Dois dias se passaram. O Dojo fechou as portas nestes dias, de luto. Megumi vinha visitar Kaoru diariamente. Temia que a hemorragia pudesse reaparecer. Sentia a consciência pesada por não ter dado aos dois a oportunidade de ficarem felizes com a notícia. Roubara a alegria da própria amiga, e do homem que a salvou. Sentiu-se inútil como médica. Nem todo conhecimento adquirido puderam salvar a pequena vida que surgia dentro de Kaoru. Como ela não conseguira prever que essa fosse uma gravidez de risco? Kaoru tinha todos os sintomas de uma gravidez normal. Estava bem alimentada, saudável, alegre. Não existia razão lógica para tamanha tragédia.

Ao entrar no Dojo, viu Kaoru sentada na bancada. Ela sorria timidamente para Kenshin, oferecendo chá, tentando fazer com que ele saísse daquele transe sombriu. Kenshin não chorava mais. Também não sorria. Não comia. Não dormia. Chorava, sem lágrimas, a morte de um filho que só veio a saber quando já era tarde demais.

Vamos, Kenshin..... tome só um pouco...... por mim.....

Kenshin pegou a cumbuca. Levou aos lábios. O líquido quente parecia areia em sua boca.

Kaoru-san..... como está hoje? – disse Megumi aproximando-se.

Estou melhor..... ao menos já consigo comer.... já Kenshin....

Vou buscar um pouco de água...... só um instante. – a doutora se retirou.

Chegando na cozinha, Megumi notou o belo jarro de sakê do outro dia. Pintado a mão, não resistiu a curiosidade e abriu, para saber seu conteúdo. Sentiu o cheiro..... reconheceu o sakê..... e mais um odor familiar.....

PAPOULA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Megumi segurou o jarro com as duas mãos e correu ao encontro do casal.

Kaoru, de quem é esse jarro?!!

A menina olhou para cima, de encontro ao belo jarro nas mãos da doutora.

Ah..... com tudo que aconteceu, eu esqueci de contar...... esse é um sakê que Hiko-san mandou para Kenshin.... bonito, não? E é gostoso também..... era para ser uma surpresa, mas.......

Você tem certeza que foi Hiko-san quem enviou esse sakê?!!

Certeza mesmo eu não tenho.... mas veja as pinturas..... são de Hiko-san, ne Kenshin?

Hiko-san me mandou sakê? Por quê? Ele nunca manda nada para nós sem um bilhete..... deixe-me ver. – curioso, o rurouni segurou o vaso com as mäos. – sim.... é um dos jarros dele....... – abrindo a tampa, Kenshin foi levando-o a boca.....

NÃAAAAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!! –Megumi gritou, enquanto num tapa jogou o jarro das mãos de Kenshin, vendo-o quebrar em cacos e o líquido escurecer e umidecer a terra.

Mas...... por quê você fez isso?!! – Kenshin perguntou.

Kaoru, me responda!!! Você tomou desse sakê?! – Megumi gritava incontrolavelmente.

S-sim..... mas foi só um golinho.... parecia de tão boa qualidade que eu pensei em experimentar....

Megumi!!!! Onde você quer chegar?!!!!!!!!!! – Kenshin levantou-se num pulo, encarando-a.

Kaoru...... você foi envenenada!!!! Tem ópio nesse sakê!!! Foi isso que te fez abortar!!!! Tem ópio no sakê!!!! Se você tivesse bebibo um pouco mais......

Eu teria.... morrido........

Então o sakê era para te matar, Kenshin..... – Sano concluiu.

Era para mim..... e Kaoru se envenenou por acidente...... mataram meu filho..... – os olhos de Kenshin subtamente ficaram dourados, brilhando morbidamente.

Sano conhecia esse olhar. O hitokiri mostrava sua face. Yahiko, num canto, perguntou:

Mas quem? Por quê?

Quem eu vou descobrir. Agora o porque, não tenho certeza se ele, ou ela, vai estar vivo para contar. – Os dentes dele grunhiam..... afiados, como de um animal selvagem.

Kenshin estava controlado, mas sua loucura arrepiava Sano.

Mas como descobrir quem foi? Não tem nenhuma pista, nem razão.... nada...

Temos sim, Sano..... o jarro. Foi feito por Hiko, mas tenho certeza que não foi ele. Não posso sair daqui a seu encontro e deixar Kaoru sozinha, mas mandarei uma carta com um pedaco do jarro. Ele deve se lembrar para quem o vendeu. Cedo ou tarde, a caçada vai começar.

