, terminando por cortar a jugular de um terceiro, espalhando um líquido vermelho abundante. Como se fosse um bailarino da morte executando uma dança ritual, ele vai ceifando a vida de seus oponentes - um punhado de frágeis caniços à mercê da tempestade furiosa.

Um gangster tenta esmigalhar o pomo de adão de Itto com uma estocada, mas o contra-ataque resultante estraçalha a sua arma de madeira. Um dos fragmentos penetra na pálpebra esquerda da face do fora-da-lei e ele grita de dor, largando a shinai inutilizada, para tentar arrancar a lasca de bambu. Só que no instante seguinte, o seu peito é talhado pela lâmina mortal e ele cai sem vida.

- Rápido, peguem as adagas e as espadas! - Grita o imediato de Yamazaki, ele mesmo se preparando enfrentar o agressor desconhecido.

Obedecendo à ordem, alguns yakuzas tentam correr para os locais onde estavam penduradas as espadas de verdade - usadas para assassinatos e acertos de contas. Enquanto isto, outros procuram apanhar as facas e punhais que estavam na sala ao lado - que funcionava como cozinha improvisada.

Porém, esta correria é a oportunidade para Ogami matar mais três bandidos que não foram rápidos o bastante para escapar da sua afiada Dotanuki..

Munidos com armas de ferro e aço, os fora-da-lei voltam a cercar o ronin, como lobos famintos rodeando um tigre. Só que a momentânea superioridade numérica de pouco adianta. Dois dos fora-da-lei atiram suas adagas contra Itto, mas ele intercepta o ataque com a Dotanuki. Um Yakuza avança com a sua espada chinesa - disposto a rasgar o samurai ao meio, de cima para baixo - mas no instante fatal, Itto apenas desfere um ataque direto que perfura o seu coração. Com os olhos esbugalhados, este malfeitor cai sem vida no mesmo instante em que o Lobo Solitário matava dois oponentes armados de katanas que hesitaram por um instante apenas.

A luta prossegue e mais corpos tingem de vermelho o assoalho de madeira do Kuronekko. Soltando um grito selvagem, o imediato de Yamazaki decide enfrentar Itto de igual para igual, com uma espada. Ele é um guerreiro experiente, tendo sido um ex-samurai, e por seis segundos consegue trocar alguns golpes com o antigo kaishakunin.

Porém a perícia do antigo oficial da morte de Tokugawa fala mais alto, e, no instante seguinte, Itto fere o ombro esquerdo do gangster, atingindo até a clavícula.

O imediato grita de dor e agonia, mal se agüentando em ficar de pé. Aproveitando a chance inesperada, outro bandido corre com uma afiada adaga, visando o flanco direito do Lobo. Porém este se esquiva e, abaixando-se para apanhar com a mão esquerda uma faca de cozinha caída no chão, ele crava a lâmina afiada no peito do seu oponente no instante seguinte. Um gemido mudo de surpresa e dor é a última coisa que o yakuza faz na vida.

Porém a luta ainda não está decidida. Mesmo ferido, o imediato de Yamazaki agarra as pernas do samurai com as forças restantes, quase o desequilibrando. Dois dos bandidos atacam simultaneamente com suas espadas, enquanto um terceiro corre para apanhar uma lança curta que estava presa num mostruário de madeira numa das paredes.

Sem poder se mexer direito, Itto sente o seu antebraço esquerdo arder de dor quando este é golpeado pelo risco prateado de uma wakizashi. Se não tivesse se esquivado ele teria tido o membro decepado. O lobo solitário apenas tem tempo de bloquear com a Dotanuki a investida de outro bandido, embora a manobra em si não tenha sido satisfatória por causa do capanga que ainda estava segurando suas pernas.

Percebendo que poderia morrer quando vê com o canto dos olhos o terceiro bandido agarrando a lança, o lobo tenta uma cartada arriscada. Ele propositadamente se deixa cair de costas, arrastando o agonizante bandido junto com ele - antes que os seus dois oponentes o retalhassem.

Em seguida, estando ajoelhado e aproveitando a surpresa, ele desfere um ataque por baixo, pela diagonal no criminoso mais próximo, abrindo a sua barriga. No segundo seguinte, ele bloqueia o ataque do segundo capanga de espada enquanto o primeiro cai, espirrando os intestinos, restos de alimentos e outros órgãos pelo assoalho.

Com um movimento com o cabo de sua katana, Ogami dá um vigoroso golpe no bandido que o segurava, afundando uma de suas órbitas oculares. O imediato o larga imediatamente, gemendo na sua agonia final.

O yakuza com a lança faz uma investida frontal, mas Itto - finalmente livre - lança rapidamente a Dotanuki em sua direção, atravessando-lhe a garganta. O infeliz atacante cai sem vida, tropeçando num dos vários cadáveres inertes estendidos pelo chão.

Um brilho de vitória percorre o olhar maligno do último capanga ainda em pé, e ele prepara o golpe de misericórdia - esperando dividir o crânio do samurai desconhecido pela metade. Só que no instante fatal, Itto rapidamente rola para o lado e apanhando uma wakizashi caída, crava a afiada lâmina na barriga do bandido. Em seguida, com um movimento de baixo para cima, movimenta a arma até a boca do estômago. O bandido arregala os olhos de pura incredulidade e dor. Assim que este último oponente cai, ele corta o seu pescoço com apenas um golpe certeiro.

Ao tudo, a luta durara menos de sete minutos e apenas uma pessoa estava de pé naquele salão. Tigelas esparramadas, hashis caídos e porções de comida e arroz ainda quente misturados com vísceras, braços, pernas e cartilagens destroçadas eram o saldo da sangrenta luta.

Sem se importar com o ferimento latejante em seu antebraço, Itto retoma a sua Dotanuki do corpo inerte do homem da lança e começa a caminhar em direção à cozinha. Lá dentro estava Yamazaki, chorando - escondido num canto - enquanto estava tentando inutilmente abrir a porta que dava para o depósito. A mesma tinha sido trancada por dentro pelos seus próprios cozinheiros, que se acovardaram e preferiram esconder lá, ao ouvirem os gritos da chacina.

Infelizmente, a fim de que fosse possível fugir para a rua, a única entrada disponível era a porta da academia. O que implicava em passar pelo assassino desconhecido.

- Nãããooo! P-por-favor, me p-poupe! Di-diga-me o seu preço! E-eu posso c-comprá-lo. - Dizia Yamazaki, com os olhos completamente arregalados, como se tentasse adiar o seu encontro definitivo com a morte.

- Guarde as suas moedas... Para a sua última viagem.

- Por quê? POR QUÊ? E-eu não te conheço, homem! - Grita o chefão, desesperado e incrédulo, já que o assassino não parecia pertencer a qualquer bando rival por ele conhecido.

- Isto é... pela pequena Mizumi!

- O quê??? - A mente desvairada do oyabun não consegue ligar este nome com o da anônima menina que tinha sido levada para atender à sede de luxúria dos clientes que freqüentavam aquele antro de perdição. Porém não havia mais tempo para se lembrar de alguma coisa.

