CAPÍTULO 8 – SOBRE SANGUE E DRAG'ES
" E disse o Senhor a Caim: 'Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama por toda terra até a Mim"
(Gênesis 4, 10-11)
Gui acordou sobressaltado pela segunda vez acreditando, num primeiro momento, que tratara-se de sonho. Estava no lusco-fusco dos últimos minutos antes do amanhecer, e uma luz cinzenta e desbotada enchia o quarto. Ele estava sozinho na cama. Por alguns minutos, pensou, sem sucesso, tentando concluir o que realmente acontecera naquela noite. Sentou-se, passando a mão pelo peito nu ainda na tentativa de descobrir se sonhara ou se Fleur estivera mesmo em sua cama na noite anterior.
Os flashes do que acontecera à noite vinham aos montes, e interiormente ele sabia que ela havia estado ali, mas alguma coisa essencial o fazia duvidar disso. Ele mesmo não conseguia captar onde estava a incongruência daquilo... A sensação de irrealidade que o acometera do momento em que tivera Fleur nos braços até o instante em que adormecera novamente, sem sequer trocar uma única palavra com ela, apenas se deixando levar pelo delírio de ter novamente seus beijos, tão mais amargos se esvaiu e agora ele percebia com clareza o que acabara por fazer.
E, decididamente, ela escolhera o pior momento de sua estada ali para fazer aquilo. Pensando nisso, levantou-se com raiva. Raiva dela e de si mesmo, que não conseguira evitar a traição ao próprio irmão. Pensando em Carlinhos, cobriu o rosto com as mãos. Como iria conseguir olhar seu rosto agora? Era o seu irmão, que ele não hesitara por um minuto em acusar de traição, quando, na verdade, não tivera culpa e se apaixonara pela mesma mulher que ele sem saber disso.
Traidor do próprio sangue. Ele, sim, fizera tudo consciente do abismo em que se atirava. Ele aceitara passivamente a oferta da serpente, sem nenhum julgamento de valor, apenas seguindo a sua vontade, que era maior e mais poderosa que o carinho por seu irmão. Baixou os olhos e viu a si mesmo em pé, nu, ao lado da cama, no pior momento possível para deixar-se imobilizar. Era o primeiro dia da coleta do sangue dos dragões, e estava ali para muito mais do que discutir seu triângulo amoroso com Fleur e o irmão. Aquilo podia esperar, afinal, em algum lugar distante dali, Voldemort contava com uma falha dele para poder roubar o precioso líquido.
Vestiu-se rapidamente, tentando afastar o pensamento do ocorrido quando uma idéia surgiu na sua cabeça com o impacto de um choque elétrico: e se fosse exatamente aquela a intenção de Fleur? E se ela quisesse, tão simplesmente, atrapalhar aquilo que ele tinha vindo fazer ali, se ela tivesse deitado na sua cama apenas e tão somente para fazê-lo ficar tão confuso e perturbado a ponto de ocupar-se mais com sua crise de consciência que com sua missão, que era proteger a coleta de sangue de dragão?
Com o rosto vermelho de raiva, ele acabou de se vestir rapidamente e saiu para o ar gelado do acampamento, que já acordava para o longo dia de trabalho, procurando Fleur com os olhos. Ele a encontrou, falando com Carlinhos, que já se preparava para a última instrução do pessoal antes da turma de coleta sair para a missão. Seu irmão já estava totalmente equipado com uma roupa de couro de dragão, uma macacão, cheio de bolsos, muito funcional e em um dos bolsos saíam luvas do mesmo material. Sobre a mesa onde ele colocara suas anotações, do lado de fora do acampamento em frente ao chalé refeitório, havia alguns capacetes feitos de osso de dragão e outros apetrechos que ele não sabia muito bem para que serviam.
