Outro Futuro

Não entendia muito. Eu ainda não entendo. Mas algumas coisas já são muito mais claras, mesmo que não sejam totalmente coerentes, racionais ou sensatas. Bom, não sou a mais indicada para falar sobre coerência, racionalidade ou sensatez, mas acho que o Tempo (lembra dele?) me fez compreender muito bem o sentido dessas palavras, e como elas podem ser absolutamente dispensáveis.

Eu tinha pouco mais de 17 anos quando esse livro veio parar em minhas mãos. Nunca vou esquecer aquela briga, nunca vou esquecer como posso ser cruel. Ainda hoje sinto um enorme aperto no peito ao pensar no que disse ao meu pai naquela noite. Por mais que eu não o compreendesse, eu não tinha o direito de machucá-lo da forma que fiz.

Mas não vou começar por aí. Vou voltar muito mais. Sei que as páginas que estão antes das minhas já contaram essa história, porém quero mostrar a minha relação com esses fatos, fatos que estão irremediavelmente ligados às minhas atitudes, às minhas escolhas, a toda a minha existência.

Meus pais são pessoas totalmente incompatíveis. Não se suportavam quando jovens, têm concepções e valores na maior parte das vezes opostos, personalidades fortes e explosivas. Meu pai é arrogante, sarcástico e infantil. Minha mãe é teimosa, implicante e temperamental. Meus irmãos e eu ainda nos perguntamos como eles não se mataram. Como se precisasse complicar mais, meu pai odeia a família da minha mãe, sendo que a recíproca é verdadeira. Enfim, o tipo de casal que até mesmo o mais otimista olha e diz "Não vai dar certo!".

Contra todas as expectativas, entretanto, eles se apaixonaram. Meu pai morava em Berlim há pouco tempo quando esbarrou na irmãzinha de seu inimigo dos tempos de colégio em um parque. Em menos de seis meses todas as colunas sociais do mundo bruxo já anunciavam a data de um dos casamentos mais inusitados que se teve notícia. O choque foi generalizado.

Acho que dá pra imaginar as reações que se seguiram. Meu pai recebeu corujas de "amigos" preocupados com a sua sanidade mental ou com a possibilidade de ele estar sob o efeito da maldição "Imperius". Os seis irmãos da minha mãe apareceram diante da porta do apartamento dela num ataque histérico coletivo. Apesar de sempre rir ao falar, tenho certeza de que o tio Jorge não está inventando nada quando descreve como foi "hilário" ver o meu pai e o tio Rony se socarem no meio da rua. A coisa só não acabou em morte porque os meus avós chegaram no dia seguinte e conseguiram acalmar os ânimos.

Mas nada adiantou. Mesmo diante de todas as caras feias e descrentes que receberam, eles se casaram no fim de 2009. Quando eu era criança adorava sentar no colo da vovó e escutar a história do dia do casamento dos meus pais enquanto folheava o álbum de fotografias. Minha mãe estava linda! Meu pai, então, de tirar o fôlego! Ele fez questão de uma festa grandiosa, num belo castelo no norte da Alemanha. Convidados ilustres, decoração impecável, uma pequena orquestra. Tudo absolutamente perfeito. A não ser, é claro, pela cara de poucos amigos dos meus tios, em especial do tio Carlinhos e do tio Rony. O tio Fred costuma dizer que a massa encefálica dos dois é inversamente proporcional aos seus portes físicos. Nas palavras dele, "se o noivo era um traste, pelo menos eles deveriam ter aproveitado a boca-livre!". Para o alívio da minha avó, e atendendo às suas preces, imagino, seus "filhinhos" se limitaram a fuzilar meu pai com os olhos. A cerimônia e a festa transcorreram sem grandes desastres.

Poucos meses depois, mamãe anunciou que estava grávida. No dia seguinte, a entrada da pequena mansão em que moravam estava abarrotada de caixas, pacotes e coisas do tipo. Meu pai tinha comprado dezenas de brinquedos, tudo em dobro. Ninguém nunca entendeu como, mas meus pais tinham certeza de que teriam gêmeos. E assim, logo depois do Natal, meus irmãos nasceram. Mamãe escolheu os nomes: Michael e Gabriel. Ela diz que deu nomes de anjos aos garotos numa tentativa de evitar que eles se tornassem versões loiras do tio Jorge e do tio Fred. Papai sempre faz questão de lembrá-la que, como ele avisou no dia que os meninos nasceram, essa idéia não funcionou.

Sabe aquele tipo de criança que consegue levar até um monge budista à loucura? Pois os meus irmãos eram (e ainda são!) infinitamente piores! Imagine a travessura mais estapafúrdia... Pode ter certeza que eles já fizeram algo parecido ou pior! No mínimo uma vez por semana minha mãe tinha um colapso nervoso por causa dos garotos. Papai chegou a criar o "quarto do castigo", um cômodo monitorado por inúmeros feitiços para onde os meninos eram mandados quando passavam demais dos limites. Mesmo sendo crianças "incontroláveis", como o tio Percy gostava de frisar, os gêmeos eram carinhosos e doces. No fim, sempre dobravam todo mundo.

Minha família ficou na Alemanha por um bom tempo. Quando minha mãe descobriu que estava grávida de novo, decidiu que voltaria para Inglaterra. Meu pai bateu pé. Não queria ter que conviver com a família da mulher por nada no mundo. Meus irmãos me contaram que foi uma das brigas mais feias que nossos pais já tiveram, e olha que eles sempre brigam. Ficaram sem se falar por mais de um mês, até o dia em que mamãe sentiu o bebê mexer pela primeira vez. Ela correu até meu pai e colocou a mão dele na barriga. É, tenho que admitir que minha mãe sabe exatamente como convencê-lo. Semanas depois já estavam de mudança.

Moraram por alguns meses em uma bela cobertura em Londres. Mamãe se recusava a ir para a mansão Malfoy. Viver em um apartamento, entretanto, não fez muito bem aos meus irmãos. Estavam piores do que nunca. Papai insistia que só sairia daquele prédio se fosse para sua antiga casa. No dia em que os gêmeos colocaram fogo no parquinho do condomínio, minha mãe finalmente resolveu ceder. Reformaram a mansão e se mudaram antes que os garotos machucassem alguém de verdade.