No instante seguinte, sem mais dizer nada, Itto Ogami perfura o peito de um atônito Yamazaki, que cai para trás, morrendo na hora. Assim que ele atinge o assoalho, Ogami decepa-lhe a cabeça, fazendo-a saltar com o impacto do golpe.

Em seguida, lançando um último olhar de desprezo para a despensa aonde os cozinheiros se esconderam, ele calmamente retoma o caminho de volta para o salão principal e apanha um pedaço de pano - usado pelo Yamazaki para limpar os seus dedos após as refeições - de forma a fazer um torniquete improvisado no seu antebraço.

Antes de sair, ele nota um brilho metálico próximo às almofadas onde o chefão do Kuronekko estivera sentado para a última refeição de sua vida. Um saquinho de veludo em cujo interior estavam várias moedas de ouro.

Embora fosse de certa forma contra os seus princípios, Itto apanha o saquinho com as moedas - já que elas não pertenciam a mais ninguém e seria quase impossível descobrir quem foram as vítimas da ganância daqueles chacais humanos. Depois, ele tinha em mente uma outra idéia...

Quarenta minutos mais tarde, o Sol estava mais alto, lançando seus raios escaldantes aos que se atreviam a sair de suas casas e lojas. Daigoro estava esperando na sombra de uma árvore, quando ele subitamente vê o seu pai retornando. Ferido, mas inteiro.

O pequeno filho de samurai corre para abraçar o seu progenitor, e em seguida nota a bandagem improvisada no antebraço esquerdo, ficando um pouco preocupado.

Sem dizer uma única palavra, Itto segura o seu filho nos braços, dirige-se ao carrinho de bebê e coloca Daigoro dentro dele. Seu olhar perspicaz nota que - enquanto esteve fora - o seu pequeno filhote não bebeu um gole sequer da água, embora o sol já castigasse forte. Somente com o retorno de seu pai é que o garoto aproveita para tomar um trago da água dentro da garrafinha.

Pai e filho voltam ao centro de Kyoto e resolvem fazer uma breve pausa antes se procurarem o Monge Jinji. Havia algum tempo para descansar.

Conversando com transeuntes, Itto descobre o endereço de um velho médico e passa a próxima meia hora tratando de seu antebraço ferido durante a luta. Um corte um pouco mais sério do que os anteriores, mas nada de grave. O sangramento foi estancado de forma satisfatória e a ferida recoberta com uma bandagem acrescida de ervas medicinais, para prevenir infecções. O idoso senhor ainda insistiu para amarrar o antebraço ferido numa tipóia, mas educadamente Itto o convenceu a não fazer isto.

Pagando o ancião com algumas das moedas que achara em poder dos Yakuza, o Lobo Solitário em seguida leva Daigoro para comer numa carrocinha ambulante aonde se fazia o delicioso lamen típico da região e ele mesmo aproveita para matar a fome. Depois disto, leva o seu pequeno rebento para fazer as necessidades fisiológicas num lugar discreto.

Terminado o intervalo de descanso, o lobo e seu filhote retomam a caminhada para conversar com o homem que tinha as informações necessárias para a missão.

Kyoto foi desde cedo um dos centros difusores da religião budista por todo o Japão. Mesmo antes do Sengoku Jidai, havia vários templos e santuários de destaque e esta crença atingiu um poder e influência crescentes, a ponto de competir com o Xintoísmo.

Contudo, havia um sincretismo muito grande e as duas religiões coexistiram em relativa harmonia entre si por muito tempo. À medida que o caminho pregado por Siddartha Gautama, o Buda, foi se difundindo, a influência e o poder dos monges foi se ampliando a ponto de acumularem riquezas e influência crescentes - refletindo isto na arquitetura dos templos e na própria política do governo.

O período das guerras civis e a fragmentação do poder em várias facções rivais também repercutiram na religião, fazendo com que surgissem várias dissidências dentro do Budismo. Algumas facções eram completamente apolíticas - não se envolvendo nos conflitos - enquanto outras manobravam para manter os seus privilégios, dispondo inclusive de lutadores e grupos armados próprios.

Esta influência da religião nos assuntos temporais havia crescido a tal ponto, que tornou necessário ao Xogunato combater o poder crescente dos mosteiros. Ao assumir o poder, Ieyasu Tokugawa reprimiu as seitas que não se enquadravam na nova orientação política do governo, isto é, a subordinação ao Estado e todos os sinais de ingerência religiosa foram reprimidos; ao passo que a doutrina oficial passou a ser influenciada pelos preceitos confucionistas e taoistas que pregavam a submissão ao estado e ao Imperador.

Depois que conseguiu o seu intento, Tokugawa - num gesto calculado - reconciliou-se parcialmente com os monges, financiando com fundos públicos a reconstrução de vários templos que foram destruídos pelas guerras anteriores.

Tendo deixado de ser uma ameaça, as facções mais representativas do budismo tornaram-se dóceis à condução do Xogunato, enquanto as seitas mais esotéricas buscavam refúgio em lugares isolados e de difícil acesso.

A grande vencedora neste conflito tinha sido a seita Zen, oriunda originalmente da China e que no início era uma espécie de reação ao mundanismo e à acomodação que começara a infectar as principais seitas budistas no Japão. Fortemente influenciado pelos preceitos das doutrinas chinesas, o Zen tornou-se a facção mais representativa ao evitar bater de frente com a ideologia oficial do Xogunato. Contudo, o preço foi a progressiva mundanização do Zen, tornando-se mais um instrumento da ideologia oficial e de submissão ao poder.

O Santuário Bossatsuken pertencia ao ramo "Zen" do Budismo e se localizava na "cidade velha" (o centro antigo de Kyoto que datava do início do século VIII). Apesar de ser uma construção recente, ele foi erigido no lugar de um antigo templo que havia sido queimado num incêndio durante o Sengoku Jidai. De dimensões enormes e suntuosamente adornado, ele pouco ou nada ficava a dever a uma catedral européia.

O gigantesco templo parecia uma obra dos céus para salientar a grandeza e a misericórdia de Buda e o seu jardim convidava à contemplação e à meditação constante. Perto de suas proporções cósmicas, os frágeis seres humanos pareciam figuras minúsculas e fugazes, fadadas a desaparecer e serem absorvidas em meio ao Nirvana.

Itto Ogami e Daigoro adentram o vestíbulo do templo, com os pés descalços, em sinal de humildade e submissão. O assoalho de madeira parecia reluzir à luz das velas e o delicado aroma de incenso podia ser percebido ainda na escadaria.

Finalmente eles deparam no final do vestíbulo com uma porta dupla de madeira maciça. E como se estivesse protegendo a porta, estava uma enorme estátua de bronze, de terrível aspecto. A da divindade búdica Fudou Myou-Ou, segurando com uma de suas mãos uma corda e na mão direita uma afiada espada.

Ironicamente foi o seu caminho, a trilha do Assassino, que trouxera Itto e seu filho para aquele lugar de meditação e de paz. E era justamente irônico, pois este caminho - junto com os caminhos da fera, dos demônios famintos e o do inferno - era tido como uma das trilhas que afastava o ser humano de sua desejada iluminação pelos preceitos budistas.

