Um Tolo
Era final de fevereiro. A neve já não caia com tanta freqüência, mas isso não impedia que um vento gelado ainda soprasse. Ele não se importava, no entanto. Andava distraidamente pelo Tiergarten. Apesar de já estar em Berlim há mais de um mês, era a primeira vez que visitava aquele lugar. Um parque bonito, o maior da cidade. Não havia muita gente por ali, todavia. As baixas temperaturas do fim do inverno alemão desestimulavam as pessoas a saírem para apreciar a beleza daquele local. A ausência de casais sorrindo, crianças brincando e cachorros correndo foi justamente o que o levou até ali.
Os negócios iam bem, obrigado. Seus cofres estavam cada vez mais cheios. A Alemanha realmente estava se mostrando um lugar muito promissor para o seu crescimento profissional. Seu problema, entretanto, não estava na empresa ou no país que agora era sua casa. O problema estava nele mesmo.
Sentia um vazio imenso. Não via muita graça nas festas pomposas, nas roupas caras, nas dezenas de mulheres e em tudo mais que fizera parte de sua vida desde o começo daquele ano. Outro país, galeões, bebedeiras, ruivas. Nada foi capaz de fazê-lo esquecer.
Draco tateou a cama com as pálpebras ainda fechadas. Nada. Abriu os olhos para constatar que estava de volta ao seu quarto na mansão Malfoy. Suspirou. Estava acabado. O mundo voltara a ser exatamente como suas lembranças diziam que era.
Lembranças. Nunca mais esqueceria o que vivera na última semana. A casa sempre desarrumada, os Weasley barulhentos, as expressões falsamente arrependidas dos gêmeos, o choro manhoso da bebê, os fios rubros e anelados jogados sobre seu peito. Gina. Ainda podia sentir o cheiro dela impregnado em seu corpo. Ainda podia ver aqueles olhos castanhos brilhando para ele. Ainda podia ouvir ela dizer que o amava.
Sentou-se na cama e apoiou a cabeça nas mãos. Aquilo nunca tinha acontecido. A casa não existia, ele nunca convivera com aquela família imensa e irritante, as crianças sequer tinham nascido e o mais próximo que ele estivera da irmã mais nova do idiota do Weasley fora àquela noite, no campo de quadribol. Suspirou mais uma vez. Precisava de um banho.
Já se dirigia para o banheiro quando ouviu leves batidas. Um de seus elfos domésticos abriu timidamente a porta quando ele murmurou um "Entre" mal-humorado. A criaturinha olhou assustada para ele antes de começar a falar.
-Desculpe incomodar, senhor, mas sua secretária está na lareira e...
-Diga que estarei no escritório em uma hora.
-Sim, senhor - o elfo se curvou e já estava saindo quando o loiro falou.
-Que dia é hoje?
-É o primeiro dia do ano, senhor.
-O que eu estive fazendo na última semana?- ele ignorou a expressão de surpresa do pequeno.
-Bom, o senhor Malfoy quase não tem ficado em casa. Está muito ocupado no trabalho. Os elfos também estão ocupados com os preparativos para a mudança.
-Isso é tudo. Pode ir. E nenhuma palavra sobre o que eu lhe perguntei.
-Claro, senhor, claro - com a voz trêmula, o elfo fechou a porta cuidadosamente.
Entrou no banheiro e ligou o chuveiro. Iria para o escritório, terminaria de fechar o contrato e se mudaria para a Alemanha. Retomaria sua vida como se nada de anormal tivesse acontecido. Afinal, que outra escolha ele tinha?
Uma rajada de vento o acertou. Um leve tremor percorreu seu corpo, fazendo-o apertar o passo. Andava de cabeça baixa, os pensamentos na vida sem sentido que tinha. Precisava acabar com aquele vazio que o consumia antes que enlouquecesse. Sentiu seu ombro esbarrar em alguém. Livros caíram no chão. Abaixou-se para pegá-los sem encarar a pessoa que agachou ao seu lado.
-Entschuldigung*
Parou. Encarava assombrado as pequenas mãos brancas que juntavam alguns pergaminhos espalhados. Não era necessário levantar o rosto para saber quem estava ali. Reconheceria aquela voz, aquelas mãos, aquele cheiro em qualquer lugar do mundo. Mesmo assim, precisou fitar os olhos castanhos de Gina para ter certeza de que não estava tendo alucinações.
-Malfoy? - ela olhava surpresa para ele.
-Como vai? - Draco sentiu uma pontada ao escutá-la chamando-o dessa forma.
-Desculpe, eu estava distraída lendo e não o vi - a ruiva falou seca e se colocou de pé rapidamente.