Nasci no dia 20 de fevereiro de 2017. Nas palavras de meu avô, "a menininha mais linda que ele já tinha visto". Brinquedos, roupas, doces, toda atenção do mundo. Tia Mione conta que eu nem precisava chorar. Antes que eu pudesse pensar em querer alguma coisa, já estava na minha frente. Tive toda a família aos meus pés. Eu era a "princesinha" dos Weasley, mas principalmente eu era a "princesinha" do meu pai.

Acho que passei minha infância toda escutando as pessoas dizerem que não reconheciam naquele pai babão e coruja o arrogante e prepotente executivo que detinha uma das maiores fortunas da Grã-Bretanha. Não importava quanto ocupado ele estava, ele sempre encontrava tempo para nós. Quantas vezes ele não chegou tarde e foi jogar quadribol com os meninos no jardim, quantas vezes ele simplesmente tirou uma semana de folga e nos levou para férias fora de época (sendo que em muitas dessas viagens mamãe não foi porque se negava a negligenciar seu trabalho), quantas vezes ele não me colocou sentada no colo só para escutar eu falar das minhas amiguinhas, bonecas e coisas do tipo.

Meu pai não era perfeito. Nunca foi e nunca será. Continuou esnobe, sarcástico e até imaturo. Não perdia uma única oportunidade de criticar a família da minha mãe ou de falar mal do tio Harry e da tia Mione. Mesmo assim, para mim ele era o cara mais legal do mundo. Meu herói, meu ídolo e, de certa forma, minha paixão. Cresci cercada de mimos, mas eu só me comportava realmente como uma criança "estragada" quando o assunto era meu pai. Não aceitava dividí-lo, não aceitava receber o segundo beijo, não aceitava ficar longe por muito tempo. Eu exigia ser prioridade para ele.

Com o tempo, isso acabou se transformando em um grande problema. Meus irmãos ficavam cada vez mais enciumados, o que tornava nossas brigas constantes. Mamãe tentava controlar a situação enquanto papai parecia até se divertir por ser o pivô das nossas discussões. A antipatia que os garotos criaram por mim só aumentava mais e mais a cada um dos meus ataques possessivos (que, diga-se de passagem, não eram nada esporádicos).

A relação dos gêmeos com os nossos pais nunca foi serena. Na verdade, nada na vida deles (e na minha também) foi. Acho que, no fundo, mamãe nunca se conformou com a personalidade deles. Por mais que ela tivesse convivido com irmãos tão impossíveis quanto os meninos, por mais que o papai acobertasse muitas das travessuras dos garotos, por mais que a vovó insistisse que nada faria os dois pestinhas mudarem, ela ainda acreditava quepodia fazê-los se comportar melhor. Doce engano! Quanto mais eles cresciam, mais sofisticadas ficavam as armações.

Se minha mãe vivia tentando limitar os dois, meu pai até os estimulava. Sabe aqueles conselhos típicos de pais, como "Comporte-se!" ou "Lembre-se do que eu te ensinei!"? Pois eu nunca ouvi meu pai dizer nada parecido aos gêmeos. È verdade que muitas vezes ele se enfurecia com os garotos, mas nada que não passasse logo. Ao contrário do que acontecia com o resto da família, meus irmãos nunca dobraram meu pai. Ele cedia conscientemente. Uma coisa, entretanto, eu nunca entendi: a atenção exagerada que ele dava às atitudes do Michael. Anos mais tarde, durante uma das muitas discussões que os gêmeos tiveram com meu pai, Michael perguntou porque ele sempre pegava mais no pé dele do que no do Gabriel. A resposta foi simples: "Porque você tem muito mais dos Malfoy do que o seu irmão".

Mesmo que contra a vontade da minha mãe, nós estávamos crescendo. Os meninos foram para Hogwarts. Josh, o filho caçula do tio Rony e da tia Mione, e eu éramos os únicos que ainda não estávamos na famosa escola de magia e bruxaria em que nossos pais estudaram. Para o deleite dos meus tios, os gêmeos foram para a Grifinória. Como todos os meus primos mais velhos (todos ruivos, por sinal) já vinham provando, o sangue Weasley costuma falar mais alto. Papai teve que agüentar as piadinhas do tio Fred e do tio Jorge por um bom tempo, isso sem falar nas provocações do tio Rony. Em dezembro daquele ano, no aniversário de onze anos dos garotos, eu vi meu pai sair no braço com meu tio pela primeira vez. Na verdade, eu acho que isso já tinha se tornado uma constante, eu é que era muito pequena para prestar atenção e me lembrar depois. Senão, que outro motivo minha tia teria para suspirar um "de novo!" antes de petrificar os dois?

Finalmente eu tinha meus pais só pra mim! Fiquei muito feliz quando os garotos foram embora. Toda a atenção da casa seria só minha. Com o passar dos meses, entretanto, comecei a sentir como meus irmãos faziam falta. Quando eles chegaram para as férias de verão eu já não me agüentava de saudades. Perceber como eles eram importantes na minha vida fez com que pulássemos boa parte da fase de grandes discussões que ainda deveria existir e passássemos às briguinhas bobas resolvidas sem a interferência dos nossos pais. No fim, eu até já tinha deixado de lado a exigência de monopólio sobre a atenção do nosso pai. Acabamos nos transformando em amigos.

Mamãe também sentiu muito a ida dos meninos para a escola. Perdi as contas das vezes que a peguei no quarto deles, sentada entre as almofadas, vendo as fotografias de bebê dos dois. Papai não parecia muito feliz com a reação dela. Eu sei que ele também tinha saudades daqueles monstrinhos, era impossível não sentir a casa enorme e vazia sem as traquinagens, as risadas altas e as inúmeras explosões a que estávamos acostumados, mas ele tentava se controlar. Meus pais sempre tiveram um grande problema de comunicação: a maior parte das conversas sérias que começavam dava em discussão. Dessa vez não foi diferente. Todas as tentativas do meu pai de fazer com que minha mãe esquecesse dos garotos por alguns momentos terminavam em gritos, portas batendo e coisas se quebrando. Acho que foi depois de presenciar tudo isso que eu percebi que meus pais eram totalmente incompatíveis.

Passei a prestar atenção no relacionamento dos dois. Quando os garotos foram para o segundo ano minha mãe já estava aceitando o fato de ficar longe deles, mas mesmo assim as discussões continuavam.