Contudo, antes que pense em abrir a porta que leva à sala principal do templo, uma voz metálica se faz ouvir do imponente guardião do santuário.

- Peregrino, de onde vem e qual o motivo de sua vinda? - Parece dizer a estátua, que expressava em seu rosto uma severidade e rigor quase esmagadores.

- O Meifumado me trouxe até aqui para executar uma missão de justiça e de vingança. - Responde Itto, sem se abalar.

- O caminho do negro mundo do Inferno? Evidentemente aqui não é o seu lugar. A sua vereda é outra. Como ousa entrar neste salão sem estar ciente das conseqüências?

- Os deuses, os anjos, a humanidade, as bestas selvagens e até os demônios do inferno, todos eles têm a sua trilha a seguir. Não sabemos de onde viemos e nem para onde vamos. O caminho é a nossa vida e a nossa vida é o caminho. - Explica Ogami, fiel aos seus ideais.

- E por que escolheu o caminho do Meifumado? - Pergunta a imponente voz que parecia vir de toda parte e de lugar algum.

- Pela Vingança e pela Justiça. Vingança para redimir o nome de minha família e o meu clã, além de vingar a morte das pessoas que me foram caras. E justiça para punir os culpados, protegendo as vítimas do mal.

- Não percebe que o seu caminho é incoerente com os preceitos búdicos? Atendo-se à vingança mais abjeta, o ser humano rejeita as graças misericordiosas de Buda e se entrega ao eterno sofrimento que gera as ilusões e que por sua vez, levam a mais sofrimento, adiando a libertação final dos karmas passados. Desta forma, jamais atingirá a justiça que tanto procura. - Responde a voz, num tom de sermão e aconselhamento do que de censura.

- Não tenho outra escolha, porque a justiça que anseio me foi negada pela lei dos homens e não posso esperar pela divina, enquanto os que causaram mal espreitam nas sombras, continuando com os seus crimes. - Diz Itto, sem levantar os olhos, embora o seu espírito já soubesse o que estava acontecendo.

- Vejo que carregas uma espada. Sabe o que isto significa, guerreiro? Que você está fadado, predestinado a nascer, viver, sofrer e finalmente morrer para renascer eternamente nesta condição atual. Vivendo pela espada, morre-se pela espada. É a única maneira de expiar os seus erros e desenganos... - Ecoava a voz de Fudou Myou-Ou pelo vestíbulo, como se estivesse julgando a humanidade culpada.

- Sei disto e aceito o meu destino. Ainda que tenha que viver mil vidas e esperar doze eternidades para fazer o que tem que ser feito, aceito trilhar este caminho sem volta, tentando mudar as coisas que estão ao meu alcance, aceitando as que não posso mudar e rogando a Buda para que saiba a diferença entre ambas as coisas. - Conclui Itto, num tom humilde, mas firme.

- E como pretende escapar deste círculo sem fim de mortes e destruição? Se avançar, tudo o que encontrará serão mortes e massacres, até um dia ser ceifado pela espada que empunha. E se recuar, os seus inimigos caçarão a ti sem tréguas, até o desenlace fatal.

Neste instante Itto percebe que a divindade estava lhe propondo um "koan", uma questão envolvendo um dilema ou um paradoxo, típico do zen-budismo. Tentar responder um "koan" de forma lógica, atendo-se ao pé da letra à pergunta seria o caminho mais curto para ser derrotado neste singular duelo que não envolvia espadas, mas sabedoria e capacidade de raciocínio.

- Os que vivem pelo Meifumado, não tem outra escolha senão avançar, de acordo com as circunstâncias. Se tudo o que vemos neste mundo material é ilusão, então a figura de um assassino com uma espada e seu filho acompanhando por uma estrada sem fim é também uma miragem. Assim como seus algozes e suas vítimas. Nada mais somos que atores de uma peça que trocarão fatalmente de papéis quando este ato se encerrar. Logo, pelos olhos de Buda, não existem nem o assassino, nem seu filho e muito menos os executores e as vítimas. Apenas seres necessitados de sua misericórdia. - Responde o Lobo Solitário, sem um instante de hesitação sequer.

- Entendo...

- E te pergunto, se Buda é tão misericordioso, porque o seu guardião e fiel servidor Fudou Myou-Ou carrega uma espada e um laço em suas representações físicas neste mundo? - Desta vez, o seu tom de voz sai ligeiramente irônico e desafiador, propondo uma questão contraditória no melhor estilo zen ao seu interlocutor.

- Escute bem...Há pessoas que entram mais facilmente no paraíso porque despertam mais cedo e acolhem os ensinamentos sagrados ditados pela misericórdia de Buda. Contudo, há aqueles que estão deliberadamente cegos pelas paixões terrenas e pelas imundícies da ambição, crueldade, ganância e luxúria. Quanto mais espessas as nuvens e negras são as trevas, maior deve ser a força da luz de Buda para iluminar este planeta. Desta forma, o seu guardião Fudou Myou-Ou empunha o laço para amarrar e aprisionar os demônios que atormentam as pobres pessoas. E com a espada, ele faz a justiça, pune o mal e divide os homens entre aqueles que estão à caminho da iluminação e os que devem ser punidos pelo ciclo de morte e renascimento.

- Então, de certa forma, punir os pecadores e ensinar as pessoas a separar a verdade da mentira é uma das maneiras de Buda expressar a sua misericórdia.

- Exatamente.

Itto e Daigoro ainda se encontram ajoelhados no vestíbulo quando uma figura abre a porta dupla, se apresentando. Era um homem alto, calvo, de olhos e feições severas, mas inteligentes. Ele usava as tradicionais vestes budistas e na mão direita trazia um rosário de contas. Tratava-se do monge Jinji, o contato indicado pelo Lorde Shingen.

- Itto Ogami, eu suponho. - Diz o imponente monge, numa atitude como se estivesse estudando o comportamento do visitante e satisfeito pela demonstração de inteligência por parte do samurai.

- O senhor é o monge Jinji? Vim por recomendação de Lorde Shingen. - Diz Itto de forma cortês, mas um pouco seca, supondo que o religioso soubesse do verdadeiro motivo de sua visita, sem perder tempo com conversa mole.

- Sim, sou eu mesmo. Respondo pela manutenção deste templo e o treinamento dos jovens discípulos. Sei que todos os samurais possuem algum conhecimento do Zen, mas a sua perspicácia surpreendeu as minhas expectativas mais otimistas. - Responde o sacerdote budista, revelando ter sido ele o autor das perguntas supostamente feitas pela estátua, demonstrando que o templo possuía os seus segredos.

- Então era você... Qual o motivo desta pequena sabatina? - Pergunta o guerreiro, intrigado pela conversação que tivera há poucos minutos.

- Como o senhor possui conhecimentos sólidos de nossa doutrina, isto me poupará tempo para o que tenho a explicar. - Responde Jinji de maneira condescendente, evitando olhar diretamente no rosto do lobo solitário.