-Eu é que peço desculpas - ele também se ergueu e entregou os livros a ela enquanto tentava disfarçar a emoção de vê-la.
Ela o encarava com o olhar intrigado, o mesmo olhar que aquela Gina lhe dirigira nas últimas vezes em que se viram. Certamente não esperava encontrá-lo ali, muito menos vê-lo ser educado. Draco se deixou perder naqueles círculos cor de chocolate. Por alguns momentos, foi como se ela fosse sua mais uma vez, como se estivessem de novo casados e felizes. Ele já não conseguia controlar a vontade louca de beijá-la quando ela começou a falar.
-Bom, eu preciso ir - sua expressão continuava séria - Desculpe, mais uma vez.
-Você está passando férias aqui? - ela já tinha se virado quando o loiro disse numa tentativa desesperada de não deixá-la partir. Gina se voltou mais uma vez para ele, a testa franzida, o olhar desconfiado e surpreso. Draco reteve um suspiro. Deus, como ela era linda! A pele de um alvo quase irreal, as delicadas sardas marcando as maçãs do rosto, o cabelo preso por um coque frouxo que deixava algumas mechas vermelhas caídas. Mas o que mais o fascinava eram aqueles olhos densos, profundos, que faziam com que qualquer vestígio de racionalidade que pudesse ter resistido desaparecesse completamente.
-Olha, Malfoy, eu não sei onde você quer chegar e sinceramente não me interessa - ela falava firmemente - Você provavelmente está curtindo com a minha cara. Desculpe, mas não tenho tempo pra suas infantilidades. Até nunca mais - e se virou já indo embora.
-Por favor, espera. Sem que conseguisse refrear seu impulso, Draco a segurou pelo braço. Foi como se voltasse ao campo de quadribol, à noite de sua formatura. O mesmo olhar intrigado o encarava enquanto ele sentia a mesma pele quente queimar sua mão. Seu chão desapareceu.
-O que, por Deus, você quer? - o tom dela era muito mais surpreso do que grosseiro.
-Conversar - ele respondeu e continuou rapidamente diante da expressão incrédula de Gina - Eu estou na cidade há pouco tempo, não conheço muitas pessoas ainda.
-Acha mesmo que eu vou acreditar nisso? - a ruiva tinha um sorriso desdenhoso nos lábios - Draco Malfoy reclamando de sua solidão para uma Weasley "pobretona". Um tanto quanto inusitado, não concorda?
-Talvez - ele deixou escapar uma expressão divertida, mas se recompôs ao ver o espanto de Gina diante disso - Quer dizer, até mesmo eu tenho o direito de me sentir sozinho, não tenho?
-Bom, - ela continuou ignorando o que ele disse - a conversa esta realmente agradabilíssima, mas eu tenho um plantão em meia hora e não pretendo me atrasar. Será que você poderia me largar?
-Ah, claro. Desculpe - ele soltou o braço dela meio sem-graça.
-Tchau, Malfoy - ela falou ainda com uma pitada de sarcasmo na voz enquanto continuava a andar.
Draco ficou observando a ruiva ir embora. Sentia uma vontade louca de correr atrás dela, de abraçá-la e dizer como os últimos dez anos de sua vida foram totalmente frívolos sem ela. Mas ele não se moveu. Apenas continuou parado por muito tempo, mesmo depois dos cabelos vermelhos já terem desaparecido de seu campo de visão. Quando o parque já estava quase que totalmente mergulhado na escuridão do começo da noite, ele finalmente decidiu que era hora de voltar para casa. Sua cabeça trabalhava a mil. Ela tinha falado em plantão, então não estava naquele país de férias. Lembrou-se que a outra Gina tinha lhe dito que ganhara uma bolsa de estudos no exterior, mas recusou para ficar com ele. Bom, naquele mundo eles não tinham se casado, não tinham sequer se visto durante mais de dez anos. Ela tinha aceitado a bolsa, por isso estava ali, por isso agora morava na Alemanha. Precisava vê-la de novo. Ela estava tão perto! Tinha que descobrir onde Gina morava, em que lugar trabalhava, como estava sua vida. Começaria amanhã mesmo. Ligaria para todos os hospitais de Berlim, iria a todas as clinicas bruxas da cidade, se jogaria "acidentalmente" de uma vassoura se fosse necessário, mas a encontraria.
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O saguão de entrada era claro e espaçoso. No balcão de atendimento uma bruxa de uniforme azul sorria simpática para um homem que acabara de lhe agradecer. Era um dos melhores hospitais bruxo da Alemanha. Draco se aproximou da recepcionista.
-Com licença, senhorita - ele não se aventurou a perguntar em alemão, ainda não dominava muito bem a língua.