-Por que o papai e a mamãe brigam tanto?

-Por que você tá perguntando isso?- Gabriel se assustou com a minha pergunta.

-Por que eu não vejo os pais das minhas amigas brigarem assim...

-Rach, ninguém é igual a ninguém! - Michael pareceu irritado ao responder.

-Cara, eles brigam e pronto! Não tem um motivo em especial pra isso.

-É que eu não gosto de ver os dois brigarem! Eu fico com medo do papai, ele fica tão bravo! Sem falar nos gritos da mamãe...

-Finge que não tá acontecendo nada, Rach. Eles sempre foram e sempre vão ser assim.

-Desencana, maninha. É o que dá pra fazer...

Mas eu não desencanei. Comecei a me perguntar porque os dois se casaram, porque estavam juntos se não passavam um único dia sem discordarem um do outro. Eu dava tanta atenção às discussões que não suportava ficar mais perto deles quando estavam juntos. Me afastei dos meus pais. Não sentia mais vontade de ser "a princesinha do papai" ou "a melhor amiga da mamãe". Quando chegou a minha hora de ir para Hogwarts, dei graças aos céus por estar saindo daquela casa.

Os gêmeos tinham acabado de se formar quando eu recebi a carta da escola. Para a tristeza da minha mãe, eles não voltaram para casa. Aceitaram a proposta de sociedade no negócio de logros que o tio Jorge e o tio Fred fizeram e se mudaram para um pequeno apartamento no Beco Diagonal. Meu pai ficou possesso. Brigou, gritou, esperneou, ameaçou deserdar os garotos. Nada adiantou. Meus irmãos deixaram bem claro que não serviam para passarem a vida atrás de uma mesa, trancados em um escritório. Pra variar, isso foi motivo para mais brigas entre os meus pais. Agora era a vez da minha mãe dizer que meu pai tinha que aceitar a personalidade dos filhos. Depois de vários ataques de fúria e de ameaçar meus tios de morte, papai acabou aceitando a escolha dos meninos.

Me lembro até hoje do dia em que cheguei a Hogwarts. Os outros alunos pareciam um tanto quanto assustados, mas eu não. Estava empolgada por finalmente fazer parte daquele lugar. Amei tudo aquilo no momento em que avistei pela primeira vez as altas torres do castelo do outro lado do lago. Ali era minha nova casa.

Meu único parente que ainda estava na escola era Josh, então no quinto ano. Quando meu primo se formasse eu seria a única Weasley em Hogwarts depois de muitos anos. Mas não foi por esse motivo que eu chamei atenção logo na noite em que cheguei ao castelo. Pela primeira vez em minha imensa e antiga família, o sangue dos ruivos não falou mais alto. Pela primeira vez na história milenar daquela escola o chapéu seletor colocou um Weasley na Casa das Cobras. Fui para a Sonserina.

A notícia caiu como uma bomba. Meus irmãos mandaram um berrador mal-criado me chamando de traidora e coisas do tipo. Meus avós ficaram extremamente decepcionados, apesar de terem tentado disfarçar. Josh foi alvo de todo tipo de piadinha, principalmente por parte dos meus colegas sonserinos, que passaram a dificultar nossas conversas. Meus tios me mandaram inúmeras cartas, algumas indignadas, outras compadecidas diante da minha "terrível" sorte. Anos mais tarde eu soube que o tio Gui conversou com o professor Lupin, que substituíra o professor Dumbledore no cargo de diretor, sobre a possibilidade de fazerem uma nova seleção. Minha mãe deixou claro que seria uma grifinória até a morte, mas que estava orgulhosa da filha que tinha. Acredito que descrever a reação do meu pai é totalmente dispensável. Dizer que ele passou o resto da vida provocando meus tios, meus primos e meus irmãos é até redundante. A satisfação que o invadiu ficou estampada em seu sorriso por meses.

Hogwarts. Anos maravilhosos que o tempo já levou. Tomei detenções, joguei quadribol, fui monitora, odiei a Grifinória. Ainda hoje meus irmãos e eu discutimos quando o assunto gira em torno de nossas antigas Casas. Mas no fundo sabemos que não passa de uma rixa boba. O que realmente ficou não foram as salas comunais, os uniformes de cores diferentes, as bandeiras com animais estampados. Foi Hogwarts. Aquilo que realmente amamos foi a grandeza que surgia da união de corvinais, grifinórios, lufa-lufas e sonserinos e não a briga que existia entre eles.

Meus últimos anos foram com certeza os mais turbulentos. Minha relação familiar estava cada vez mais complicada. Odiava voltar para casa. Comecei a inventar milhares de desculpas para passar os feriados na escola, mas elas nunca davam certo. Meu pai sempre me obrigava a ficar com eles o máximo possível. Se eu algum dia pensei que as brigas dos meus pais seriam amenizadas pelo tempo, estava completamente enganada. Eles discutiam com a mesma disposição de sempre. Passei a ignorá-los. Ao primeiro sinal de discordância que surgia, eu simplesmente saia e me trancava no quarto. A adolescente que me tornei não guardava nem a sombra da menina apaixonada pelo pai e amiga da mãe que eu tinha sido.

É verdade que eu já estava agindo com certa impaciência há alguns anos, mas foi somente no meu sexto ano da escola que isso ficou tão explícito. Como é costume na minha família, todo mundo resolveu se meter no problema. Meus irmãos tentavam tocar no assunto comigo, meus primos me paparicavam, meus tios e tias viviam cochichando, meus avós me davam conselhos (que eu ignorava, claro), minha mãe tentava se reaproximar de mim. A reação mais inesperada, entretanto, foi a do meu pai. Ele simplesmente me forçava a estar por perto o máximo de tempo possível. Parecia ter certeza de que tudo não passava de uma fase que logo acabaria.

O Halloween do meu sétimo ano mudou tudo. A professora McGonagall tinha convidado ex-alunos para conversar com os quintanistas a respeito das carreiras que seguiriam. Alguns deles acabaram ficando para as comemorações do Dia das Bruxas. Entre eles, estava um moreno sério e bonito que chamou a atenção de várias garotas, sendo que eu estava entre elas.