- E o que isto tem a ver com a minha missão? - Itto Ogami não se dá por satisfeito, já que não era qualquer empregador que o mandava escutar questionamentos zen e muito menos falar com um intermediário que era monge.

- Suponho que o senhor esteja aqui para saber a respeito de alguns fatos recentes e do envolvimento do clã Aoyama com doutrinas diabólicas. - Finalmente o astuto monge abre o jogo e mostra que já estava a par da solicitação de Lorde Shingen, pensava Itto. Provavelmente aquele tagarela do Sagame, o Kitsune, deveria ter passado no templo para conversar e dado com a língua nos dentes.

- Que fatos recentes? - Indaga Itto, com um ar cético.

- Ao norte desta cidade, no sopé dos montes que rodeiam nossa capital, existe uma antiga aldeia que não foi tocada pelos conflitos que incendiaram esta região séculos atrás. Lá é o lar do clã Aoyama, um grupo de guerreiros-sacerdotes que se dizem ser protetores espirituais e guardiões desta cidade e que supostamente devem lealdade somente ao nosso imperador. - O tom de voz do monge deixava transparecer uma boa dose de ceticismo e desprezo, embora tentasse disfarçar os seus sentimentos adotando uma postura aparentemente objetiva, mas que não escapava ao astuto olhar do ex-kaishakunin.

- Então... Shingen-dono pede-me para enfrentar e matar o líder deste grupo apenas por motivos políticos? Por eles não reconhecerem a autoridade de nosso mestre, o Shogun... - Como sempre, Ogami deixa a entender que quer saber de todos os motivos envolvidos por trás deste assassinato, antes de aceitar a tarefa. Se ele fosse mais ingênuo ou menos preocupado com detalhes, provavelmente estaria morto há muito tempo.

- Os Aoyama sempre se disseram seguidores de um ramo do budismo esotérico. Contudo, diante dos acontecimentos testemunhados recentemente, estou absolutamente convicto de que eles tratam-se na realidade de hereges adoradores de demônios e invocadores de youkais. Estes homens e mulheres merecem ser exterminados, para o bem de nossa cidade. - Responde Jinji, com um visível tom de dureza em sua voz, embora parecesse escolher com cautela as palavras a serem proferidas.

- Que acontecimentos? - Indaga Itto, com visível sinal de impaciência misturada com desconfiança, enquanto o seu menino boceja de sono.

- Há menos de três meses atrás, um jovem de uma aldeia vizinha foi levado ao templo deles para ser exorcizado, após tentativas inúteis por parte de médicos e curandeiros. Ele padecia de pesadelos terríveis e tinha convulsões constantes, vivendo num estado de alucinação quase permanente.

- E o que aconteceu?

- Testemunhas relatam que o rapaz rompeu as cordas e correntes que o prendiam no meio do ritual e ele atacou os presentes com uma força sobre-humana, enquanto proferia blasfêmias inauditas. Para resumir, ele matou três pessoas, antes de expirar, incluindo o irmão da testemunha que me relatou o fato. - Relata o Monge, fazendo uma estratégica pausa após contar tudo.

- Mas isto não nada que os Aoyama tenham vínculos com.... - Responde Itto, com um tom cético na voz.

- Pouco tempo depois, outra testemunha - um viajante - relatou ter visto alguns membros deste clã reunidos à noite em volta de uma clareira deserta. E jura que viu demônios saindo por uma entrada luminosa no ar, enquanto os praticantes de tal ato hediondo estavam cobertos de sangue. - Continua Jinji o seu relato das aberrações praticadas pelo clã Aoyama, sem se incomodar com a desconfiança do samurai.

- Talvez esta sua testemunha estivesse bêbada.

- Outras pessoas que moram por perto relataram visões de luzes fantasmagóricas e aparições noturnas perto desta aldeia maldita.

- Se são somente estas bobagens que me tem a dizer... - Finalmente Ogami parece estar irritado com o que considerava um palavrório sem sentido por parte de um monge senil e prepara-se para sair. Contudo...

- Quem sabe? Contudo, há um fato mais recente ainda, irrefutável, acontecido em pleno centro da cidade e sob a presença várias testemunhas. - Jinji já previa a descrença do seu interlocutor, e resolve mostrar a sua cartada decisiva, capaz de convencer o mais descrente dos seres.

- Fale. - Responde Itto, dando meia volta e fitando o religioso budista com um ar de visível impaciência.

- Três guerreiros pertencentes aos Aoyama invadiram um antigo templo Zen ao norte da cidade chamado Honganji a pouco menos de uma lua atrás, roubando uma relíquia de valor incalculável. Os monges que cuidavam do santuário tentaram impedi-los, só que um dos homens do maldito clã usou uma magia negra que os pôs fora de combate. Quando meus discípulos se recobraram e auxiliados por populares resolveram perseguir os ladrões, naquele momento apareceu um cavaleiro negro de aparência monstruosa, tendo sido invocado por estes servos do mal. - Explica Jinji, falando de forma calma, mas pausada.

- E como tem certeza de que este cavaleiro não era um humano disfarçado para assustar pessoas supersticiosas?

- O cavaleiro tinha os membros em carne viva, com os ossos do corpo à mostra, e o rosto hediondamente deformado. Logo ele não podia ser um disfarce. Assim que foi invocado por aqueles pecadores, o monstro matou dezenas de pessoas que estavam por perto antes de desaparecer voando.

- E o que aconteceu com os homens de Aoyama que você diz ter invadido o templo? E quais eram os seus motivos para se arriscar tanto?

- Acabaram fugindo durante a luta. O artefato é uma relíquia antiga que tinha propriedades de exorcismo, além de proteger a cidade dos maus espíritos. Contudo, com a sua profanação pelos guerreiros de Aoyama, ele pode estar sendo usado para algum propósito sinistro.

- E que evidências possui que o cavaleiro negro era algo sobrenatural e não uma fraude?

- Vejo que é um homem perspicaz. Com licença, que vou-lhe apresentar algumas testemunhas do massacre, bem como a prova que me pede, Ogami-Dono.

Jinji tira uma sineta que trazia dentro do seu traje e um tilintar discreto, mas nítido como o ruído de uma chuva de moedinhas numa fonte escuta-se nas dependências do enorme templo.

A gigantesca porta de madeira abre-se e um pequeno cortejo em fila indiana entra em silêncio no vestíbulo. A bizarra comitiva era composta por um jovem monge com o braço direito amputado e enfaixado, uma senhora elegantemente vestida, um velho bastante nervoso que mal conseguia ficar um instante parado e dois outros monges carregando o que parece ser um corpo envolto num lençol numa padiola.

A um sinal do veterano religioso budista, o cortejo se perfila em frente ao samurai e o seu jovem filho, enquanto que os monges colocam cuidadosamente a padiola com o corpo no chão, ao lado.