– Quando cada amostra chegar, Fleur, você pode começar a análise com Janine imediatamente. Não se esqueça que o sangue do dragão fora do corpo fica numa temperatura constante de 100° por pelo menos quatro horas, portanto, a amostra é perigosa. Cada amostra tem um litro e meio, e Janine pode te orientar sobre o reenvasamento nos frascos menores, o ideal é que isso seja feito assim que o sangue for analisado. Não se preocupe com o que vai ficar para a sua experiência, está na minha previsão, certo?
– Certo.
Carlinhos, que até então estava sério, sorriu para Fleur e deu-lhe um beijo de leve.
– Boa sorte – ela murmurou.
– Obrigado – ele respondeu ainda sorrindo. – Mas já fiz isso mais de dez vezes e nunca tive problemas... A não ser uma queimadura de segundo grau, que nem doeu tanto – completou com ar brincalhão. – Agora já para o laboratório, tenho muito a fazer antes da partida.
Ela se virou sorrindo e deu de cara com Gui. Não houve alteração nenhuma em seu sorriso ao olhar para ele. Gui sentiu um aperto de revolta dentro do peito. Ela precisava ser muito cínica para proceder daquela forma, e ainda dar-lhe bom dia, como fez, em seguida indo direto para o laboratório.
– Gui, você está bem? – perguntou Carlinhos. Gui disfarçou a irritação que sentia em relação a Fleur e disse:
– Estou ótimo. Passou bem a noite?
– Dormi feito uma pedra, foi ótimo. Bom, preciso arrumar uma roupa protetora para você, não quero meu irmão virando churrasco. Vista isso e depois retorne aqui rapidamente para a instrução final. Partimos em meia hora, às seis em ponto. Você melhorou seu vôo, não? Estava te observando segunda feira. É bom, porque podemos precisar fugir feito flechas se algum dragão se enfurecer ou não for derrubado na hora.
Gui afastou-se com a roupa e voltou ao seu chalé, onde se vestiu. A roupa, logo depois se ajustou magicamente, era um macacão de couro escamoso, como o de seu irmão. Era confortável e quente. Pegou as luvas que o irmão lhe dera e pendurou nos bolsos do macacão.
Quando saiu do chalé, viu a porta do laboratório aberta e Fleur sozinha, verificando os frascos para acondicionar o sangue que seria coletado. Olhando para o centro do acampamento e vendo Carlinhos ocupado, resolveu falar com Fleur, seria a última oportunidade antes da partida. Ao vê-lo entrar, ela ficou calada e eles ficaram um instante se encarando em silêncio até que ele disse:
– O que foi aquilo noite passada?
– Aquilo o quê? – ela disse, desafiante.
– Você está sendo cínica ou tem medo de admitir?
Ela o olhou como se realmente não estivesse entendendo nada e disse:
– Do que você está falando?
Gui sentiu seu sangue ferver. Como ela podia ser tão hipócrita? Ele a pegou pelos ombros e disse:
– O que você pretende? Me enlouquecer ou abrir terreno para conseguir o que quer? Você espera que eu faça como você, fingindo que nada aconteceu? Você esteve lá, eu me lembro bem... Será que você já esqueceu?
– Guilherme, você está me machucando! E eu não sei do que você...
– Gui? O que você está fazendo? – a voz de Janine atrás dele o sobressaltou. Ele finalmente se deu conta que aquele não era o melhor momento para resolver aquele problema. Ele virou-se para Janine e disse:
– Eu... Eu me enganei.
Saiu do laboratório transtornado, sob o olhar de espanto de Janine e de Fleur, que parecia realmente não ter entendido nada, o que o deixou ainda mais irritado com ela. Decidiu juntar-se ao grupo que Carlinhos liderava, ficando atrás de todos apenas observando a instrução. Realmente não entendia nada sobre dragões e seu sangue, e, pela primeira vez desde que chegara, ansiou pelo fim da missão, para sair logo daquele inferno na escolta que levaria o sangue de dragão até a sede da organização que cuidava da reserva. Éden... Gostaria de saber quem havia posto naquele inferno um nome de paraíso.