Não foi preciso muito para que Tiago me conquistasse. O andar elegante, o sorriso charmoso e uma certa dose de superioridade faziam os garotos que eu estava acostumada a conviver ficarem extremamente sem-graça. Passamos a nos encontrar "coincidentemente" nas minhas visitas a Hogsmead. Descobri que tínhamos estado juntos em Hogwarts por dois anos, que ele fora da Grifinória, que conhecia todos os meus primos e que ele era o filho mais novo do tio Harry que me chamava de cenourinha quando eu tinha cinco anos (e que eu odiava). Está claro que eu me apaixonei por ele.

Imagine ter dois irmãos muito ciumentos. Agora imagine ter seis tios grandes, bravos e possessivos. Ora, isso pode ser controlado! Bom, e se acrescentarmos quinze primos mais velhos? O fato de ser a caçula e única mulher desse batalhão também pode ser um agravante, mas ainda está tudo bem. Tudo o que eu acabei de enumerar se torna pequeno diante de um único ponto: ter como pai um homem que se torna totalmente irracional diante da ínfima possibilidade de um candidato a pretendente a namorado se aproximar mais que dez quilômetros de sua princesinha. Esse era o meu caso. Acho que se torna bem compreensível porque eu quis manter meu relacionamento com Tiago em segredo.

De repente, minha família não parecia tão irritantemente barulhenta, meus primos e meus irmãos não pareciam tão bobos e o convívio com meus pais não parecia tão insuportável. Voltar pra casa não era mais um tormento, não quando eu pensava que poderia dar uma desculpa e sair para ver Tiago. Não sabia porque, mas algo nele me fascinava, fazia com que eu sentisse de novo coisas que tinham se perdido junto com a garotinha carinhosa e sorridente que eu tinha sido. Meu mundo voltara a ser cor-de-rosa.

É claro que todos perceberam a mudança. Voltei a ser sociável para a alegria da minha família. Todos pareciam aliviados. Todos, menos meu pai. Eu podia sentir os olhos dele me analisando quando eu estava de costas, podia ver a expressão desconfiada quando eu dava alguma desculpa para sair e me encontrar com Tiago, podia perceber que ele observava cada uma das minhas ações. Ele estava desconfiado, eu tinha certeza.

Quando contei ao Tiago que meu pai já tinha percebido que eu estava escondendo alguma coisa, ele quis assumir o namoro publicamente. Me neguei veementemente. Ele não entendia o que aquilo significava, não sabia do que meu pai era capaz. Não era só porque a filhinha mais nova dele estava crescendo, era também o fato de ela estar envolvida com o filho de Harry Potter e de uma trouxa, "um mestiço com a pior origem possível".

Essa foi minha primeira briga com Tiago. Ele exigia que eu abrisse o jogo com meus pais ou estaria tudo acabado. Acabei concordando, afinal mais cedo ou mais tarde esse dia teria que chegar. Combinamos que as duas famílias ficariam sabendo ao mesmo tempo, no feriado da Páscoa.

Depois de semanas sem conseguir dormir direito, finalmente chegou o dia de embarcar para casa. Quando cheguei à estação e só vi minha mãe senti um alívio enorme por não precisar encarar meu pai ainda. Tão grande que nem me perguntei porque ele, que sempre fez questão de me buscar, não estava ali. Fui para casa planejando ficar trancada no meu quarto até o jantar.

A mesa já estava colocada quando desci. Gabriel e Michael vieram jantar conosco. Comecei a perceber que tinha alguma coisa estranha ao constatar que meu pai tinha chegado há horas e não tinha ido me ver. Tive certeza, entretanto, quando ele nem ao menos se levantou da mesa para me abraçar.

Minha mãe e meus irmãos também perceberam, claro, mas fingiram que estava tudo certo. Os gêmeos tentavam puxar assunto com meu pai enquanto mamãe tagarelava sem parar. O clima já estava insuportável quando eu finalmente resolvi acabar com aquilo de uma vez. Não agüentava mais a angustia que me consumia.

-...e, sinceramente, eu nunca pensei que o Carlinhos fosse ser um avô tão babão!

-Eu tenho uma coisa pra contar...

Meu pai, que até então estava de cabeça baixa, soltou os talheres com violência no prato. Apoiou os cotovelos na mesa, cruzou as mãos e ficou me encarando. Se já estava difícil, ficou ainda pior. Mas eu não podia voltar atrás.

-Draco! Por que você tá tão irritado esses dias? Eu, hein! - ele ignorou o comentário da minha mãe, que se voltou pra mim - O que foi, filha?

-Bom, é que eu conheci um garoto...

-VOCÊ O QUÊ!? - os gêmeos disseram em uníssono.

-Isso mesmo que vocês ouviram!

-Quem é esse palhaço, Rach? - o Gabriel se levantou tão rápido que a cadeira em que ele estava sentado caiu para trás.

-O que ele te fez? Eu vou quebrar a cara dele! - o Michael também já estava de pé enquanto socava a mesa.

-Michael! Gabriel! Sentem agora mesmo! Ninguém vai quebrar a cara de ninguém! - mamãe falou alto e fez cara feia para os meninos - Não quero ouvir um pio! Deixem sua irmã falar!

-Sabe, mamãe, não tem muita coisa pra falar... - eu já estava arrependida de ter começado aquele assunto diante do olhar fixo que meu pai me lançava. Aquilo definitivamente não era bom!

-Claro que tem, Rach! - ela parecia empolgada - Me diz como ele é, o que faz, como vocês se conheceram... Ele estuda com você?

-Mãe, você tá incentivando essa loucura? - Michael corria os olhos pela mesa buscando apoio de alguém - Ela é praticamente uma criança!

-Pai, fala alguma coisa! - Gabriel suplicou, mas não obteve resposta. Meu pai continuava sem mexer um único músculo, sem demonstrar nenhuma reação. Simplesmente me encarava fixamente.

-Será que eu vou ter que fazer vocês ficarem quietos a força? - minha mãe nem ao menos olhou para os garotos enquanto dizia com jeito de quem encerra o assunto.

-Já acabei de jantar. Tenho que mandar uma coruja pra uma amiga - eu já estava levantando. A coisa que eu mais queria era sair dali. Estava com um péssimo pressentimento sobre o fim daquilo - Depois a gente termina essa conversa, mãe.