- Como me avisaram que o senhor vinha, tomei a liberdade de chamar algumas das pessoas que testemunharam este horrível acontecimento. Assim como a prova de que o ser que os Aoyama invocaram nesta cidade não era um homem disfarçado, mas sim um demônio. Muito bem, o senhor pode sentir-se a vontade de perguntar o que quiser sem constrangimentos...

- Vejo que o senhor, monge, é um homem bem calculista e tem um interesse claro em que aceite a proposta de Shingen-Dono. - Responde Itto com certo tom de ironia na voz.

- Calculista? Quem sabe... Prefiro encarar isto como senso de dever e de proteção a esta pobre cidade. É evidente que desejo que o caso seja esclarecido, porque a honra do Templo Zen de Honganji foi maculada por este ataque. Muito bem, pode começar.

Itto olha cuidadosamente para os olhos das três testemunhas e não nota qualquer sinal aparente de algo previamente combinado, embora todos estivessem tensos por causa de sua presença imponente e intimidadora. Se havia alguma coisa que ele não tolerava era mentirosos.

- Você, o que aconteceu com este braço e diga-me o que viu naquele dia. - Finalmente Itto decide começar as perguntas pelo jovem monge de braço amputado.

- M-meu n-nome é Hossaku e era um acólito no templo Honganji, que foi atacado há pouco mais de 15 dias... E-eu tinha acabado de terminar minhas orações e iria retornar para a minha cela quando vi três homens invadindo o recinto, após terem dominado os guardas...

- E o que aconteceu depois?

- F-foi t-tudo muito rápido! E-eu gritei por socorro e um deles me desacordou com um golpe na nuca. Não me lembro de ter visto ou ouvido nada enquanto fiquei inconsciente, mas quando finalmente acordei, vi que a urna sagrada onde a relíquia estava havia desaparecido! E do lado de fora escutavam-se ruídos de luta, gritos e golpes.

- Que tipo de relíquia era esta?

- E-era uma s-sutra sagrada de exorcismo, escrita pelo venerável sacerdote Nichiren há séculos atrás... Esta relíquia protegia o nosso templo e arredores dos demônios.

- E o que aconteceu mais tarde?

- Eu... eu... fui correndo para t-tentar pedir ajuda, m-mas... então... a-apareceu aquele demônio montado num cavalo dos infernos e... e... caí de dor, como se tivesse colocado o meu braço numa fornalha! Só me lembro que quando acordei... vários dos meus companheiros estavam mortos e... e.... - Traumatizado, o acólito começa a derramar lágrimas amargas de desespero.

- Já entendi. Mais alguma coisa para acrescentar?

- J-juro que não estou mentindo! E nem estava bêbado ou drogado! O c-cavaleiro não era deste mundo! Meus irmãos monges e alguns guardas que estavam por perto tentaram enfrentá-lo, mas as armas e os golpes não surtiam efeito algum! - Responde o jovem monge, com os nervos fortemente abalados pelas lembranças trágicas.

- É o suficiente. Muito bem, pode falar a próxima testemunha - Diz Ogami, cansado da gritaria nervosa do pobre acólito aleijado.

Jinji faz um sinal silencioso para o infeliz Hossaku voltar ao seu lugar e em seguida chama a jovem senhora bem vestida. Ela deveria ter pouco mais de trinta anos, estava com um penteado e quimono impecáveis e pelos seus trejeitos, deveria ser uma insinuante e pegajosa profissional na arte de agradar o sexo masculino.

- Qual é o seu nome e o que viu naquela noite?

- Eu me chamo Yumiko e naquela ocasião estava saindo... de um estabelecimento em companhia de minha aia, samurai-sama. - Diz a jovem mulher enquanto parecia apreciar a masculinidade de Itto com seus olhos de raposa, apesar de estar visivelmente nervosa - Como era bem de noite e para evitar problemas desagradáveis pelo caminho... a gente decidiu passar nas cercanias do Honganji. Foi então que... que... a gente viu uma cena de arrepiar os cabelos!

- Conte-me.

- Um homem... não... Uma "coisa" que não parecia ser deste mundo estava lutando, ou melhor, massacrando uma dúzia de monges na saída do templo! Não dava para enxergar direito, mas aquela "coisa" estava destroçando os pobres rapazes sem usar arma alguma! - Aos poucos, a dama da noite parece sair de seu comportamento artificial, passando a falar de maneira rápida e excitada, como se estivesse presenciando a cena naquele momento.

- Arma alguma?

- Exato, Samurai-sama! Ele só usava seus braços e as patas dianteiras de algo... parecido com um cavalo roído de vermes para massacrar os monges e quem passava por perto! Ele... não podia ser alguém deste mundo! Pois decepava cabeças e arrancava braços usando seus braços sem fazer qualquer esforço! Ainda hoje... tenho pesadelos ao me lembrar disto... - Enquanto Jinji e os outros se mantém impassíveis, o experiente Ogami nota que as reações e os gestos da cortesã de luxo estavam mais naturais e menos forçados, parecendo ser sincera com o que dizia.

- E o que aconteceu mais tarde?

- Ai... Aí... eu e minha aia resolvemos nos esconder, ao percebermos que o demônio estava derrotando os pobres monges. Só que ele deu meia-volta e saiu a todo galope... Tentamos nos desviar, mas... minha pobre Kazuko tropeçou.... Eu gritei, mas o monstro a atropelou... e... e...

- Continue.

- Das costas daquele cavalo monstruoso apareceram asas, como a de um morcego! Nem em meus piores pesadelos podia jurar ter visto uma coisa destas.... Estava totalmente paralisada de horror... pessoas das casas vizinhas saíram para socorrer a minha aia... mas... ela estava morta...

- Viu alguma coisa de diferente?

- Não... Sim! Kazuko-chan estava terrivelmente deformada e desfigurada pelo atropelamento, mas... o mais espantoso é que... ao invés de sangue... havia algo verde e brilhante saindo de seus ferimentos... Por favor... não quero falar mais sobre isto... - Diz a cortesã, completamente abatida e com a voz sumida, ao terminar o seu depoimento. Pelo menos, as suas lágrimas finais com relação à sua falecida aia eram sinceras.

- Tudo bem. É o bastante.

Enquanto a prostituta de luxo voltava ao seu lugar, era a vez do velho ser chamado. Ele era uma figura baixinha, barbada e tremia feito vara verde, como se tivesse um tique nervoso.

- E-eles estão chegando, e-eles estão c-chegando! O fim de Kyoto está próximo! - Dizia o ancião, gaguejando com os poucos dentes que ainda lhe restavam.

- Quem estão chegando?

- Os d-demônios! Os demônios do Inferno!!! A E-era das Trevas, TREVAS, irá c-começar!

- Por favor, Ishitarou-san, se controle! E trate-se de lembrar o que aconteceu naquela noite - Diz Jinji com rispidez.

- Muito bem, qual o seu nome e o que tem a dizer? - Pergunta Itto num tom de voz cordato mas firme.

- S-samurai sama, e-eu me chamo Ishitarou Sakaiba e... e... s-sou um f-funcionário aposentado do Xogunato....Esta cidade... ela está condenada! Vai se transformar num portal do I-inferno! A morada dos Demônios!