-Posso ajudá-lo, senhor? - a mulher respondeu com um forte sotaque.
-Estou procurando pela Dr. Virginia Weasley. Onde eu a encontro?
-O senhor é paciente dela?
-Digamos que só ela pode resolver meu problema...
-O senhor tem consulta agendada? - a bruxa já o fitava desconfiada.
-Sou um velho amigo dela. Creio que não preciso marcar um horário - apesar de educado, já havia uma ponta de impaciência em sua voz.
-Desculpe, senhor, mas a Dr. Weasley tem uma agenda muito cheia. Acredito que não será possível vê-la. Podemos marcar uma consulta para o final de março e...
-Será que não há mesmo uma outra maneira? - Draco se debruçara no balcão e sorria sedutor para ela - É realmente urgente.
-Bem, - ela parecia um pouco desconcertada com o olhar malicioso do loiro - acho que posso colocá-lo na frente de algumas pessoas...
-Eu ficaria eternamente grato - ele segurou a mão dela e deu um leve beijo sem perder o contato visual.
-Semana que vem está bom? - a mulher folheava uma agenda enquanto corava.
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A ruiva saía apressada do hospital. Draco, que observava do outro lado da rua, começou a segui-la, tomando cuidado para não chamar a atenção. Mesmo com a certeza de que conseguiria falar com Gina na consulta que marcara, ele não deixava de espioná-la. Descobrira onde ela morava, os lugares que costumava ir, os programas que gostava de fazer. Mesmo assim, não conseguia controlar a vontade de vê-la.
Atravessou a rua e manteve uma boa distância dela. Estavam indo em direção a uma pequena casa de chá que ficava a alguns quarteirões do hospital. Gina andava cada vez mais rápido, porém não parecia perceber a presença de Draco. Ele apertou o passo, mas a perdeu de vista quando um pequeno e barulhento grupo de adolescentes se colocou entre os dois.
Assim que conseguiu sair do meio dos jovens, parou e pôs-se a olhar ao redor a procura das indiscretas madeixas rubras. Não teve tempo de procurar muito, entretanto. Sentiu alguém puxá-lo pelo braço para o beco ao lado daquela rua.
-Até quando vai me seguir, Malfoy? - Gina o prensara na parede enquanto falava com os dentes trincados.
-Quem disse que eu estou te seguindo? - se recuperando do susto, ele tentava falar da maneira mais impassível que conseguia.
-Eu não sou idiota, ao contrário do que você pensa! - a ruiva começava a ficar vermelha - Acha que eu não percebi que desde o dia infeliz que me viu no parque você vive atrás de mim?
-Você deve estar me confundindo com alguém - Draco continuou com sua máscara de frieza.
-Ai, eu não acredito nisso! - ela já levantava a voz, seu rosto tão vermelho quanto o cabelo - Como você consegue ser tão cínico? Eu vi você me seguir. Ninguém me contou, eu vi!
Não conseguindo se conter mais, o loiro riu. Gina se afastou dele, cada vez mais nervosa, os olhos faiscando. Draco continuava encostado na parede, as mãos na barriga, o corpo levemente curvado. Seus olhos já estavam lacrimejando quando ele se controlou o suficiente para encará-la.
-Por que você tá rindo? - ela praticamente gritava.
-Nada, nada - ele respondeu ainda ofegante - Eu tinha esquecido como você fica engraçada quando tá brava.
-Malfoy, você bateu com a cabeça? - ela gesticulava descontroladamente - Ou só tá ficando louco?
Imediatamente, a expressão divertida de seu rosto desapareceu. Ela acabara de dizer a mesma frase que ele escutara naquele campo de quadribol. Não, mais uma vez a loucura não era a razão daquela atitude tão inadequada para um Malfoy. Agora, entretanto, ele não se limitaria a encará-la. Gina teria sua resposta.
-Não, Virginia, eu não estou louco - ele a fitava sério - Da mesma forma como não estava quando você me viu na noite da minha formatura. Se você não é capaz de perceber, isso se chama felicidade. A diferença é que dessa vez você é o principal motivo disso.
Draco não esperou que ela retrucasse. Ignorando totalmente qualquer resquício de sanidade que poderia haver em sua mente, ele a enlaçou pela cintura e a beijou. Gina tentou se desvencilhar, mas a língua abusada do loiro fez com que ela perdesse todas as forças. Pousou suas mãos nos ombros dele enquanto era apertada com cada vez mais desejo, enquanto o beijo se tornava cada vez mais desesperado.
Foi somente quando sentiu a mão dele por dentro de sua blusa, acariciando suas costas, que ela despertou. Tomando consciência de que estava beijando um Malfoy no meio de um beco deserto, Gina começou a se contorcer e a empurrá-lo.