-Senta aí, Rachel! - pela primeira vez naquela noite, meu pai disse alguma coisa. A expressão de seu rosto e o tom de sua voz eram de quem não admitiria ser contrariado.

-Draco, calma! - minha mãe sussurrou e colocou a mão no braço dele.

-Eu tô calmo, Gina - em momento algum ele tinha tirado os olhos de mim - Volta pra mesa, Rachel.

O meu cérebro gritava para que eu fugisse enquanto ainda era tempo. Devia sair correndo, pegar a primeira vassoura que eu encontrasse e sumir no mundo. Mas eu sabia que não ia adiantar. Eu tinha que parar de adiar aquilo. Estava na hora de enfrentar meu pai.

-Faz tempo que você conheceu esse rapaz, filha?

-Depende do que você chamar de conhecer, mãe. Mas se o que você quer saber é se estamos juntos há muito tempo, não, não estamos.

-E por que você só tá abrindo o jogo agora? - Gabriel não parecia mais calmo.

-Porque eu sabia que vocês teriam esse ataque!

-E esse cara deve ter adorado não ter que te assumir, não é mesmo? Caramba, Rachel, tá na cara que ele não tem a mínima intenção de ter nada sério!

-Cala boca, Michael! Se for para falar besteira é melhor ficar quieto!

-Rach, por que você não o convida pra jantar com a gente amanhã? Tenho certeza que a implicância dos seus...

-O maldito filho do Potter só vai entrar na minha casa depois que eu estiver morto!

Foi como se eu tivesse levado um soco na boca do estômago. Senti o sangue desaparecer do meu rosto. Ele sabia! Não só sobre o meu namoro, mas sobre quem eu estava namorando. Não conseguia acreditar no que tinha ouvido. Fiquei olhando para a expressão fechada do meu pai boquiaberta, sem nenhuma reação. Foi o Michael quem quebrou o silêncio.

-O que o Matt tem a ver com essa história? Por favor, me diz que eu entendi errado!

-Aquele amigo da onça! Ele tá catando a nossa irmãzinha! Eu vou acabar com a raça dele!

-Eu já disse que ninguém vai bater em ninguém! - mamãe gritou, fazendo os garotos ficarem quietos de novo - Draco, do que você tá falando?

-Você sabe! - eu ignorava todos à minha volta enquanto continuava a encarar meu pai atônita.

-É claro que eu sei - apesar da voz firme, qualquer um podia perceber o quanto ele se controlava para não explodir - Quase sete anos naquela escola e você ainda não aprendeu que é impossível manter um segredo dentro daquele castelo?

-Como você pôde? - a essa altura eu já começava a levantar a voz - Você mandou que me espionassem, foi? Eu não acredito nisso! Eu não acredito!

-Draco Malfoy! Como você foi capaz? - eu nem prestava mais atenção ao que minha mãe dizia.

-Eu fiz o que deveria fazer, Gina! Tava na cara que aquela mudança radical não tinha acontecido do dia pra noite! Eu conheço muito bem a minha filha pra saber que tinha alguma coisa muito estranha acontecendo.

-E isso te dá o direito de invadir a minha vida? - a essa altura eu já estava de pé, gritando a plenos pulmões - Quem você pensa que é?

-Eu sou seu pai, mocinha, e você vai fazer o que eu mando! - qualquer vestígio de controle que meu pai ainda mantinha desapareceu. Ele se levantou também e me encarava com os olhos faiscando de raiva - Esse assunto tá encerrado! Pode acabar logo com esse namoro ridículo antes que eu tome uma atitude!

-Você não vai me dizer o que fazer! A vida é minha, eu faço as minhas escolhas! Eu vou continuar com Tiago vocês querendo ou não!

-Tiago!? Cara, ele sempre dava detenção pra gente depois que virou monitor!

-Rachel, você tá namorando o filho mais chato do tio Harry! Pelo menos o Sean e o Matt tinham umas idéias legais!

-Draco, Rachel, se acalmem!

-Vamos ver se você vai continuar com esse mestiço! Pague pra ver, garota! Eu posso ser muito pior do que você imagina!

-Eu te odeio, sabia? - naquele momento, eu já tinha perdido totalmente a cabeça - Eu te odeio mais do que tudo!

-Rachel, pára com isso! - e minha mãe me conhecia bem o suficiente pra perceber isso.

-Eu odeio essa sua pose de superior, esse seu ar arrogante, essa sua mania de achar que tá sempre com a razão!

-Você ficou louca? - Michael tentava falar mais alto que eu, mas isso era quase impossível. Eu estava fora de mim.

-Você pensa que é melhor que os outros? Não é! Você não passa de um prepotente que foi muito mimado quando era criança! Até hoje eu me pergunto como a minha mãe te agüentou todos esses anos!

-Rachel Weasley Malfoy, já chega!

-Não, mãe, não chega! Por que você não se separa dele? A vida de vocês é um inferno! Vocês só brigam! Por que você casou com ele? Por que você não casou com o tio Harry? Por que o tio Harry não é o meu pai?

-Cala a boca, Rachel!

Eu estava tão possessa que quase não senti o tapa que o Gabriel deu no meu rosto. Sei que ele fez isso pra tentar me controlar. Quando eu levantei a cabeça me deparei com o olhar assombrado da minha mãe e dos meus irmãos. Mas o que eu acho que realmente me fez entender a magnitude de tudo que eu tinha acabado de falar foi o rosto do meu pai. Ele continuou ali, parado diante de mim, durante alguns momentos. Os olhos fixos, a boca apertada, as mãos cerradas, a respiração profunda.

-Faça o que você quiser da sua vida - foi a única coisa que ele disse antes de passar por mim e seguir em direção às escadas.

Naquela noite eu não dormi. Fiquei me perguntando porque tudo tinha que ser tão difícil, porque ele não podia simplesmente entender que eu estava feliz com Tiago, porque as coisas tinham sempre que sair errado. A madrugada já estava avançada e as minhas lágrimas finalmente pareciam ter secado quando escutei alguém bater na porta do meu quarto.

-Eu quero ficar sozinha!

-Abre essa porta agora, Rachel - escutei a voz da minha mãe do lado de fora. Abri a contragosto.

-Por favor, mãe, nada de sermão.