- Diga-me onde você estava há 15 dias atrás e o que viu naquela noite. - Antes que Jinji repreendesse o velho delirante, Itto resolve ir diretamente ao assunto.

- E-eu estava sentindo b-bastante calor naquela noite e saí para t-tomar um pouco de a-ar! J-juro que não estava b-bebendo, juro!!

- E aí?

- Resolvi visitar a casa de um c-conhecido m-meu que ficava perto do Honganji... E quando estava dobrando a rua... eu...eu...

- Tente-se lembrar o mais claramente do que aconteceu, Sakaiba-san.

- Vi três homens correndo... Eles... eles não eram da cidade! U-um deles e-estava trazendo uma urna muito bonita entalhada em ouro nos braços... Foi tudo muito rápido... O mais adiantado deles esbarrou em mim e sairam correndo sem ao menos pedir desculpas.... Humpf!

- E viu alguma coisa de diferente que eles estavam fazendo no momento?

- Não... Sim. Sim! É isto...

- Fale-me o que lembra.

- Espere um pouco... A minha pobre cabeça não consegue se recordar com rapidez das coisas como a de vocês, m-meus jovens... U-um deles estava com uma katana embainhada... outro usava um bastão Bo e o que carregava a u-urna estava com um par de sais nas costas. - Responde o idoso senhor Ishitarou, com certa dificuldade, esforçando-se o melhor que podia.

- É só isto que tem a dizer ou...

- Não, espere! Q-quando era mais jovem e a-andava a cavalo a s-serviço do Xogunato, este velho lembra que viu e-eles a-ainda mocinhos... Eles vivem... vivem... numa aldeia ao norte daqui.... Os nomes deles eram... Shigueru, Makoto e Subaru... São filhos do velho Akira Aoyama.... - Responde o velho funcionário, enquanto Itto escuta pacientemente os detalhes, ignorando o olhar de puro tédio vindo da parte de Jinji.

- E quanto a luta que os outros disseram, alguma coisa a acrescentar?

- Um Horror! Um horror! Nunca vi nada igual! Eu Juro! Pessoas m-mortas, cabeças para todos os lados... monges, soldados e populares! Escutei um relinchar que não parecia s-ser d-deste mundo e... Quando olhei para a lua... Vi algo m-maior do que um pássaro. Não, era um morcego gigante com um homem montado!

- Muito bem, Ishitarou-san, pode descansar agora. Todos vocês, estão dispensados. Agradeço à sua inestimável ajuda. Agora, falarei a sós com o samurai - Diz Jinji fazendo um gesto para as testemunhas e os dois monges saírem do recinto.

Após esperarem os demais presentes saírem do salão, Jinji, Itto e Daigoro ficam em silêncio, todos olhando para o misterioso conteúdo da padiola. O poderoso samurai fica pensando em silêncio, numa expressão indecifrável, enquanto o pequeno garoto boceja de puro cansaço.

- E então? - Jinji é o primeiro a quebrar o gelo, procurando estudar as reações imprevisíveis do ex-Kaishakunin, o Oficial da Morte.

- Admito que o senhor pensa em tudo. Apesar das diferenças das circunstâncias em que as três testemunhas se encontravam no momento do incidente, não vi nenhuma contradição fundamental nos relatos.

- E...

- Embora seja certo de que os três homens do clã tiveram parte no roubo de uma relíquia antiga e de que uma figura desconhecida massacrou os monges do Honganji, não há uma prova conclusiva de que eles tenham invocado a criatura.

- Não diga besteiras! Existem provas e elas são irrefutáveis. Primeiro, como aquele youkai não surgiu antes e sim logo após a relíquia ter sido profanada pelas mãos impuras daqueles herejes? E depois, te questiono: E porque o demônio somente atacou os monges e as pessoas próximas, mas não aqueles três, que justamente aproveitaram a aparição para fugir?

- Não estou te chamando de mentiroso! Apenas expus um fato. A suposta aparição do youkai ou demônio como vocês falam pode ter sido uma eventualidade. - Responde Itto irritado.

- Seja como for, com a perda daquela relíquia... - Jinji muda de fisionomia e passa a falar num tom de voz mais baixo e preocupado.

- O que foi?

- Receio que a cidade mergulhe numa onda de caos e acontecimentos monstruosamente bizarros, como nos tempos passados.

- Como assim?

- Com a época das guerras civis que assolaram nosso país, Kyoto ficou por vários anos mergulhada numa espécie de histeria coletiva que ganhava força nas épocas em que aconteciam secas, fome, epidemias e incêndios.

- Histeria coletiva?

- As crônicas antigas mencionam acontecimentos insólitos envolvendo a morte misteriosa de pessoas do povo e de personalidades importantes, aparições de fantasmas e youkais em templos e residências abandonadas, pessoas que desapareciam sem deixar vestígio e fatos inexplicáveis pela lógica humana.

- Continue.

- Estes casos diminuíram gradativamente à medida que a paz foi voltando e os templos reconstruídos... Só que as recentes mortes ocorridas em Kyoto e arredores pressagiam algo de ruim... E acredito que os Aoyama possam estar por trás disto tudo.

- Se eles são de fato os culpados e isto não é segredo, por que vocês não organizam uma expedição para prender ou matar os líderes da seita?

- Eu... nós... já tentamos isto. Mas...

- Mas, o quê?

- Antes do senhor chegar, há uma semana atrás, um grupo de jovens exaltados se reuniram e foram até Aoyama-Mura para castigarem os hereges... Apesar de meus apelos e de outros sacerdotes, aqueles cabeças duras eram teimosos demais para desistir. Foram ao todo uns vinte a trinta homens montados em cavalos, bem armados e equipados com tochas.

- E o que aconteceu?

- Ninguém retornou naquele dia. No dia seguinte, um outro grupo partiu e encontraram com os restos da expedição próximos ao Monte Hieizan. Todos mortos e os cadáveres horrivelmente desfigurados. O único sobrevivente - todo ferido e sem seu equipamento - estava irremediavelmente louco e balbuciava palavras desconexas... Dizendo alguma coisa sobre espíritos.

- E os conselheiros locais? Sabem disto?

- Saber, eles sabem, mas todos eles tem medo. As facções locais evitam tomar a iniciativa neste caso, temendo ser alvo de perseguição por parte das outras... O clã Aoyama, apesar destes incidentes, goza ainda de prestígio perante o Imperador e agredi-lo significaria alterar o delicado balanço de poder desta cidade. Apenas Lorde Shingen, que é o conselheiro mais importante, é o fiel da balança que pode decidir tudo.

- E por que não enviam uma petição ao Xogunato?

- Hah! Mandar um requerimento solicitando tropas para debelar aparições de cavaleiros-fantasmas e youkais? O Bakufu Edo zombaria de nós se atravessemos a fazer semelhante coisa! Infelizmente o Conselho dos Anciãos e o nosso mestre, o Shogun, estão distantes demais para se inteirar da realidade local. - Responde Jinji, demonstrando conhecer a intrincada burocracia do Xogunato.