Uma semana depois a resposta de Hiko chegou ao Dojo. Por sorte ele havia vendido, nas últimas semanas, apenas um jarro. O mesmo que fora usado como recipiente do sakê envevenado. Ele disse que fora um homem de aproximadamente 50 anos, de cabelos longos, castanhos, bem vestido, muito sorridente e educado que havia comprado a peça. Não o reconhecera como algum hitokiri do Bakamatsu, então lamentou a tragédia. Não tinha idéia quem era aquele homem. Só se lembrava que ele tinha uma cicatriz na garganta, como se tivessem tentado degolá-lo. Mas como ele tinha idade para ter sobrevivido a restauração, e muitos carregavam cicatrizes da época, Hiko não deu muita importância.

Não faço idéia de quem possa ser.... naquela época muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo. E ter cabelos compridos não significa nada... – pensou Kenshin.

O doce rurouni sumira nesses dias. O estado mental de Kenshin preocupava os outros. Não que ele estivesse mal educado, ou agressivo.... mas algo assustava os outros do grupo. Ele aparentava loucura, calculismo. Era frio quando se referia ao ocorrido, como se estivesse à parte de tudo. Muitas vezes foram pronunciadas as palavras "vingança" e "morte". Se fosse o hitokiri seria normal. Mas ele não era mais Battousai por 10 anos. Não estavam acostumados a ver essa outra face. Podia-se dizer que Kenshin se tornara a própria face da morte: gentil, aparentemente inofensível mas letal.

Kenshin levantou-se.... comecou a andar pelo pátio. Kaoru o observava quieta. Tinha até medo de perguntar. Via seu amante a andar de um lado para outro, calmamente, olhos vidrados no horizonte. Ele não se importava com o frio que estava fazendo no dia, ou com a garoa que caia incansavelmente. As meias úmidas faziam barulho quando ele andava, as mãos dentro do gi, espada na cintura. Ela se preocupava tanto. O relacionamento dos dois não era mais o mesmo. Mal se beijavam, mal conversavam. Ela perdera Kenshin para a escuridão da própria raiva. E ele não parecia querer encontrar o caminho de volta. E se ele voltasse, nada garantia que quisesse fazer parte daquele mundo que estavam vivendo antes da tragédia. Só que Kaoru estava determinada a apoiar o homem que amava a qualquer custo.....

Kenshin abriu o portão e saiu. Então parou, olhou para trás e....

KAORU!!!!!!

Kenshin?!!!!!!

Kaoru correu para fora. A lama do pátio escureceu as meias brancas, os respingos marrons no kimono. Ela atravessou o portão e, olhando na mesma direção que Kenshin, viu pintado em vermelho, no muro do Dojo, um enorme número 4.....

Shi!!!

Kenshin, o que isso significa?!!!

Dizem as lendas que o número quatro (shi) é o número da morte, já que tem o mesmo som da palavra "morte" (shi). Na época do Bakamatsu era comum os agentes de Tokugawa pintarem esse número na porta daqueles estavam marcados para morrer. Especialmente um homem conhecido com esse mesmo nome... SHI....

E por que esse homem quer te matar? O que você fez para ele?

Eu não sei. Nunca lutei com ele..... Kaoru, eu quero que você me prometa uma coisa: não saia do Dojo, não converse com estranhos, não faça nada fora da sua rotina. Ele com certeza vai me procurar, e não quero que você se torne um alvo fácil. Não quero que nem você, nem Yahiko desobedeçam essa ordem.

Os olhos de Kenshin brilhavam

A madrugada estava silenciosa. Kaoru dormia profundamente ao lado de Kenshin. Ele se mudara para o quarto dela desde a perda do filho. As horas corriam, mas ele não dormia. Ao encontrar o 4 pintado no Dojo, se cobrava a lembrar a razão que este assassino tinha para querer atacá-lo.

Onze anos antes, quando ainda era hitokiri, Kenshin ouvia as estórias sobre esse SHI. Diziam que era um assassino novo, aparecera a menos de 1 ano, mas era implacável. Ninguém conhecia sua face, diziam que era como um fantasma, invisível. Antes um samurai de Edo, costumava fazer justiça como as leis de fidelidade ao shogun mandavam: executando os condenados na ponte Nihonbashi. Não se conformando com a perda do poder Tokugawa, ele se tornou um hitokiri, mas só matava a mando do shogun. Mas alguma coisa o fez enlouquecer, ele se tornou incontrolável. Matava a todos que passavam em seu caminho, não poupava nem os próprios companheiros de grupo. Até que foi pego em uma emboscada e degolado na própria ponte Nihonbashi, que ele tanto usou como palco para sua justiça mórbida. Jogaram o corpo no rio, e nunca mais se ouviu falar dele.

Ele sobreviveu....... mas por quê quer me matar?