Draco era muito maior e mais forte do que ela e não estava disposto a soltá-la. Era tão bom tê-la de novo em seus braços! Mas uma voz sensata gritava no fundo de sua mente que ele não podia simplesmente continuar com aquilo sem que ela consentisse.
A contra-gosto, se afastou dela. Não teve tempo de abrir os olhos, no entanto. Assim que se viu livre dos braços dele, Gina acertou um tapa no rosto pálido do loiro. Draco sentiu a bochecha arder enquanto a encarava boquiaberto.
-Nunca mais se atreva a encostar em mim! - ela apontou o dedo para ele ao falar com os dentes trincados.
Sem esperar qualquer reação, a ruiva ajeitou a bolsa no ombro e saiu apressada para a rua. Ele continuou ali, a mão no rosto já vermelho e os olhos no céu que começava a escurecer. Abaixou a cabeça para fitar os pés. Foi então que ele percebeu que havia algo no chão. Curvando-se para ver melhor, Draco logo reconheceu o livro de capa verde que ele encontrara no armário da sala de jantar de sua "outra" casa. Abriu-o e viu na contra-capa a mesma etiqueta, porém agora se lia "Propriedade de Virginia Weasley".
Guardou o livro dentro do bolso do casaco e pôs-se a andar. Suspirou. Sentia-se um completo idiota. É claro que Gina não permitiria que ele se aproximasse dela. Ela não sentia nada por ele. Simplesmente o via como o garoto mesquinho e cruel que atormentava seus irmãos e amigos na escola.
Mais do que nunca, ele tinha consciência de que aquela ruiva virara sua vida de ponta cabeça. Os olhos intrigados no campo de quadribol e no Beco Diagonal, os ataques de ódio, o sorriso sincero, as lágrimas de preocupação, as mãos delicadas juntado os pergaminhos no parque e até mesmo o tapa que ainda fazia seu rosto latejar. Tudo nela parecia se encaixar perfeitamente, deixando-o sem ação, simplesmente a mercê de seus caprichos. Mesmo que inconscientemente, Gina o tirava de sua órbita.
She's like the wind through my tree
She rides the night next to me
She leads me through moonlight
Only to burn me with the sun
She's taken my heart
But she doesn't know what she's done
Aparatou na sala de seu confortável apartamento. Jogou o casaco numa poltrona e deixou-se cair pesadamente sobre o sofá. Lembrou-se de como fora maravilhoso viver ao lado dela, escutar sua voz todos os dias, descobrir que ela se irritava por muito pouco, mas que podia rir lindamente por menos ainda. Fechou os olhos e viu o rosto sereno da ruiva na última noite em que estiveram juntos. Era quase como se ele pudesse sentir sua respiração leve e o calor de seu corpo mais uma vez. Encarou o teto. Até quando conseguiria suportar esse tormento?
Feel her breath on my face
Her body close to me
Levantou-se e caminhou até sua suíte. A casa estava totalmente escura, mas ele não parecia se importar. Ela não era para ele, estava totalmente fora de seu alcance. Onde estava com a cabeça quando pensou que ela poderia ser sua? Aquela não era a Gina que lutara contra tudo e contra todos para ficar com ele. Apesar da certeza de que era a mesma mulher, exatamente com suas qualidades e defeitos absolutamente encantadores, Draco sabia que ela não o queria. Se ao menos ele encontrasse um meio de mostrar a ela como, não obstante as personalidades tão diferentes, eles poderiam dar certo...
Can't look in her eyes
She's out of my league
Não, ele não conseguiria fazer isso. Provavelmente ali, naquela situação, eles não dariam certo. Ela não era mais a mocinha sonhadora que não hesitaria em jogar tudo para o alto. Gina tinha uma carreira, amigos, estabilidade financeira, respeito, enfim, era feliz. Não largaria aquilo por alguém que nem lhe inspirava confiança. E mesmo que ela acreditasse nele, o que ele tinha a oferecer? Ela não precisava de mais nada, tinha tudo que poderia sonhar. Quem era ele para pedir que ela abandonasse a vida que tinha construído?
Just a fool to believe
I have anything she needs
She's like the Wind
Como estava sendo infantil! O que aquela mulher estava fazendo com ele? Estava se transformando num adolescente bobo que acreditava em finais felizes. Chega! Enlouqueceria, mas a tiraria de sua cabeça. Não alimentaria mais esperanças, não esperaria mais pelo amor de uma pessoa que não seria sua nunca.