– Muito bem – disse Carlinhos, ao final da sua preleção, – temos pela frente pelo menos dois dias de muito trabalho. Precisamos achar os oito dragões que monitoramos, os que estão em melhor condição na reserva, portanto, os mais perigosos. Gostaria realmente de pegar pelo menos quatro hoje, o primeiro dia sempre rende melhor. Lembrem-se: temos que ficar todos unidos, agir em conjunto. Gui, você é praticamente apenas um observador, mas aja como se fizesse parte da equipe. Acho que o treinamento que te dei é suficiente, mas não tente nenhuma graça. Lembre-se que você está aqui apenas para verificar o que está acontecendo e relatar para seus chefes, conforme o combinado.
Gui assentiu em silêncio e todos rumaram para suas vassouras. Carlinhos recomendou que pusessem as luvas e os capacetes antes de sair da reserva. Gui ajeitou o capacete, que era um pouco incômodo, baixando a viseira transparente sobre os olhos. Com o rabo do olho ainda viu Fleur, que o observava calada e intrigada da porta do laboratório. Quando Carlinhos deu a ordem, levantou vôo com os outros sem mais olhar para baixo.
Quando estavam todos no céu, Carlinhos começou a comandá-los por meio de gestos. A equipe era composta por seis pessoas, mais Gui: Carlinhos, que liderava; Michel e Celso, que eram os laçadores, munidos de correntes; Primakova, Cho e Olívio, que tinham como missão efetuar a coleta. Carlinhos escolhera cada dragão nas semanas anteriores, e os marcara com feitiços. Naquele momento, enquadrava um deles em seu mapa.
– Nosso amigo está dois graus na direção noroeste, a quatro minutos de vôo. Ele parece estar próximo ao lago. Pelo menos este está sozinho, vamos ter menos dificuldade.
Gui aproximou-se de Olívio, que como ele vinha na retaguarda, e perguntou:
– Não entendo nada de dragões, mas se os bichos são diurnos, não seria mais fácil fazer isso à noite, quando eles estão dormindo?
– Você já imaginou como é fácil aproximar-se de um dragão adormecido sem acordar os outros?
Gui não conseguiu responder, mas entendeu imediatamente. O dragão já era visível lá embaixo. Estava realmente na beira do lago, bebendo água em longos goles, fazendo uma nuvem de vapor levantar-se do espelho d'água cada vez que a bocarra enorme tocava a água. Era um norueguês, da mesma raça de Norberto, mas bem maior que este pois fora criado em liberdade. Pelos cálculos de Carlinhos, devia ter entre 40 e 50 anos e pesar mais ou menos duas toneladas. Como aprendera na instrução, Gui seguiu os outros, que passaram a voar em círculo sobre o dragão. Um novo comando fez os laçadores armarem as suas correntes e Primakova preparar a zarabatana com a poção para desacordar o dragão. Silenciosamente, Carlinhos deu a instrução para que baixassem devagar, até cerca de sete metros acima do dragão.
O animal deu pela presença deles e ergueu a cabeçorra em alerta imediatamente. Antes que ele conseguisse reagir, Carlinhos deu o comando que fez os laçadores atirarem as correntes, que se prenderam em volta do pescoço do monstro. Primakova voou para baixo como uma flecha, e, sem hesitação, soprou, acertando bem no meio dos olhos do Dragão, que quase automaticamente tombou, adormecido.
– "timo! – gritou Carlinhos, sem perder o tom de comando. Agora vamos laçar o bicho no chão e fazer a coleta rápido. Aqui é um bebedouro, muito usado, e pode aparecer algum outro a qualquer minuto – disse, observando o seu mapa acoplado na vassoura.