-Eu não vim aqui pra isso - ela estava séria, mas calma. Estendeu a mão e me entregou um livro de capa verde - Toma.

-O que é isso?

-Você me fez uma pergunta há pouco: por que eu me casei com o seu pai. A resposta tá aí. Descubra por você mesma.

-Mãe, eu...

-Lê primeiro, filha, depois conversamos. Espero que você o use bem.

Fiquei muito curiosa. O que podia ser aquilo? Sentei em minha cama e o abri. A etiqueta na contra-capa dizia "Propriedade de Rachel W. Malfoy". Estranhei, afinal nunca tinha visto aquele livro na minha frente. As páginas estavam amareladas, pareciam muito velhas. Fui até a primeira delas. Me assustei. A data era 1276. Parecia um diário muito antigo. Ao avançar na leitura, entretanto, eu vi que era muito mais do que isso. Era um livro de memórias, um objeto que vinha passando de mãe para filha na minha família há séculos. Quanto mais eu lia, mais páginas surgiam. O livro parecia não ter fim. Naquela noite eu conheci pessoas, eu me deparei com grandes problemas, eu vi outros mundos. Mas, principalmente, li sobre amor. Amor entre amigos, amor entre pais, amor entre irmãos, amor entre uma mulher e um homem.

Não importava se era uma mulher da Inglaterra medieval ou uma bruxa vivendo como trouxa na corte de Luis XV ou uma dona de casa do começo do século XX. Todas elas choraram, todas elas sorriram, todas elas se desesperaram, todas elas amaram. No fundo, todas elas pareciam muito comigo.

O que é o tempo, afinal? Séculos atrás, léguas de distância, vidas totalmente diferentes, os mesmos sentimentos. Será que tudo não passa de um ciclo, um enredo com personagens e atos distintos, mas sempre regido pelos mesmos impulsos? Ou será que o Tempo é um brincalhão que não se cansa de assistir às mesmas inquietações? Tempo, Tempo, Tempo. Depois que tomei consciência do seu papel na minha vida você nunca mais me deixou...

O dia já estava amanhecendo quando cheguei à primeira página escrita por minha mãe. Janeiro de 2001. Ela tinha acabado de se mudar para a Alemanha. Lia avidamente, mas não entendia o que tudo aquilo tinha a ver com a pergunta que eu tinha feito. Anos se passavam e em nenhum momento o nome do meu pai era mencionado. As linhas que ela escrevera só falam tristemente sobre olhos que nunca seriam esquecidos. Confesso que já estava quase desistindo quando cheguei a um certo Natal.

Londres, 24 de dezembro de 2008

Não eram as minhas lembranças. Não era a minha imaginação. Lá estavam os belos olhos que eu vira apenas uma vez. Fixos em mim, me analisando, tentando alcançar a minha alma. Por mais louco que possa parecer, foi o que eu senti, mais uma vez, ao encontrar aquele olhar. O que, por Deus, isso significa? Por que isso mexe tanto comigo?

Tempo, você devia parar de se divertir confundindo as pessoas. Isso já tinha acontecido! E não deveria se repetir. Eu quase tinha esquecido daquele azul-acinzentado... Não, eu não tinha. Por mais que eu tente me enganar, isso nunca saiu da minha cabeça, nunca deixou de me atormentar.

E se esse olhar for... Não, que idiotice! Estou voltando a ser uma adolescente boba e sonhadora. Bom, nunca deixei de ser totalmente, só tenho controlado esse espírito. Até quando eu vou esperar? Até quando vou acreditar que existe alguém, que existe algo?

Acho que já está na hora de crescer, de aceitar que eu não nasci para amar, para ser amada. Alimentar esperanças só vai tornar o tombo maior quando eu finalmente descer das nuvens. Consegui quase tudo que planejei, não é? Grandes vitórias em troca de um sonho não realizado.

No fim, o significado daquele olhar deve ser realmente algo banal, algo deturpado pelo meu desejo de viver um amor que dê sentido a essa existência medíocre em que me encontro. No fim, o Malfoy não deve nem ter coração para sentir algo por mim. Mas, sinceramente, eu queria que ele tivesse...

Berlim, 27 de fevereiro de 2009

Meses sem escrever, meses sem pensar. Ou melhor, tentando não pensar. Para afastar definitivamente da minha cabeça a idéia estapafúrdia que me ocorreu depois de vê-lo no Beco Diagonal eu preciso encontrar uma explicação plausível para tudo isso. Mas isso está se tornando cada vez mais difícil!

Pensava nisso enquanto passeava pelo Tiergarten. Um esbarrão, livros caindo, alguém se abaixou comigo para pegar os milhares de pergaminhos espalhados. Ele! Pensei que meu cérebro estivesse me enganando, ou que o tempo, num acesso de humor negro, tivesse me levado de volta àquele campo de quadribol. Mas, não, não era nada disso. Ele realmente estava ali.

Será que era realmente ele? Tão educado, tão gentil. Onde estavam as ofensas, as palavras ásperas? Onde estava o Draco Malfoy que eu conheci em Hogwarts? Por que ele tinha que agir dessa forma, por que ele tinha que ser tão... encantador? Para que eu tenha certeza de como realmente eu me sinto incompleta? Para que eu tenha certeza de como realmente eu PRECISO de alguém? Pára, Tempo, por favor. Eu não quero me iludir, eu não quero mais sofrer. Chega! Príncipes encantados não existem e mesmo que existissem o Malfoy não seria um deles! Eu não vou mais acreditar em contos de fadas com casamentos, filhos e finais felizes.

Ah, mas eu não quero tudo isso! Eu me contentaria com tão menos! Eu me contentaria com um sorriso sincero, com um abraço apertado, com um beijo suave. Eu me contentaria com uma casa bagunçada, com crianças barulhentas, com brigas constantes. Eu me contentaria em acordar só para observar o sono tranqüilo de alguém ao meu lado. Eu me contentaria com um amor de verdade, real, palpável, com todos os seus defeitos.

Eu me contentaria com aquilo que já perdi as esperanças de encontrar...

Fechei o livro que estava em minhas mãos. Eu era tão idiota! A resposta para minha pergunta era tão fácil! Meus pais eram incompatíveis, sim. Meus pais viviam em pé de guerra, sim. Meus pais não se comportavam como um casal normal, sim. Mas meus pais, acima de qualquer coisa, se amavam.