- E o que pretendem fazer? Deixar este grupo fazer o que bem entender, enquanto o suposto cavaleiro-fantasma degola os homens de bem nesta cidade? Parece-me irrazoável. - Responde Itto Ogami, usando a mesma lógica que seu interlocutor utilizara há momentos atrás com ele.

- Na última reunião do Conselho local, Lorde Shingen jurou tomar uma iniciativa a respeito. Depois de muito pensar e após ponderar os prós e contras, ele decidiu convocá-lo, Ogami-Dono.

- Vejo que é um homem muito informado para um mero administrador de um santurário, Jinji. - Comenta sarcasticamente Itto, um tanto desconfiado pela familiaridade do monge com a política local.

- E por que não deveria? Sou amigo da família e conselheiro particular de Shingen-sama há mais de 15 anos. E depois, existem coisas que até mesmo os ratos e os pernilongos desta cidade sabem. - Responde Jinji sem se abalar com os modos rudes e francos de Ogami.

- Se a intenção de vocês é a de contratarem um "homem santo" ou um "guerreiro sagrado" para exorcizar youkais e demônios, esqueçam. Não sou uma coisa e nem outra. Sou apenas um assassino que trilha a estrada rumo ao Meifumado. - Finalmente Itto vai direto ao assunto e resolve expor sua opinião como lhe era peculiar. Estava farto dos intrincados raciocínios daquele monge.

- Mas...

- Contudo, se o objetivo é o de cortar o mal pela raiz, enfrentando os autores desta calamidade, e se os tais youkais são seres de carne e osso que podem ser talhados pela minha espada Dotanuki, então pode ser que eu considere esta oferta de Lorde Shingen... - Sorri Ogami, vendo uma ocasião incomum para testar suas habilidades.

- Oh, então você...

- Eu hei de dar a minha resposta conforme o combinado, quando voltar a se reunir com Lorde Shingen no Castelo Shoki no final desta tarde. Não antes.

- Entendo...

- Para terminarmos a nossa conversa, gostaria de saber o que conhece a respeito deste homem chamado Akira Aoyama.

- Bem, até onde sei, trata-se de um mestre espadachim que não segue nenhum dos estilos de esgrima conhecidos, tendo desenvolvido técnicas que usam a energia "Ki". Não se sabe a extensão e nem o grau de eficiência de suas técnicas de luta, embora crônicas antigas dizem que os antigos representantes do estilo eram capazes de cortar pedras e até ferro com o mínimo esforço, enquanto acho tais relatos um exagero. - Responde Jinji.

- Interessante... E este clã Aoyama, do que se trata?

- Como disse, eles eram um clã muito antigo da região, que data dos primórdios da Era Heian. Sempre foram leais ao Imperador, não se envolvendo em nenhuma facção local.

- Samurais?

- Embora não sejam samurais por título de nobreza, tal honraria foi concedida por um dos antigos imperadores como recompensa por serviços prestados. Os membros masculinos do clã são treinados para serem guerreiros enquanto os femininos são educados desde crianças para serem curandeiras e mikos. Alguns membros mais idosos tornam-se sacerdotes ou conselheiros do grupo familiar. - Explica o veterano monge budista, com base nos pergaminhos antigos deixados por seus antecessores. Fora isto, muito pouco se sabia sobre o clã Aoyama e o seu estilo de esgrima.

- E eles vivem em estado de isolamento quase completo?

- Sim... Muito raramente eles vêm à cidade, apenas para comprar objetos de metal ou para vender o excedente do que produzem na vila. Mas... a recente investida deles demonstra que eles pretendem romper este estado.

- Continue. Estou interessado.

***

Apesar de - durante o dia - a hospedaria não ter muitos ocupantes, sempre havia trabalho para as empregadas do irascível estalageiro Sakuma. Ainda de mau-humor por causa da vida inesperada daquele samurai mal-encarado e daquele falador que se dizia ser capanga do todo-poderoso Lorde Shingen, ele tratava de descarregar a sua irritação nas suas pobres empregadas, em especial a pobre Mizumi.

- Ande logo, suas inúteis! Tratem de varrer este chão até tudo ficar perfeito! Kazumi, depressa com estes cobertores! Akemi, trate de polir os lampiões! Eu quero vê-los brilhando, entendeu? Bri-lhan-do! - Gritava o dono da hospedaria enquanto andava para lá e para cá com uma vara de bambu fina que ele usava eventualmente para castigar as empregadas que fizessem corpo mole diante de sua presença.

Naquele momento, a pequena Mizumi estava tentando carregar um pesado balde de água quente para poder limpar o assoalho da hospedaria. Embora eventualmente as suas colegas falassem mal do patrão pelas costas, nos raros intervalos de descanso aos quais tinham direito, ela aparentemente não se queixava e nem reclamava, fazendo as suas tarefas sem demonstrar o menor sinal de revolta.

Ao passar pelo dono da hospedaria no estreito corredor, o peso do balde faz com que ela derrame um pouco do líquido quente no assoalho.

- S-sinto muito, Sakuma-san, eu...

- Não fique aí parada, vá começando a limpar este assoalho. Tem que estar tudo pronto até o final da tarde, entendido?

- S-sim...

Ao se agachar para começar a passar o pano umedecido pelas tábuas do assoalho, Sakuma olha de um jeito meio estranho para as costas de Mizumi, se detendo principalmente na visão daquela parte do corpo feminino que despertava certos anseios reprimidos no sexo oposto. Ela era uma jovem encantadora, muito bonita e... desejável.

Um pensamento indecoroso percorre a mente do velho estalajeiro, fazendo-o ter sensações há muito esquecidas. A sua esposa, velha e doente, não era mais o suficiente para despertar interesses românticos no velho Sakuma.

E quanto a ele, já estava entediado de assediar as outras empregadas sempre que podia, em suas horas de folga. Afinal de contas, a maioria delas já estava entrando na faixa de 30 anos e algumas delas já tinham alguns quilinhos a mais...

Já era hora de começar a procurar "carne nova", pensava ele... E já que a novata foi salva do bando daquele canalha do Yamazaki por aquele samurai desconhecido, por que não experimentá-la? Como a sua mulher já não podia mais sair do quarto, Sakuma podia se dar ao luxo de usar alguma dependência vaga da hospedaria para suas práticas secretas...

Reprimindo um sorriso devasso, ele dá de ombros e se dirige à cozinha, pensando em tomar uma garrafa de Sakê. Sim, aquela garota não perdia por esperar...

***

- Então vai dar a resposta definitiva a Lorde Shingen hoje no final da tarde? - Pergunta Jinji, enquanto conversa com Itto no imenso jardim que circundava o templo Bossatsuken.

- Como foi dito, sim. - Responde secamente Ogami, enquanto carrega Daigoro adormecido no carrinho de bebê.

- E o que vai fazer até a hora chegar?

- Irei esperar na hospedaria Aramaki.

- Certo, provavelmente o homem que o trouxe ontem a noite irá buscá-lo. Eu também irei junto...

- Como?