Demorou menos de cinco minutos para os dois laçadores prenderem as correntes ao chão pedregoso com ajuda de pregos. A cabeça do dragão desacordado ficara caída de lado ao longo da margem do lago, e Carlinhos deu um tapa carinhoso no alto dela, observando os olhos semifechados e a língua vermelha saindo pela boca, de onde saía um vapor constante. Com cuidado, ele arrancou o dardo e o devolveu para Primakova, perguntando:
– Quanto de poção usou?
– O suficiente para uma hora e meia.
– Ok, cronometre, então. Gui, venha cá – o irmão aproximou-se dele intrigado – Vê essa cicatriz? Ele disse, mostrando um pequeno risco sob os olhos do dragão. É culpa minha. Na minha primeira coleta, esse cara aqui acordou no meio da operação. Eu era o derrubador e havia calculado mal a quantidade de poção. Estava perto da cabeça quando ele acordou, para me livrar de uma rajada de fogo, peguei um dardo no bornal com a mão e enfiei às cegas no primeiro lugar que vi. Ele ficou com essa cicatriz, eu com essa grande que eu tenho na mão... Eu a deixei aí para me lembrar sempre de fazer meu trabalho direito.
– Carlinhos, estamos prontos – disse Olívio, que estava próximo da asa do dragão, esticada ao longo do corpo. Gui se aproximou curioso. Carlinhos, com muita agilidade, pulou para cima do corpo do dragão, equilibrando-se entre o dorso escamoso e o pescoço comprido. Apontou uma veia visível através da membrana asa esquerda, que, se observada atentamente, permitia ver a pulsação constante do sangue do dragão.
– Vai ser essa aqui – disse Carlinhos – Cho e Olívio, cuidado. Lembrem-se que o "caldo" sai a 120° do corpo do bichão.
Cho e Olívio seguravam um tubo metálico comprido e fino, que acabava numa extremidade pontiaguda. O tubo se acoplava a uma mangueira de aço articulada, que se ligava a um grande frasco de vidro protegido por feitiço anti-quebra. Carlinhos pegou sua varinha, baixou os óculos protetores e pôs uma máscara, ordenando que os demais fizessem o mesmo. Gui sentia-se perfeitamente inútil ali, uma vez que cada um dos outros fazia alguma coisa diferente. Os laçadores agora monitoravam o mapa, na expectativa de algum outro monstro aparecer; Primakova cronometrava a atividade e os outros, preparavam a coleta.
– Quanto tempo, Primakova?
– Uma hora e dez, contando – disse a moça, sem tirar os olhos do cronômetro.
– Mais algum por perto? – perguntou Carlinhos aos laçadores, só para certificar-se que trabalhariam em ambiente seguro.
– O mais próximo a leste, distante vinte minutos em vôo de dragão – respondeu Michel, atento a seu mapa.
– Perfeito – disse Carlinhos fazendo um feitiço desinfetante na pele sobre a veia que iriam perfurar. - Vamos ao show, rapazes.
Cho fechou os olhos quando Olívio perfurou a veia do dragão com o aguilhão. O animal contraiu alguns músculos, e Carlinhos procurou manter-se no seu precário equilíbrio sobre o animal, onde tentava manter a asa do bicho imóvel. O bicho adormecido deixou escapar um ruído gutural, e uma pequena nuvem de vapor saiu da sua boca. Quase imediatamente, Gui pôde notar que o frasco de vidro muito grosso, com graduações até 1500ml, estava se enchendo rapidamente com um líquido viscoso, incandescente e borbulhante; muito semelhante à lava de vulcão. Cho e Olívio, que seguravam a mangueira e o aguilhão com luvas mais grossas que as de todos os outros, pareciam ainda assim fazer um esforço para agüentar o calor do sangue passando no tubo de ferro, que começava já a ficar fulvo pelo calor. Cho ia contando:
– Quinenhentos... Seiscentos... Setecentos... Oitocentos... Novecentos... Meio litro para acabar... Quatrocentos para o fim... Trezentos...Duzentos ... Cem...