I look in the mirror and all I see
Is a young old man with only a dream
Am I just fooling myself
That she'll stop the pain
Living without her
I'd go insane
Decidido, voltou para a sala, vestiu o casaco e se preparou para aparatar. Devolveria aquele livro antes que caísse na tentação de lê-lo. Veria Gina pela última vez e abandonaria qualquer ilusão de ficarem juntos.
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A portaria estava tumultuada. O prédio, localizado num excelente bairro da Berlim bruxa, tinha uma aparência bem cuidada. Não era um edifício tão majestoso como o seu, mas com certeza possuía moradores com alto poder aquisitivo. Aproveitando-se da confusão provocada por um jovem casal que estava se mudando, Draco passou despercebido pelo porteiro e seguiu para os elevadores. Sabia exatamente qual era o apartamento que procurava.
Parou diante da porta. Fechou os olhos e suspirou antes de bater. Seu coração se acelerava cada vez mais à medida que o som dos passos se aproximava. Sua expressão, entretanto, estava fria e assim permaneceu quando dois olhos castanhos o encararam com assombro.
-O que você tá fazendo aqui? - Gina falou com a voz esganiçada - Como deixaram você subir?
-Eu só vim lhe devolver isso - ele respondeu impassível - Você deixou cair lá no beco.
Boquiaberta, a ruiva tomou o livro de sua mão. Ela começava a ficar vermelha. Encarou o loiro irritada e trincou os dentes.
-Se você fizer alguma gracinha com o que leu aqui, eu juro que...
-Eu não li nada - a voz dele não se alterou - Vim devolvê-lo antes que caísse na tentação de fazer isso.
-E você quer que eu acredite que você não leu? - ela falou com um tom levemente sarcástico.
-Acredite no que quiser - Draco já estava virando as costas quando ela continuou.
-Sabe, Malfoy, eu realmente estou curiosa - a ruiva franziu a testa - Você não me insulta, passa dias me seguindo, me agarra e agora me devolve algo sem nem ao menos tirar proveito disso. Sinceramente, não se encaixa ao Draco Malfoy que eu conheço.
-Esquece, Virginia. Você não vai querer saber.
-E ainda me chama pelo primeiro nome? - ela abriu a boca surpresa - Definitivamente, eu quero saber!
Draco conteve um ar de admiração ao ver Gina fazer sinal para que ele entrasse. Ainda a fitou por um instante antes de passar por ela. A ruiva fechou a porta e se sentou numa das poltronas da sala. Colocou o livro sobre seu colo enquanto encarava o loiro.
Ela devia estar perdendo o juízo. Deixar Draco Malfoy entrar em seu apartamento! E se fosse uma armadilha? Mas ela era curiosa demais para se importar com essa possibilidade. Talvez esse fosse seu maior defeito. Quantas noites não perdera se perguntando o que aquele encontro com o loiro tinha significado? A verdade é que, com o passar do tempo, se convencera de que os olhos tão diferentes que vira na noite do dia 30 de junho de 1998 nada mais eram que fruto de sua imaginação. Vê-lo no Beco Diagonal tantos anos depois e se deparar novamente com aquele olhar a deixou inquieta. Não, não era imaginação. Mas, então, que explicação teria?
Voltou para a Alemanha sem ter uma resposta. Estava incomodada com isso. Odiava essa sensação de que havia alguma coisa que deveria saber mas não conseguia descobrir. Pensava justamente sobre isso quando resolveu dar uma volta pelo parque. E qual não foi sua surpresa ao se distrair enquanto fingia que lia e esbarrar NELE! Mais uma vez, se encontrou com aqueles olhos azul-acinzentados que deixavam transparecer algo que não combinava com o conceito que tinha dele. Algo que, por mais que tentasse, ela não identificava (ou se negava a fazer).
Tentar se convencer de que não havia nada de especial na forma como ele a fitava se tornou impossível. Ele a seguia por toda parte. Gina fingia que não percebia na esperança de descobrir alguma coisa. Mas não, ao contrário, ficava cada vez mais intrigada. Naquele dia ela chegara ao limite de sua paciência. Encostara Malfoy na parede, literalmente, esperando obter respostas para tudo aquilo. Como estava enganada! Só conseguiu mais pontos de interrogação na mente. Agora não era somente o olhar diferente, a atitude estranha, era também aquele beijo impertinente que não saía de sua cabeça.
Passado o choque de vê-lo ali, parado diante de sua porta, lhe ocorreu que aquela era a oportunidade perfeita de entender tudo. Na verdade, ela desconfiava que... Não! Que bobagem! Era óbvio que havia uma outra explicação. Por mais que essa possibilidade, que rondou seus pensamentos durante todos esses anos, pudesse ter tido uma confirmação com aquele beijo, ela simplesmente se recusava a aceitá-la. Descobriria de uma vez a solução para suas dúvidas.