Voltei às memórias da minha infância. Minha mãe gritando pela casa enquanto meu pai tentava pegá-la, as rosas entregues todos os dias de manhã, os dois se olhando durante o jantar, o sorriso dela quando ele voltava de viagem. Imagens que a minha crise adolescente fez com que eu esquecesse. Coisas tão simples, mas ao mesmo tempo tão fortes que faziam com que qualquer discussão presenciada se tornasse quase irrelevante.

Naquele dia eu não tive coragem de sair do meu quarto. Nem no dia seguinte e nem nos outros. Minha mãe e eu conversamos, ela pediu que eu tentasse falar com meu pai, tentasse entendê-lo. Mas eu não quis, não tive coragem. Sentia vergonha de todas as coisas horríveis que eu tinha dito, sentia vergonha de como eu tinha sido imatura nos últimos anos. Julguei meus pais quando na verdade eu era a mais errada nessa história.

Voltei pra Hogwarts sem falar com meu pai. Pedi desculpas para os meus irmãos, para a minha mãe, mas não consegui encará-lo. Não contei ao Tiago o que realmente tinha acontecido. Disse que meu pai não tinha recebido muito bem a noticia, mas que ele acabaria aceitando. Não queria deixá-lo mais preocupado do que ele já estava.

O tio Harry não tinha aceitado a "surpresa" muito bem. Se nós pensávamos que as coisas seriam fáceis com os Potter, nos enganamos totalmente. Tiago e o pai eram completamente diferentes. Ele acabou se tornando uma espécie de "ovelha negra" da família. Responsável demais, adulto demais, altivo demais. O oposto do Sean e do Matt, companheiros dos meus irmãos nas armações e nos jogos de quadribol. Não que o tio Harry e a tia Jane não gostassem de mim, longe disso. O que eles não gostavam era da possibilidade de que seu filho com sérias tendências arrogantes entrasse para a família de Draco Malfoy. Foi então que percebi que muito do que eu amava em Tiago estava intimamente ligado às inúmeras semelhanças que ele e meu pai tinham. Eu tinha voltado a ser a garotinha carinhosa e sorridente porque, através do filho mais novo de Harry Potter, eu me apaixonei de novo pelo meu pai.

Chegou o dia da minha formatura. Metade do Salão Principal foi ocupada pela minha família. Avós, tios e tias, primos, filhos dos primos, irmãos, meus pais. Ele veio. Depois de tudo que tinha feito, depois de tudo que eu tinha dito. Tiago também estava lá, mas meu pai o ignorou. Quando o professor Lupin convidou os formandos para dançarem com seus pais tive medo de ter pedir para um dos meus irmãos ir comigo para a pista de dança. Mas não foi preciso. Meu pai se levantou e me tirou pra dançar. Ele cumpriria todas as formalidades que aquela noite exigia.

-Você tá muito bonita - já estávamos dançando há vários minutos quando ele finalmente falou alguma coisa.

-Pai, eu...

-Com licença, senhor Malfoy. Eu poderia dançar com a sua filha?

Quase tive um ataque ao ver Tiago ali, na minha frente, falando com meu pai.

-Acho que eu não tenho escolha, não é mesmo? - ele estava sério, mas mesmo assim me entregou para o moreno que acabara de falar. Se afastou devagar, sem olhar pra trás, enquanto Tiago me abraçava.

Quando a música finalmente acabou, eu fui procurar meu pai. Olhei por todos os lados, mas não o encontrei em lugar algum. Já estava à beira do desespero quando minha mãe me segurou pelo braço.

-Ele tá no campo de quadribol, filha. Vai lá, pode deixar que eu aviso o Tiago.

-Obrigada, mãe.

Corri como uma louca. Nem me lembro de como cheguei até aquele campo. E lá estava ele, parado no meio no gramado, as mãos nos bolsos, os olhos no céu. Comecei a me aproximar devagar, não queria que ele percebesse que eu estava ali. Mas, como sempre, eu não consegui enganar meu pai.

-As noites de verão são sempre muito bonitas pra se ver desse campo - ele disse sem se virar.

-São... - me aproximei e parei ao seu lado, agora fitando o céu também - Você e a mamãe se viram pela primeira vez aqui, não foi?

-Você sabe que nós já nos conhecíamos - ele abaixou a cabeça, mas não me olhou.

-Vocês já se conheciam, pai, mas nunca tinham se visto de verdade. Não até aquela noite. Acho que só agora eu entendi isso.

-Quem é você e o que você fez com a Rachel? - ele deixou um sorriso fraco escapar.

-Eu sou uma boba que fala besteira demais - por mais que eu tentasse segurar, as lágrimas já estavam caindo.

-Claro que sim - finalmente ele olhou para mim - Você é minha filha.

-Desculpa, pai! Nada daquilo era de verdade! Eu não te odeio, eu não penso nada do que eu disse! Eu não quero que a mamãe se separe de você e eu também não queria que o tio Harry fosse meu pai. Eu te amo mais que tudo!

-Eu também te amo, meu bem. Vem aqui, princesinha.

Perdi a noção do tempo que fiquei ali, abraçada com meu pai. Eu sei que ele me perdoou, eu sei que ele me entendeu, mas eu não me perdoei, eu não me entendi. Até hoje, ainda me sinto culpada, ainda me sinto horrível ao lembrar tudo que eu disse. Teríamos passado o resto da noite naquele campo de quadribol se minha mãe não tivesse chegado.

-Não vão voltar para a festa não? - ela me deu um beijo e abraçou meu pai - Tem um moreno muito bonito te procurando desesperadamente.

-Esse moleque é muito atrevido pro meu gosto - meu pai imediatamente fechou a cara diante da simples menção do meu namorado.

-Draco, querido, eu não quero ter essa briga com você de novo. Não no dia da formatura da nossa filha - ela respondeu séria, mas sem se soltar do abraço - Agora, trate de desmanchar essa tromba e ser o cavalheiro que eu sei que está escondido em algum lugar aí dentro quando nós voltarmos pro salão.

-Será que eu sou a única pessoa sã aqui? - eles já estavam saindo do gramado enquanto meu pai ainda reclamava - Gina, ele é um folgado! Não viu que ele ficava agarrando a Rach toda hora? Eu não gosto dele e nada vai me convencer do contrário!