– AGORA! – disse Carlinhos aos dois, que com um movimento rápido, dobraram e estrangularam a mangueira de metal, que, graças ao calor, estava bastante flexível. Carlinhos então fez um feitiço refrigerante no metal, para tentar esfriar o sangue que ainda havia no duto. Por fim, com muita habilidade, ele mesmo retirou o aguilhão, de onde pendeu uma fina tira de sangue de dragão endurecido. Carinhosamente, aplicou um ungüento no local, finalizando com um feitiço anestésico. O dragão pareceu relaxar em seu sono induzido e Carlinhos, de pé sobre o dorso disse:
– Esse foi mole, hein?
Ele saltou com uma expressão descontraída completamente diferente da que tinha no início da operação, dando tapinhas no flanco escamoso do animal. Sorriu para Gui então e disse:
– Viu? Não foi nada, não é mesmo?
A visão do sorriso do irmão fez com que Gui se sentisse realmente muito mal.
***
Os dois dragões seguintes foram também muito fáceis. Ao final de cada operação, a equipe retornava ao acampamento e descansava alguns minutos, no intervalo em que o sangue era entregue no laboratório a Fleur e Janine. Gui evitou o laboratório, embora ciente que aquilo não era o comportamento ideal para quem estava vigiando o sangue do dragão. Mas preferiu acreditar que com o acampamento cheio e em plena atividade, seria impossível roubar qualquer amostra, por menor que fosse.
No almoço, sentou-se entre Cho e Olívio, sem conseguir descontrair-se por um único momento. Sentia que caminhava em gelo fino, que podia por em risco sua missão, podia fracassar se deixasse o problema com Fleur interpor-se entre ele e sua missão. Quando saíram para coletar o sangue do quarto dragão, Carlinhos aproximou-se e disse, baixo:
– Precisamos conversar depois.
Gui assustou-se. Teria ele descoberto?
– O quê? – ele disse, num tom mais alarmado que imaginava estar.
– Qual o problema? – disse Carlinhos rindo. – Eu só quero decidir com você uma forma de protegermos as amostras durante a noite... – ele baixou o tom de voz – precisamos vigiar o material, pelo menos até chegar a turma de escolta, depois de amanhã.
– Ah, sim... – completou Gui aliviado. – Você tem algo em mente?
– Tenho. Conversamos na nossa volta.
A coleta prosseguiu, então. Estava tudo parecendo perfeitamente normal. Encontraram o quarto dragão devorando a carcaça de uma cabra na encosta de uma montanha. Quando ele estava laçado e pronto para a coleta, Celso deu o alerta.
– Dragão a menos de cem metros, Carlos.
– Como?
– Aparece aqui.
– Mas nós não vimos nenhum dragão na vizinhança – disse Cho.
– E ele vem para cá. Parece vir por terra – disse Celso, olhando para o céu. Se estivesse pelo ar, estaria mais rápido e já o teríamos visto. Abortar operação?
– Não. Estamos com tudo pronto... Não vale a pena abortar – disse Carlinhos – rápido Cho e Olívio.
O procedimento seguiu sob tensão, principalmente quando Celso disse:
– Está muito próximo, não sei como ainda não o vimos! – O procedimento acabara de ser finalizado naquele instante, e Carlinhos consultou o mapa. Subitamente, pareceu entender. Estavam sobre um ninho subterrâneo, era provável que a entrada estivesse oculta em algum lugar próximo. Havia muitas cavernas por ali. Era alguma fêmea entocada protegendo a cria. Por isso deslocava-se devagar.
– Não temos muito tempo a perder – disse ele entredentes. É uma fêmea entocada, ela está bem abaixo de nós... Vamos libertar esse dragão e dar o fora. Rápido, todos para as vassouras.