-Vai ficar aí parado até quando? - ela indicou o sofá à sua frente - Senta logo.
Ainda não tendo certeza se estava realmente escutando aquilo, Draco obedeceu. Encarou por alguns instantes os olhos de Gina, que o examinavam. Será que deveria contar tudo? Será que ela acreditaria? Talvez. Só saberia se tentasse. Não esperava que isso mudasse qualquer coisa, entretanto. Só um tolo para acreditar que ele tinha algo que ela precisasse.
-Não vai me falar o que tá acontecendo? - ela estava ficando impaciente.
-Promete que primeiro vai me deixar terminar antes de começar a gritar? - ele ignorou o olhar ameaçador que recebeu.
-Ok - a ruiva resmungou irritada.
-Bom, eu não sei bem por onde começar...
-Que tal pelo começo? - ela revirou os olhos cada vez mais inquieta.
-Sabe, não é uma coisa muito fácil falar sobre isso, e você me pressionar não vai ajudar em nada! - ele passou a mão pela nuca nervosamente.
-Tudo bem, não te interrompo mais - ela cruzou os braços diante do corpo e fez uma cara emburrada.
-Você e seu gênio! - ele riu fracamente enquanto apoiava os cotovelos nas pernas e fitava o chão.
-Por que você fala desse jeito? - ela descruzou os braços e começou a gesticular - Pára de me tratar como se me conhecesse! Você não sabe nada sobre mim!
-Eu sei muito mais do que você pode imaginar! - o loiro levantou a voz e a encarou com uma expressão dura - Eu sei que você odeia ser contrariada, que sempre quer dar a última palavra, que explode por qualquer coisa e que tem um orgulho tão grande quanto o meu! Mas é claro que eu nunca consigo prever suas reações porque você é a pessoa mais inconstante desse mundo! E quando não consegue o que quer, o que você faz? Fecha a cara, fica com um bico enorme e até faz pirraça! Eu nunca encontrei alguém tão insuportável como você!
-Como você se atreve? - ela o fitava ofendida, o rosto quase da cor dos cabelos - Eu não vou escutar você...
-Mas, na verdade, nada disso importa muito - ele ignorou o que ela disse e continuou mais sereno - Pelo menos não quando você fala com a voz mais doce do mundo, quando deixa escapar um sorriso ao fingir que tá brava, quando simplesmente sabe o que tá acontecendo só de olhar ao redor. Você é tão forte! Eu não consigo entender como consegue ser tão delicada, como pode parecer tão indefesa e ainda assim controlar situações que parecem sem solução. Você é tão contraditória!
-Eu, eu... - ela abria e fechava a boca sem conseguir articular nenhuma palavra enquanto o encarava sem reação.
-Seus olhos - ele deu um leve sorriso e abaixou a cabeça - Seus olhos são a chave pra te entender. Eles te entregam. Se tornam tão transparentes quando se aprende a compreendê-los. Mas, sinceramente, eu tenho medo deles. Às vezes tenho a impressão que eles podem ler meus pensamentos, que podem descobrir sentimentos que nem mesmo eu posso.
-Por Deus, como você... - a ruiva o encarava atônita.
-Como eu sei de tudo isso? - ele voltou a levantar os olhos para ela - Simplesmente porque eu fui casado com você.
O rosto dela, que já estava mais pálido que o normal, ficou totalmente sem cor. A boca aberta, os olhos arregalados e a expressão estupefata encaravam Draco como se ele fosse irreal. Ele apenas abaixou a cabeça e suspirou cansado. Não tinha forças para continuar a enfrentar os profundos olhos castanhos de Gina.
-Você tá louco... - ela conseguiu falar num fio de voz após alguns minutos de absoluto silêncio.
-Não, eu não tô - o loiro ainda olhava o chão - Por mais que pareça impossível, é verdade.
-Isso é uma piada, não é? - ela riu, porém sua pergunta suplicava para que respondesse que tudo não passava de uma brincadeira.
-Eu tenho cara de quem quer te fazer rir? - ele respondeu grosseiro enquanto ainda tinha os braços apoiados nos joelhos e os olhos nos pés - Você não se lembra de nada, e nem poderia. De certa forma, não foi você que se casou comigo.
-Será que você pode falar coisa com coisa? - a ruiva o cortou, impaciente.
-O que você fez na última semana do ano passado? - ele mais uma vez a ignorou, sem mudar de posição.
-O quê? - ela foi pega de surpresa pela pergunta.
-O que você fez na última semana do ano passado? - ele repetiu um pouco mais alto.
-Por que você quer saber?