-Draco, a única forma de você gostar dele seria se ele ficasse a metros de distância da nossa filha! Pelo amor de Deus, ele é um ótimo garoto!

Eles já estavam um tanto quanto longe de mim, mas ainda pude ouvir meu pai dizer "Um Potter nunca será um ótimo garoto, Virginia!". Ele não tinha aceitado ainda, mas pelo menos não estava tentando matar o Tiago. Já era um começo. Não voltei para a festa imediatamente. Fiquei olhando o céu, pensando no que faria da minha vida. Quando finalmente resolvi voltar para o castelo, entretanto, a única certeza que tinha com relação ao meu futuro é que eu nunca permitiria que nada, nem ninguém, me afastasse das pessoas que eu amava.

Naquela noite, depois do baile, eu escrevi minhas primeiras palavras nesse livro. O resto da minha história já está aqui. Os gêmeos se casaram e, assim como meus primos, contribuíram para aumentar cada vez mais a nossa família. Como os filhos do tio Fred e do tio Jorge não se interessaram pelas lojas (eles já tinham uma rede razoável), meus irmãos acabaram tomando conta do negócio. Ganharam muito dinheiro, é verdade, mas estão felizes porque fazem o que gostam.

Eu acabei me tornando uma jornalista. Hoje sou editora do Profeta Diário. Tiago e eu nos casamos dois anos depois da minha saída de Hogwarts. Todos acabaram aceitando nosso relacionamento. Muitos não concordaram, mas respeitaram nossa escolha. Com o tempo, os gêmeos pararam de implicar com o meu marido. Acho que eles perceberam que ele só era um pouco sério, mas que me fazia feliz. Meu pai continuou a fazer cara feia por muito tempo ainda, até o dia em que ele ficou doente e Tiago assumiu os negócios da família por quase um mês. A grande decepção da vida do meu pai foi não ter nenhum filho com tato para administrar suas empresas. No fim foi o filho de seu maior inimigo, o rapaz que ele odiava, que acabou se mostrando a pessoa mais qualificada para seguir seus passos. Mesmo que ele nunca tenha admitido, sei que depois de alguns anos ele até já gostava do Tiago.

Isso, entretanto, não mudou o relacionamento que ele e o tio Harry tinham. Era praticamente impossível juntar as duas famílias sem que meu sogro e meu pai discutissem, considerando também que o tio Rony não ajudava muito a manter um clima suportável. Se eu pensava que isso melhoraria com o nascimento dos meus filhos, me enganei completamente. O simples anúncio da minha primeira gravidez foi motivo para discussões. Tio Harry sugeriu que o bebê, caso fosse menina, se chamasse Lílian. Meu pai disse que nunca aceitaria que sua neta tivesse o nome de uma sangue-ruim e queria que déssemos o nome de Narcisa para a criança. Eles quase saíram no tapa naquele dia. Mamãe teve que trancar meu pai no escritório para que ele não socasse o tio Harry. Pelo menos isso serviu para que Tiago e eu descartássemos definitivamente os nomes Lílian e Narcisa.

Os dois só voltaram a se cumprimentar no dia em que Amy nasceu. Nenhum deles era avô de primeira viagem, mas ficaram totalmente derretidos diante dos olhinhos verdes e das bochechas rosadas da minha primogênita. Pela primeira vez na vida, aqueles dois concordaram com alguma coisa: tinham uma neta linda. Depois dos breves momentos de paz, passaram a competir para ver quem seria o melhor avô.

Três anos depois vieram os garotos. Mantendo a tradição de haver gêmeos em todas as gerações, Eric e Alex nasceram. Os olhos dos Malfoy, os cabelos dos Potter, a personalidade dos Weasley. Tiveram momentos em que eu achei que enlouqueceria com os dois. Não sei o que teria feito sem minha mãe e minha avó. Duas mulheres observadoras, carinhosas e fortes. Duas mulheres maravilhosas. Me orgulho de ser neta de Molly Weasley. Me orgulho de ser filha de Virginia Malfoy. Me orgulharei se chegar a conclusão de que fui a metade do que elas são.

O Tempo passou. E você foi tão rápido, Tempo. Meus avós já estão muito velhos. Meus tios, mesmo envelhecendo, ainda insistem em provocar meu pai. Amy já está trabalhando com Tiago. O meu Tiago, o homem que eu agradeço toda noite por ter aparecido na minha vida. Meus irmãos continuam impossíveis, assim como o tio Jorge e o tio Fred. Alex e Eric se formam no ano que vem. Meus sobrinhos já são adultos. Meus pais já se aposentaram, assim como os meus sogros. Agora, se dedicam a paparicar os netos e a esperar pelos bisnetos.

E eu? Bem, eu já vivi muita coisa, eu já vi muita coisa, mas ainda me sinto tão imatura, ainda não entendo tanto. Às vezes eu tenho muito medo, eu sinto uma angustia enorme. Será que eu fiz tudo que deveria fazer? Será que eu não errei demais? Será que eu fiz as escolhas corretas? Nestes momentos um episódio sempre me vem a mente: meus pais abraçados, sentados diante da lareira, numa noite de Natal em que eu ainda era muito pequena. E eles ainda estão lá, ainda se sentam abraçados na frente da lareira depois de colocar os netos na cama. Como eu posso, então, pensar em certo ou errado? Eles eram mais que errados, mas, mesmo errando, fizeram tudo certo. Não tem nada a ver com coerência, com racionalidade ou com sensatez. Tem a ver com uma lua linda, a brisa quente, cheiro de grama, um grito de felicidade. Tem a ver com olhos assustados, provocações sem resposta, uma mão segurando um braço. Tem a ver com aquela vontade de ficar junto, de fazer o outro feliz acima da sua própria felicidade, de sentar na varanda num dia quente só para ver as estrelas enquanto as mãos estão entrelaçadas. Tem a ver com amor, o amor que os meus pais tem um pelo outro, o amor que eu tenho pelo Tiago.

Tempo, Tempo, Tempo brincalhão, Tempo que não pára, Tempo que não volta. O meu tempo nesse livro já acabou. A etiqueta na contra-capa magicamente mudou o nome para "Amy M. Potter". A história, que sempre começa e termina aqui, está pronta para ser escrita mais uma vez.