Num movimento coordenado, cada um correu para sua vassoura e preparou-se para voar. Quando Gui montava a sua, ele viu. Além deles, a poucos metros, na encosta da montanha, dois olhos amarelos espreitavam na escuridão de uma caverna. Ela estava ali, e os estava caçando. E Carlinhos ainda não a vira, porque estava de costas para ela.
– Carlinhos – ele murmurou para o irmão – ela está nos olhando – Carlinhos acompanhou lentamente o olhar do irmão e também viu. Sem perder a calma disse:
– Primakova e Cho... Andem até a orla da floresta e levantem vôo. Não discutam – ele olhou na direção do dragão do qual eles haviam coletado o sangue, ainda adormecido e olhou para os olhos na fenda da montanha. Ele sabia que eram de espécies diferentes, e sabia também que não podia deixar aquele dragão à mercê de uma fêmea maior e mais forte. Quando Cho e Primakova levantaram vôo ele disse: – laçadores, libertem o bicho e façam a mesma coisa; Olívio e Gui, vão com ele.
– Eu não vou a lugar nenhum. Não vou deixar meu irmão virar comida de dragão – disse Gui
– Eu te disse que ninguém discute comigo. Laçadores, agora.
– Evanesco – disse Michel, fazendo as correntes desaparecerem.
– Carlinhos...
– Vá, não discuta... Quem entende de dragões aqui sou eu, lembra? Rápido. Ela está se mexendo.
Gui deu alguns passos hesitantes e então olhou para trás. Viu o corpanzil da fêmea saindo da caverna. Então compreendeu a preocupação do irmão, pois percebeu que o que ela realmente temia era o grande macho de Norueguês. As duas raças num mesmo espaço geográfico às vezes predavam as crias umas das outras. Ele sentia-se paralisado. Carlinhos disse, calmamente:
– Saia daí AGORA!
Gui levantou vôo, mas não se juntou aos outros. Voou bem alto na direção da encosta, pensando numa forma de tirar o irmão de entre os dois dragões. Viu que o irmão acompanhava com os olhos os movimentos da fêmea, e surpreendeu-se quando o viu usar um feitiço para acordar o dragão adormecido.
O que aconteceu a seguir foi muito rápido. Gui viu o jorro de chamas do macho norueguês, e a resposta da fêmea de rabo-córneo, mas não conseguiu ver o irmão, entre os dois dragões. Subitamente, o macho desapareceu, e a fêmea parou um instante, hesitante, procurando pelas presas. Gui ainda olhava apavorado para baixo quando viu uma vassoura emergindo como uma flecha do meio de uma área na floresta, bem adiante. Era Carlinhos, que voava em sua direção furioso.
– Que graça foi aquela lá embaixo? Eu não te disse que sabia o que estava fazendo? Vamos sair daqui RÁPIDO, antes que a fêmea resolva nos seguir pelos ares.
– O que... Oque você fez?
– Ah, o que eu fiz? Oh, será que um especialista em dragões com dez anos de experiência precisa do seu irmãozinho mais velho para salvá-lo de uma situação que ele já viveu mais de cem vezes? Eu só evitei que movimentos bruscos pusessem tudo a perder até que todo mundo estivesse a salvo. Daí despertei o norueguês e desaparatei para um lugar seguro pra levantar vôo.
– Mas... Mas o dragão sumiu!
– Claro. Eu não ia deixar que dois espécimes adultos e saudáveis de espécies diferentes se matassem, ia? Assim que me vi em lugar seguro, o despachei com um feitiço para além da montanha. Ele vai ficar por umas horas desorientado, mas vai sobreviver.
– Desculpe... Eu...
– Devia ter confiado no seu próprio sangue – disse Carlinhos, rindo, já descontraído. – De qualquer forma, valeu pela sua preocupação – ele completou olhando o irmão com uma certa admiração. – Eu acho que também não te deixaria para trás numa situação como essa.
Um gosto amargo surgiu na boca de Gui, que remoeu em silêncio sua traição.