-Responde e explico - o loiro mantinha a cabeça baixa.
-Eu tava na Inglaterra - ela começou depois de um suspiro derrotado - Você sabe, me viu no Beco Diagonal com os meus irmãos. E me olhou daquele jeito estranho...
-Mas PRA MIM você não tava com a sua família - Draco finalmente resolveu encará-la - Do dia 25 de dezembro até a véspera do Ano Novo eu fui pai de três crianças, morei numa casa suburbana, convivi com os seus parentes insuportáveis, tive um emprego horrível no Ministério e agüentei seus ataques. Por sete dias, Virginia, eu fui casado com você. Eu sei que você deve tá pensando que eu perdi o juízo ou que sou um grande mentiroso, mas, pode acreditar, é verdade. Se não fosse, como eu saberia tanto sobre você?
-Isso não faz nenhum sentido, Malfoy! - sua voz voltou a se descontrolar - Eu nunca me casei, eu nunca tive filhos! Nós nunca trocamos frases que fossem mais do que ofensas!
-Você disse que eu te olhei de um jeito estranho no Beco Diagonal - ele a cortou e continuou - Já tinha notado esse olhar outra vez, não tinha?
-Sim... - ela respondeu devagar, esperando pela explicação que acabaria com a dúvida que a incomodava há tanto tempo - No campo de quadribol, no dia da formatura do meu irmão.
-Nunca quis saber porque eu agi dessa forma?
-Me perguntei isso durante todos esses anos - as máscaras já tinham caído, não era hora de fingir-se de desentendida.
-Naquela noite eu vi algo em você que nunca tinha visto em ninguém - ele voltou a fitar o chão, não conseguiria confessar aquilo encarando aqueles grandes olhos castanhos - Não sei bem o quê, mas definitivamente algo tão perturbador que não me deixou em paz. Por mais que eu tentasse negar, que eu tentasse mentir pra mim mesmo, a sua imagem nunca saiu da minha cabeça.
Gina soltou o corpo e suspirou. Ele não precisava dizer mais nada. Seus maiores temores tinham se concretizado. Fechou os olhos e apoiou a cabeça no encosto da poltrona. Era tudo muito claro, não era? A única coisa que não permitiu que ela não aceitasse antes fora a esperança de que a sua grande habilidade de enxergar o que acontecia ao seu redor tivesse lhe enganado. Agora, entretanto, ela não tinha como negar. O próprio Malfoy estava lhe dizendo o que ela relutara em admitir.
-Mas alguém descobriu isso e resolveu tirar proveito da situação - ele fingiu que não percebeu o que ela acabara de fazer - Pouco antes da última batalha contra o Lord das Trevas, eu revelei a Dumbledore o que os aguardava. Eu não era um comensal, mas era filho de um dos maiores deles. Não foi difícil descobrir o que planejavam e me aproveitar disso. Foi uma forma de garantir que, mesmo não tendo ajudado de forma direta, eu seria beneficiado pelo fim da Guerra. Descobri que minha participação foi muito mais importante do que eu imaginava. Se não fosse por essas informações, Potter não teria derrotado o Lord e a Guerra não teria acabado. Um comensal, que ainda não foi capturado, mudou tudo isso. Lançou um feitiço que transformou essa realidade em outra em que eu não sabia de nenhum plano, em que eu tinha me aliado a Ordem da Fênix para ficar perto de você, em que eu não me arrependia de não ter me aproximado de você por covardia.
O silêncio tomou conta da sala. Ainda com os olhos fechados e a cabeça para trás, Gina segurou o livro que estava em seu colo com firmeza. Engoliu seco. Por um momento, quase se arrependeu te tê-lo deixado entrar, de ter descoberto tudo aquilo. Seria tão mais fácil simplesmente continuar a ignorar. Mas não, ela não iria se arrepender. Sabia que nunca conseguiria ignorar, que qualquer coisa era melhor do que a dúvida. Já que tinha começado, terminaria.
-Como foi viver comigo? - mesmo com os olhos ainda fechados, podia imaginar a cara de assombro do loiro.
-O que você disse? - ele perguntou num fio de voz.
-Me conta... - ela ainda continuou imóvel - Como era a nossa vida?
-Você quer mesmo saber? - ele olhou incrédulo a ruiva fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
Sentiu uma ponta de esperança invadi-lo. Ela tinha acreditado nele! E mais: estava interessada em ouvir a respeito! E se pudesse dar certo? E se ela também se apaixonasse por ele? Afinal ela a tinha conquistado uma vez, não tinha? Mas não era a mesma coisa. Ele tinha feito uma adolescente um tanto quanto iludida acreditar que ele podia ser o homem perfeito que ela procurava. Agora estava diante de uma mulher bem-sucedida e realista. Ele não era um "príncipe encantado", não era romântico e muito menos sonhador. Podia ter enganado a mocinha recém-formada e perdida, mas não enganaria a Gina feliz e bem-resolvida que encontrara na Alemanha. Só um tolo para acreditar que ele tinha algo que ela precisasse.