- Lorde Shingen também me convocou para uma reunião no Castelo Shoki. Sem falar que estamos organizando o Festival que irá acontecer dentro de poucos dias na cidade. - Comenta Jinji sem se alterar com a expressão de seriedade de seu célebre interlocutor.

- Festival?

- O Tanabata Matsuri. Com ou sem cavaleiros fantasmas, nós devemos organizar este evento sagrado, sob pena de desagradar às divindades, o que será bem pior. Prefiro enfrentar a ira dos demônios que a das divindades. - Diz Jinji, sem alterar o passo.

- E qual a diferença, se no final o sofrimento é o mesmo? - Pergunta o samurai, com visível tom de ceticismo na voz.

- Pelo menos, estaremos cumprindo com o nosso dever. - Responde o monge, dando de ombros.

- Entendo...

- Caso aceite esta missão, passaremos as instruções finais ao senhor, Lorde Ogami. - A fisionomia do veterano monge parece-se alterar e ele sente que a não ser por algo terrivelmente inesperado, o seu célebre visitante não recusaria a proposta.

- Por favor, não sou mais Lorde. - Comenta secamente Itto, ciente de sua condição de samurai renegado.

- Perdoe-me, mas dizem que a nobreza da alma jamais abandona a pessoa, ainda que perca o título. - Jinji parece finalmente mais relaxado e sorri de forma vaga para o homem que foi um dos mais poderosos do Xogunato.

- Mesmo que ela venha de um assassino que trilha a rota ao Inferno? - Pergunta secamente o lobo solitário, com raro senso de realismo.

- Mesmo que ela venha de um agente designado por Fudou-Myou-Ou para erradicar o mal e restaurar a harmonia búdica nesta cidade. - Responde Jinji usando o seu poder de argumentação adquirido depois de infindáveis estudos e debates com seus mestres.

Sem se prolongar mais em falatórios, Itto se despede do monge Jinji na porta da entrada do santuário e, junto com o pequeno Daigoro dentro do carrinho, volta a trilhar o caminho rumo à hospedaria. Apesar de cansado pela caminhada e pela luta que tivera na parte da manhã no Kuronekko, o implacável samurai pretendia resolver os assuntos pendentes antes de decidir se aceitava ou não a proposta feita por Lorde Shingen e incentivada pelo misterioso Monge Jinji.

Colocando em sua cabeça o chapéu de palha, Ogami começa a caminhar com passos decididos, empurrando o carrinho de bebê.

Atravessando a rua larga e lotada de pedestres, o samurai estava tão concentrado em seus pensamentos que ignora os olhares vigilantes de um mercador que estava levando um carrinho de madeira cheio de legumes para a feira. Passados cerca de cem metros, o mercador cruza com um indivíduo elegantemente vestido e trajando um impecável traje pertencente à nobreza.

- E então, alguma novidade? - Pergunta discretamente o homem bem vestido, após certificar-se de que não estavam sendo observados por curiosos.

- Tenho sim. - Responde o mercador esboçando um sorriso triunfante.

- Diga.

- Itto Ogami, o Lobo Solitário, foi visto saindo do templo Bossatsuken, no centro velho. Ele estava na companhia do monge Jinji e provavelmente terão um encontro marcado com o velho Shingen. - A voz sai baixa e sutil, como um sussurro de uma brisa no final de uma tarde de verão.

- Excelente, Kazuo. Será bem recompensado pelo nosso mestre. Agora, com licença, pois não é de bom-tom uma "pessoa de alta classe" conversar com um "plebeu". - Diz o aristocrata, se preparando para dar meia volta

- Pretende usar os pombos? - Pergunta o "mercador"

- Sim. Nada escapa aos olhos e ouvidos dos Yagyu. Lorde Retsudo saberá em breve... - Responde o seu interlocutor, na verdade um espião a serviço do Xogunato.

Notas do Capítulo:

Mantra: É um trecho de uma sutra ou oração budista, recitada em chinês antigo ou japonês inúmeras vezes pelos monges e pelos devotos. Acreditava-se que algumas delas tinham propriedades miraculosas. Um mantra clássico é o "Namu Amida Butsu", que, traduzido, quer dizer: "Que se Faça a Vontade de Buda";

Kuronekko: Traduzido quer dizer Gato (nekko) preto (kuro).

Bokken: Espada de bambu, geralmente utilizada para treinamento. Apesar de não possuir corte, se usada por uma pessoa experiente, é capaz de inflingir ferimentos sérios, sendo suficiente para quebrar um osso humano;

Asa-Gohan: Na vida cotidiana japonesa e especialmente em tempos antigos não existia o tradicional "café da manhã". A refeição matinal era composta de arroz cozido e - dependendo do poder aquisitivo das pessoas - servido com alguns acompanhamentos;

Hashi: Palitinho de madeira, geralmente usado pelos orientais para comer arroz;

Iaijutsu: O estilo Suio, assim como outros estilos de kendô, preza muito o Iaijutsu, o golpe inicial que é feito ao sacar-se a espada diante de uma ameaça iminente. Com um único movimento o samurai saca a sua katana da bainha e tenta acertar de surpresa o adversário, se este se encontra no espaço de ataque.

Wakizashi: Katana curta usada com apenas uma mão, com lâmina de 40 cm de extensão. Era usada em combate nos ambientes fechados (corredores, interior de casas, etc.), bem como nos rituais de "seppuku" (harakiri);

Budismo / Zen: O Budismo foi introduzido no Japão entre os séculos VI a VII, importado da Coréia, tendo alcançado grande popularidade entre as elites, que procuravam conter a crescente influência política dos sacerdotes Xintoístas.

Com o tempo, várias seitas e ramificações desta doutrina surgiram, tendo algumas alcançado grande popularidade e status.

Já na época do Sengoku Jidai (Séculos XIV a XVI), vários monges desfrutavam de grande influência política e mesmo certos templos detinham um poder temporal considerável, com terras próprias e mesmo milícias, tomando parte ativa nos conflitos daquele período.

A seita Zen surgiu neste período, tendo sido introduzida por monges que foram buscar ensinamentos na China, desiludidos com a decadência espiritual do budismo naquela época. Ela se tornou muito popular na região de Kyoto, se difundindo para outras regiões. Reunindo conceitos do budismo original com ensinamentos confucionistas e taoístas, ela acabou-se popularizando junto à classe dos samurais e na época Tokugawa (Séculos XVI a XIX) se tornou a ramificação predominante, já que a sua doutrina - que ensinava o destemor da morte, a abnegação e o respeito às autoridades, entre outros - era compatível com a mentalidade oficial.

Contudo, a vinculação do Zen com os ideais do Xogunato acabaram por fossilizar o aspecto espiritual do mesmo, surgindo uma igreja fortemente politizada e formal. A ideologia dos Tokugawa encarava como uma ameaça ao estado todos os movimentos filosófico-religiosos que não seguissem a autoridade governamental. E mesmo muitos templos Zen chegaram a entrar em conflito com seitas minoritárias e de caráter esotérico.

Escrito por: Calerom

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Última Versão: 25/02/2004.