-Absolutamente maravilhosa - ele finalmente respondeu com um sorriso fraco - Nós não tínhamos muito dinheiro, a casa era uma bagunça, alguém sempre saía machucado nas "reuniões de família" e nós dois discutíamos pelo menos dez vezes por dia, mas era absolutamente maravilhoso. As gargalhadas altas dos gêmeos, o sorriso doce da bebê, o cheiro do seu cabelo de manhã. Coisas que eu nunca achei que pudessem fazer tanta falta...
-Nós éramos felizes? - uma lágrima rolou por sua face e a voz saiu levemente embargada apesar de ela fazer um esforço sobre-humano para se conter.
-Eu era - o bruxo continuou absorto em suas lembranças - Sabe, eu sempre achei que tinha tudo que precisava, que a minha vida era perfeita, mas percebi o quanto a minha existência era medíocre. Isso pode soar um pouco óbvio pra você, afinal sempre esteve rodeada de pessoas que te amam e te completam, mas eu me sinto vazio sem uma família, sem a família que foi minha mesmo que por tão pouco tempo. Estranho um Malfoy falar isso, não é mesmo?
-Você realmente não leu? - ela finalmente abriu os olhos, que estavam vermelhos, e levantou o livro de capa verde enquanto desistia de reprimir o choro.
-Não, eu não li - ele a encarava assustado, não esperava essa reação.
-Olha pra mim - ela se endireitou na poltrona, o rosto marcado e o livro de novo sobre as pernas - O que você vê?
-Como assim? Onde você quer chegar?
-Me diz, o que você vê? - ela insistiu na pergunta.
-Bom, eu vejo uma bruxa muito bonita com um livro no colo e que tá chorando por um motivo que eu gostaria muito de saber.
-Não, não é isso que eu quero saber! - ela deu um soco de impaciência no braço da poltrona - Diz o que você acha de mim, do que eu sou hoje.
-Eu já disse isso, Gina - ele soltou um suspiro cansado - Você é uma mulher linda, com um enorme sucesso profissional, inteligente, rica, cercada de pessoas que te adoram e respeitam, enfim, você tem toda felicidade que qualquer um gostaria de ter!
A ruiva apertou os olhos e deixou que mais algumas lágrimas caíssem. Draco sentia uma enorme angustia ao vê-la daquele jeito, mas não tinha coragem de se aproximar dela. Ela não o queria, não precisava dele. Ele não tinha o direito de virar a vida dela de cabeça para baixo. Talvez fosse melhor ir embora de uma vez.
Já tinha se levantado quando Gina abriu os olhos e fez um sinal de negação com a cabeça. Ela foi até ele e o levou de volta ao sofá, sentando-se ao seu lado. Delicadamente, se voltou para o livro e passou a folheá-lo. Parou finalmente em uma das páginas e se virou para o loiro.
-Lê, por favor - ela colocou o objeto nas mãos com a voz serena.
Mesmo sem entender nada, pôs-se a ler. Reconheceu a letra um pouco esgarranchada dela. No inicio, imaginou que aquilo fosse mais um de seus diários. Enquanto lia, entretanto, viu que era mais que isso. Sentiu a garganta apertar, o estômago revirar e seu coração acelerar. Ao chegar ao fim de várias páginas, encarou atônito os olhos castanhos que não deixaram de observá-lo em nenhum momento.
-Eu não sou feliz - Gina sussurrava suplicante - Mas eu quero ser...
Sem pensar, Draco jogou o livro no chão e colou seus lábios nos dela. Sentiu os braços delicados enlaçarem seu pescoço enquanto a boca macia se abria. Puxou-a para seu colo e aprofundou o beijo. Parecia um sonho, parecia irreal, mas ele tinha certeza que o cheiro dela não era apenas fruto da sua imaginação. Não dessa vez.
-Eu te amo - ele a abraçou forte e disse em seu ouvido.
-Eu também vou te amar - ela segurou o rosto dele entre as mãos e fitou seus olhos - Eu preciso te amar...
Beijando-a novamente, Draco deixou-se perder na alegria absolutamente perfeita que sentia. Ela estava de novo em seus braços e ele não a deixaria sair dali nunca mais. Só um tolo para acreditar que ele tinha algo que ela precisasse. Bom, ele era um tolo...
Notas no epilogo.
